Eu não queria ter cedido, ter saído, não queria mesmo, mas foi realmente preciso, já estava ficando maluco, aí deixei minha namorada na cama e saí, saí sim, verdade, isso era noite-quase-manhã. Estava desesperado, precisava chegar ao escritório, andei um tanto, fui a pé pela Brasil, subi até a Praça da Liberdade, aí desviei, desviei dos dormitórios de mendigos, dos adolescentes bêbados, das prostitutas em fim de expediente, das poças de urina do chão, mas da melancolia da quarta-feira de cinzas não, dela não pude desviar, dela não se pode fugir, amigão, apenas seguir em frente – a melancolia vem de cima, vem dos lados, vem de toda parte, nunca foi diferente. Na infância era até pior: levavam-me à missa neste dia e lá eu via o padre riscar testas enfileiradas com cinzas. Uma estranheza, um clima sombrio, uma melancolia em estado puro, e havia coros de senhoras sinistras cantando hinos tão antigos que poderiam ainda ser em latim, sabe, como na Idade Média? Talvez até fossem mesmo em latim, sei lá, é bem possível, eu não conseguia prestar atenção em nada que tivesse a ver com joelhos no chão. Na verdade, eu não conseguia me concentrar em nada que não fossem as vozes… essas vozes… minhas vozes falando e falando dentro de mim (ou as sombras que, já naquela época, me vigiam nas esquerdas e direitas). Hoje em dia não vou em cultos ou missas, quanto mais na quarta de cinzas, mas quem risca minha testa são os dias, riscam solenemente com as cinzas dos sonhos e amores queimados por essa paródia, sabe? Paródia de uma vida que deveria ser feliz. Mas esta é outra história, não quero me alongar mais, na verdade são outras histórias (porque são muitas), não, mentira, nem são muitas, mas são mais de uma, daí o plural. Apesar de ser quase dia, estava escuro, eu tenho medo de escuro. Fui andando apressado, as vozes me falando, as sombras me seguindo, e eu pensando… Pensando no que? Eu acho que pensando que convivo com o medo do escuro desde quando vi a luz pela primeira vez. Não devo ter chorado, não por ter nascido, estava feliz após um longo nono
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