Revista Subversa Vol.14 nº4 - Especial Oficina Sonhos Pandêmicos

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ISSN 2359-5817 Vol. 14 | n.º 04 Dezembro de 2021

NÚMERO ESPECIAL - OFICINA SONHOS PANDÊMICOS 1 | REVISTA SUBVERSA


Subversa | literatura luso-brasileira | Grupo de pesquisa A.T.A. | UFSJ | V. 14 | n.º 04 © originalmente publicado em 06 de dezembro de 2021 sob o título de Subversa © ISSN 2359-5817

Rio de Janeiro, Brasil Edição e Revisão: Tânia Ardito Coordenação gráfica: Adriana Nascimento Projeto e desenho gráfico: Amanda Martins e Larissa Alves Ilustrações: Amanda Martins e Larissa Alves Imagens de Capa: Maria Cristina Alves Pereira Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.


EDITORIAL

“a arte é o sonho da humanidade” (Otto Rank) Em agosto deste ano, a Revista Subversa teve a alegria de realizar uma oficina de escrita literária, ancorada no relato de sonhos sonhados durante a pandemia, que teve por produção final a elaboração deste número. O projeto surgiu na parceria com o grupo de pesquisa interdisciplinar A.T.A, que liga arte, arquitetura e subjetividade, fundado por professores da Universidade Federal de São João del Rei, é coordenado atualmente por Adriana Nascimento. Na oficina, oferecida exclusivamente às mulheres e coordenada pela professora Adriana Nascimento (UFSJ), pela editora Tânia Ardito e pela psicanalista Morgana Rech, as participantes trouxeram seus relatos/fragmentos/imagens de situações vividas ou imaginadas em sonho, para que debatêssemos sobre o processo criativo e a utilização de ferramentas de transformação do relato em literatura. A própria oficina ocorreu, em partes, à moda onírica, a partir do momento em que todas se puseram a pensar ativamente sobre essa estranheza íntima, tão particular e tão universal. O momento de fechar os olhos e entrar num outro mundo de nós mesmas, individual e coletivamente, é o que garante que a humanidade continue construindo novos espaços para habitar, ainda que aos trancos e barrancos. A arte só existe porque sonhamos, habituados que somos a andar no meio do que nunca fez sentido, e nem fará, senão pela nossa própria intenção. Durante a pandemia, o sonho pôde ser, para algumas, o único passeio fora de casa, o único encontro com o outro, com o nosso desejo mais profundo de voltar a viver coletivamente. O número materializa esse material que atravessou a noite de cada uma e a pandemia de todos. Materializa também o caminho que tornou possível a transformação dessa matéria em arte e em produção conjunta. Desejamos a todas e todos uma boa leitura.

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GABRIELA VALADÃO | CASA ARRUMADA PARA RECEBER VISITA | 07 CRISTIANE C. L. DA SILVA | O SONHO | 09 DANIELLE C. PEREIRA | EU TIVE UM SONHO | 11 MARILANDE BERTOLINI | O SONHO DE MAIO 2020 | 13 ANELISA PROCÓPIO | SONHO | 15 ADRIANA NASCIMENTO | ENTRE MUNDOS | 17 LIDIANE CAMPOS VILLANACCI | FACES E FASES | 19 QUE ME ATRAVESSAM: SONHO, UM LUGAR ATEMPORAL DE ENCONTROS INESPERADOS

