Subversa | literatura luso-brasileira | V. 14 | n.º 03
© originalmente publicado em 20 de setembro de 2021 sob o título de Subversa ©
Edição e Revisão: Tânia Ardito e Fabíola Weykamp
Ilustração de capa: captura de tela da coreografia “Fase”, de Anne Terese Keersmaeke
Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.
2
Índice
Viagem ao Oriente | Anaí Bueno Minibiografia | Freixo SOBRE A VASTIDÃO | Freixo Deslembrar | Andreza Andrade Conselhos de Manoel | Bruna Rocha Nut | Daniel Rodas CHAMAS | Douglas Domingues voyager | Douglas Siqueira erosão | Douglas Siqueira Notas de um burro sobre a burrice | Eduardo Canesin águas são espaços abertos | Erlândia Ribeiro poema de espera | Felipe Gomes Eu vou morrer. | Felipe Pinheiro Barreto [fogos e artifícios] | Gabriele Rosa [LAMENTO LUSOTROPICAL] | Guilherme G. Figueiredo Sopro da morte sobre o mundo | João Ricardo Dias TAG | Júlio Valentim Barbosa Neto Cada detalhe | Kátia Surreal Falso entendimento… | Maria Martins Torres Batalha| Priscila Kerche Violência dos tempos | Priscila Kerche Noite aflita em Roma | Tuca Silveira O mundo não foi feito para quem se importa demais | Tuca Silveira ii. art trouvé | Victoria Gonçalves Rebello Colunas 3
Editorial
A capa deste número é uma captura de tela da coreografia “Fase”, de Anne Terese Keersmaeker, onde três bailarinas levam o espectador ao limite do ato repetitivo, essa sensação esquisita sempre pronta a nos convidar ao desaparecimento. O movimento dos corpos e das luzes, ao longo da obra, vai fazendo com que outros corpos apareçam, talvez mais íntimos que aqueles que se apresentam no palco. Algo que surge quando a gente desiste de dizer quem é, que é diferente do que a gente diz, que nos dá um molde, uma roupa nova, uma caminhada pelo mundo com olhar diferente. Quase dois anos desse mundo que vai aparecendo na sombra de um mundo velho, que já não abriga mais as mesmas coisas nem os mesmos corpos, faz surgir aqui um conjunto de textos que também apareceu pela voz múltipla de poetas que vieram contar como é desaparecer num mundo cada vez mais levado ao limite da repetição, até que surja o novo. Como no poema de Anderson Freixo, vamos nos tornando uma revista sem biografia, sem endereço, mas com um lugar: o da arte literária. Não nos interessa a descrição nem o conceito porque a descrição e o conceito não ajudam ninguém a andar, são apenas documentos que permitem ou impedem a entrada. Vamos aparecer nos atos que nos colocam sempre prontas a desaparecer, sempre prontas a ocupar o espaço que nem sequer conhecíamos. Este número fez a Subversa aparecer não pelo que nós queremos que ela seja, mas no que ela é capaz de transformar com linguagem artística. E, por isso, desejamos a todos uma boa leitura. As editoras, Tânia Ardito Fabíola Weykamp Morgana Rech
4
Viagem ao Oriente | Anaí Bueno
Te amo na pupila do teu olho no refúgio de uma ilha De canto noto o tropeço estampando no teu rosto A música disfarça numa dança marionete as plumas voam perdidas ao vento Ao espelho pergunto quem é mais do que eu o safado se quebra O sangue escorre na linha da vida curar o corte é o que resta A ausência passeia no reencontro sem melodia, sem penumbra te enxergo um pé esquiva me entrego
Anaí Bueno | Rio Grande, Brasil | Papareia, lê e escreve porque a vida transborda. | anaibuenoc@gmail.com | instagram: @bueno.anai
5
Minibiografia | Freixo Ao mandar textos para revistas literárias, é comum que solicitem uma biografia, que acompanhará o texto publicado. Ao longo de minha vida, tive de me entregar diversas vezes a esse exercício autobiográfico por conta dessa formalidade. Acontece que ao concluir tais trabalhos e lêlos em seguida, sempre fico um pouco perplexo, desconcertado. Falando as coisas assim, em ordem cronológica, de forma encadeada, dá a impressão de que minha vida tem um sentido, eu chego quase a acreditar que tenho um propósito no mundo. Que é o qualquer coisa que aparecerá ao fim da minha biografia, depois que eu morrer. Apesar de escrever honestamente, sinto-me sempre um farsante. No arrastar longo dos dias, essas coisas pontuais e dignas de nota são praticamente acidentes de percurso. Não dizem a verdade sobre mim. Como coisas intempestivas que são, não dão conta da minha vida propriamente dita, mas sim, justamente, do que não costuma ser a minha vida. Minha vida, em si, é composta em grande parte por longos tédios, longos cansaços, longos sofreres, e coisas que faço e que me acontecem que são absolutamente sem propósito. Uma biografia que desse conta disso, por outro lado, seria, no mínimo, inútil. Eu gostaria enormemente de viver minha biografia, ao invés da minha vida propriamente dita. Seria uma vida sintética, elegante, e, mais importante, rápida. Minha vida natural, por outro lado, é antibiográfica. Narrar meu nada, meu vacilar, meu quase ser, o que me dói, ou apenas como mato o tempo, parece muito mais indicativo do que sou do que os fatos que se sucederam comigo, que parecem dizer mais da mecânica geral do mundo e do universo do que de mim. Mas essa narrativa, por outro lado, dificilmente prenderia o interesse de qualquer leitor. É uma questão difícil. Talvez o melhor mesmo fosse esquecer da vida. Escrever sobre coisas mais importantes.
Freixo | Feira de Santana, Brasil | anderson.freixo@gmail.com
6
SOBRE A VASTIDÃO | Freixo
poetas menores tentados a rimar no infinitivo enquanto grandes poetas encaram o infinito o resto da vida ínfimo do outro lado do mundo o lado de cá é lá entre os dois lados dificuldade eu não entendo é difícil tanto louco se acha napoleão um deles tomou a espanha os outros, remédios o que é o mundo o que é a vida eu não entendo é difícil tanto tempo, tanto verbo tão pouco sentido.
Freixo | Feira Santana, Brasil | anderson.freixo@gmail.com
7
Deslembrar | Andreza Andrade
Nunca mais verei minha vó preta, Macumbeira e baiana da escola de samba. Meus primos nordestinos, Meus tios avós da roça, Com seus chapéus de palha e cigarros de rolo de fumo. Nem comerei as broinhas do tio João, Ou a peixada da tia Quininha. Nunca mais irei ver as lavadeiras no rio, Nem andarei na boléia dos carros poeirentos que levavam até à cidade do meu pai. Nunca mais andarei de barco na represa que inundou as terras dos meus avós, Nem no cemitério onde agora descansam submersos. Estão mortos, Todos nós.
Andreza Andrade | São Paulo, Brasil| é paulista, mestre em Literatura pela UNESP. Pedagoga, gestora educacional e cursa Pós-graduação em Educação e Direitos Humanos pela UFABC. É colunista na Revista Cassandra. |andreza.andrade@sme.prefeitura.sp.gov.br
8
Conselhos de Manoel | Bruna Rocha Para Manoel de Barros
Curiosa, pesquisei no Google “Como escrever poemas” Deparei-me com uma porção de regras Não concordei com o que li Muito mais prazeroso me parece desobedecê-las Não é este um direito do poeta? Prefiro ser adepta ao “idioleto manoelês” Permito-me dizer que “ontem choveu no futuro” E que “falo e escrevo absurdez” Se for para escutar conselhos Escolho os de um sábio bocó Que desconstruiu e quebrou regras Fazendo-me perceber que “Meu quintal é maior do que o mundo”
Bruna Rocha |São José do Rio Preto/SP, Brasil |brunalaisrocha@hotmail.com
9
Nut | Daniel Rodas
I Conheci Raquel numa praia. Não lembro qual. Duas da manhã. Dunas. Luz de farol ao longe. Verde. Ilha de Itamaracá. Acho. Os passos dela na areia. A garota sentada ao longe. Maranhão. Talvez tenha sido. Naquela época eu andava por. As costas dela como ondas nuas.
II Você viu? Onde? Ali. Junto das tartarugas. Raquel… O quê? Você tem família? Pai e mãe. Irmã? Os olhos dela cravam na minha testa. Você não viu. O quê? A estrela. A estrela cadente… Eu vi. Estou vendo. Depois do farol, não é? Não há farol aqui. Você é doido. E nem me disse o seu nome. Disse sim. Não disse. Você tem família? Toca no meu peito. Sobe e desce das ondas. Agora tenho.