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Casa arrumada para receber visita Gabriela Valadão Você recebeu uma visita. Você estava cansada, se sentia desmotivada. Durante todo o dia você pensou que estava sozinha, que não merecia que ninguém soubesse disso. Quando você fechou os olhos à noite a escuridão virou cor. Tudo ficou cor de rosa. Depois veio o som, era possível que estivesse em casa ou dentro de uma floresta. Esse não foi o único som, nem a única cor. Mas, eventualmente, você foi capaz de enxergar. Você tinha visita, um banco embaixo de uma cerejeira em flor. Na vida real, elas ficam floridas por 3 dias. Mas essas? Provavelmente são assim há anos, 5 anos. Foi aí que percebeu que apesar de essa ser a sua mente, você era a visita. Você estava lá, se você se convencer que existe um paraíso. Ela com certeza era o tipo de pessoa que merecia um. Seu próprio paraíso, embaixo da cerejeira e com um cigarro na mão. Ela te olhou, na maioria das suas visitas ela não dizia muito. Ela não dizia muito antes também. Mas ela estava lá, assim como estava quando te disse a primeira vez que te entendia. Ela olhava de lado e balançava a cabeça. Era como assistir à cena e não estar nela, mas havia cor, som e conforto. Talvez quando você abrir os olhos pela manhã você não se lembre que ela veio te visitar e permitiu que você visse, que estivesse lá. Mas você talvez acorde mais calma, lembrando que ela te entendia muito antes de você se entender. A vida tirou ela de você antes de você entender como ela era necessária, como era mais fácil viver com ela. Como ela era parecida com você. Ela conheceu dificuldades diferentes das suas e você vai pensar novamente que deveria visitar seu túmulo, mas do que isso adiantaria? É melhor receber as visitas dela nos seus sonhos, ela sempre está lá por que ela existe em você.

Gabriela Valadão |Cruzeiro, Brasil | Engenheira ambiental. Atua como Educadora ambiental em Delfim Moreira. Escolheu participar da oficina por querer estar em busca de inspirações e contato com outras pessoas interessadas em escrita.

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O Cristiane C.L.

sonho

da

Silva

Morava numa casa modesta, uma roça que ficava afastada do tumulto da cidade. Não tinha vizinhos. Não a conhecia acordada. Andava pela casa inquieta, como se pressentisse que algo estranho estaria para acontecer. Fui ao banheiro e quando me olhei no espelho percebi que meu rosto se desfigurava. De imediato, pensei que poderia ser um processo alérgico, é costumeiro meus olhos incharem vez ou outra quando meu corpo está enfraquecido. Mas, para minha grande surpresa, meu rosto não derretia sozinho, todo o meu corpo o acompanhava. Diante do espelho só havia deformação, como uma gelatina líquida começando a endurecer. Meus braços estavam caídos, meu sexo se perdeu num montante de carne desfigurada, já não me reconhecia naquele rosto, lembrei-me de imediato de meus olhos que nasceram míopes, e que há muitos anos já tinham sido consertados. Nunca imaginaria que o estado embaçado das coisas voltaria, aquele mundo onde só existia manchas de cores e massas disformes sem linhas. Fiquei A-PA-VO-RA-DA! Logo eu? Que me apeguei tanto a mania de caçar o Belo e harmonia nas coisas do mundo? Como vou prosseguir assim? A cena de horror ia piorando, piorando, piorando... Corri para os espelhos da casa, havia um em cada canto e todos eles me escancaravam partes do meu corpo que não queria ver. Tinha me tornado uma criatura medonha, assustadora. Olhei toda a extensão do corpo, foi quando percebi que não havia mais nada a ser feito, a carne não voltaria ao normal. Fiquei um bom tempo me olhando no espelho, era preciso me aceitar como era agora: uma massa deformada viva. Foi quando naquele ser bizarro começou a nascer asas e a criatura voou para bem longe da casa, olhando-a do alto do céu.

Cristiane C.L.da Silva |Niterói, Brasil |É Artista visual, Educadora e estudante da UFSJ em Artes Aplicadas. Dedica-se as áreas de gravura e cerâmica. Escreve como um meio de expressão.