III Passamos três semanas juntos. Casa de praia. Hotel. Depois a cidade e o apartamento. Compramos. Uma vitrola antiga numa loja de antiguidades. E esse vaso? Quanto custa? Chinês. Não. Do Oriente Médio. Aquele vestido que usava às vezes. No final da tarde. Toda sexta. Gostava do pôr-do-sol no Recife. Carregado pelo lombo dos tubarões. Tubarões têm lombo? Você pergunta demais. É doido. Por isso gosto de você. E dessa pinta na sua testa. É uma espinha. Parece uma ilha. Acho. Ou ruga. Gosto de caras mais novos. Não sou mais novo que você. Mais novo de alma. Sim. Talvez. Quer um boquete? Dos bons. Ela desce. Zíper aberto. Depois retribuo. Gemidos. Risadas. Ele ri mais do que geme. Cavalga. Sempre por cima. Nasci para estar por cima. Conhece o mito de Geb e Nut? Não. Geb era o deus da terra. Marido de Nut a deusa do céu. Nut está sempre por cima. É o espaço distante que tudo engole. Já viu as estrelas? Onde? Nas minhas estrias. Você não tem estrias. Riso. Na sua testa.
IV Oito tatuagens ao todo. Número infinito. Cabala. Cada tatuagem era um tipo de pentagrama. Estilizado em motivos diversos. Culturas distintas. Levantava sempre às sete. Dormia sempre às três. Quando 10
acordava olhava no espelho. Treze rostos no espelho distorcido. Amanhã é trinta e um de dezembro. Já? Final do ano. Fogos. Toda passagem é roxa. Como as marcas na pele dançando em nossos corpos. Eu e ela. Virávamos madrugadas em chamas. Consegue sentir? Os tufões no meu peito. Ondas? Não. Galáxias.
V Compramos um cachorro pouco depois. Era preto. Olhos pretos. Até a língua talvez fosse preta. Exceto uma pinta acima do focinho. Bem no meio da testa. Branca. Vamos chamando de Hadit. Ela disse. Sério? Por quê? Sorriso dela. Parecia uma cortina em vendaval. Depois fechava. Chuva. Sempre chovia quando estava quieta. Chuva fina. Cintura esculpida. Algo que nos olhos lembrava o mar. O mar tocando as estrelas. Subindo. Ressacas de espelhos náufragos. E à noite me engolia de boca a boca. Até que de manhã você sai. Ela diz. O Duat é o meu ventre. Lá fora o sol nasce e a serpente. Morre no meu umbigo.
VI Foram três semanas. Talvez sete anos. O tempo com ela subia. Se perdia nas voltas do relógio. Clepsidras. Areais. A areia nas mãos que escorria. O cachorro sempre aos seus pés. Lambendo. O cachorro me lembrava alguém. Quantas dimensões cabem numa mordida? Entre os seios. Dela. O cachorro de um lado. Eu de outro. Ela uiva de prazer e as janelas estremecem. Sou seu servo! Diz o cão. Sou seu escravo! Digo eu. Não quero servos nem escravos. Não quero nada inventado pelos homens. Eu quero
VII Só deixou um bilhete. O cachorro morreu engasgado. Três ou quatro linhas escritas. Um lacre em formato de estrela. Vi pela lanterna. Não abri.
Daniel Rodas | Teixeira/PB, Brasil | escritor, poeta e dramaturgo. Autor do livro de poemas Umbuama (Editora Urutau, 2021) e da plaquete Eros e Saturno (Editora Primata, 2021). Faz parte do grupo de teatro ExperIeus da cidade de Monteiro-PB, onde colabora como ator. Pensa na poesia como um fluxo, como o fluir incontrolável da vida. | drodas917@gmail.com
11
CHAMAS | Douglas Domingues
As chamas bem dispostas e contidas Contrastam com a ira tão dispersa E essa reunião foi consentida Quiseram ingressar na controvérsia E falam com a boca entupida Das coisas que guardadas disfarçavam A cara empapuçada então vomita Verdades que se perdem na fumaça E eu me afasto e alimento as chamas E torço para que não mais me notem Prefiro observar em segurança Até por que estou ébrio e não torpe E sei por que eu vim e permaneço De novo em tal situação tacanha Por que fica difícil resistir Ver briga de família, e com picanha
Douglas Domingues | São Paulo, Brasil |É um autor de textos esquisitos sobre temas imbecis. Aficionado por quadrinhos baratos, filmes ruins, música esquisita e coisa parecida. Mora em São Paulo, onde leciona cinema, audiovisual e novas mídias no ensino superior privado. |duubhs@gmail.com
12
voyager | Douglas Siqueira
paz e felicidade a todos diz a voz de Janet Sternberg em cobre e ouro no silêncio do espaço à espera de outro que lhe toque o corpo e gire tudo de novo plus loin que la nuit et le jour ele olhou para o céu e ouviu na janela era um deus que cantava ou a trilha da novela voyage voyage et jamais ne revient
Douglas Siqueira | São Paulo, Brasil | nasceu em 1984, no estado de São Paulo. É roteirista, bacharel em Midialogia pela Unicamp. Lançou seu primeiro livro, “Multiverso”, em 2019, pela Editora Madrepérola. | douglasossiqueira@gmail.com
13
erosão | Douglas Siqueira
sob o sol do meio-dia por cima de ondas e sais me oferto à transição: tornar-me pedra ainda que este corpo hesite a existência se amontoa dura e entoa um canto cinza: o som dos magmas e finco o tempo preciso até o primeiro espasmo de uma outra forma de ser: a erosão inédita
Douglas Siqueira | São Paulo, Brasil | nasceu em 1984, no estado de São Paulo. É roteirista, bacharel em Midialogia pela Unicamp. Lançou seu primeiro livro, “Multiverso”, em 2019, pela Editora Madrepérola. | douglasossiqueira@gmail.com
14
Notas de um burro sobre a burrice | Eduardo Canesin 1. Quando a quarentena começou, eu sabia que o isolamento social não me afetaria negativamente – na verdade, seria até um alívio, já que sou meio sociofóbico. Após mais de um ano nesse regime de reclusão, continuo com o mesmo pensamento, mas algo me aflige: sinto-me preso. Não preso em um espaço físico, posto que posso sair para caminhar, além do fato de que gosto de ficar entre quatro paredes (e em cima de uma cama e debaixo de uma coberta). Sinto-me preso em minha própria mente, vítima de minha burrice. “Burrice” é uma palavra simples demais para expressar como me sinto – mas, como sou burro, não consigo pensar em nenhuma outra. Consolome, ao menos, em saber que é uma burrice só minha, bem original – ou talvez não seja, só achei isso porque sou burro. Até então nunca tinha pensado no assunto, ocupado que estava com outras pessoas (isto é, me irritando com elas de vários modos possíveis). Minha burrice consiste em uma mente rasa. Não de um tipo raso, plano e sereno, como um monge zen ou um sábio chinês (que não são burros), pois não estou em paz, não estou sereno. Minha mente está em polvorosa e em desespero. Minha inquietação, contudo, não é cheia de dialética, como a de Adorno e Horkheimer, tampouco iconoclasta como Nietzsche, ou existencialista como a de Sartre: é uma inquietação burra, que sabe que algo está errado, mas não sabe o quê. É como se eu estivesse em uma zona liminar: tenho a estrutura sentimental que me permite sentir algo que não sei nomear (porque sou burro), mas não a sofisticação intelectual para me expressar e desenvolver minhas agonias. Sinto-me desorientado, como se tivesse algo a que não tenho direito: sentimentos profundos. Curiosamente, nunca me sinto fraudado, como se devesse ter a estrutura intelectual que não tenho. Sou mais propenso a querer devolver os sentimentos que sinto que não mereço do que a querer o intelecto necessário para expressar tais sentimentos. De um jeito ou de outro, sinto tragicamente que não conseguiria qualquer uma dessas coisas. 2. Minha burrice é cíclica e rasa: volto sempre aos mesmos argumentos, nunca avanço, aprofundo ou concluo com exatidão. E, às vezes, esqueço minhas ideias enquanto estou escrevendo o texto. Caso as lembre depois, não posso editar os parágrafos para incluí-las “no lugar”, 15
pois, uma vez que foram esquecidas, não têm mais um lugar: não sou bom para fazer alterações no meu texto que não sejam pontuais (trocar uma palavra por outra, para deixá-lo mas fluído). Aliás, hoje acho que qualquer fluidez no meu texto (algo que busquei por muito tempo) é um reflexo dessa burrice, já que não escrevo períodos longos e frases inexpugnáveis como muitos intelectuais consagrados. Sempre achei que esses intelectuais eram como aquelas personagens da fábula da “roupa nova do rei”, as quais diziam que só os inteligentes veriam a roupa (que na verdade não existia): só os verdadeiramente inteligentes entendem o que tais intelectuais dizem. Justamente por isso, essas pessoas inteligentes escrevem teses para dizer o que os intelectuais queriam dizer quando disseram o que disseram – seja esse algo a transcendência da imanência ou qualquer outra coisa que jamais entendi e sempre me deu calafrios quando me deparava em um texto. Confesso que talvez só tenha achado que eles eram como as personagens da fábula porque, no fim, sou burro mesmo. E talvez realmente houvesse uma roupa, no fim das contas, já que estamos em tempos de relativismos, perspectivismos e pós-pós-pós-modernidades – e todos os inteligentes colocam “s” no final dos conceitos, para dizer que eles (conceitos) têm várias facetas, igual político em época de eleição. 3. Já me perdi de novo em minhas notas e reminiscências e tenho preguiça de voltar e reler o que escrevi até aqui. Aliás, outra faceta de minha burrice é a preguiça intelectual e a pouca resistência: quando estou escrevendo, canso-me no meio e abrevio o texto para acabar logo com ele. Já estou chegando nesse ponto, por isso vou apenas colocar outros aspectos de minha burrice, sem desenvolvê-los: leio de modo superficial e não guardo conceitos (só me recordo de temas transversais de um texto, nunca de sua ideia central); não consigo prestar atenção em aulas ou pessoas falando por mais do que 3 minutos; minha cabeça está sempre em polvorosa, pulo de uma ideia para outra em questão de segundos e não consigo silenciar minha mente. Vale dizer que, nesse último aspecto, tenho usado esse turbilhão e fluxo de pensamentos para escrever contos bem surrealistas (na verdade, “ultra-metacaguistas”), com uma metalinguagem bem minha. Talvez eu seja meio esquizofrênico. Jamais conseguiria desenvolver uma história com começo, meio e fim, personagens desenvolvidos, conflitos etc. Só posso criar esses textos 16
doidos que faço e (quase) ninguém lê. Ou eu serei um baita escritor de vanguarda no futuro ou sou só um burro incapaz e presunçoso (imagino que vocês já imaginam o que imagino que sou). 4. A palavra mais difícil que conheço é “mormente” e a aprendi lendo uma HQ do Doutor Estranho da década de 80 que comprei em um sebo. Eu tinha 15 anos, olhei no dicionário, aprendi seu significado e passei a usála nos meus textos. O fato de há quase 15 anos eu ter a mesma palavra como a mais difícil de meu vocabulário é sintomático de algo – só não sei ao certo de quê, já que sou burro. Sinto que, nos últimos anos, estou até perdendo vocabulário (será que tem relação com eu ter deixado de ler HQs do Doutor Estranho?). Algumas palavras que antes escreveria tranquilamente, hoje em dia me vejo penando e até escrevendo errado. Mas não faz sentido olhar em um dicionário como se escreve corretamente, se o corretor do BrOffice já me corrige. E não faz sentido procurar novas palavras no dicionário, pois não sei se acharia a que é realmente necessária – e fico com fastio ao ver as incontáveis palavras em ordem alfabética e com as letras do mesmo tamanho das que vêm nas bulas de remédio. Para ser franco, um dicionário, agora, não me ajudaria, pois não saberia manuseá-lo. A palavra que procuro, em minha burrice, para expressar como me sinto não pode ser encontrada em ordem alfabética. Dizer que sinto um desconforto ou angústia não me ajuda, tampouco procurar sinônimos para isso. O que me ajudaria seria um emocionário que me permitisse encontrar o termo exato para o que sinto. Se tal artefato existisse, os vocábulos não poderiam estar em ordem alfabética, ou não valeriam de nada. E quanto ao mecanismo de busca… se eu colocar que me sinto angustiado e com desconforto, veria que me sinto angustiado e desconfortável, e isso não me ajuda a encontrar a palavra para o que sinto (aliás, nota rápida: mais alguém sente que eu mudei de tema ao longo do texto? Eis um aspecto da minha burrice…), que é o que quero encontrar. Um emocionário eficiente viria com um cabo USB para acoplar à alma (ou ao cu, se formos vulgares). Com isso, ele nos daria o termo exato para aquilo que sentimos e não sabemos expressar – mesmo que fosse um neologismo. Eu me sentiria melhor se soubesse que me sinto “abjetificado” ou “humilhidificado” ou qualquer coisa do tipo, pois aí poderia tentar descobrir o que significam tais termos e, acima de tudo, teria um termo que expressaria o que sinto melhor do que “angústia” e “desconforto” – e com a chancela do emocionário e de seu penetrante USB. 17
5. Não tenho emocionário e não sei como me sinto – talvez por isso mesmo eu seja burro (por não saber como me sinto, não por não ter o emocionário, que fique claro). Meu pensamento é cíclico, paradoxal sem ser dialético e lacunar sem lacunas. Percebi que sou burro nessa pandemia, mas receio que jamais conseguirei me expressar de alguma forma que me faça entender (por mim mesmo ou pelos outros). Sou incapaz de expressar tanto minha burrice quanto meus sentimentos. Sou surdo para mim mesmo e para o mundo e não sei a Libras da alma. Há um vão entre eu, eu mesmo e o resto do mundo, uma parede mais espessa e um isolamento maior que qualquer pandemia poderia trazer. Fico com a mente em polvorosa sabendo que jamais poderei me comunicar de verdade (e que, talvez, jamais tenha conseguido). No entanto, como sou burro, rapidamente me disperso. Agora, estou pensando se chegará um dia em que minha filha recém-nascida achará normal sair de casa com máscara. Eu ainda não acho.
Eduardo Canesin | São Paulo, Brasil| É sociólogo e escritor. Atualmente, é doutorando em Ciências Sociais pela Unifesp. |duardocanesin@yahoo.com.br
18
águas são espaços abertos | Erlândia Ribeiro
sonho perpétuo língua estremecida em qual curva fugimos? tudo enfraquecido afoga em precipício mas as águas são espaços abertos e você é um espaço aberto mesmo que endereçado.
Erlândia
Ribeiro |
Rondônia,
Brasil |
Escritora,
tendo
publicado
o
livro
de
contos Superfícies irregulares (Kotter, 2019), e, atualmente, doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo.
19
poema de espera | Felipe Gomes
Eu escrevo Tu lês Ele vem e, quando chegar, estes papéis correrão em voo livre pelo quarto. O trec da ponta do lápis, ao primeiro toque. E eu parando tu
Felipe Gomes | Rio de Janeiro, Brasil | nasceu em 1984 na cidade do Rio de Janeiro, onde vive. Formou-se na UERJ: graduação em Letras, especialização e mestrado em Literatura Brasileira. Leciona Língua Portuguesa na Rede Pública do Sistema Municipal de Ensino. Tem poemas publicados em diversos periódicos literários. É autor de Alma na casa sozinha (Editora Patuá, 2020), seu livro de estreia.
20
Eu vou morrer. | Felipe Pinheiro Barreto Aos cinco anos de idade, eu descobri que ia morrer. Não fui acometido por nenhuma doença terminal nem nada do tipo, eu só descobri que ia morrer mesmo, algum dia. Até então, não sei dizer bem o porquê, eu me acreditava imortal, infinito, eterno; e essa crença só desmoronou naquele dia, quando ouvi pelo noticiário da televisão que um homem havia falecido em um acidente de trânsito. – Mãe, o que é falecido? – Significa que ele morreu, filho. – Nossa, ainda bem que eu não vou morrer — respondi, com a convicção de quem diz que o céu é azul. Engraçado que não me espantava o fato de que os outros morriam, isso não parecia abalar a crença na minha própria eternidade. Eles eram eles, eu era eu. Não lembro de ter visto a expressão de minha mãe, provavelmente por estar demasiado ocupado com meu caminhãozinho betoneira no tapete felpudo da sala, mas lembro que ela permaneceu calada. Creio que não quis mentir confirmando minha fala, mas tampouco quis destruir minhas vãs ilusões. Minha prima, de quem minha mãe tomava conta naquele dia, era três anos mais velha que eu, portanto já crescida demais para não ter consciência da própria finitude porém ainda jovem demais para ter cautela semelhante à de minha mãe. — Claro que vai, todo mundo morre! — interveio, colocando tudo abaixo. Conforme a frase saía de sua boca, eu sentia como que sendo lentamente desperto de um sonho, a ficha da realidade foi aos poucos caindo e conhecer a verdade me desesperou. Também não sei dizer o porquê, mas acreditei na hora. “É óbvio que eu vou morrer! Como pude ser tão estúpido?”, pensei. Ou pelo menos algo perto disso, não tenho certeza se a palavra estúpido já compunha meu vocabulário à época. Desmoronei em lágrimas, aquelas de criança quando rala o joelho mesmo, gritando, inconsolável, irritado com minha própria ingenuidade. Acreditei mas não pude aceitar, busquei refúgio na negação: — Não é, né, mãe? Eu não vou morrer — disse, vertendo as lágrimas que minha mãe tentava secar enquanto repreendia minha prima. Perguntei mas não ouvi sua resposta, se é que houve alguma. Meu olhar estava perdido em algum ponto vago no horizonte da parede enquanto eu tentava entender a estúpida certeza que me preenchia segundos antes.