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Eu tive um sonho Danielle C. Pereira Eu tive um sonho Um belo sonho, onde do alto eu via todas as formas Pequenas criaturas que andavam por seus caminhos E se punham a dançar sob a luz solar Luz que perfurava as nuvens carregadas do céu Sobrevoando sobre o solo Me colocava a cantar E do céu se escancarava um imenso sorriso Que levava calor às almas que bailavam sem parar Uma noite ao adormecer tive um dos mais emocionantes sonhos. Algo que começou sombrio e se tornou um belo momento. Lembro muito bem de algumas partes, outras nem tanto assim. Era uma manhã com tempo nublado. O céu estava carregado e havia um anúncio sobre um forte temporal. À medida que eu andava pelas ruas mais sombrio o dia ficava. Uma ventania forte derrubava árvores e pessoas se apavoravam. De alguma maneira era fácil saber que o fim do mundo e que a humanidade seria exterminada. Em desespero me coloquei a orar e dei um pulo do chão. Criei habilidade de voar e comecei a sobrevoar, observando o terror que o mundo sentia. Em belo tom, me pus a cantar e minha voz ecoava pelos quatro cantos do mundo. Sabia que a mesmo tempo que eu estava lá haviam milhares comigo. Anjos? Pessoa? Não sei ao certo, mas o que tenho certeza que o som que saia dos céus era mais forte que o vento e acalmou a tempestade. O sol voltou a brilhar e as pessoas a sorrir.

Danielle Cristina Pereira |Lavras, Brasil | Mestranda no Programa de Educação Científica e Ambiental da Universidade Federal de Lavras, redatora e poetisa. Dedica seu tempo aos estudos, trabalhos, arte e militância. Escreve para dar liberdade à mente e à alma. Participou da oficina para enriquecimento pessoal.

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O

sonho de maio

2020

Marilande Bertolini

eu bordava como sempre na máquina tinha tecido de algodão (ou de linho) tinha linha e tesourinha minha mãe e meu pai ainda existiam naquele espaço branco e também Teresa, uma amiga muito querida, espírita, que não vejo faz muito tempo e que, como sempre, explicava-nos o sentido de tudo neste mundo nosso

Marilande Batista Bertolini | São João Nepomuceno/MG, Brasil | Reside em Dom Silvério, MG. Formada em Letras, aposentada do Banco do Brasil, agricultora, bordadeira, aluna da UFSJ. Escreve por hábito. Escolheu participar da oficina por curiosidade. OFICINA SONHOS PANDÊMICOS URBANOS E RURAIS| 13


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Sonho Anelisa

procópio

Anelisa Procópio | São João del Rei / MG, Brasil | formanda em Letras - Português, atua como ilustradora e quadrinista nas horas vagas. Escreve para se expressar e contar suas e outras histórias. Escolheu participar da oficina por curiosidade e interesse no tema.

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Entre mundos Adriana Nascimento olho para a sobra vejo aquilo que me assombra aquilo que violenta que reproduz violência também em mim

assisti a cena em choque, acordei não apenas assustada, mas aterrorizada calada, quase como alma penada

encontro equilíbrio e retiro dele luz e sombra desafio que fortalece profundo e noturno em sonhos e pesadelos

percebi na visão distanciada ao mesmo tempo situada tanto o homem quanto a mulher éramos eu mesma personagens que compunham a cena na praia paradisíaca

sonhei que havia nascido um pênis em mim a primeira preocupação: - e se ficar duro? sonhei novamente com ele, duro…

olho para os sonhos e os pesadelos, sem reproduções busco neles horizontes, respiros, sentidos e desejos

noutro sonho vestia um fraque branco para ir a um casamento em pesadelo, vi águas azuis caribenhas... nela, um casal trepava enquanto o homem a penetrava, também a afogava num gesto sádico e erótico ela não lutava… aceitava a morte de olhos arregalados Adriana Nascimento | São Paulo/ SP, Brasil | Reside em Ritápolis/MG, formada em Arquitetura e Urbanismo, é mestre em Urbanismo e doutora em Planejamento Urbano e Regional. Atualmente educadora e pesquisadora, atuando interdisciplinarmente com temáticas das artes, das urbanidades e políticas. Escreve por necessidade experimental. Escolheu participar da oficina por ter, junto das editoras da Revista Subversa, concebido a oficina como uma das ações do Programa de Extensão (R) urbanidades afro, latina e pan americanas e do grupo de pesquisa A.T.A.-UFSJ. OFICINA SONHOS PANDÊMICOS URBANOS E RURAIS | 17