21
De repente, não havia mais nenhuma diferença ontológica primordial entre as vítimas de acidentes de trânsito e eu. Era, agora, tão mortal quanto os pernilongos que, quando esmagados, manchavam de vermelho e preto os azulejos da velha casa. Minha vida pode, basicamente, ser dividida em duas partes: o antes e o depois dessa descoberta. Vivo há muito mais tempo no depois do que vivi no antes, e mesmo sem ter muitas lembranças para aquém do marco, arrisco dizer que o antes era melhor. O fardo é pesado demais, o da permanente certeza de que um dia eu vou, simples e invariavelmente, morrer. Morrer. E cair duro no chão, ser velado, trancado numa caixa, enterrado, comido por vermes, finalmente esquecido e aí então nada do que vivi neste mundo terá significado algum. É o destino, afinal. O único destino do qual todos compartilhamos igualmente: morrer. Morrer. Hoje, fico pensando no famoso neuropsiquiatra judeu Viktor Frankl, que sofreu na pele sortes das piores torturas que a História já viu, durante o holocausto nazista. Mesmo cercado de todos os lados pelos mais repulsivos exemplos de desumanidade, miséria, violência, tristeza, vazio, escuridão; quando tudo ao seu redor era tão cinza e mirrado como a própria morte, Frankl, em mais um torturante e interminável dia nos campos de concentração, diz ter sentido seu espírito “transcender aquele mundo sem esperança, sem sentido”, e ter ouvido, de algum lugar, um “vitorioso Sim!” em resposta a seu questionamento acerca da existência de um propósito final. O que diria este homem se conhecesse a mim, que diante da simples constatação de que não poderia brincar com meu caminhãozinho betoneira no tapete da sala de casa durante todo o esplendor da eternidade, já respondia um inconformado Não! a este mesmo questionamento? “Que propósito poderia ter uma vida que acaba?”, eu pensava. E, contrariando a norma, sigo firme nesse mesmo posicionamento derrotista até hoje. Ainda vou morrer (!), e ainda não superei isso, e não sei se vou. Não sei se haverá confirmação de algum propósito final para mim. Enquanto isso, vivo quando consigo, quando dá, quando estou ocupado demais rindo, gritando, beijando, dançando, comemorando, balançando numa rede, tirando sonecas da tarde, enlouquecendo de raiva ou de amor: quando me esqueço de que a morte está à espreita. E não assisto mais a noticiários de televisão.
Felipe Pinheiro Barreto |São Paulo, Brasil | bacharel em Filosofia pela FAPCOM
e
educador popular. Um amante da crônica, do cinema, da arte e das redes de balanço. Perdidamente apaixonado por sua noiva, a responsável por fazê-lo riscar o item “alma gêmea” da sua lista de coisas nas quais não acredita, tirando-lhe assim um pedacinho
22
de
seu
charme
cético
que,
felizmente,
nunca
recuperará.
|felipe.pinheiro.barreto@gmail.com
23
[fogos e artifícios] | Gabriele Rosa
bolos assados entre vésperas de desejo e manhãs de orgasmos. não gosto de supermercado. na lista de compras não falta sapólio. minha família me observa e afaga e me põe para dormir tranquila. vivo numa bolha de afetos táteis. o vibrador ainda na caixa aguarda a próxima tela. travessias poéticas na madrugada. a sessão da tarde me assiste constantemente. escrevo e escrevo e escrevo mais um pouco. devoro lápis e teclas e bastões de carvão. expresso duplo com canela, por favor. na fruteira, batata doce brota livremente. tudo é gatilho: coentro, cominho, caminho…, o feijão preto segue congelado no freezer desde o mês passado. dona Rosa me mandou um recado, inesperado. as cenas não se escrevem sozinhas, inspiração não é o suficiente. como ser o suficiente? sinto seus olhos por perto. te ofereço afeto e colo e poesia. acho que só sei escrever prosa. gosto de suas palavras e ainda não sonhei com você. queria dormir, não consigo. sim, vamos escrever um livro! palavras despidas. difícil imaginar abraço. quero. te aguardo entre áudios e caracteres.
Gabriele Rosa | Rio de Janeiro, Brasil | Poeta, historiadora e grafiteira. Atua como dramaturgista e dramaturga de processo na Bonecas Quebradas Teatro. Graduada em História
pela
UFRRJ,
integra
o
coletivo
CuidadoPoema.
Autora
de Fendas
extraordinárias (Patuá, 2019) e Lavínia é mais Rosa que Espinho (Libertinagem, 2021, no prelo). | gabrielerosa20@gmail.com
24
[LAMENTO LUSOTROPICAL] | Guilherme G. Figueiredo
Dos mares salgados do atlântico Ergueram-se homens de grosso trato, Feitos meu bisavô que nunca conheci. Nas vielas dos meus pensamentos, busco a imagem do jovem gajo maltrapilho e esperançoso Cheguei a falar que trouxe em sua mala Esperança e saudade E trouxe também, uma dose de lirismo, Lá de Trás-os-Montes. Maior herança que me deu Desse sangue ralo que corre em minhas veias a lusa parte chegou ao meu combalido coração Meus silêncios eleitos são preces para que tão doce-ácido portugues, eu possa escrever aquilo que me cala Teu nome era o mesmo do meu Teu sobrenome também era o mesmo do meu Em duas épocas diferentes, na triste história desse mundo, dois jovens de mesmo nome e sobrenome choraram Lágrimas do sal da terra que uniu pelo tempo tão lusófono lamento.
Guilherme Giesta Figueiredo | Niterói, Brasil | É escritor, educador e formado em História pela UFF. Estreou na poesia em 2015 escrevendo despretensiosamente. Em 2020 lançou seu primeiro livro, Trópico de Capricórnio (Luva Editora). Possui poemas publicados em diversas revistas literárias. Atualmente continua escrevendo e expandindo seus sentimentos para outras artes. |guilhermegiesta13@gmail.com
25
Sopro da morte sobre o mundo | João Ricardo Dias
uma erva sem cor ……….murmúrios a crescer no coração ……….de uma rua vazia a cidade sem carros o medo ………a solidão emoldurando o ar um castelo aprisionado na clemência das almas a despertar lágrimas, fantasmas ……………….e fúria ……………….no rubor do peito o ventre da tristeza o corpo de uma sombra ………………se deita em neblinas e ………………mortes a praça fúnebre se espalha como areia ……….solta ao ar ……….tecendo dor ………………………..– com seu fiar ………………………..de fogo – ……….em suspiros ……….noturnos e frios as pétalas desenham ………piedosamente uma coroa de sangue
João Ricardo Dias | São Paulo, Brasil | Escritor, jornalista e palestrante, são algumas das personas que João Ricardo Dias usa para se comunicar com o mundo. Publicou os livros de poesia: Doce Silêncio (2014); Em uma noite escura saí sem ser notado (2018); e Na Raiz
Seminal
da
Manhã (2019).
Em
2021,
lançou
o
romance Hóstia
Negra.
| Instagram: @escritorjoaoricardodias
26
TAG | Júlio Valentim Barbosa Neto O amarelo dos peixes se destaca no cubo de vidro Um por um, isolado, fechado e turvo. É incrível pensar como as escamas permanecem Brilhantes entre o musgo, a merda e a comida podre Que fermentam no frio do ar-condicionado. A tampa aberta libera o odor que permeia o ambiente. A tampa aberta é um convite para o pulo, Mas nenhum pula, nenhum nada para perto da luz Que escapa e invade aquele verde turvo e pastoso Que aprisiona a vida, a vontade e a liberdade. Talvez por falta de referencial de vida marinha, Talvez por nem saberem que são vida marinha, Talvez por não fazerem ideia do que é vida, Tanto tempo de seleção artificial que até A memória genética se desfez a essa altura. As crianças batem no vidro, tentando atrair Os peixinhos para fora do pântano imundo. E é a primeira vez que se vislumbra algo que Pode ser chamado de dor. Algo que os fazem Se debater de um lado para o outro do aquário. Em destaque, as palavras de um adesivo descascado, E já sem cor, alertam para que não se bata no vidro, Mas as várias digitais impressas na lâmina Revelam que aquele é um tormento constante. A água se agita acentuando o cheiro de medo. As pequenas sombras que são produzidas, Pela luz em meia fase que brilha com aspecto Esverdeado, revelam terror. E enquanto a água dança, Enquanto o cheiro sobe e todo mundo finge que não vê, Eu sinto o horrível conforto de não estar sozinho.
Júlio Valentim Barbosa Neto | Currais Novos, Brasil | Estudante de Letras e rascunho de escritor.
27
Cada detalhe | Kátia Surreal cada detalhe deste quarto um sorriso condenado, porque só quando sorrio, ainda que chorando, desenho na saudade sua ingênua covinha, que, a mim, se fazia por bobeirinhas quaisquer cada detalhe não fitado, mulher, é uma esquina que não se finda e não topa com nenhum muro, mas se prolonga no escuro miragem que insisto… o conflito me conduz à cova borrada memória míope chuva em meus olhos cega a cor do toque surdo sua ausência, mulher, não tem muros só murros e urros tristeza para ……………onde …………………..me ………………………curvo …………sou luto!
Kátia Surreal | Niterói, Brasil | autora do livro “Gradações hiperbólicas” (editora Brunsmarck), do blogue Fugere ad Fictem, membro da Academia Independente de Letras (AIL), das comunidades do Instagram Ecospoéticos e Contos Livres, professora, militante da CMI e mamãe da gata Bibi. | Instagram: @katiasurreal_ |https://fugerefictis-katia-surreal.webnode.com/
28
Falso entendimento… | Maria Martins Torres
Demoro a entender Não porque não tenha entendido Mas porque o entender Pode me fazer sofrer Então faço que não entendo Tento resguardar-me Só que este falso entendimento Faz com que o outro pense Que pode fazer de tudo E é aí que todo o entendimento Se desmorona Não há entendimento nenhum Que entenda Que o outro pode fazer tudo
Maria João Torres | Peso da Régua, Portugal | Mestre em Design e Marketing pela Universidade do Minho. Publicou o seu primeiro livro Crescer com histórias ( 2016) um conto infantojuvenil A libertação das letras pela Editora Litere-se (2017) e o livro Aventuras na Escola, (Chiado Books Kids, 2018). Os seus poemas A incerteza e Quero
sentir-me
leve
integraram
a
Antologia
de
Poesia
Portuguesa
Contemporânea Entre o sono e o sonho da Chiado Editora, 2017 e o 1º Prémio Nacional de Literatura de Belford Roxo, Mozerart Edições (2018).
29
Batalha| Priscila Kerche
a pele gela deve haver uma janela aberta pingos ricocheteiam não há cheiro de terra molhada o apartamento provê sonhos escassos de imaginação a paisagem me inunda apenas do que já existe há peixes no rio do céu ardem estrelas por nascer
Priscila Kerche | São Paulo, Brasil | Escritora e poeta, nasceu em Cuiabá-MT e mora há 9 anos em São Paulo. Conta histórias reais como jornalista pela Tv Brasil. Frequentou o Clube da Escrita para Mulheres e foi aluna do Clipe Prosa na Casa das Rosas em 2020. Atualmente, é aluna do Clipe Poesia e tem um projeto de livro autoral em andamento. | priscila.kerche@gmail.com | |instagram: @priscilakerche|
30
Violência dos tempos | Priscila Kerche
o medo desautoriza beleza o pensamento se dá em segredo a notícia sai da minha boca em voz trêmula poesia interdita
Priscila Kerche | São Paulo, Brasil | Escritora e poeta, nasceu em Cuiabá-MT e mora há 9 anos em São Paulo. Conta histórias reais como jornalista pela Tv Brasil. Frequentou o Clube da Escrita para Mulheres e foi aluna do Clipe Prosa na Casa das Rosas em 2020. Atualmente, é aluna do Clipe Poesia e tem um projeto de livro autoral em andamento. | priscila.kerche@gmail.com | |instagram: @priscilakerche
31
Noite aflita em Roma | Tuca Silveira
Noite aflita em Roma. Faróis para um lado, corpo para o outro. Para um lado, água que jorra das nasones; para o outro, beijo demorado de casal freando o fluxo de pessoas. Pudera eu pensar em coisas além da morte. A vida é curta; a arte, longa, e a morte – esse abraço incandescente – queima, derrete e some com pequenezas. Deixa o que importa à espreita. Diante do Panteão, do fluxo do Tibre e dos guias turísticos, que passam e são esquecidos, o fim aparece perto, cruzando próximo, à esquina, como apareceu à incauta nova-iorquina. Mesmo diante de antigos impérios e de obeliscos roubados por César Augusto e afilhados; mesmo diante de estradas que levam a piazzas, que traziam marchas triunfantes aos arcos, o que nos marca e não é esquecida é o cortejo da morte sobre a vida. O que pode parecer triste, mas que traz mais sentido do que se imagina.
Tuca Silveira | Rio de Janeiro, Brasil | é poeta e compositor carioca. Apaixonado pelos modernistas e por Machado de Assis, tem epifanias poéticas intermitentes – o que nem sempre serve para alguma coisa –, diálogos entusiasmados com sua cachorrinha e alguns poemas publicados. Vive entocado como engenheiro nas horas vagas. | arthur.silveirasc@gmail.com
32
O mundo não foi feito para quem se importa demais | Tuca Silveira
Se eu morrer, digam meu nome. Atestem incontáveis vezes como eu bem-quis como eu malquis como me rendi como me feri. Se eu morrer, digam meu nome. Digam o quanto perambulei o quanto recuei o quanto bem analisei. Digam o quanto me embebedei o quanto vivi à gota d’água e o quanto transbordei. Se eu morrer, podem bendizer meu nome. Ou podem maldizê-lo, igualmente. Digam aos desafetos que não sintam raiva de mim porque sofri tanto quanto me desejaram. E digam aos aliados que não sintam pena de mim porque me alegrei tanto quanto me desejaram. Mas só peço: se eu morrer, que carreguem meu nome para si. Para o bem, para o mal, devemos digerir o peso preciso do que nos é preparado. Devemos cumprir, com perfeição, a candura e a malícia do que nos é circundado. Nos imaginamos em placas e estátuas, exagerando nossas benfeitorias, bem como nos reparamos hediondos e perversos infratores, degustando nossas transgressões com histeria. Quando digo meu nome, rememoro que quase sucumbi-me em excesso, que quase exultei-me em excesso. 33
E que, com isso, a estrada parecia findar antes o combustível parecia findar antes o freio parecia falhar antes. Se eu morrer, digam meu nome, para que não padeçam com ficções a mais: o mundo não foi feito para quem se importa demais.
Tuca Silveira | Rio de Janeiro, Brasil | é poeta e compositor carioca. Apaixonado pelos modernistas e por Machado de Assis, tem epifanias poéticas intermitentes – o que nem sempre serve para alguma coisa –, diálogos entusiasmados com sua cachorrinha e alguns poemas
publicados.
Vive
entocado
como
engenheiro
nas
horas
vagas.
|
arthur.silveirasc@gmail.com
34
ii. art trouvé | Victoria Gonçalves Rebello
o assoalho do cubículo é forrado de um tecido roto e de planos frustrados, está claro: o que víamos ali um dia teria sido um antiquário um daqueles repletos de miudezas, sabe? cacarecos sem valor misturados a objetos promissores (para os quais nunca se encontrou uso algum) tesouros perdidos unidos pela curadoria do acaso raridades de valia in es ti má vel, escande o vendedor de passados, que separa o joio do trigo eo mel do melhor relíquias pelas quais ninguém ousa pagar mais do que alguns trocados moedas tiradas de circulação em países que já mudaram de nome e de endereço porcelanas quebradas remendadas de acordo com as leis do kintsugi milenar técnica japonesa (ou artifício dos avaros camponeses) panos que dirão ter pertencido a uma antiga baronesa da Transilvânia uma colher de chá com a insígnia de uma nobre família justiçada por revolucionários russos ……….repare na mancha de sangue no convexo do aço 35
vidro colorido soprado nas cercanias de veneza poucas coisas dão o mesmo prazer que andar por aqueles depósitos de inutilidades e imaginar, sobre os lustres, que tenham pendido acima da testa de uma viúva que, porventura, tenha se mudado para um muquifo com menos luxos (concubinato não dá direito a herança) ou, sobre o espelho encardido, que de algum ávido leitor de Borges tenha sido, e que, por prega do destino, tenha ele terminado cego sem um alberto amigo que lesse o que quer que fosse em voz alta ao bardo da cama mas são conjeturas in úteis tal lugar jamais chegou a ser um anti quário senão por acidente
Victoria Rebello | Rio de Janeiro, Brasil | É estudante de Letras na PUC-Rio e assistente editorial na Editora Antofágica. | victoria.g.rebello@gmail.com
36
Coluna | Coisas que o vento conta Por Pedro Belo Clara Julho de 2021
ENTARDECER NA VILA
A calcinada pedra do dia enfim brota em leve flor.
Da serra desce uma brisa beijada por tomilho e alecrim: vem suave – acariciando os rostos trigueiros, os frutos crescendo no sonho da dádiva; vem doce – despertando o sono das giestas, alisando as penas dum estorninho cantor.
Na partida iminente da luz respiram-se os aromas tranquilos das sementes adormecidas, o perfume dos ribeiros aguardando a chegada da lua.
Risos ecoam por travessas 37
não há muito brancas de sossego, duas carícias no segredo das esquinas dançam como lábios que se abraçam;
vozes distantes evocam memórias sem nome que as valha e um antiquíssimo canto recomeça na frescura das fontes.
Só um jovem coração nas pedras da rua em vão procura um amor que deixou escapar.
Agosto de 2021
Jovens Amantes Perfumes de nardo e sândalo trocam valsas pelo quarto. Indolente, a leve cortina fatiga-se na falta de companhia para dançar.
A jovem mulher, antes de se entregar 38
aos abismos da morte suave com o tremor dum sorriso, refugia-se no biombo – trocando para si segredos que nunca ousou cantar, aprontando-se insegura para a desfolha da noite.
À luz tosca do candeeiro de papel, sobre pétalas de rosa, o amante de sempre espera – indiferente às seduções da lua.
Um trovador nocturno, já de asas poisadas, de súbito irrompe em canção. Por fascínio maior interrompe-se o afazer feminino.