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Faces

e

lugar

fases

que me atravessam

atemporal

:

sonho, um

de encontros inesperados

Lidiane Campos Villanacci

Creio que os meus sonhos no início da pandemia refletiram as minhas angústias e medos, porém sobretudo minhas saudades. Li em algum lugar que no início da pandemia do Covid-19 as pessoas tiveram sonhos mais vividos e mais intensos. No tempo-espaço que meus sonhos criaram, as memórias de pessoas que nunca se viram ou coabitaram o mesmo lugar, estavam presentes ao mesmo tempo do espaço de sonhar. Acordava com a sensação de que tinha passado horas e horas proseando com diferentes pessoas que conheci ao longo da vida. Memórias de família se misturavam com as lembranças da adolescência que por sua vez habitaram as recordações escolares. Por muito tempo me perguntei por que sonhar com todas as pessoas ao mesmo tempo? Penso que a busca da real verdade por trás desse questionamento seria uma busca em algo inexistente ou sem sentido. O que posso afirmar em relação aos meus sonhos de início de pandemia é que as pessoas presentes compartilham uma única coisa além dos conteúdos com os quais sonhei, estávamos todos perante ao desconhecido e somos todos vulneráveis. Naquele momento havia pânico e medo, a vacina era só um sonho distante. Algumas pessoas estavam mais expostas ao vírus, outras eram mais vulneráveis. Porém estávamos todos em risco. Acho que essa é a característica que tanto nos meus sonhos no início da pandemia quanto no momento em que vivemos era o ponto em comum.

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Uma narrativa ficcional das pessoas que não verei mais Meu avô Celso, mesmo aos noventa e um anos de idade, era uma potência de vida. E acredito que como um bom contador de histórias, ele gostaria de ter sua história narrada. Aos noventa e um anos de vida, foi mais uma vítima do Covid-19. Segundo o boletim da cidade “obituado de noventa e um anos com comorbidades”. Mais um número no boletim, despersonificado, sem nome e sem importância. Mas não nessa narrativa. Aqui, o vô Celso é um bom bebedor de pinga e proseador. Talvez eu tenha herdado dele o hábito de falar demais e contar muitas histórias. Tem que ouvir muita prosa de velho pra ser a neta favorita, costumo brincar. Tive a alegria de ter por toda minha existência a companhia dos meus avós. Sorte essa que os netos de uma amiga, vítima do covid-19 aos cinquenta e poucos anos, não poderão ter. Aprendi muito com essa amiga, ela tinha uma energia incrível e muita sabedoria. A sabedoria também estava presente no contato com um professor querido, com quem pude ter a alegria de aprender história. Mais uma vítima do Covid-19, os ensinamentos dele foram silenciados. Os silêncios também tomaram conta dos instrumentos musicais de um amigo da adolescência, vítima do Covid-19 aos quarenta e poucos anos. Instrumentos silenciados, netos e filhos desamparados, ensinamentos que se perderam… as pessoas são mais que números nos boletins. Todas essas pessoas que conheci, e que provavelmente podem ter habitado algum momento nos espaçostempo que meus sonhos criaram, foram vítimas da pandemia do Covid-19. Elas não se conheciam, eram de origens e locais diferentes, porém lembro de vivências e conversas com todas elas.

Lidiane Campos Villanacci |Itajubá, Brasil | Reside em São João del-Rei, recém formada formada em Psicologia/UFSJ, faz parte dos mais de 14 milhões de desempregados no Brasil. Escreve para encontrar algum sentido nas efemeridades cotidianas. Escolheu participar da oficina para trocar experiências de escritas.

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Agradecimentos Agradecemos a equipe do Inverno Cultural da Universidade Federal de São João Del Rei, a Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários - PROEX, ao grupo de pesquisa A.T.A., em especial à Maria Cristina e a todas as participantes da Oficina Sonhos Pandêmicos Urbanos e Rurais, que compartilharam seus sonhos e suas vivências conosco.

contato.subversa@gmail.com ata@ufsj.edu.br

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