São dois os passos dados, revelando mais que deveriam. Na percepção repentina da falta,
39
por pudor a jovem apressa-se a esconder os seios de algodão. Ainda não está pronta para receber as estrelas dos olhos do amado, o malmequer fremente dos seus dedos inquietos.
Na surpresa do momento um sopro afasta os perfumes, ignora a carícia da cortina dolente e com a audácia dos vagabundos entre pernas brinca com a saia quase ausente.
O jovial rosto de leite ruboriza-se pelo atrevimento da visita inesperada.
No outro coração, porém, acende-se um fogo diferente:
terá ela um novo amor?
40
Setembro de 2021
O PASTOR
Ainda o sol não beijou o horizonte, e de pronto a antiga dor pede o conforto da velha flauta.
No abrigo da faia, dois instantes de quietude: um silêncio absoluto querendo unir-se ao sossego reinante.
E a dádiva começa: elegias sem tempo entretendo estevas e cardos. Com a destreza de anos no ofício perde-se o pastor em cada curva da melodia que o reclama só para si: ora a doçura duma lembrança, ora a aguda estridência duma nota sentida. 41
Terminando, um sorriso denuncia a melancolia sem rima. Mas pela urgência da dor logo outra canção ganha vida, antiga quanto a memória das pedras – perene engano à sede que sabe lenta o matar.
Será a serra que o fatiga ou o vazio dum coração sem manhãs? A cabana fria que o espera sempre no assombro doído duma noite sem estrelas?
A sua solidão tem um brilho que não vê. Só a lua o sabe, mas o pobre pastor nunca aprendeu a ler os poemas do céu.
A flauta emudece, por fim. Dois sopros de gelo lembram o conforto do capote.
42
Um grilo rompe o silêncio; de longe chega a sua canção, vem doce e sobre o rebanho ensonado tomba como bênção materna.
Sem ânimo para ensaiar um passo, deixa-se o pastor ao abandono da hora – silente sob um luar que hesita diante dum deus triste, esperando manhãs.
PEDRO BELO CLARA nasceu em Lisboa, Portugal. Um ocasional preletor de sessões literárias, atualmente é colaborador e colunista de diversas publicações literárias portuguesas e brasileiras. O seu último trabalho foi dado aos prelos sob a epígrafe de “Lydia” (2018). É o autor dos blogues Recortes do Real, Uma Luz a Oriente e The beating of a celtic hear.
43
Coluna | Astronauta de Pulôver Azul Neon Por Fabíola Weykamp Agosto de 2021 amar o que tem qual sorte lançar pés ao destino do destino? que tamanho veste a proporção dos encontros?
como todo mundo no mundo inteiro vai ao coffee date em plena segunda sacode os cabelos úmidos quando só o outro vê e depois parte volta depois reparte e parece ainda saber o que fazer no dia seguinte?
como iniciar um desfecho?
seria culpa das cartas viradas sobre a mesa a conjunção da lua saturno em abalo? isso ainda existe? algum dia existiu? 44
Eurídice negou cigarro à cigana no calçadão do centro, teria sido isso, então, o acaso de tudo?
o cosmo todo contra o cosmo todo a favor o cara do discovery channel — o de cabelos aterrorizados e olhos de maluco, que parece prever o fim da civilização a cada dois minutos de conversa — também esquenta os pés no inverno e parece saber amar o que tem
Setembro de 2021
como chupar laranjas ao sol
havia encanto, escrevia havia desencanto, também escrevia máquina velha insistente em
45
manter ativa a função de suas teclas
passado conjugado e isso não tem a ver com o lamento às novas tecnologias nem com o volumoso catálogo de escritores recém-nascidos e o acentuado decréscimo de leitores, poderia
[alguém aqui ainda se ressente com a coisa póstuma não vivida?]
nisso tudo e antes disso tudo estende-se o tom na materialidade deste caso
1. tudo que amo, desgosto
na intensidade das manhãs de verão sucumbo até o fim o suco da laranja espremo o expresso desejo de amor e amo com a cavidade da boca a junta dos dedos os joelhos dobrados e a cabeça erguida
46
não é preciso facas quando se ama a habilidade cítrica dos dedos dá conta
amo como se fosse mil maravilhas o amor e me desgasto e me detono e me dano até o talo roo até o osso o meu próprio osso porque é tão bom amar quem ama e me amo quando amo outro um caso patológico para o futuro
quando havia encanto a poesia ávida por simplesmente aparecer, acontecia sem delírios técnicos sem desejos de amizades e trocas em elaboradas conversas canônicas um amor puro arrebatador cuja origem não importa não faz sala nem encena danem-se os diplomas quando se ama basta chupar laranjas no sol de março e tudo é gosto
47
o ensaio é este
2. na beira da estrada parar o carro para resfriar o motor e chupar laranjas de umbigo da banquinha de italianos que não falam português porque só lembram do que amam e o que amam esgarçou no tempo
a memória, esta
3. um só fôlego o primeiro amor foi assim um só prender o ar nos pulmões e poderia me casar ali onde fosse mesmo maldizendo segredar ilusões um só sopro e o desencanto agora
48
tudo peso pedra vinco: a estrada que se caminha só se caminha só
a coisa
4. nos desenhos animados se revela a grande pedra triunfal abrindo-se ao meio enquanto o coyote todo esfarrapado iludido de esperanças delirantes com uma perna cá e outra lá, [eis aí o grande momento] um rasgo ao meio a queda a perda triunfal
o objeto
5. mas triunfal também é saber recolher-se encolher-se da multidão tomar paracetamol fingindo febre ao andar na contramão parar de escrever poemas
49
e voltar a escrevê-los no dia seguinte porque só cabe amar o que se lembra
FABÍOLA WEYKAMP Editora Convidada e Colunista pela Revista Subversa, dois livros publicados, revisora e consultora de textos acadêmicos.
50
Coluna | Sem Palavras Por Lucas Grosso Julho de 2021 Risque esta Palavra – Ana Martins Marques Livro de poesia de uma das mais importantes poetas brasileiras contemporâneas. Nessa antologia, Ana M. segue com seu trabalho literário de discorrer sobre a vida cotidiana comum (incluindo aí, sentimentos, identidades sociais, tabagismo, memórias), usando poéticas da pós-modernidade — ou seja, jogando o leitor para um debate sobre a própria natureza do texto de poesia. Ela brinca com ambiguidades, faz ironias com significados, trata da insuficiência verbal com ternura e melancolia. Em seus poemas, discutir a natureza das palavras é discutir os significados do nosso dia a dia; perceber que rotina, lembrança, medo, desejo, afeto envolvem a transformação (insuficiente) do mundo em linguagem. Companhia das letras, 2021.
Agosto de 2021 Todos os belos cavalos – Cormac McCarthy Romance de formação violento e melancólico, novela de “Conquista do Oeste” às avessas: essas são duas formas de ler o livro de Cormac, um dos principais autores dos Estados Unidos dos últimos 50 anos. O enredo recria e reinventa os mitos de cowboys, ao contar a história dos adolescentes americanos John Grady Cole e Lacey Rawlins, que, em 1949, decidem abandonar sua vida no Texas para viverem como peões em uma fazenda no México. Em meio a amores com a herdeira da fazenda, cenas de violência e séries de decepções, o autor desconstrói o imaginário americano de sucesso e realização. Companhia das Letras, 1993. Tradução de Marcos Snatarrita.
Setembro de 2021 Agá – Hermilo Borba Filho Romance experimental de um dos mais importantes (e menos comentados) escritores brasileiros. Hermilo é um autor fora dos eixos literários de sua época; Agá (seu último romance) prova isso: é um livro 51
tropicalista (unindo cultura brasileira e estrangeira, “alta” e popular), farsesco, grotesco. Aqui, diversos gêneros textuais (HQ, confissão, teatro, distopia, realismo fantástico etc.) se sobrepõem, compondo um amalgama de contos de um autor-implícito sobre a culminância política, social, econômica e cultural de seu tempo. A despeito da localização cronológica, é uma obra que delineia a sociedade ocidental do pós-II Guerra. Uma versão ampliada (outrora censurada) foi publicada em 2019. Agá, de Hermilo Borba Filho. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira , 1974.
LUCAS GROSSO Mestre em Letras. Estudou Milton Hatoum na graduação e Milan Kundera no mestrado. É professor de inglês na prefeitura de São Paulo. Lançou “Nada”, pela
Editora
Patuá,
é
colunista
da
Subversa
e
escreve
no
blog www.lucasgrosso.blogspot.com.
52
Coluna Correntezas Paulina Chiziane: cada página tem a sua história | Andreia Oliveira
Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo Dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo Diz-se do passado que está moribundo Bebe-se o alento num copo sem fundo (“Primeiro Dia”, Sérgio Godinho) A epígrafe que ilustra este texto pertence ao poema da canção “Primeiro Dia”, de Sérgio Godinho, que, na sua continuação diz; “Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja/ olha-se para dentro e já pouco sobeja/ Pedese descanso, por pouco que seja”, sem esquecer que “Enfrenta-se a vida de fio a pavio/ navega-se sem mar, sem vela ou navio/ bebe-se a coragem até dum copo vazio” e que “Entretanto o tempo fez cinza da brasa/ e outra maré cheia virá da maré vaza/ nasce um novo dia e no braço outra asa”. A canção torna-se mapa Ventos do Apocalipse, de Paulina Chiziane, ao espelhar os caminhos de fome, dor, guerra, desespero, indagação e angústia de Minosse, Emelina, Sara, Sianga, Sixpence, Muzonde, Dambuza, Wusheni e de outros homens, mulheres e crianças, de gentes cujas histórias pincelam a tela do romance e que sofrem e ainda respiram graças à força da lei da sobrevivência ou à sorte de o seu corpo ter escapado à lei da bala ou de ter sido apenas parcialmente atingido. Música e literatura encontram aqui uma simbiose perfeita. Numa época em que a crise das Humanidades é uma realidade que não se pode ignorar, como nota Isabel Pires de Lima, “(…) a experiência da literatura abre-nos para o diálogo intercultural e para o domínio da compreensão da diversidade do humano, que a contemporaneidade precisa de fomentar com urgência” (2015, 16). Em Ventos do Apocalipse, cuja primeira edição data de 1999, o conhecimento de diferentes dimensões do humano é um dos eixos fundamentais, especialmente se este for percecionado pela ótica da crueza das experiências trágicas e extremas de fome, miséria e guerra, mas também de abandono, angústia, despojamento e de indagação teológica permanente e em sequência do desenrolar dos acontecimentos que interferem diretamente nas vidas das personagens do romance, conjugando a vertente judaico-cristã, a cultura local e as crenças religiosas moçambicanas. Aparentemente simples, as personagens revestem-se, nas palavras de António Manuel Ferreira, de uma “aura dramática que as 53
transforma em figuras notáveis, mesmo quando, à partida, não parece haver motivos para enredos excepcionais” (2012a,101). No entanto, a sua densidade é tal que, ao longo do romance – construído a partir das três pequenas estórias do Prólogo[1] e que os decalca nos princípios que os orientam, confirmando-os – tecem considerações e fazem juízos que merecem atenção por se concentrarem na essência do que é ser humano, ser frágil, estar em posição desfavorecida, sofrer, ser invisível, não ser homem, mulher ou sequer gente. É inegável a existência de temáticas e elementos estruturadores neste destino apocalíptico que acompanha as personagens como uma sombra e que inevitavelmente as possui: Deus, o feminino expresso pelo poder da terra e pelas representações da mulher que perpassam estas histórias, as dimensões da guerra e da fome que não se podem cindir das duas anteriores, na medida em que são a causa determinante da construção dos diferentes raciocínios e tomadas de posição por parte das personagens e do narrador. “Mata, que amanhã faremos outro” é o título do segundo pequeno conto do prólogo e é a síntese do Homem desprovido da sua humanidade, visto que a destruição e a desgraça se sobrepõem e o fazem desligar-se de qualquer sentimento filial (essencialmente por parte do elemento masculino; o sofrimento das mães ao verem a vida dos seus filhos esvair-se contra o seu peito faz-se muito presente). A história das páginas e passagens de Paulina Chiziane nesta obra imbricam-se umas nas outras, contribuindo simultaneamente para a coesão discursiva, para a potencialização das cargas semânticas que estruturam a narrativa e para a construção progressiva do imaginário romanesco à medida que as diferentes tragédias abalam o povo (enquanto coletivo) e abalam a individualidade de cada personagem quando o foco se aproxima, como se de um efeito de zoom se tratasse. O título é, por si só, sugestivo, expressando de imediato a ligação à Bíblia que, como se confirma pela leitura, é um dos intertextos fundamentais, através da adoção da sua estrutura, tendo em consideração que “o conto inicial corresponde a certas partes do Génesis e (…) dois capítulos do texto romanesco mantêm um paralelo temático-estilístico com o Apocalipse” (FERREIRA: 2012b,38) que, no final, se abate sobre aquelas gentes, através da chegada dos cavaleiros que comandam helicópteros. No que concerne às reflexões sobre a existência e o papel de Deus, não deixe de se notar que elas oscilam entre a crença e a descrença. Se, na 54
maior parte das vezes, as personagens sentem que foram esquecidas pelo Criador (um Deus estrangeiro porque provém da cultura do colonizador), que os seus sofrimentos merecem a sua indiferença, em outras alturas expressam, no entanto, a esperança e a fé que, apesar de todos os contratempos, persistem, mesmo que haja alguma desconfiança quando os tempos são de tranquilidade. Finalmente Deus reconheceu que os filhos da terra estão cansados e sofrem. Bafeja a terra com um sopro de tranquilidade. (…) Mas o repouso é demasiado bom para ser real. O silêncio é maldito, tenebroso, paira o feitiço no ar, minha gente! (CHIZIANE:1999, 166) Os princípios bíblicos que expressam que o homem é feito à imagem e semelhança de Deus e que Deus é sinónimo de amor são desfeitos devido à crueldade a que as personagens são sujeitas e à fatalidade da pobreza que as cerca, como se já estivessem predestinadas a ela, e, neste sentido, o narrador afirma: Se o homem é a imagem de Deus, então Deus é um refugiado de guerra, magro, e com ventre farto de fome. Deus tem este nosso aspecto nojento, tem a cor negra da lama e não toma banho à semelhança de nós outros, condenados da terra. (idem, 184-185) Nesta sequência, justifica-se que Sigaule afirme “(…) -Mal posso acreditar num Deus negro, andrajoso, com o ventre farto de fome e a morrer de diarreia como a gente.” (idem, 191) e que conclua que “esse Deus é um Deus camaleão. Onde há pretos é preto, onde há brancos é branco. Se chega a ponto de ser um refugiado de guerra é um Deus fraco, impotente como este povo da Mananga. Estamos cansados de sofrer, Sixpence.” (idem, 191-192). Este breve diálogo é sintomático das desigualdades, da consciência de que o critério de Deus não é o mesmo para todos os seus filhos e que, por isso, é camaleónico (porque dual). Esta ameaça ao princípio de igualdade entre os Homens agudiza-se pela questionação que surge umas páginas à frente e que advém do facto de o sofrimento, miséria e desespero das personagens do romance aumentarem a cada página e a cada história que têm que viver e à qual não podem escapar: – (…) Deus está brigando forte, gente. Briga de cobardia. Forte só com forte se bate. Se ele é grande, 55
por que teima em vergastar gente de moleza como este povo? (idem, 212) Ainda assim, a bondade de Deus é sublinhada porque, afinal, mesmo tardia, há uma resposta aos lamentos do povo. É já no final da diegese que esta frase é proferida por um dos homens e mulheres felizes que convivem, pensando estar já a viver tempos de paz.” –Sim, Deus responde por vezes tarde, mas sempre responde. (idem: 263-264)” – ironicamente, esta sensação de calmaria é anulada pelos bombardeios finais, pelo ataque à aldeia do Monte, pela chacina e pela destruição. A propósito desta sensação de paz e felicidade, refira-se a celebração da eucaristia partilhada entre o padre loiro, branco, culto, de olhos azuis, que corresponde perfeitamente ao padrão europeu, e Mungoni, o célebre adivinho, numa fusão entre culturas, reforçando-se a ideia, segundo Inocência Mata, de que “a diferença entre as religiões não é essencial, residindo, apenas, na ritualização das crenças” (2001,190). A narrativa encerra sem dar conta do que se passou posteriormente a este último cenário de destruição pela via do fogo, confirmando, portanto, o apocalipse. O caos fecha a obra, que não deixa qualquer espaço de resolução, de apresentação de soluções e, pelo contrário, intensifica a jornada de dor e despojamento físico e espiritual. Nota Pedro Eiras que Se Paulina Chiziane reescreve topoi religiosos, é para os esvaziar. Nesse sentido, mesmo enunciados literalmente copiados do Apocalipse [como se verifica através da análise do texto bíblico e do texto da autora] ganham um novo significado: o fogo da revelação torna-se fogo de um crime. (2015, 30-31) Neste sentido, o crime é a morte de pessoas, da morte das povoações; é a perda, é a fome, é a redução do Homem a nada ou a quase nada porque “(…) a guerra é particularmente monstruosa, porque é fratricida e infecta, sem remissão, toda a estrutura social, desde a família até ao pacto de confiança estabelecido com a divindade“ (FERREIRA:2012b, 40), sem esquecer que, ao longo da sua peregrinação pela vida, no confronto entre o passado e o presente, entre o novo e o velho, tentando encontrar uma explicação plausível para o rol de desgraças que se abateu sobre eles, a sua cultura perdeu-se: “Estamos tão sobrecarregados de ideias estranhas à nossa cultura que da nossa génese pouco ou nada resta.” (CHIZIANE:1999, 267). Mungoni, o feiticeiro, aponta o povo como culpado, uma vez que “manteve acesa a discórdia entre o velho e o novo” (ibidem) e que se separou da raiz, ou seja, cortou o laço matricial primeiro à terra e à cultura. 56
Também a mulher se manifesta, em relação a Deus, e, segundo António Manuel Ferreira, no sentido do conflito, na medida em que se apresenta como “sofredora e injustiçada com a incompreensível apatheia divina” (2013, 81). Mas a representação do feminino não se esgota na dimensão teológica. Ventos do Apocalipse apresenta personagens femininas que, do ponto de vista de Maria Geralda Miranda, “são totalmente cingidas à realidade moçambicana[; s]ão seres de fronteira entre a tradição e os sistemas culturais impostos pelos colonizadores” (2010, 68); são representativas de um conjunto de visões sobre a mulher que a coloca numa posição de subalternidade. A propósito desta questão, Inocência Mata, em entrevista à Revista Crioula, ao referir-se a este romance e ao mundo ficcional de Paulina Chiziane, sublinha que não há uma forma nem uma proposta de resolução desta questão, mas “apenas a exposição dos meandros da condição subalterna da mulher. E no final? A mulher acaba como começou.” (SANTOS et alli:2009, 16) Um outro aspeto importante desta obra reside na “encenação quotidiana do feminino” (MATA:2001, 188); nas suas páginas, as mulheres ora aparecem cingidas à esfera doméstica e às tarefas que lhe estão destinadas (sobressaindo especialmente as que se ligam à alimentação e à impotência perante a fome, a falta de alimento e as tentativas de o prover aos seus filhos), ora como cuidadoras dos doentes, dos filhos, dos feridos da guerra, ora dedicadas ao papel de mães, mesmo de filhos que não são seus, como Missone que, enlouquecida de dor depois de ter perdido a filha Wusheni e o neto que esta carregava no ventre, adota um órfão, recuperando parcialmente; ora diabolizadas, marginalizadas por serem consideradas feiticeiras. No excerto seguinte realça-se a ligação ao mito de Pandora (considerada por Hesíodo, em Teogonia. Trabalhos e Dias (2005), como um “mal disfarçado de bem” (v.585) enviado aos homens) e à visão cristã misógina, especialmente em relação ao sangue menstrual e às crenças locais ligadas ao poder natureza, confluindo neste ponto três tradições distintas relativas ao feminino: a mulher é a causa de todos os males do mundo; é do seu ventre que nascem os feiticeiros, as prostitutas. É por elas que os homens perdem a razão. É o sangue impuro por elas espalhado que faz fugir as nuvens aumentando a fúria do Sol. Os juízes instigados pelos homens do Sianga flagelam impiedosos as mulheres desprotegidas. (CHIZIANE:1999,92)
57
Por outro lado, mulher e terra são diabolizadas e animalizadas na mesma dimensão e com a mesma intensidade, sublinhando-se a equiparação dos dois elementos. Se a mulher devora o marido, destruindo o seu corpo – (…) do crânio do malogrado fizeste uma tigela para servires banquetes macabros com que te refastelas nas noites de lua com o teu bando de corujas. Dos seus olhos fizeste faróis da noite para fulminar as vítimas; do nariz fizeste o búzio para com ele chamar as tuas parceiras; dos dedos e das unhas fizeste as garras com que apanhas novas presas, Sigaule, confessa que és feiticeira. (idem, 93) –, a terra faminta é uma mãe louca, uma fera impiedosa. Quando lhe falta a seiva que molha a garganta, engole toda a vida que repousa no dorso, tem o ventre a dilatar, abocanha os cadáveres das folhas, das aves, dos ramos secos e de todos os bichos que respiram. (idem, 108) Em última instância, é igualmente importante ter em atenção a perspetivação da mulher como mercadoria e sem qualquer outro valor de outra ordem que não seja satisfazer as necessidades para que foi adquirida. Mara cuida, durante dias, das feridas fétidas de Sixpence e provoca o ciúme do noivo José, que lhe diz: “Vais dormir com ele, minha cabra. Gastei o meu dinheiro comprando-te, prostitua sem vergonha” (idem, 198). Em suma, a ligação íntima que os elementos referenciados estabelecem entre si, bem como a multiplicidade de representações do feminino plasmadas no romance são uma peça-chave para a sua compreensão. A guerra e a fome por ela provocada constituem o pano de fundo em que as personagens se movem e são as causadoras diretas da sua fuga e deslocação, em busca de um sítio seguro e onde possam viver dignamente. Qual o seu destino? O romance não responde a esta questão. Questione-se, retomando a canção de Sérgio Godinho, como será o primeiro dia depois do momento em que “a aldeia do Monte recebe o seu baptismo de fogo” (idem, 275). No entanto, apesar de toda a negatividade, o romance dá-nos uma das respostas, ainda que nos coloque um sem número de questões que pairam após o ponto final. Lê-se no final do capítulo 14: 58
(…) Não desperdices nunca o calor e a força do teu pranto. É preciso não vergar. Aguentar o peso de cada hora e de cada dia que passa é o destino do homem. Mesmo na canção da dor há uma estrofe de esperança. Cada dia tem a sua história. (idem, 198) Karingana wa karingana: este é o primeiro dia do resto das suas vidas.
Bibliografia geral CHIZIANE, Paulina, Ventos do Apocalipse, Lisboa: Caminho, 1999. EIRAS, Pedro, “Do fim do mundo pelo fogo: cinzas e purificação” in Materiais Para o Fim do Mundo I, Porto: Universidade do Porto, 2014, 25-35 (disponível em https://repositorioaberto.up.pt/bitstream/10216/77721/2/107007.pdf, consultado a 7 de abril de 2016). FERREIRA, António Manuel, “Adão e Eva na obra de Paulina Chiziane” in Teografias, nº2, 2012a, 91-112 (disponível em http://revistas.ua.pt/index.php/teografias/article/view/2379/2238, consultado a 7 de abril de 2016). ______________________, “Brevidade e fragmentação no romance Ventos do Apocalipse, de Paulina Chiziane” in forma breve nº9, 2012b, 29-44 (disponível em http://revistas.ua.pt/index.php/formabreve/article/view/2330/2189, consultado a 7 de abril de 2016). ______________________, “Paulina Chiziane: a poesia da prosa” in Paulina Chiziane: Vozes e Rostos de Moçambique. (Ed. Maria Geralda de Miranda e Carmen Lúcia Tindó Secco), Curitiba: Editora Appris, 2013, 77-90 (disponível em https://www.academia.edu/5228340/Paulina_Chiziane_a_poesia_da_pr osa, consultado a 7 de abril de 2016) HESÍODO, Teogonia. Trabalhos e Dias, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2005.
59
LIMA, Isabel Pires de, O tempo dos ‘inutensílios’: o lugar das Humanidades na contemporaneidade, Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2015 MATA, Inocência, “O Sétimo Juramento, de Paulina Chiziane – uma alegoria sobre o preço do poder” in SCRIPTA, vol.4, nº8, 2001, 187-191 (disponível em http://www.ich.pucminas.br/cespuc/Revistas_Scripta/Scripta08/Conteu do/N08_Parte03_art02.pdf, consultado a 7 de abril de 2016). MIRANDA, Maria Geralda de, “A África e o feminino em Paulina Chiziane” in Mulemba, vol.1, nº2, jan-jul 2010, 62-70 (disponível em http://setorlitafrica.letras.ufrj.br/mulemba/artigo.php?art=artigo_2_6.ph p, consultado a 7 de abril de 2016). SANTOS, Alzira et allii, “Inocência Mata: a essência dos caminhos que se entrecruzam” in Revista Crioula nº 5, maio de 2009, s/págs. [1-19] (disponível em http://www.revistas.usp.br/crioula/article/viewFile/54948/58596, consultado a 7 de abril de 2016).
[1] Segundo António Manuel Ferreira,” Em suma, os três contos iniciais de Ventos do Apocalipse constituem uma espécie de metaplasmos narrativos que (…) poderemos entender como contos protéticos, aproveitando a terminologia da gramática e da linguística. (2012b,36). Por outro lado, o mesmo salienta a sua função exemplar, que confere aos acontecimentos narrados no romance uma dimensão de intemporalidade (Cfr., idem, 39).
Andreia Oliveira | (Porto) é licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Universidade do Porto, mestre em Estudos Literários, Culturais e Interartes, tendo defendido a dissertação “Que o desejo me desça ao corpo: Judith Teixeira e a literatura sáfica” (2013). É bolseira de Doutoramento da FCT na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, estando a aguardar a defesa da tese intitulada «Secreto é o ruído dos corpos – erotismo e feminino na poesia de Judith Teixeira, Maria Teresa Horta, Yolanda Morazzo e Paula Tavares». Paralelamente integrou projetos de investigação ligados
às
questões
de
género
e
sexualidade
na
literatura.
|
andreia.oliveira17@gmail.com
60
Edição e Revisão Tânia Ardito e Fabíola Weykamp
Ilustração de capa Captura de tela da coreografia “Fase”, de Anne Terese Keersmaeke
Recepção de originais CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM