Revista Subversa Vol.14 - nº01

Page 1


Subversa | literatura luso-brasileira | V. 14 | n.º 01

© originalmente publicado em 15 de março de 2021 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Tânia Ardito e Fabíola Weykamp

Ilustração de capa: Luana Kolling

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.


Índice Editorial Demônio da Pinacoteca | J. P. Schwenck “Incurável” e “Pós-M” | Lucas Luiz O inferno somos nós | Carlos Silva Moisés | Daniel Rodas Dente de Leão | Amanda Jacometi Michelle | Alessandra Barcelar Cenário de uma manhã ou uma viagem | Mírian Freitas 30 anos, nu | Felipe Eduardo Lázaro Braga Um casal em crise | Silvia Gerschman Jogo as palavras pela janela para não morrer | Luizza Milczanowski O som um corte | Milena Martins O imperativo das metamorfoses | Mariana Varela O ano em que o Brasil perdeu a Copa | Paulo Vicente Cruz Pressentimento | Marina Kirst Let it go | Davi da Motta Peito de frango | Gabriel Correia Urbe velha | Leandro Costa “Metamorfose” e “Verter queimar” | Eduard Traste A cigana | Angelita Guesser À noite cresça para a velhice | Miguel Curado hiena presidencial | Douglas Laurindo A Deus Máquina e Jó | Chico Nonato A Lorca | Tuca Silveira [op. 28, nº 4] | Bianca Camargo Nove Pontes | Gusthavo Gonçalves Roxo A lágrima é maior que a palavra | Jessica Ziegler de Andrade rumores | Julia Medina Prenúncio de um romance | Ingrid Limaverde Manhã de quinta-feira | Viviane de Oliveira Sede | Felipe Fleury “Morte”, “Desfiar” e “Remorsos” | Henrique Emanuel Borges | Rodrigo Azeredo Lua | Mardson Soares I, II, III | Helder Magalhães travessia I | Geraldo Lavigne Série recôncavo, rizomas e encantados | Gabriele Rosa nessas noites | Carla Carbatti Recordação de Jonas no dia em que soube de suas bodas | Gabriela Ruggiero Nor Doze pares de costelas | Nina Grillo Como aprendi a ver fantasmas | Ana Gabriela Rebelo Colunistas: Pedro Belo Clara, Fabíola Weykamp e Lucas Grosso Folhetim Embarcação: O meu primeiro e último dia | Tiago Correia

3


Editorial

Este é o nosso primeiro número trimestral. Neste mundo póspandêmico, pós-verdadeiro, pós-luto, o ano da Subversa está dividido em quatro números que esperamos publicar ao longo do ano, em março, junho, setembro e dezembro. Possivelmente, essa organização nova dá notícias de um certo recolhimento de mais coisas dentro de um espaço só, como nos acostumamos a fazer desde que a peste nos acometeu em plena atualidade dos tempos. A situação de confinamento nos separa uns dos outros e esvazia ruas, ao mesmo tempo que aglomera desejos, medos e esperanças no espaço interior. Tudo se passa feito literatura, na parte de dentro. A sala íntima de cada um é composta de memórias prontas a se tornar narrativa pelas paredes das casas e pelo tempo que passou até aqui. Precisamos contar a alguém como é ser uma parte do mal-estar, abrir a janela de uma cidade sem janelas – qualquer uma – e encontrar a palavra certa. A pandemia nos têm, mas temos uma pandemia particular cuja campanha de vacinação se dá pela injeção de palavras. Belas, terríveis, feias, sublimes, grotescas, mas certas. O corpo se aquieta de palavras certas. Espera-se que a literatura que chega até ao leitor lhe faça contato por dentro e por fora, e que faça buracos nas paredes até que, aos poucos, se forme uma janela inesperada para o que há de vir. Desejamos uma boa leitura As editoras Tânia Ardito Fabíola Weykamp Morgana Rech

4


Demônio da Pinacoteca | J. P. Schwenck Tombem-se diálogos Pinel dos mesários Fúria dos diáconos Desordem de templários.

Trava essa cantiga na língua dos sapos Canta esse problema no umbigo dos sábados Arranque essa cabeça, sucumba aos fiapos Garante seu recheio, tombe os mercados

Degrade essa pinágora, renasça do avesso Resguarde seu direito, pinte o seu devaneio Lance sua espada, rogue a cada tropeço Regue seu quebranto, padeça no seio.

Da vida, engula o pedaço De modo tenro e retraído, puxe o pecado Do bico da espada, retalhe o recado Da carne, perfure o espaço.

Perfume das rosas negras e melódicas pétalas Acalentam prosódicas promessas Acanham retóricas ácidas Fantasmas dos rios e dos ratos.

Coagula-se o sangue dos benditos 5


Devasta um hoje como ontem, os fatos Dos velhos novos empaletolados Dos frios retratos pintados.

Que perdem suas cores Perdem-se o algor dos licores Escorre no ralo do segundo Acabou-se o mundo?

J.P Schwenck | Rio de Janeiro| é um artista multimídia carioca. Em 2020, publicou “Opus”, seu primeiro livro por si próprio e lançou seu podcast experimental “Alma Mastigada” . |jpschwenckcosta@gmail.com

6


“Incurável” e “Pós-M” | Lucas Luiz Incurável Certa vez quando brincava com uma bolinha contra a parede sem reboco fui atacado por um grão.

Doença incurável – viria descobrir há muito.

Meus olhos insistem em germinar essa sobra da infância.

Por isso a poesia: sou incapaz de suportar a perspectiva de mundo arranhado.

PÓS-M. I Aqui estamos nós Truman’s equilibrando-nos frame em frame Aqui vai a multidão ávida rosto impresso em alvos: muros digitais 7


O new rupestre e seu prazo curtíssimo de validade Quando em quando nos caberá o onírico & o teu boom para lembrar: Nem nos sabemos gente II Todos os caracteres, Truman, para que mesmo todos os caracteres? Todos ruirão. Cupins bactérias vermes – um tango argentino? (nada vence a imagem) que há que há meu bom homem é necessário o espetáculo libertino…

Lucas Luiz | Guararema, Brasil

8


O inferno somos nós | Carlos Silva Pode ser que a cada dia despedace algo de mim ou, também, de nós

Nós engasgados demais para serem ditos e, no radical de tudo, calados pela incerteza do que somos

O inferno somos nós, aprisionados de ir ao céu e, no palco da vida, sem os aplausos que o ego impulsiona para a sina do “estar-no-mundo”.

Carlos Silva | Machados, Brasil | eucarlosprofessor@gmail.com

9


Moisés | Daniel Rodas Deus é o cão. Não um cão. O cão. Artigo definindo o substantivo. De orelhas largas. Cabeça chata. Patas pretas e língua de fora. Deus é o cão. Chegando ao meu lado numa praça vazia. Entre folhas secas. Ele vem e se senta no banco. Rosna pra mim. Mas não late. Arranha meu pé. Mas não rasga. Vem sozinho todo final de mês. No dia trinta. Ou vinte e nove em ano bissexto. Deus é o cão. De uma raça plebeia. Bastante comum. Desses peludos. De cara comprida. E olhar perdido espiando o sol. Aguardando o tempo fechar. E entra janeiro. Sai janeiro. Entra dezembro. Sai outubro. Mas ele nunca falta ao encontro. Senta discreto e fita de esgoela. A canela do vendedor de pipoca. Que osso bom! Diz. Exclamando entre os dentes. Parece a costela de Adão. Adão? Meu gato. Que criei do barro. Da caixinha de areia. Depois que nasci do escuro. Sim. Nasci do escuro. Não sou apenas o pai. Sou também o filho. Eu sei. Digo. Também fui na igreja. Fiz catecismo. O cachorro sorri. Parece que contei uma piada das velhas. Não gosto de catecismo. Se quer me conhecer. Lamba o chão. Ou corra nu numa montanha. Pois Deus é o cão. O cão chamado Moisés. Aquele que vem das águas. Nascido de um tempo. Sem sopro ou remorso. Ele estava. Quando alguém veio de dentro e fez o mundo. Mas não foi você? Talvez. Mas há coisas tão antigas. Que aqui sempre estiveram. E Deus fica pensativo. Coça a orelha. Afasta uma pulga. Na cidade chove. Na planície estia. O dia é longo. Mas o pôr do sol nunca se atrasa. Deve ter orgulho. Digo. O cão não responde. Suas orelhas parecem ter ouvido algo. Som de sirene? Guerra na China? Não. É só o passo de uma formiga. E uma folha caindo. Coisas que fazem mais barulho. Que o som de uma metralha. Sabe? Não sei. Você é que sabe. O onisciente. O cão me encara. Mas nada diz. É um sujeito calado. Um bicho bonito. Apesar do pelo assanhado. E do chiclete colado ao focinho. Dia desses a carrocinha te pega. E aí? Vai dizer quem você é? Ora. Responde o cão. Eu sou o que eu sou. E não estou fingindo ser um bicho. Não tanto. Quando você finge ser um homem. Homem vestido de bicho? Bicho vestido de homem. Somos todos. Mas o primeiro a latir. É o último a ouvir. O latido do outro. Assim é o mundo. Não foi você que o fez? Talvez. Um dia alguém diga. Que as coisas não são assim. Ou mude tudo. Ou refaça o mundo. Alguém maior que eu. O cão que não seja um cão. Um rottweiler. São-Bernardo. Quem precisa de Deus vira-lata? Eu preciso. Digo. Sério? Sim. Com quem mais conversaria? Os de raça são metidos. Não comem nada que não seja de fábrica. Não cheiram nada que não tenha etiqueta. Não quero saber desses deuses de raça. Gosto dos vira-latas. E só. E quando digo. O cão sorri. Ou parece sorrir. Ou chorar. Uma lágrima canina. Chegou a minha hora. Diz o cão. O sol está sumindo. Já vai? Vou. Volto no próximo mês. Ou no próximo século. Quem sabe. E o vejo partir. As patas miúdas. Os olhos dourados. Aquele arcaico balançar do rabo. Afastando as nuvens do horizonte. Daniel Rodas | Teixeira, Brasil | é escritor, poeta e dramaturgo. Estudante de Letras (UEPB). Tem textos publicados em vários meios eletrônicos e pensa na poesia como um fluxo,

como

o

fluir

incontrolável

da

vida.

Publica

seus

textos

no

blog: www.faroisnoturnos.blogspot.com.br

10


Dente de Leão | Amanda Jacometi

Abri meu peito com as duas mãos E você, cuidadosamente, colocou sal E pimenta.

Ardeu um bocado, algumas lágrimas caíram. Sempre tento me lembrar da sensação Pra não me deixar mais cair.

Mas, lá estava eu, de novo, Abrindo meu peito para você colocar sal e pimenta.

De certa forma, um ciclo de coisas. Eu esperando e esquecendo (Inclusive o número do seu apartamento) E mais sal e pimenta.

Por que eu insisto em alimentar essa fome com sua poética de toques Se tudo o que recebo é ferida e sal e pimenta?

Fico de frente ao mar, de peito aberto Te procuro e você não está lá (nem nunca esteve)

Permaneço.

11


O sal dentro de mim se mistura com o sal do oceano. Encontro uma flor de vento E o vento bate, às 5 da tarde, como um dia qualquer. Pó, poeira e movimento

As pétalas da flor a levam pra longe… Enquanto eu esqueço, de novo, o número do seu apartamento.

Amanda Jacometi | Rio de Janeiro, Brasil | é multiartista. Possui um trabalho que envolve interseções entre música, dança, escrita, artes visuais, tecnologia e performance art. Pesquisa memória de mulheres e silenciamentos, principalmente no meio artístico. | amandajacometi@gmail.com

12


Michelle | Alessandra Barcelar

Os fracos morrem sem amor. Não me ligaram para avisar a primeira vez que ela foi internada. * Já tinha aquilo dentro de mim. À noite, quando o único som era o dos ratos andando pelo telhado, eu cobria o rosto. Deixava minha mão descer. Fazia medições para ter certeza do que era ter aquilo. * Sentado de frente para uma janela no centro da cidade, começo a temer pelo encontro marcado para daqui a pouco. * “Faz mais de quinze anos que você foi embora e nos deixou nessa latrina. Com que direito aparece agora?” “Saí, porque meu corpo só carregava um”. “Você é um bosta. Acha que sua carteira aberta é uma parte de benevolência”. * Virei as costas e fui em direção à porta do quarto. Temia vê-la de uma forma diferente daquela que conheci anos antes. * “Vamos à benzedeira. Tudo tem jeito nessa vida. Só não tem jeito pra morte”. “Pra morrer basta estar vivo”. * Seu corpo arfava sobre a maca. Braços amarrados com gazes. Olhos catatônicos. Um 13


tubo enfiado pela boca e lábios arroxeados. Sobre o corpo, um lençol já amarelado pelo uso em outros corpos deixa parte de seu colo nu à vista. * “Sua mãe acha esse jeito estranho. Pergunta se nunca reparei em nada.” “A loucura faz parte. Acho que é só um jeito de pensar que sai descarrilhado da cabeça”. * Minha irmã chorava copiosamente sentada numa cadeira. Amparada pelo banana do marido, questiona Deus. As pessoas pelos corredores. Éramos fantasmas para elas. Cada um tem seus próprios doentes e recebe suas más notícias a seu tempo. * “Que porra é essa no seu caderno? Quem é? Eu não acredito que Deus me castigou assim!” “Sua mãe perguntou sobre essas coisas no seu caderno. Eu disse que era brincadeira de alguém da escola”. * A pele dela há muito era um leito de rio seco. Os lábios roxos em nada lembravam a vivacidade vermelha de outrora. Será que ela ainda tem aquele cheiro? Levei uma surra um dia porque mexi nas coisas dela. Perfume. Batom. Pó. A mangueirinha do chuveiro abriu vergões em minha pele. Chorei por todos os motivos. Passei vergonha na escola. 14


* “Sabe, eu te defendia na escola. Briguei quando te zoavam. Uma vez fiquei com o olho roxo. Aí, um dia, você vira as costas e some.” “O mundo só é grande se a gente abre espaço”. “Claro que ela não iria aceitar, mas ela chorava feito pedra minando água”. * Logo vai chegar minha tia. A boa samaritana da família. Usa saia e faz tudo que o pastor manda. Vai me olhar inquisidora. Perdeu tudo, menos a pose. Cumprimentará minha irmã. A filha que ela queria. A filha que ela tentou roubar da minha mãe. Até berço comprado já tinha. Não era justo uma menina bonita naquela miséria. * Ainda há fios espalhados aqui e ali pelo seu couro cabeludo. Suas fotos da juventude mostravam um cabelo volumoso. Usava bobes para fazer os cachos. Nas excursões para a praia, nunca molhava os cabelos. Dizia que frequentava os bailes dos anos 70. Deve ter dançado Jackson Five e Donna Summer. * “Ela nunca soube que era você quem mandava o dinheiro. Eu dizia que era da venda de Avon” “Todo suor dá dinheiro”. * “Eu fingia não ouvir as piadas quando passava no bar. Às vezes, eu pensava em estourar

15


e virar um diabo doido lá dentro. Sei que te achavam uma aberração e que a culpa era minha. Para os outros, a culpa é do pai, que não deu exemplo”. “O exemplo é só uma embalagem para não derramar o que tem dentro”. * Meu pai apareceu com o médico. O doutor colocou a mão em seu ombro e fez um afago. Passou pela minha irmã e fez o mesmo. Diante de mim, um susto. Perguntei a ele se ela conseguia entender algo. Ele disse que naquele estado ainda resta consciência. Ela ouve? Sim. Abri a porta e a enfermeira pediu licença. Coloquei a mão sobre seu colo e segurei sua mão. Senti-a fria, mas ainda arfava sob o lençol. — Eu fiz a escolha certa, mãe. A senhora não aceitou nunca, mas a natureza da gente é um bicho que não dá pra domar. Mãe, eu te perdoo. Guardamos rancor demais pra levar agora. Eu só queria um pouco de atenção, porque eu sempre soube do que eu gostava. Chorei e abaixei a cabeça. Beijei sua testa já gelada. Seu peito subiu alto. Cheio de ar. Um apito ininterrupto tomou conta da linha verde na máquina ao seu lado.

Alessandra Barcelar | São Paulo, Brasil | é historiadora, vive em São Paulo, onde nasceu, e atua na área de Economia da Saúde. Publicou contos em revistas literárias do Brasil, Portugal e Alemanha. Colaborou na coletânea Mitos Modernos I, que recebeu o prêmio Le Blanc de Literatura Arte Sequencial

16


Cenário de uma manhã ou uma viagem | Mírian Freitas

Inesperada manhã acesa em seus fluxos contínuos de luz ilumina as descobertas das águas os santuários aquáticos, o vento e suas vertigens, as escamas tristes dos peixes a permanência discreta das tartarugas na areia. Tudo sopra na memória o mar imenso sua penugem azul adorna a paisagem vestimentas lendárias sopram dizeres límpidos de um som diverso muito além da dimensão do cântico das sereias.

Nenhuma água se comunica comigo. A solidão venta na casa dos olhos: há sede de liberdade.

Gaivotas esparsas no revoar águas salientes enxergam na luz desta manhã a força do alto, a vasta certeza do movimento do universo.

Atrás, no bem longe além, a paisagem se despede no horizonte. 17


Cavalos roucos nas molduras do céu gritam palavras desalinho e medo, são selvagens, mas escutam fábulas como crianças em delírio.

Noutras existências já viviam de lamúrias pés descalços, cascos escuros visitavam os planaltos áridos sorriam muito. Choravam muito. Aprenderam o amor. (O amor desencanto?). Agora, no presente desdito, avesso de tantas dúvidas desaprenderam a amar. (Além do vínculo e das dádivas não são os únicos que sofrem).

O coração é lenha.

Primeiro, reinventaram o vento depois a noite, a lua, as estrelas adiante viram os adeuses, as vozes dizendo noturnas:

– ama-te a ti mesmo ó criaturas 18


ao menos no meio da terra pálida alimenta-te de profundos cânticos ardores de palavras vultos, voos, anjos de mármores ao redor de tua crina embalsamada.

Não há rios nem corredeiras de águas para matar-te a sede das coisas antigas da vontade dolorida de florir. (Rostos endurecidos, fecham-se).

O que resta da morte inocente ungida nos pilares do grito e da rouquidão? São os pés de barro dos vultos inertes – corpos áureos aquecidos por labaredas, simples pomar de laranjas da terra e cavalos galopando o céu.

Multidões ameaçam partir.

Assim, de flagelo em flagelo, a alma animal é cantiga e viagem.

Mírian Freitas | Juiz de Fora, Brasil | mineira, doutora em estudos de Literatura (UFF), escritora, professora do IFSUDESTE/JF. Autora de Intimidade vasculhada (contos- 7 Letras), Exílios naufrágios e outras passagens (poemasPatuá) | mfreitasbrazilmg@aol.com

19


30 anos, nu | Felipe Eduardo Lázaro Braga 1/2 Mas acima de tudo, eu tenho medo de ficar muito, excessivamente medíocre. Por isso, eu pesquiso palavras no dicionário. Quando encontro, em livro ou por aí, uma palavra desconhecida, eu pesquiso compulsivamente o significado, sem pensar nas consequências. Antes, eu deixava muitas palavras mudas que o contexto destrancava pra mim. Agora, minha autoestima depende completamente de acumular palavras, maiores e mesóclises. Eu acho que a subjetividade dos meus 30 anos são essas duas marcas no rosto que cortam a desenvoltura do nariz até as laterais da boca. O rosto intacto de juventude, exceto por essas duas marcas que transformaram minha terceira década em anatomia – nada além disso, e ele já é outro. Esse rosto, ao mesmo tempo marcado e intacto, é um impasse cronológico a meio caminho de: estamos algo além das revoltas, na maturidade da juventude, e qualquer coisa aquém das conquistas, na juventude do resto adiante, uma idade mestiça entre o quase lá e o ainda não que, rosto e receio, além de ser 30, é crise antes de tudo. Vou fazendo uma lista de palavras desconhecidas, e guardo tudo numa folha de sulfite, perto do aparelho de WIFI da sala. Meu acervo está crescendo rapidamente, à medida que aumenta essa sensação estranha de ocupar um lugar maior do que o conforto, de estar o tempo inteiro mais apertado do que devia, como se o espaço estreito coubesse, ele inteiro, somente na fração que falta. Cada palavra da minha lista é uma probabilidade. Qual é a probabilidade desta proparoxítona luso-latina? 1% dos falantes sabem seu significado preciso, e outros 2% reconhecem-na de aceno longe, sem sinônimo ou sobrenome. Esta outra probabilidade é um evento poético único no português decassílabo do século XVII, e este 4% morreu sem acento numa imigração forçada de Angola à fronteira. O procedimento de acumulação que adotei é profundamente incômodo, preciso conquistar a forma ideal que a preguiça deixou lá na forma ideal: vejo uma palavra, leio a definição, julgo a estética por trás do seu retalho de significado, e deixo lá na folha. O que é a estética por trás de um significado? Um retalho: um pedacinho de tecido de estampa única em cuja geometria não cabe nenhum sinônimo. O procedimento é incômodo, porque minhas palavras estão à deriva na folha, sem os respectivos significados. O que é valhacouto? Esqueço novamente pra pesquisar mais quatro vezes depois, de sorte que cada ampliação de vocabulário tem quatro vezes mais idiotice que dicionário, nesse meu por enquanto que antecede a preguiça. Ceteris paribus, a gente morre. Só vou aguentar mais uns 50 anos, 60 no máximo. Mais que isso, eu me mato. E é impossível que exista vida depois da morte, de 20


tanto que eu não quero que exista. Eu quero terminar a quilômetros por hora no tobogã do nada, quero sucumbir direto pro lado de lá de mim. Aliás, eu acho que a eternidade paga pouco por esse anteontem de vida. Se bem que eu comi um pedaço maravilhoso de mamão, doce de tudo, há uns três dias atrás. Fiz a burrice de dar metade daquele mamão pra minha irmã, a vida poderia ter tido o dobro de significado. Agora já foi, valeu Camila. A hipérbole de um dia cansado que se estende até a insônia: só hoje eu já me matei umas 14 vezes, cada uma delas com uma caneta marca texto diferente, pink-yellow-me. De sorte que não há outro caminho a seguir, senão o atalho: eu tô ficando meio medíocre. Minha vocação ao meio-termo não me deixa ser completamente medíocre, complexamente medíocre. Eu queria ser a apoteose da mediocridade, eu queria ser a rainha da bateria do meio-termo, a estatística e a mediana sambando atrás e à frente de mim. E eu no meio. Tudo o que consegui, no entanto, foi ser mais ou menos medíocre: você pesquisa palavras no primeiro ao quinto dicionário do Google, e usa a terceira pessoa para olhar a própria mediocridade no espelho do outro. Minha fala, estrangeira até onde o português consegue ir, costuma não ser minha, mas rabiscada de antemão numa folha que esse outro cara escreve às madrugadas, com a caligrafia de 5ª série que o meu metro e sessenta tem até hoje. Os 30 anos têm duas frações de vida: ½, 15 e 15. Essas duas adolescências cheias de si discutem juntas o entusiasmo de suas ambições, enquanto eu tô aqui comigo e com medo de trair o que já foi feito. Melhor não, tá bom assim, é mais seguro… … e há também os momentos de paz e tranquilidade em que o plural do meu sossego é dormir junto, 8 horas sucessivas e encostadas um no outro na matemática de descanso único que é mais qualidade e fronha limpa, do que número ou 8. Que não é 30 anos e 15 e 15, mas soma de 57 consigo. 1/2 + 1/2 Estar sem roupa, deitar nu, não é uma circunstância, é uma emoção. Penso que é necessária muita sensibilidade para sentir essa alegria tão íntima de si, que é a nudez. A nudez é, na superfície mais óbvia de sua pele, uma anulação de todos, ou quase todos os índices de pertencimento, de classe, de gênero, de receio, de prudência, de hierarquia. Mas eu não quero politizar a nudez, não quero tirar o sorriso tranquilo da minha nudez expansiva, que entreolha, nas escolhas da vida à frente, a liberdade das minhas recusas. Compartilhar as roupas jogadas no chão é um retorno tão fundamental, tão juvenil, tão completo a tudo aquilo que, caminhando a passo calmo numa velocidade de reencontro, ainda somos. A nudez é erótica? É, é uma emoção profundamente erótica, profundamente sensorial. Mas, para ser erótica, ela não precisa estar associada ao orgasmo, ou a qualquer excitação de compromisso sexual – embora ela seja uma excitação, a mais infantil de todas. A emoção erótica, de 21


que a nudez é gatilho privilegiado, é uma sensação que percorre a intensidade do corpo inteiro, e não apenas a ponta magnífica e genital do nosso sexo. A nudez aflora-se num toque leve de ar, sol e si mesmo, a nudez transborda-se. Ou não: você precisa aceitar, com ingenuidade e permissão, o regresso criança àquilo que de primeiro fomos, e que somente a nudez consegue retroagir em presença. Eros suado na alegria do meu próprio corpo: nada é mais melancólico do que estar nu sem sentir a nudez, uma subjetiva que é sensação irrestrita em si mesma. E, completa em si, é profundamente alheia. (30 anos é a década mais sossegada de tudo aquilo que os 20 não cumpriram, se nua. Se não, o primeiro dia dos 30 anos vira, no dia seguinte, 30 anos idênticos, sinopse de uma inclinação na barra que separa salário/sono). Penso em como a mediocridade, palavra sonora, existe para ofender o nivelamento: essa sensação de idêntico nu e compartilhado, de despretensão e vivência, de pura anatomia em cores quentes e horizontais, é a consagração do nivelamento, é a menor distância que a maior proximidade consegue ter. A recíproca sem roupa que abandona qualquer outro resquício que não a ideologia do corpo e suas sensações, une. Essa é a minha utopia, uma cidade eufórica de gente nua, uma tribo de bilhões. Não precisa ser sexo, porque é mais intenso que sexo. Não precisa ser genitália, embora eu não a recuse. Embora eu não as recuse, que a minha nudez vem com o socialismo do plural. 1 – 1/2 Da cintura pra cima, eu escrevo a lista, da cintura pra baixo, eu tô pelado, meio a meio. Eu sou, para os outros, eu mesmo da cintura pra cima, mais bem ensaiado. E olho os outros nos olhos, da cintura pra cima. E estamos todos mutuamente impressionados com a riqueza, sofisticação e abrangência do vocabulário uns dos outros, nesta noite curta que vai dos 30 até o fim do jantar. Mas é inevitável: quando a palavra exata, preparada com insônias de antecedência, vira corpo – digamos, vira um espirro, ou um bocejo, ou um arroto, inevitavelmente corpo – percebemos uma parte do indivíduo que, por distração, não havíamos notado até então: ele está metade vestido, e metade nu. Eu olho com espanto a vulnerabilidade de uma nudez que, idêntica no outro, – também ele corpo! –, pensei ser só minha. E diante dessa nudez bonita e alheia, cuja palavra, antes de ser probabilidade, virou corpo, eu me visto: me visto sem reciprocidade com o retalho de um sentido único, deixo-o sozinho e seminu na frente de todos, a distância na extensão cordial do meu silêncio. E todos, como eu, pronunciam sua mais indiferente probabilidade, bem vestidos e argumentando bem, talvez desconfortáveis, como eu, com a própria nudez que o corpo do outro antecedeu. Meio pelados, meio vestidos, escolhemos o ponto mais seguro do meio-termo, a que os geômetras chamam de mediocritate. E se, no lugar da reciprocidade, o melhor de mim foi o devaneio, o que eu não fiz é a metade da companhia que faltou à coragem. Fico nu. Estreitamente nu. 22


Com meu lado pelado e as boas-vindas do dele. Sem pronunciar uma palavra. A nudez completa que é, na metade do outro, um único um.

Felipe Eduardo Lázaro Braga braga.felipe@aol.com

| Osasco,

Brasil | Sociólogo e pesquisador |

23


Um casal em crise | Silvia Gerschman Aguardava no bar onde combinaram que ele chegasse, olhou o relógio, mecanicamente, ainda não eram sete da tarde, restava meia hora de espera e já estava impaciente. Marcaram na saída do trabalho era mais impessoal do que se encontrarem para conversar em casa. Depois de tudo, ambos sabiam que não seria agradável, para isso era melhor um lugar neutro. O viu sair do metrô, a saída da escada era frente ao bar, o observou como se nunca o tivesse visto calça esporte da Richards, camisa combinando e bem passada, sem gravata, pasta em mãos. Ainda que com uma vestimenta juvenil via-se tão envelhecido, rosto preocupado, olhar ausente e subindo as escadas com dificuldade, como quem anda pela rua com medo. Chegou, sentou na cadeira já preparada para sua chegada, se cumprimentaram com um beijo de amigos. Escolheu o que desejava e chamou o moço, uma água sem gás, um café duplo e um sanduíche de presunto cru no pão francês. Começaram conversando de generalidades o dia de trabalho e os problemas de sempre os salários atrasados na Universidade, os problemas com os colegas, os dias difíceis com a política no Brasil e o governador do estado sob impeachment. Os 80 tiros desse dia que o exército despejou, em Angra dos Reis, sobre uma família de população negra do subúrbio, apenas porque suspeitou que eram bandidos. Enfim, o Rio de Janeiro é lindo… lancharam e começaram a tratar da sua própria família “sui generis” fazia 17 anos que estavam juntos, mas apenas os fins de semana, sem filhos de ambos, apenas a família de Raquel filha dela. Os 17 anos cansaram os dois e já ambos não desfrutavam mais de estarem juntos. A primeira coisa que os separou foi a situação desigual entre eles enquanto ela mantinha seu salário desvalorizado, fazia oitoanos que não recebia aumento, como todo pesquisador-professor universitário o salário é baixo para uma dedicação completa e sem horário. É todo dia e o fim de semana também. A situação de Roberto que trabalhava num Instituto muito prestigioso da Universidade vivia sob a ameaça de ser fechado. Se bem isso não aconteceu durante 40 anos e, até a data, essa ameaça continua existindo. Isso fazia com que Roberto vivesse como se todo dia fosse ficar sem trabalho, o que fazia dele uma pessoa extremamente neurótica, a ameaça tocava os pontos frágeis da sua saúde mental. Ele tinha tomado a decisão que não viajaria mais, não lhe interessava viajar, conhecer outros lugares apenas se interessava por ficar em casa lendo, ver um jogo de futebol na TV, o Jornal Nacional e, às vezes, um filme ou canal 50. Não escrevia sobre o conhecimento que acumulava e vez por outra fazia algumas pesquisas teóricas sobre temas que lhe interessavam. Seu saber o tornava um erudito, suas aulas excelentes, seu discurso bastante articulado e a sua 24


memória o acompanhava bem. Mas não escrevia uma palavra e quando o fazia era um sofrimento para ele e para Nanda que o acompanhava lendo o que ele às vezes escrevia. A conversa que motivou o encontro trazia a ela um gosto amargo de café com açúcar carente do movimento de agitar a colherzinha no seu interior. No momento em que aproximava o café aos lábios sentia a falta da conversa que se desenvolvia apenas dentro de si mesma, faltava um interlocutor ainda que existisse alguém sentado frente a ela. Pois é o interlocutor no bar do centro da cidade, tinha decidido não conversar mais nada, além de ter enunciado os conteúdos de tudo que não queria mais fazer. De resto, o pensamento dele era um mistério para ela. Assim sentados e mudos, vez por outra olhavam pela janela à espera de que alguma coisa acontecesse fora da mesa que estavam sentados. Mas o Paço Imperial permanecia na calçada frente à janela do bar, do lado esquerdo e o Palácio da Assembleia, também mudo, do lado direito. As pessoas que passavam pela calçada eram um desfile incessante de quase bonecos que iam e voltavam, pareciam ter muita pressa e não se falavam entre si. Todos mudos pareciam reproduzir o silêncio do casal e como nos filmes mudos a tragédia, o desinteresse e a solidão transparecia nos rostos da multidão em movimento. Chegavam no sinal, paravam, aguardavam a troca e continuavam a atravessar a rua. Nanda que não conseguia mais suportar o silêncio disse: que você acha de andarmos um pouco, proponho vermos a exposição de Wei Wei, a uns passos, e ouvirmos a guia um mocinho trans estudante de arte da UFRJ, muito bem informada e interessada na obra do artista chinês? Ainda que já vi, faço questão de ver novamente e não acrescentou mais nada, apenas pensou sem se pronunciar- se dessa vez ele aceitaria sua proposta. Num instante o céu cobriu-se de nuvens, um vento suave pareceu levantar da terra, em minutos o vento foi crescendo mais e mais… O que habitualmente está no chão papéis, copos de cartão vazios, insetos e bichos pequenos, água, cigarros tudo misturado voava entre as mesas e a correria do povo na rua começava a diminuir, as pessoas buscavam refúgio e ainda bastantes transeuntes permaneciam nela. Fecharam a janela do bar e ficaram observando o que acontecia fora, era notável a velocidade com que crescia o vento e em milésimos de segundos ficaram desconcertados, as pessoas voavam pela rua que nem papéis, parecia que o peso dos corpos tinha se tornado leve se comparado à velocidade que adquiria o vento. A situação tão bizarra fazia com que confusas e muito assustadas as pessoas estendessem os braços para as outras, tentando se agarrar em algo ou em alguém que ajudasse a parar o voo. Se tivessem imaginado como era voar, jamais teriam desejado usufruir dessa condição. A visão daquilo era chocante tudo ficava suspenso no ar bolsas, chapéus, guarda-chuvas, colares que fugiam 25


dos pescoços das mulheres, crianças que se soltavam da mão dos pais, sapatos que caíam dos pés; os sons começaram a sair das suas bocas e uns conversavam com os outros, perguntavam aos mais próximos como se sentiam; expressavam perante os outros o medo, a sensação incompreensível de que morreriam por uma causa absolutamente desconhecida. Algumas choravam porque tinham temor de cair e estatelar no chão, aquele silêncio chegava-se a ouvir. A multidão silenciosa que enchia as ruas agora transformou-se num murmúrio permanente acima. Todos falavam ao mesmo tempo, riam de nervoso, choravam aterrorizadas, perseguiam os filhos sem conseguir os pegar, gritavam para alertar as suas crianças para não baterem com inúmeros obstáculos que planavam soltos no ar. Embaixo, Nanda e Roberto, sentados ao abrigo dentro do bar se perguntando como não tinha acontecido com eles…Quase tão inermes como os que navegavam no céu os homens são natureza que não se sabe, em um instante a situação de sobrevivência e de compartilhar a própria ignorância, os tornavam exatamente iguais aos cães e gatos que voavam junto com eles. Agora, homens desarmados da sua consciência e alimentados do seu curto alcance e teimosia, pareciam bichos e nada os diferenciava destes: o presidente de um país estranho, o condutor de aviões, os generais de soldados, os empresários de operários. A condição humana estava exposta pela sua falência, não possuir nada além do corpo e a cabeça do resto, iguais, nada… Nanda olhou a sua volta, aí estava ele desarmado, as lágrimas caíam dos seus olhos copiosamente, não havia como detê-las. Roberto a olhou detidamente, percebeu que as lágrimas desciam pelo rosto dela e um olhar do desamparo trazia para si a sua tristeza animalesca. Estenderam as suas mãos as seguraram e souberam que nunca as deveriam ter soltado…o gesto os conduziu a compreender que o motivo de tomar-se das mãos era não se perderem de si mesmos. O vento começou a amainar, as pessoas iniciaram a descida lentamente como se a lei da gravidade tivesse diminuído, mas não completamente. As crianças pousaram de modo que os pais as reconheceram, seguiram-lhes os adultos e os velhos, cada um a seu tempo ia caindo e alcançando a terra com seus próprios pés se aproximando uns dos outros. Controlavam novamente o movimento dos corpos enquanto isso o dia caía e a noite despontava no horizonte.

Silvia Gerschman | Rio de Janeiro, Brasil | Nascida em Buenos Aires mudou-se para o Rio de Janeiro onde mora desde 1977. estudos,

romances

e

contos em

Desde 2015 vem desenvolvendo diversos

Literatura.

Publicou Contágios,

Editora 81/2

(2016); Ninhos, Editora Patuá (2019); O Renascimento em Outras Terras, Editora Patuá (2019), A Partitura de Clara, (2020), em fase final Um Lugar ao Norte, Romance.

26


Jogo as palavras pela janela para não morrer | Luizza Milczanowski Uma carta, que é um e-mail, me diz no assunto: o suicídio é a única morte não prematura. Todas as outras mortes são prematuras. Um e-mail que me diz engulo os olhos dela feito os testículos do touro. Os olhos tais como as bolas dos touros. O email me diz mais, me diz que Vi essa frase em uma exposição do MAM. O suicídio é a única morte não prematura. Não esqueço. Mas não devo dizer. É a última vez que digo. A tela vermelha e branca e vermelha Vou pintar todos os meus quadros de vermelho. Não quero mais saber dos corpos fugidios, das costelas dançantes, dos pelos pubianos, da mistura entre amarelo, branco, marrom, laranja, vermelho e roxo para pele. Desfaço a linha que separa intestinos e paisagem, fundo a carne nos ramos das flores mortas, no fundo da parede chumbo e do taco de madeira. Agora nosso capacete de astronauta está destruído e somos só matéria flutuante no Universo calado. O homem corre até o ponto de ônibus, senta-se um pouco torto lombar curvada para ler as notícias na tela do celular. A mulher senta-se um tanto ereta e torce para que outra mulher se sente ao lado. Um homem não, um homem não não não não não não Para frente para trás, há quinze minutos (ou horas?) o som de Beethoven no ar. Vai e volta, volta e vem, como meus dedos que teclam e meu tronco que pende para frente trás trás e frente e me dizem que preciso comer Senhora Senhora Você ainda não é feita de Palavras (revelação) Meu Deus, é por isso. Exclamo. Por isso, por isso ainda tenho estômago, esôfago e intestinos. Pensei que seria o verbo relutante, as vogais dispersas. Não sabia que me fazia matéria. Eu peso. Eu afundo. Não repetir o eu. Não é elegante. Não repetir. Não repetir a repetição. Riscar. Corrigir. O dicionário ao lado para criar sinônimos para todas as angústias que insistem em se cravar nos órgãos.

27


Um contato, K. Um contato, H. Um segredinho. Me contem o que salva o conto. Me interrompam na palavra-papel. Me deixem falar qualquer bobagem, depois a gente diz ser poesia. Só preciso jogar as conjunções pela janela, uma a uma, para ver se atingem alguém. Jogo mais uma, jogo mais uma. A rua está vazia. Só nos restaram os adjetivos. Audaciosa sai voando, triste, sozinho, bonito, querido, Estapafúrdio faz um barulho agudo quando se espatifa no chão. Ufa! Estamos livres finalmente para dizer. Ai ai au A angústia já foi embora? Ainda não. Tentei jogá-la, mas ela pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa pesa não passa pelo umbral. É isso, estamos perdidos. Escrevo para abandonar qualquer coisa que afaste a melancolia. Escrevo para me permitir viver só mais um Dia Eu juro. É tudo uma pilhagem (deixa eu abrir o dicionário).

Pausa.

Arrancar. Mais um fio que é veia do braço direito (esse não serve para nada, sou canhota). O escritor não mais escreve numa poça de sangue. Isso é puro lirismo. Os sofrimentos garridos do jovem Iessienin. Essa história está no fim. Procuramos uma felicidade mais branda, uma infelicidade mais cálida. Estamos cansados dos poetas trágicos. Os poetas não existem

28


mais Venham! Corram! Venham ver! Lançou-se ao léu Voo plano para o futuro O poeta com sede de porvir Venham ver a morte da poesia! Painossoqueestásnocéu Vai para o inferno em nome de Jesus, sentencia. Ufa. Calma, pessoal. Era só um romancista. Um teatrólogo. Está tudo bem. Esse não diz mais nada.

Amém, Jesusmariajosé. Vapt. Alô. Eu tenho uma reclamação a fazer. Sim, sim, sim. Eu tenho uma reclamação. A vizinha está jogando palavras de baixo calão pela janela! Ela ameaça tacar umas piores agora. Começou bem, abandonando os adjetivos, mas essa não presta. Ela vocifera que vai jogar as letras, rasgadas, que voarão até a estratosfera. Ora, Dona Carmen, isso é um absurdo. Todo mundo sabe como as letras pesam. Como elas vão direto ao chão. Zuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuup. Quase indolor. Não, não, eu te juro. Ela ameaçou. Se prendeu em um balão e foi flutuando, flutuando até o espaço. Tudo ocupa espaço, Dona Carmen, até mesmo a senhora. Sentiu-se ofendida e desligou. Essa juventude desbocada. Por isso, com leviandade, saem jogando as P L R

A A

V S

A

29


Para não morrer Para não morrer Não dessa vez.

Luizza Milczanowski | Rio de Janeiro, Brasil | Autora de O Diálogo (Ed. Penalux), é graduanda em Direito. Leitora voraz, encontrou na Literatura sua forma de estar e agir no mundo. Escreve poesia e prosa, participando de coletâneas e colaborando com diferentes revistas literárias. | https://luizzamilczanowski.com/

30


O som um corte | Milena Martins Moura venta forte no topo das árvores ………….hoje é preciso soprar as sílabas as palavras mal lavadas pela chuva ricocheteando ………….paredes ………….………….tijolos molhados telhados vêm doer nos meus ouvidos ………….repetidos idos idos eco nas cavernas de dentro ………….crânio É preciso segurar os braços da vida antes que ela mate mais um! palavras arrogantes pairando sobre o não verbal ………….palavra falha falta verbo nesse peito amordaçado ………….um dicionário ………….cheio ………….na inutilidade do verbo vai ser sempre apenas minha a aspereza do som apenas minha a aspereza do som sem o que a nomeie para passar a dor adiante ………….apenas minha dentro da boca 31


o amargo do sangue ………….vertendo ………….………….dentro dos ossos jogados à parede ………….tenho medo ………….………….tenho sede apenas o nome é que evapora no vento será sempre apenas minha ………….a palavra devorada o silêncio vem depois dos assovios e o meu corpo demora a desaprender o desespero

Milena Martins Moura | Rio de Janeiro, Brasil| é mestre em literatura brasileira pela Uerj e tradutora. Autora Óculos (2014).

dos livros Promessa Vazia (2011)

Publica

poemas,

fotografias

e

e Os Oráculos dos meus pinturas

no

Instagram

@oraculos_dos_oculos. |milenamartinstradutora@gmail.com.

32


O imperativo das metamorfoses | Mariana Varela É ele que vibra, como um feitiço natural convocando novamente os problemas da comunicação. O movimento mais antigo das moléculas ainda não encontra salvação na palavra. Com uma gentil picada no teu dedo esquerdo acendo a flora de uma nova formação. Mais verdadeira, quem sabe mais delicada, quem sabe. Com mais intervalos respiratórios. O maior desafio nesse imperativo metamórfico é o aprendizado do tempo entre uma respiração e outra. Como poderia dizer-te, portanto, — se fui de pedra à pássaro, de folha à paisagem — se já tive ferrão – dentes – calções de banho Que na minha respiração respira o tempo 33


de todos os animais pedras, frutas minérios e plantas que fui? Como poderei dizer-te sem palavra e salvação que tudo que fui vibra em mim como um imperativo mais vasto de perpétua transformação?

Mariana Varela | Lisboa, Portugal| é poeta e socióloga | ma.varela.c@gmail.com

34


O ano em que o Brasil perdeu a Copa | Paulo Vicente Cruz

Em 1986, ela morreu e o Brasil perdeu a Copa. Antes do Brasil perder a Copa, mas depois que ela morreu, as crianças pintaram a rua de verde e amarelo. Também penduraram fitas com as cores da bandeira, em cordas amarradas aos postes. Eu não pintei a rua nem amarrei fitas, porque eu não contribuí com a vaquinha e porque foi depois que ela morreu.

A ordem foi ela morta, crianças pintando a rua e o Brasil perdendo a Copa. Aí veio o tempo em que da janela eu via a rua pintada e as fitas em cordas amarradas aos postes. Lembrava dela, das crianças e da Copa perdida. Aprendi que a tinta no asfalto demora a sumir e as fitas de plástico são resistentes.

Um dia a pintura apagou. Já não havia mais fitas em cordas amarradas aos postes. Mas eu continuei a lembrar.

Paulo Vicente Cruz | Rio de Janeiro, Brasil | autor do livro “Enquanto os gigantes dançam” (Editora Quelônio – no prelo). Tem textos publicados nos Cadernos Negros – nº 40 e nas revistas digitais Gueto e Subversa. | pevecruz@gmail.com

35


Pressentimento | Marina Kirst O bramido mecânico dos entregadores atravessando em rompante labirintos, faróis e pseudorumos da cidade desértica que paira – flutuante.

E a distância tão próxima dos motoristas que me conduzem… Hesitantes viagens de silêncio abafado em panos.

Dizem que janeiro trará o fim do mundo. Senti-lo por inteiro seria sofrer uma dor sem fundo.

O teu olhar tão triste, úmido bruxuleia sob o meu escudo.

E os meus dias contados são o tempo entreposto de incertos passos ante o mais estremado mergulho.

Resfólego o ar dos suspiros que me circundam. Assim pressinto tudo. Marina Kirst | Porto Alegre, Brasil | marina.kirst@hotmail.com

36


Let it go | David da Motta

Eu não consigo acordar tarde, alguma coisa em mim começa a gritar “acorda vagabundo”, e dormir se torna desconfortável. É como se minha cabeça ficasse me humilhando, “não tem vergonha de dormir até tarde? Levanta!”. Mas eu tampouco acordo cedo. Não consigo. Acordo oito horas da manhã. É o meu limite entre o cedo e o tarde. Eu me levanto, arrumo a minha cama e desço para tomar meu café. Ela grita animada quando me vê toda manhã. “Primeiro vou tomar café, depois brinco com você. Fica com a vovó.” Engulo o café doce demais – minha mãe perde a mão no açúcar – e como um pão duro do dia anterior. Oito e meia eu estou sentado no chão ou andando pelo quintal atrás dela. Às nove e meia minha mãe nos deixa. “Vovó vai fazer o papá”, e eu fico às voltas com a pequena. Nós brincamos de boneca, de pintar, de princesa, de castelo, de cházinho, comidinha e de bola. Ela atualmente tem gostado de pentear o meu cabelo. Eu me sento no chão e ela puxa meu cabelo com uma escova velha enquanto eu seguro as lágrimas. Hoje ela começou a pintar minhas unhas. Ela só tem três anos, mas me faz de gato e sapato. Por volta das onze e meia minha mãe nos chama para almoçar. “Vamos papar?” e ela vai para a sua mesinha que fica ao lado da mesa dos adultos. Ela come bem, mas faz manha. Não posso dar a batata ou o aipim frito junto da comida, se não ela come tudo e fica pedindo mais. Então, em determinada altura começamos a barganha. “Quelo mais”, ela choraminga. “Mais duas colheradas cheias de arroz e feijão e eu te dou mais batatinha”. Ela geralmente obedece, mas hoje não foi um dia desses. Reclamou e pediu para que eu desse na boca. Ela comeu tudo, mas eu almocei um prato frio. Almoçamos até uma hora da tarde. Depois nos sentamos e ela vê um pouco de TV, Show da Luna é o programa favorito dela, tenho alguns episódios gravados, assim ele pode ver quando quer. Depois, por volta de uma e meia, eu levo ela para tomar um banho e dormir. Nem sempre ela está cansada, mas eu preciso desse tempo. Ela toma um banho brincando com os brinquedos de plásticos que ficam no banheiro. Depois se deita na cama da minha mãe e eu leio alguma história. Princesas, rainhas, bruxas… Ela gosta de Frozen. Já tentei contar algumas das minhas histórias, mas não sou muito bom com histórias infantis. Tentei contar o que lembrei de cabeça do Roverandom, o cachorrinho mágico do filho do Tolkien, mas nada compete com a Elsa e Ana. Nem sempre é

37


fácil fazê-la dormir, mas ela acaba caindo no sono e eu posso finalmente ligar o meu computador. Finalmente me sento para ler, escrever e estudar. O café da tarde eu faço questão de fazer. Até porque, minha mãe costuma dormir na sala essa hora, com a TV ligada em algum programa de fofoca que ela jura não assistir. Então, entre duas e cinco horas da tarde, eu me sento na escrivaninha silenciosa e escrevo ingerindo litros de café amargo. Mas nem sempre o trabalho rende fico atento a qualquer barulho do quarto ao lado. Ela não pode descer as escadas sozinha, é perigoso. Mas a menina é teimosa e minha mãe esquece de botar o tampão que serve de portão para a escada e eu não posso me levantar a cada cinco minutos só para checar. Então, qualquer barulho vindo do outro quarto me deixa tenso. Consequentemente, não me concentro no meu trabalho como gostaria. Minha mãe acorda primeiro e reclama que eu não lavei a louça. Minha velha não leva meu trabalho muito a sério, mas me apoia. Meu pai deixou uma pensão considerável, então consegui me dedicar exclusivamente ao trabalho intelectual. Não paga muito, mas ela fica orgulhosa quando meu nome sai em algum jornalzinho ou revista. Quis emoldurar uma página de um jornal local para o qual dei uma entrevista uma vez, quando meu único livro foi publicado, mas eu não deixei. Quando se aproxima das quatro da tarde, eu dou uma pausa e vou comprar pão. Nem sempre tenho fome, mas preciso comprar para tomar café no dia seguinte. Geralmente eu consigo voltar a trabalhar, mas tem dias em que a cabeça simplesmente não quer funcionar. Não tem café que dê jeito. Esse é um problema do trabalho intelectual que não te contam, a tal da estafa mental. Quando a cabeça não quer, ela não funciona e ponto final. Não estou falando de bloqueio criativo ou coisa do tipo, é literalmente um cansaço mental. A ideia você tem, só não consegue dar vida a ela. É frustrante. O corpo cansado consegue seguir lentamente, trabalhar automaticamente. Mas a mente cansada nada produz. Quando isso acontece eu não consigo trabalhar, mas também não consigo relaxar. Aquela vozinha irritante que me tira da cama toda manhã fica no meu ouvido, “Está descansando? Mas você tem trabalho pra fazer, tá vendo filme? Vagabundo!”. Aí não consigo ser produtivo, mas também não consigo relaxar. Mas, independente do meu dia, por volta das cinco ela acorda. Certos dias, quando a cabeça pega no tranco, minha mãe fica com ela pra eu não perder o fio da meada. Parar um carro em movimento não é muito fácil, é preciso desacelerá-lo. Mas, nos dias em que a cabeça está lenta, ai ela me chama e eu não tenho desculpa.

38


Ficamos brincando até às sete, quando eu a convenço a ver TV. Oito horas jantamos e o exercício do almoço se repete. Depois brincamos até as nove, quando ela chorosa toma um banho e é deitada para dormir. Mais uma vez as histórias se repetem. Depois que ela finalmente pega no sono, minha mãe e eu nos sentamos para tomar um chá antes de dormir. Tradição que temos desde a minha infância, de tempos antigos e remotos, de tempos em que meu pai não tinha sofrido com câncer e minha irmã viúva não tinha morrido no parto. Por volta das onze eu volto para o computador e encaro a tela em branco mais uma vez, mas não posso me alongar nas horas, preciso dormir o mais cedo possível. Na manhã seguinte tenho que cuidar da minha sobrinha. Outro dia ela me chamou de pai. Não soube o que fazer. Comecei a cantar Let it Go e ela esqueceu.

Davi da Motta | Rio de Janeiro, RJ.

39


Peito de Frango | Gabriel Correia Após o quadragésimo quinto dia de minha dieta heterodoxa, comecei a sentir estranhos sintomas que talvez indicassem que já era hora de comer algo diferente de arroz e peito de frango. Já não lembrava se por falta de dinheiro ou outro motivo qualquer havia chegado naquele ponto, o fato é que não aguentava mais sequer olhar para aquela composição culinária. Meu corpo já não respondia às minhas vontades como antes e minha mente pregava-me peças a todo momento. Cheguei mesmo a rir de minha ridícula situação ao me ver prostrado em frente ao prato habitual, enquanto tentava, entre engulhos e soluços, terminar a refeição. Desesperei-me. Voltei um pouco no tempo para tentar visualizar a situação de um ângulo diferente, o ângulo de quem já sabe o final da história. Voltei aos poucos, primeiramente, e de maneira alucinada então, e então e então fui reunindo fragmentos de um passado não distante, porém já esquecido. Fui dispondo esses fragmentos aleatoriamente a fim de que alguma das ordens sugeridas me trouxesse alguma resposta e me indicasse alguns caminhos. A velocidade com que esses fragmentos retornavam à minha mente era tamanha que apenas depois de organizá-los matematicamente numa sequência padrão comecei a enxergá-los como pedaços de uma vida, no caso, a minha. Fragmentos. Um frango vivo correndo assustado no meio da rua movimentada, bico do frango, asa, pessoas andando em direção à catraca do metrô, bois no matadouro, plantações de arroz em algum lugar na Ásia, asiáticos, supermercado, cinco quilos de arroz, prateleiras cheias e coloridas, luz, muita luz, luz branca, carrinho de supermercado, carro de luxo, prateleiras vazias e cinzas, panelas, cozinha, geladeira vazia, gaveta da geladeira com uma tupperware, fogão quatro bocas branco já amarelado de gordura, tupperware com um peito de frango dentro, frigideira, cor estranha, meio cinza, panela no fogão, fogão desligado, arroz duro, arroz frio e duro, boca entupida, crostas de gordura preta escondendo o metal que um dia fora cromado, prato branco, garfo e faca, mesa de cozinha, uma cadeira, lugar vazio, vazio não, comigo dentro, eu comendo, comendo arroz frio e duro . . . e peito de frango, o famigerado peito de frango descongelado quase cinza e com gosto de borracha velha. E outro dia, e mais outro, e frango, e arroz, e eu sozinho comendo, e eu sozinho comendo, e eu sozinho comendo, e eu sozinho comendo. E o fragmento se une a outros fragmentos e juntos constroem uma gigantesca sequência de fragmentos que parece não ter fim. E como nessa viagem não tenho nada para fazer, eu conto o tempo. Os segundos, os minutos, horas e dias. Quarenta e cinco dias, doze horas, vinte e cinco minutos. Treze segundos, quatorze, quinze, dezesseis, dezessete. Entre engulhos e soluços eu conto o tempo quando finalmente chego aqui onde estou agora. 40


Derrotado, empurro mais um pedaço do frango cinza para dentro de minha goela e bebo em seguida um gole d’água de um copo de vidro enfeitado pela marca do requeijão consumido após o prazo de validade em um passado remoto. Há mais arroz em meu prato, um arroz que não pede para ser devorado e menos ainda para ser deixado de lado. Ele está lá, mas é como se não estivesse. Ele não faz diferença, ele não faz mal, ele não fede, ele não cheira, não é insuportável, mas eu não o suporto. Duro e frio ele sobe direto para a minha cabeça e pesa toneladas. Eu abaixo a cabeça. Encaro também o último pedaço do frango cinza, esse sim que tem um gosto que lembra a minha vida, um gosto que odeio. Poderia ser sucinto e me explicar melhor, mas que posso fazer se ele tem gosto de vida minha. É algo que só sinto dentro das quatro linhas que separam o meu mundo das ideias alheias, e se as ideias alheias não comportam tal comparação entre peitos de frangos e vidas privadas, então não há nada que eu possa fazer pelo observador do mundo exterior. Paro. Prato. Lado. Nada se move. Um frango metido a galo começa a querer cantar no meu terreiro, ah, diabo, aqui é que não canta, não. Xô, frango sem jeito, vai pro galinheiro que é o teu lugar. Aqui não, aqui no meu prato não! Vai embora, some, some! Se você não sabe voar, a culpa é que não é minha, pois se voasse, oxalá voasse, poderia não ser presa tão fácil como é. Aí, guardado, aprisionado, escravizado como fica, só esperando o dia do seu juízo final, não passa de um futuro pedaço acinzentado no meu prato. Sai desse prato, procura outro! Fica caro, pede proteção pros ativistas, estimula depressão, pede imposto, dá algum jeito de não vir parar aqui no meu prato. Aprende a voar, frango, aprende a voar! Quando não há fome, pode haver fome. Arroz e peito de frango, o tempo passa, a tortura aumenta. Um cheiro invade o recinto, cheiro de frango quando é mal cozido, um cheiro cinza. Não consigo mais ficar aqui neste lugar vazio, não consigo mais suportar o cheiro, e o frango não quer ir embora. Ele está aqui, está na cozinha, eu posso sentir. Olha lá! Olha ele ali atrás daquela cadeira, ele está tentando se esconder. Olha á! Á! Á! Deus! Ele está aqui me olhando, sem pele no pescoço e com dois dedos a mais no pé direito. No direito! O cheiro vem dele, do frango. É assustador. Não dá mais para continuar aqui. O cheiro fica mais forte. Mais forte. Forte. E o o. O frango. Frango. O frango faz “pôôrrr” e abana as asas. Tem duas colheres enfiadas na asa direita do frango. Duas!Quando não há fome, pode haver fome. Quando não há fome, pode haver fome. Quando não hã . . . Saio de casa. Nas escadas o cheiro ainda está presente e forte. Chego à rua. Na rua não há cheiro. Deus me ajudou! Livrou-me do mal, amém. Agora sossego e começo a andar tranquilamente pelas ruas tão lindas do meu coração, tão, mas tão lindas! 41


Adeus peito de frango com arroz, peito cinza com gosto mais cinza ainda e arroz frio, frio e duro. Finalmente me libertei dessa maldição, os quase 46 dias de inferno se foram. E suavemente caminho por aí, enquanto meu estômago olha pra mim e diz que uma comidinha para comemorar nossa vitória viria bem a calhar. Concordo com ele e, agora que minha cabeça começa a pensar cristalino novamente, começo a procurar alguma lanchonete ou algo que o valha. Logo ali na esquina vejo uma placa com os dizeres “Algo Que o Valha” e resolvo entrar para dar uma olhada. Não! Que é isso, menfedrigis? Aqui na rua mesmo está o que preciso, é lindo o que vislumbro. Picanha. Maminha. Alcatra. Bacon. Tudo isso e muito mais ao meu redor na rua, indo pra lá e pra acolá, suculentos ao extremo, exalando um odor que não sentia desde as gloriosas churrascadas na casa do Tu. Um churrasco – rebanho bovino, rebanho divino? – completo caminhando pelas ruas só esperando alguém para saboreá-lo. Esse alguém, caros visitantes, esse alguém sou eu, sou muito eu, sou eu ao extremo. E sim, é claro que sim, eu vou. Eu Vou. Pulo na primeira picanha que passa na minha frente e já arranco-lhe um belo de um pedação. Sigo pra Alcatra e mordo com vontade, já de olho na Maminha. Ela me aguarda. Mas no meio dessa celebração algo me segura e começa a me repreender. É o Bacon. Ele me imobiliza com a ajuda do Medalhão e do Coração, e começa a falar, e diz um monte de coisa que não entendo direito. Bizarra situação essa de ser impedido por um Bacon, mas você que está sentado na janelinha ficará mais espantado ainda quando o Bacon, de maneira violenta e pouco cordial, me dá voz de prisão! Já não entendo nada enquanto sou colocado dentro da viatura da polícia em forma de queijo coalho e levado embora. Agora é aqui ou conto isso como quem se refere ao passado? Alguém me ajude, pois me livrei de um inferno de malditos frangos cinzas pra depois ser preso por comer churrasco na rua. É inadmissível, é imperdoável, é. Respiro, agradeço ao Espírito Santo pela graça alcançada. Mas qual graça? É. Espero um pouco, decido esperar um pouco, estou numa sala escura sem nada para comer e com uma fome crescente, crescente, cresceu. Não há nada para comer, ou melhor, não havia, pois acabo de perceber um apetitoso pedaço de costela em minhas mãos, e esse não me escapa, dou logo uma mordida boa para garantir um pedaço grande e é como o paraíso. A costela mais deliciosa que comi em toda a minha vida, e a devoro com tanta vontade que esqueço que até agora há pouco eu tinha dedos. E mãos. E braços. E pés. E pernas. E abdômen. E tórax. E pescoço. E

Gabriel C. Correia | Campinas, Brasil | Professor – Cinema e Audiovisual/Radialismo | bielsued@gmail.com

42


Urbe velha | Leandro Costa

I A cidade abriu-me sua graça Em sorriso amarelo e antigo De avó que fumava cachimbo Bafejando café esfumado

Eu sentei em seu colo enrugado Para ler em um largo abraço Pergaminho de rugas sagradas, Epitélio de mica e quartzo

Que a capa do fóssil estranho Encobriu com o breu enfadonho De carbono frustrado que nunca Há de ser outra forma que sonha

De discípulo fiz-me escriba E de escriba tornei-me ancião Que sentava nas encruzilhadas Restaurando as esquinas da vida. II Uma casa em ruínas Em si, traz a sina De finada história

43


Ser memória e túmulo

Casa deteriorada Dente, é, cariado Que lateja passado De alicerce profundo —Arranca —Não —Restaura —Restaura?! —Pra quê? —Sai caro —Derruba —É crime —Deixe estar —Cai só

Casa sem gente É dente enfermiço Que já não recebe Sustância vital

Coroa exangue Sem nervos e sangue De esmalte amarelo Trincado e rachado

44


— É morto o dono. Dos tristes destroços Do seu abandono Pegai os despojos

III

O sorriso da Cidade precisava iluminar-se E livrar-se do opaco amarelo do passado: Rua antiga, beco escuro, casa velha, nome morto Ponte velha que não serve para atravessar o rio Que não chega mais a ela porque foi assoreado.

A boca da Matrona recebeu dente implantado Nos antigos alicerces das malocas anacrônicas Levantaram edifícios que nada significam Avatares possuídos por espíritos modernos

A fala de meu Burgo inovou a Flor do Lácio A voz de minha Vila começou falar inglês Fez do latim sagrado anacrônico jargão E diluiu a língua, do tupi, no caldeirão Leandro Costa | Tinguá, Brasil | Francisco Leandro Costa é poeta e contista cearense de Santana do Acaraú, terra – livro que sempre lhe inspira a escrever sobre temas universais. Enfermeiro de formação encontrou, antes desta arte, a vocação à escrita de poemas e contos marcados pela presença das memórias, mitos e lendas dos povos de sua terra natal. | costafranciscoleandro@gmail.com

45


“Metamorfose” e “Verter queimar” | Eduard Traste

Metamorfose é deitado com os lagartos é com os seres rastejantes é que me sinto em casa

escutar ventos dialogar pedra saber verter saber queimar não se estender: onde não for VERTER QUEIMAR

Eduard Traste | Florianópolis, Brasil | Eduard Traste, coautor do livro estrabismo (Viseu, 2018), escreve no projeto www.estrAbismo.net (@estrabismonet),

e tem materiais

publicados em periódicos diversos entre Brasil e Portugal.

46


A Cigana | Angelita Guesser

sentada no décimo terceiro degrau da escada que dá acesso ao museu da Santa Casa, Cláudia olha pela milésima vez para o sino que, ao badalar incessante, antecede o marco de 8h. o ecoar do timbre, cobre contra cobre, avisa a todos da região que já é tempo de deixar os sonhos para trás. mas Cláudia já os havia esquecido. passou os últimos dois meses na presença iminente da morte, e perceber que de alguma forma aquele badalar penetrava sua carne até os ossos fê-la sentir uma pontada de afeto competindo com o cinza da noite que findou. surpreende-se com sua própria reação, disfarça a tristeza, que não é só sua

***

desce as escadarias e ruma para uma longa caminhada, os sinos, vários pela cidade, haviam sido construídos pelos homens do passado, e ela lhes rendia elogios pela honra e dedicação. mas aos de hoje, Cláudia não sente nem rancor. nas ruas a tecnologia super desenvolvida, equipara-se à magia dos seus ancestrais, rouba-lhe a atenção. enquanto desce a famosa escadaria do Quebra-Costas, percebe uma cigana velha se aproximar: — um euro para ler a mão da menina? como se o futuro já tivesse vivido, responde apenas com um aceno de cabeça. nada mais me surpreende, pensa Cláudia ao oferecer a mão.

47


***

os velhos sentados nas esquinas, desprendendo história, mulheres sensatas enroladas em seus cachecóis, e turistas zanzando curiosos, e Cláudia observa-os. distraída faz o percurso inverso, pensa nas últimas palavras da cigana: — não se perdoa a maldade! de qualquer maneira era seu dever voltar, e marcha rumo à morte como fizera os soldados de Napoleão. está condenada desde o dia em que disse sim. seus pensamentos fortemente aprisionados, disfarçam sua mesquinhez. de qualquer maneira, pelos intervalos irregulares de mansidão, Geraldo ainda é um bom homem, e ela se pega chocada com a imensa satisfação de lhe saber doente. o cérebro e o coração, nunca andam no mesmo compasso, e lembra de quando seu corpo não guardava as marcas do humor de Geraldo. antes de abrir a porta do quarto, trata de colocar um sorriso perfeito nos lábios. ao virar a maçaneta, uma voz lhe interrompe o ato: — ele não se encontra mais nesse andar. — avisa a enfermeira. — você precisa assinar alguns papéis.

Angelita Guesser | Coimbra, Portugal | pseudônimo de Tania Angelita Iora Guesser, doutoranda em Estudos Contemporâneos na Universidade de Coimbra – CEIS20. Psicóloga, bacharel em Direito e mestre em Política Social pela UCPel. Tem dois livros de poesia publicados: Foda-se (Ed. Autora, 2020) e Entre um Eco e Outro (Ed. Letramento, 2020). | a.aguesser@gmail.com

48


À noite cresça para a velhice | Miguel Curado assimetricamente, nódoas de sangue recônditas, recolhidas, que gritam ar podre, …

e há um dia, em que a rotina explode, os lamentos assumem a forma de um beijo, e há beijos que se desintegram, e o ar pesa, sobram vogais para que as consoantes emudeçam, ….

lembro-me de tanta gente que já aqui coube, e a luz assusta, não há mais dia, para que à noite cresça para a velhice, que de si se espera Miguel Curado | Lisboa, Portugal | jornalista, publicou Abrir os Olhos Até ao Branco (2018) | miguelcurado@hotmail.com

49


hiena presidencial | Douglas Laurindo

o riso abdicou do tom corpóreo e do reflexo histórico-intuitivo. passou a ser emitido, e só, por aqueles em cuja posição de caça, cor e poder acreditam.

o caçador que sobre duas pernas espreita, abjeto e alheio, tantas outras carnes das quais o presidente da savana, de soslaio e certo enjoo, desfez-se com pretensão de um quadro institucional novo.

presa preta, indígena e a tal da fêmea o artigo 1º lhes assiste a regressão ao campo, à mata e a casa, com direito ao silêncio pão e água. agora quanto àquelas presas afeminadas e trans-travestilizadas confira, sr. juiz: o estado assegura-lhes só a calçada?

a resposta das hienas é sim, enquanto se desfazem, no grande palácio, em gargalhada e escoam baba sebenta, nojenta como o pão doado às espécies do ecossistema sem vida e garantia,

50


a respeito das quais recai toda miséria e negligência vivida.

quando incumbida da limpeza nas redondezas, a tropa carnívora sai em busca de corpos desencaixados de toda barbárie, farsa e padrão antiético, repassados em cada abate, entrevista e repressão diária. senhor presidente, deve-se abordar para garantir?, quis uma das hienas perguntar. é claro, posto lema: torturar a fim de matar.

Douglas Laurindo | Manaus, Brasil | douglaslaurindo35@gmail.com

51


A DEUS MÁQUINA E JÓ | CHICO NONATO

Ergo-me da terra. Jó não teme a mim, Jó destronou Deus. Eu sou Jó e Jó é além de mim. Eu não sou nada além de barro, carne, apêndice, costelas, calcanhares e mandíbula que tritura mais carne. Nada além de uma mulher, um homem ou qualquer que transite no caminho entre essas duas pontas. Um relâmpago dentro de uma consciência que faz clarear o chão no qual se pisa e a realidade despedaçada. Aqui, e em nenhum outro lugar, eu sou. Demolido em meus admiradores atribuo a mim a responsabilidade de reorganizar o mundo, a natureza, e tudo que está dentro das coisas que são eu e ela, e ao nos unir em beleza e discurso nos ponho separados, como se ela fosse estranha a mim e me devesse obediência. Eu então domino obstinado. Piso um chão firme, como uma sequência de fotografias organizadas de forma pouco lógica, a realidade se faz por ela mesma perante meus olhos virgens. Vejo tudo claro demais e fico cego. Quebro minhas costelas. Era sozinho, não sou mais, e continuo. Crio agora letras e melodias ornadas com sangue sobre o solo no qual incidiu a luz que me cegou, e rogo ao Traidor em ironia que essa luz abismal guie a mim e aos meus irmãos em vitórias abençoadas sobre qualquer ameaça, inclusive Ele. Meu coração palpita fora da terra, essa terra agora é minha. Retorno ao barro. Atravessei eras, enfrentei a mim mesmo e dei ordem ao mundo e aos homens. Criei mesmo Deus, pois Deus sou eu, eu fui derrotado, primeiro, por Jó. Ele se parece comigo. O sagrado deve ser meu semelhante, portanto, eu sou Deus, mortal túmido de uma vontade ignorante e exausta de não morrer. E por isso eu salvo e mato, por isso quero, mas não sou imortal, por isso meus olhos brilham em ira e misericórdia, por isso faço farto de potência o insondável e crio para em seguida destruir. Levanto me do barro. Cruzei épocas inteiras dilaceradas em mil, como uma presa sem chance de fuga fui retalhado. Montado em um cavalo matando eu servi os prazeres dos meus assassinos. Deus, eu ainda mato. E, por isso, eu crio o pecado, atribuindo culpa e dores minhas a quaisquer outros sapatos, não aos meus. Meus calcanhares doem, as esporas de Deus corroem minha barriga. Retorno ao barro.

52


Levanto novamente, estou incrustado de metais, o mundo é outro e a terra é minha, mesmo que eu saiba que por ela serei decomposto. O outro sou eu. Eu sou o mundo e não sou nada, mas existo. E isso é dor. Agora sei contar os dias, há tempo agora que não havia. Eu so u Deus e tenho útero, e meu pênis entra fundo em mim mesmo. Retorno ao barro. Sob a luz milesimal agora montado em uma máquina, eu mato. Não mais com ossos, pedras, mãos ou paus por mim manipulados. A máquina me serve e eu sirvo à máquina. Eu domino a máquina e ela me domina, é algo além do concreto, ferro, aço e vidro, é algo além da carne, é algo além da pólvora. Eu sou ela, e ela é além de mim. Fundimo-nos. Não há mais como voltar ao barro. A máquina tritura tudo em mim com suas engrenagens e tudo que ela sabe sobre mim é reduzido a uma massa disforme. Eu já não sei mais nada sobre ela. Há tempo agora que antes não havia. Um tempo estranho que dentro de si próprio cria outro tempo, como se a desgraça tomasse forma de alegria. Não há mais como voltar ao barro. A máquina é Deus e eu sou homem, a máquina é mais mulher do que eu. Eu, homem mulher, criei Deus mulher e homem semelhante a mim, e agora Deus está sem costelas. Retorno à máquina. Eu criei a máquina, a máquina entrou em mim e eu sou ela. A máquina fez tempo que antes não havia e agora só sinto seus dentes envolvendo meu crânio. A máquina roeu o tempo tal qual eu roía ossos em crescente agonia com Jó. Jó dentro de mim agora é Deus e Deus é máquina. Os escravos se apossaram de Jó e a máquina tentou expropriar tudo que pertencia a Deus. Deus em fúria nunca vista em nenhum texto sagrado quebrou a máquina eternamente e ela reviveu por outra eternidade. Retorno à máquina. Morte e vida ocupam na sala de espera o mesmo espaço de significado. Não há mais relâmpago no escuro capaz de me cegar para o vislumbre. A máquina é. Ergo-me do asfalto. Levanto-me inteiro em pedaços, e o sangue corre feito pequenas pedras preciosas sobre mim. Não, não foram essas as pedras prometidas. Não são essas as minhas promessas. Não conheço quem Prometeu. Não houve ambulância, só faróis quebrados, estou bem mal, mas não tenho tempo como o que agora escreve sobre mim e diz para vocês o que eu penso. Porque até pra ele eu sou, talvez, incapaz de saber o que 53


se passa. De saber se sou um eu ou objeto. E como no dia em que não houve pão a ambulância é só espera. Desgraçados! Ergo-me do asfalto, sou orgulho de estar disposto a morrer por mais de doze trabalhos, espada e afago. Meu elmo se lembra de Sofia lá no altar, me esperando no portão da casa alugada de um senhorio que tem tantas, aflita, com medo da minha queda inevitável vai roer as unhas até sangrar. Todas as noites eu sonho. Antes de cair derrubo Deus e volto pra casa, para os braços de Sofia, com o pão e meu cavalo sobre rodas amassadas, um osso quebrado talvez, recompensa do inferno no qual apenas o Adversário ganha quando paga meu salário. Sou todo entrega. Pão, leite, arroz, feijão e carne. Carne como eu, que devorada na janta por mim com fome, manifesta na minha língua meu próprio gosto, igual ao gosto das eras inanes que engoliram tantos montados sobre qualquer máquina ou cavalo, sem nenhum título de nobreza, sem Deus dentro ou fora deles, apenas tremulando brilhante sob os olhos a ilusão do domínio de algo para além de nós, a incompletude do relâmpago que brilhou só metade, que continua a cegar os pastores e me faz ovelha em fuga inteira. Jamais ganharei nada em dobro. Jamais voltarei a ver a terra e o rebanho que me foi tomado. Nunca fui Deus, nunca criei máquina, nunca fui nem eu. Eu não existo fora de minha própria dor, ao dominar fui apenas servo dos escravos que me açoitavam em segredo. Sofia chora preocupada. Vermelho é a cor do asfalto. Eu não voltarei para a janta essa noite, pedras preciosas não param de jorrar de mim, Deus me derrubou, o sonho não se cumpriu. As lembranças vão escapando devagar pela rachadura do meu elmo. Tudo me foi roubado. Só o ladrão é verdadeiramente Jó.

Chico Nonato | Brasília, Brasil | Cearense radicado em Brasília. É professor de História e Ciências Sociais. Tem publicado textos em coletâneas desde 2015. No ano de 2020 foi agraciado com o primeiro lugar na Categoria Conto do Concurso literário da Academi a Marianense

de

Letras,

Ciências

e

Artes

de

Mariana

/

MG.

|

oliveira.francisco.c@gmail.com

54


A Lorca | Tuca Silveira Perdi-me muitas vezes pelo horizonte, com o peito cravejado por espinhos, símbolos de amores mergulhados em agonias. Muitas vezes perdi-me pelo horizonte, como me perco no coração de algumas meninas.

Não há noite em que eu não sinta o fôlego falho, as mãos pesadas, prontas para voar pelo papel, tentando desafogar esse coração, inutilmente afogado em corações alheios.

Porque existem sempre bêbados estúpidos, tragando vinho em taças trincadas, e que, apesar do sangue dos lábios pelo cristal, vivem a teimosia que dá prazer, mas que também os machuca.

Como me perco no coração de algumas meninas, perdi-me muitas vezes pelo horizonte. Ignorando o sol que se põe, sigo buscando um facho de luz que me remonte.

Tuca Silveira | Rio de Janeiro, Brasil |é poeta e compositor carioca, além de engenheiro nas horas vagas | arthur.silveirasc@gmail.com

55


[op. 28 no. 4] | Bianca Camargo

hoje de manhã, li kandinsky um prelúdio azedo e senti vertigem

li experiências sensoriais e câmeras sem luz vedadas do mundo perceptivo em direção a um mundo interno transcendental em sua imanência da mente duração, momento, explosão

hoje de manhã, li kandinsky pareceu um segundo enquanto a vertigem me pôs a escrever

a destruição a ruína a reconstrução de si

giros, voltas e suspensões

(entre parênteses)

hoje de manhã, ouvi uma voz que diz:

56


escrever é riscar lacunas preencher vazios e velar ausências a presença do imaginário em reparo inconstâncias inconscientes

esse poema era verde em seu começo até o amarelar do medo cicatrizar rosáceo – lacrimosa – queimaduras e roxos da cor do luto amargo de um réquiem em mim menor

Bianca Camargo de Lima | São Paulo, Brasil | é paulistana, bacharela em Filosofia e mestranda em Filosofia pela PUC-RS. | bilimacamargo@gmail.com

57


Nove Pontes | Gusthavo Gonçalves Roxo

Na cidade industrial onde as férias são coletivas gente comum caminha pela vida As fábricas ditam o tempo que servem aos apitos até dizer chega

Tudo fecha em janeiro Quando há janeiro gente comum aos montes rumam à praia esvaziando a cidade encantando-se como turistas alimentando outras rotinas a memória não parece importar tudo sempre foi assim sempre será

Nada mudou Além de partes dos edifícios reformados e alterados pelas inundações pelos ciclones pelos ventos

58


pelos uivos Da saudade terrena de um vale sem construções

os mesmos caminhos se fazem as mesmas ruas são tomadas os nomes mudam os produtos se alteram hoje novas toalhas são feitas na fábrica que antigamente só fazia pano de prato mudaram o rótulo da cerveja foi fechada a fábrica de cigarro substituída por uma que faz janelas sobem prédios ao redor da velha cidade precisa-se de visão precisa-se de vidro para ver a transformação de um lugar que segue o ritmo da própria produção.

Gusthavo Gonçalves Roxo | Rio de Janeiro, Brasil | nascido no outono de 1996 é Carioca. Escritor pela vida, Museólogo pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, atualmente é Mestrando em Arqueologia no Museu Nacional/UFRJ. | gusthavogoncalvesroxo@gmail.com

59


A lágrima é maior que a palavra | Jessica Ziegler de Andrade

As palavras coladas à face da despedida, podem muito pouco

As palavras tremem nas ondas prematuras de um bafômetro deixando cair um véu no ritmo da relva

As víboras palitam os dentes a rirem desta lágrima maldita crescendo e descendo as margens de um rio

Respiro para cair sereno e surdo no abismo do sono

A lágrima é um prisma de vidro rolando no caldo viscoso da língua de uma rã

A lágrima é maior que a palavra

E eu choro sem chamar por nomes a minha saudade

60


As palavras rodaram, inúteis rolaram, perderam-se sem fôlego ferindo de morte, com um soco oco esse – mais que sincero – suspiro

Jessica Ziegler de Andrade| Rio de Janeiro, Brasil | mestranda em Literaturas de Língua Inglesa (UERJ) e advogada graduada em Direito (UNIRIO). Compõe o conselho editorial da Revista Mallarmargens. Compartilha sua escrita no perfil do instagram @jzpoesia, onde também coordena um clube do livro reunindo pessoas do Brasil e Portugal.

61


rumores | Julia Medina caem deuses, certezas, tantas coisas que pensamos saber nomear ficam agora

sem nome

………………………………..[estilhaços de céu e solo] de nossos abismos observamos ………………………………………..a queda como se não fôssemos também matéria que tomba as horas e os dias passam de modo incomum acordo e sinto que as coisas, quietas, me pedem algo que não consigo decifrar janela prédio planta pó sombra ……………………………………..[tudo frágil e brutal] imagino as pessoas em suas casas como bois parados ………………………………….bem no meio da estrada a ruminar suas vidas, o mundo depois disso: ……….— o que vem depois?, a voz pergunta ……….como uma criança que indaga a mãe sobre o que acontece depois que a gente morre. e uma mãe que não sabe como dizer que, na verdade, o fim espreita o começo, pois que reconhecer a morte é também reconhecer a vida, …………………………………………………………………………………………………………………………… …e vice-versa então a mãe, que é também uma coisa, tão frágil e tão brutal, silencia 62


(como alguém que escolhe um esconderijo secreto, aloja a pergunta em um lugar entre a boca e o peito) deixa repousar ficam ali, duas coisas – uma que pergunta, outra que espera –

[ouvir os rumores]

enquanto isso os dias continuam sempre e continuarão tão estranhos e tão ferozes e ainda tão bonitos descobriremos talvez algo aqui termina algo aqui nasce

Julia Medina | Porto, Portugal | Movimenta-se entre pesquisa e criação nas artes da cena e escrita. Em 2018, co-criou a editora independente ágrafa, construindo a muitas mãos a antologia de poesia tertúlia. Atualmente, reside em Portugal, ond e finaliza o mestrado em Comunicação e Artes. | julia8mvo@gmail.com

63


Prenúncio de um romance | Ingrid Limaverde

Existem diferentes formas de fazer e desfazer um bordado sem cursos de corte e costura sem agulhas apropriadas sem qualquer jeito de corpo Um dos métodos escolhido por mim tradicional em minha leitura consiste em lamber num gesto equilibrado de voracidade e amor o bico do seu peito

Ingrid Limaverde | Salvador, Brasil | 25 anos sob o sol de Salvador, poeta, pesquisadora dos caminhos e desvios da escrita literária, professora, graduanda em Letras Vernáculas pela UFBA. Tem poemas publicados em revistas eletrônicas e nas antologias O amor nos tempos de lonjura (2020) e Antologia de novos poetas: No princípio era o verso (2020). | guiolimaverde@gmail.com

64


Manhã de quinta-feira | Viviane de Oliveira hoje acordei e vi passarinhos

de repente havia cores e cantos e algo de pueril como a vida

preciso te dizer que os vi acordei bem cedo e vi passarinhos e lembrei dela da vida tão pequena e a um só tempo éramos uma de novo, como irmãs

não sei como ou por que mas vi passarinhos e a manhã era outra e eu era outra com ela mais pequena e mais simples como uma formiga que torna tudo que vê gigante que ouve todo som como oração.

Viviane de Oliveira| Recife, Brasil| é uma historiadora e poeta pernambucana. Vê nos poemas um estrumento de construção do ser e uma forma de gritar silêncios. Publica seus poemas no Instagram @oquecalamos.

65


Sede | Felipe Fleury

Conheço o infinito desde pequeno. Cresceu dentro dos meus ossos, me esticando ao máximo no tempo incrustado no meu infindável alento: papai e mamãe eram para sempre.

Pelo leito do silêncio, no entanto, sob um sol branco e sutil, o infinito corre de volta ao ventre sidéreo, até à medula dos seus campos de sal.

E a imperecível tristeza principia sobre a minha sombra sem nome. Nada sei dos mortos, senão que desaparecem. Me confortaria imaginar que respiram noutros sítios mais distantes.

Em busca do incompreensível, se a vida se traslada e é só isso, amealho pedras até ao horizonte, por caminhos demasiado compridos.

66


Desfaço a metáfora da inatingível linha: o céu se põe cada vez mais perto.

E agora, que o tempo me incinera como fogo no estio dos olhos, é possível avistar a imensidade de sal.

O primeiro minuto já revela o todo: o infinito é só o cocuruto do eterno e é na morte que jaz o morto.

Quanto a mim, tenho sede. O único sentimento que há.

Felipe Fleury | Petrópolis, Brasil | Formado em Direito, é funcionário público. Tem poemas publicados no e-book do concurso de poesias da Universidade Federal de São João Del Rey (UFSJ-2018), e em revistas literária. Além de ter sido selecionado para integrar a antologia, “quantos players hoje – poemas do árcade ao console”, organizada pelas Editoras Patuá e Fractal. Coorganizador dos saraus poéticos: Saracura e Sarauema. Instagram: @felipefleuryffc. |

67


“Morte”, “Desfiar” e “Remorsos” | Henrique Emanuel de Oliveira

“Quando eu não tinha o olhar lacrimoso Que hoje eu trago e tenho Quando adoçava o meu pranto e meu sono No bagaço de cana do engenho”

— Galos, noites e quintais, Belchior

Morte

Dizem que nasci do avesso chorando pouco, olhando muito vermelho como um caju seco E pelas noites sem encantos fui capaz de lavrar mil estranhezas Um dia tentei alcançar o brilho da lua usando de escadaria bamba as costas tortas do meu avô As tias rezavam joelhos inteiros tentando encontrar nas fotografias um parente parecido comigo Arranjaram um primo distante, era viado e macumbeiro Logo as buscas foram suspensas e nunca mais pareci com ninguém.

68


Desfiar

I.

Em noite de São João Os pés plantados na terra Fogueira atiçando troncos Carne de porco mal passada

II.

Sobre telhados quatro águas Há sempre um tempo de saudade Desejo aberto em capim seco onde boi não engorda com sal

III.

O moço vagava pelo terreiro triste ao ouvir o padre dizer sobre o conforto dos aflitos

As dores eram banhadas na areia amarela Os medos secavam no calor do sol redondo 69


Enterramos todos aqueles que não vingaram na sombra pedregosa de um cajueiro enxuto

IV.

Da mais antiga geografia carregamos os vultos que se escondem pelo sobrado

E os dentes da faca fincados na palma da mão até tingir os tecidos na máquina industrial

A moça oferecia a Paquito uma roupa de inverno Paquito corria ao redor das sombras no quintal

Foi nas curvas do cão que começou nosso inferno

V.

Nenhum porta-retrato colorido poderá estancar aquele passado tampouco desnudará a vergonha que habita as lacunas do silêncio

Não dirá sobre as meninas que suportavam os dias 70


encarando um ventilador sem desfazer suas caretas

Não dirá sobre os meninos que recolhiam seus olhos por detrás das pilastras ao cumprimento da benção

VI.

Meu Deus, Peço perdão em nome dos mutilados em nome dos tantos que foram tocados pelas linhas sanguíneas da loucura

Meu Deus, nem as mil doses de clonazepam puderam dissolver este nó atravessado na garganta

VII.

O corpo não corpo no alto deste edifício quase alcançando as asas direitas infindas das companhias aéreas 71


desliza pelas tardes com suas mãos de nuvem tecendo o trepidar silencioso de um outono sem qualquer

Remorsos

São traços intoleráveis no subterrâneo da pele refazendo instantes grisalhos de quando éramos areia e vento Remonto-me em tempos que não puderam morrer Vasculho algum sopro uma ponta de palavra ou aquilo que foi engolido diante deste mundo já feito E descubro acesa feito brasa de marcar novilha a certeza do acaso: minhas lembranças morreram, mas morreram em mim cheirosas Henrique Emanuel Oliveira | São Bernado do Campo, Brasil| nasceu em Feira de Santana na Bahia e atualmente mora em São Bernardo do Campo. Cursou Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e está cursando Letras na USP. É C oautor, junto de Henrique Artuni, do livro “Sedimento do mundo: uma geografia sentimental de Carlos Drummond de Andrade” (no prelo).

72


Borges | Rodrigo Azeredo

Neurônios de roqueiro em distorção serena: O fato e o fado de quem te lê, poeta. Mais que tigres enjaulados, mais que lutos argentinos, cresce o assombro pelo verso atrás do conto. Fizeste da torre a Babel de livros, do texto encantado o sublime paradoxo — ser humano, não sê-lo tudo ao mesmo tempo agora e ontem. Singular metáfora leva além da garganta de poemas inflamada. De pouco e muito perdeste a visão para sempre poder-nos dá-la.

Rodrigo Azeredo | Rio de Janeiro, Brasil | lopesro@gmail.com

73


Lua | Mardson Soares

Ó Lua, dourada nos céus.

As finas nuvens brancas no alto desvendam o teu clarão.

És Lua como escudo, hóstia aos seres todos que te contemplam ou não.

Ouro vivo. Aliança no tempo aos amantes e Sagrado.

Ó Lua, alada bússola nos céus.

Mardson Soares | Bom Jesus, Piauí, Brasil | soares.mardson@gmail.com

74


I, II e III | Helder Magalhães I

De nada vale a palavra Se não partir pedra E romper os muros Que impedem de alcançar o outro Se tudo ruir Seja a palavra a ponte Braços e mãos Sustentando O último fôlego de humanidade De nada vale a palavra Se não partir pedra E das pedras mais pequenas Se estabelecer o caminho a percorrer Ao encontro do que estiver mais além Dentro.

75


II

Fiz tanta força Que o coração partiu Diz uma mulher Que transforma pó Em objectos [um dia regressarão ao pó] Penso em quantas vezes Parti Em quantas fiquei E houve quem partisse Partir é um lugar Ficar outro O coração Essa porcelana fina Vai lascando Por vezes parte Entre partidas E chegadas Vou aprendendo A arte dos bocados Unir cacos Pra voltar a partir.

76


III

Tenho malmequeres, se ainda os quiseres Tenho gerberas, se é por mim que esperas Tenho girassóis e livros de cobóis cheios de duelos Tenho rosas e grosas de prosas Tenho lírios e milhões de delírios contigo Tenho dálias e didascálias para te dizer Tenho cravos e canto uns oitavos desafinado Tenho flores e dores de todas as cores quando aqui Fores.

Helder Magalhães | Vizela, Portugal| Licenciado em Gestão Bancária. Presidente da Associação Cultural Avicella. Autor de alguns livros de poesia e literatura infanto -juvenil. Acredita que a pedra dá flor.

77


travessia I | Geraldo Lavigne era de giz o meu desejo e com ele eu risquei um mundo no muro que existia entre nós

tinha caliça em meu nariz de tanto procurar o cheiro que traduzisse a sua voz

e da solidão que se erguia eu fiz ruir com teimosia a divisa do estar a sós

quebrei do tijolo à alvenaria mas do outro lado nada havia senão o sonho e a ilusão

desenhei seu corpo naquele chão com a cal que restou em minhas mãos e depois o cobri com frios lençóis

Geraldo Lavigne de Lemos| São Paulo, Brasil | é advogado e poeta, membro da Academia de Letras de Ilhéus, autor de seis livros. Publicou literatura nas revistas Revista da

Academia

de

Letras

da

Bahia, Diversos Afins,

Mallarmargens,

Subversa,

InComunidade, Ser MulherArte e Acrobata, nos jornai s Diário de Ilhéus (Ilhéus/BA), Fuxico (Feira de Santana/BA) e A Gazeta (Vitória/ES) e no blogue LiteraturaBR.

78


série recôncavos, rizomas e encantados | Gabriele Rosa (primeiros experimentos a partir do livro Terra sonâmbula de Mia Couto, desdobrados em contos curtos)

[ser-tão] meninar. chover dentro. nuvens menines circulam livremente. sopro. respiro quente os dias avulsos. guardo pedras. cada pedra é uma memória. aqui as folhas verdes crescem longe. as cores se escondem nos olhos atentos. os frutos brotam das fendas. as mãos fraturadas são farol nas noites desaluadas. essa pedra cinza encontrei numa noite minguante. fazia calor. a estrada vazia corria em silêncio. ouvi um vulto. caminhei afluente olhando atento para os lados. arrepio. podia ser bicho, vento, vulto, gente… era árvore regando o corpo do mundo. aroeira. baraúna. barriguda. catingueira. imbiruçu. ipê-roxo. jatobá. juazeiro. mangabeira. monzé. mororó. mulungu. pau-branco. pereira. são-joão. sete-cascas. veludo. tem essa outra pedra, verde. essa guardo desde o dia que nasci. lembro de quase tudo. terra contraída. expandida em meses. o vento se concentrou quente num redemoinho de pó, afetos e palavras. as nuvens murcharam e o céu azulou imenso. tecido na brisa arenosa. corpo-renda. dancei juntinho do tempo. a vida ecoou no tímpano fraturado. [miúdo] amamentado no bico das artesanias. terra batida. retina-espelho. o cordão estica do ventre aos dias. laço infinito. me-ninado. o destino cisca teias. rizomas vascularizados na língua-lixa-bifurcada. antídoto. carneencruzilhada. pés enredados em mar distraído. minguado. desaluado. costelas esfaceladas na agulha das horas. encontro. vértebras distorcidas. embaçados. descabidos. cerzidos. afago peles ígneas e longínquas. a velhice me percorre. perfura. acolhe. desenrolo vultos e ruídos e ausências. apalavramento a conta-gotas. no passador marrom manchado, a fuligem marca o tempo. tudo é carbono e ocre e nada. reza. três gotas de memória. seis colheres de fé. avessos umedecidos. desviventes. vermelho-seco-oco-torto-corpo. como vestir infância num céu impossível? linhas carbonizadas. vida costurada em ponto baixo, baixíssimo. carrego comigo todos os que vieram antes. devorado. não engulo palavras. fluido. derivo. des-cresço. [flutuador] a sombra cresce. quase não sonho. despupilado. carne-baobá. dias eclipsados. enjoo com a maré dos pensamentos. enxáguo a fome. sorrio amarelo-amargo. amarro as noites em nós. fogos brotam do esterno. facas afiadas entre peles. paixão costurada nos átrios. vetores desgovernados. linhas cruzadas em rede. esquina. balançamos 79


sementes no semiárido. trêmulos delírios. sussurros e poeira e voos largos. urubu-rei observa em silêncio. rito. travessia. cordão umbilical esgarçado. calçadas imaginadas. onde coloco os meninos crescidos faz tempo? veias abertas no índico. labuta. atravessados nas dobras do vento. queimo lágrimas de tempo escasso. nos músculos relapsos as palavrasnascente. jorro. bússolas quebradas. o mundo se reinventa nas correntes elétricas dos encontros. território vigiado. garrafas embaçadas no grito, na luta. tampas abertas. lacres rompidos. dor. raízes profundas se enchem de ar. expandem. sente? [delírio] antepassados. porto. rascunho. raízes. caminhos. chave. quase não sonho. fruta. freira. frasco. terra. capela. mar. costelas. baleia. corpo. cobra. sombra. des-cresço. guerra. ventre. linhas. estrelas. semente. substância. pele. chumbo. velho. durmo. cadernos. cansaço. criança. abrigo. coice. casco. cauda. casca. guerra. carcaça. barriga. maleta. panela. panelinha. fruta. risco. peixe. poeira. chão. no meu punho cabe gente. savana. espuma. luta. areia. cabelo. vela. escuro. caroço. aldeia. formiga. trilhos. mortos. mãe. amargo. grãos. tradição. estrada. corda. faca. sol. saliva. como meninar o tempo? guerreiros. fogueira. petróleo. capim. guerra. andarilho. ‘é preciso riscar as pessoas para saber se elas queimam, ou explodem’. barco. pedras. desejo. atalho. dentes. encantos. santos. sangue. céu. dedo. orelha. rio. ferida. canção. clarão. intuição. gêmeos. enxada. frio. memória. folhas. fogo. lagoa. ervas. Virgínia?

Gabriele Rosa | Rio de Janeiro, Brasil | graduada em História pela UFRRJ. Autora do livro de

contos Fendas

extraordinárias [editora

Patuá].

Atua

como

dramaturga

e

dramaturgista na Bonecas Quebradas Teatro (RJ). | gabrielerosa20@gmail.com

80


nessas noites | Carla Carbatti alguma coisa morreu durante a noite uma rã um sonho a silhueta de uma montanha uma irmã vítima do covid alguma coisa nasceu durante a noite uma palavra uma estrela um desejo clandestino um amor pelo desconhecido

tudo que toco é pele entranha

queres falar disso? do que deambula pelo tempo quando não estamos no tempo? ruas vazias, extintas brancura do pensamento

sei que necessitas uma peça chave para entender o mundo e o seu coração similitudes, simetrias, ideologias, teologias, sei-lá-o-que-ia não suportas sentir a feroz tenacidade da vida fluindo sem compaixão 81


queres falar disso? da tua covardia civilizada da tua carne pálida, teus beijos forenses teus cavalos entrincheirados?

digo-te nessas noites onde coisas morrem e nascem : experimenta tua impotência, tua muda revolta arde feito sol incrédulo organiza-te em sistemas dissipativos aproveitando as torrentes para incrementar a ordem interna*

*cuidado: ordem é um nome para o caos dançante interna, para as vizinhanças cósmicas

arrisca a ver o ovo na sua espantosa superfície mantenha a fome pelo tato não pelo significado

queres falar disso? de manhãs regadas de orvalho do ar incompreensível que compartilhamos alento com alento : vínculo e conspiração 82


? digo-te nessas noites onde coisas morrem e nascem porque sempre triunfam a ferida e o delírio

Carla Carbatti | Belo Horizonte, Brasil

83


Recordação de Jonas no dia em que soube de suas bodas | Gabriela Ruggiero Nor

Mas não era ótimo? Eu saía da minha última reunião na sexta-feira à tarde e parava no posto perto do escritório. Descia para comprar o suprimento de Marlboro vermelho para o fim de semana e já levava duas Heinekens geladas no carro. Ia bebendo uma enquanto dirigia, se o trânsito estivesse muito ruim iam as duas, mas geralmente gostava de esperar até chegar em casa para beber a segunda, sentada na varanda olhando o caos que ia se formando em São Paulo sexta às 18h, enquanto eu já estava refugiada. Saía cedo, era bom. Você perguntou se nunca fui parada no trânsito, bebendo, mas é claro que não; além de não ostentar a lata, nós dois sabemos que não seria parada, a polícia tem muitos coitados para intimidar antes de resolver que eu sou uma ameaça. A única vez em que me atrapalhei no carro por ter bebido foi culpa sua, por causa da ilha, você se lembra? Aquela ilha de concreto, menor que uma rotatória, que separa um farol do outro, você quase enfiou o carro lá, agora tão nebuloso, não me lembro se chegamos a subir e sair dela ou se desviamos a tempo. Era madrugada. Depois desse dia você passou a me dar lições de moral. Tive notícias suas recentemente. Ângela me disse que você estava para casar com aquela fulana que parece que saiu de uma igreja. Qual é a dela com máquina fotográfica? Sempre de máquina pendurada no pescoço. Cafona. Além disso parece turista. Soube que você parou de fumar (meus parabéns), que está bebendo muito menos etc. Ela disse que você tinha melhorado e tal. Eu falei: ah, você sabe como o Jonas é, bom moço, reticências. Comigo você não tinha desses pudores e modéstias no copo, no corpo. Mas tínhamos vinte anos. Agora temos trinta. Eu estou casada, tenho meus filhos, três meninos, e também quase não bebo mais, e também quase não fico mais com meu marido, por falta de tempo, por sono, e pela intimidade que depois que fica excessiva parece que separa o corpo do desejo e vira tudo um bolo de gente enrolada na coberta, torcendo para o bebê não acordar. Estou cansada, também, tão cansada. Meu marido era muito mais louco que você, mais louco que você jamais foi, e ele também está cansado. Nosso bar secreto faz tempo não é mais secreto. Você levou seus amigos lá. Eu comemorei um Natal lá, com meus pais e irmãos. E meu marido. O garçom acertou meu nome – Catarina América, ainda por cima. Nunca mais pude voltar pra lá, um lugar que era pra ser nosso. Veja o que tempo faz, a distância. A distância entre o desejo e a inconclusão. Você, que mora em mim. Seu puto. Depois de aberto o portão do prédio, eu subia até seu andar. A familiaridade dos vasos de plantas pelos corredores, como se eu vivesse ali; essa paisagem não sai nunca de minha cabeça. Você me guiava pelos corredores até o elevador, dizendo para eu não tropeçar na planta 84


da Dona Coisa que morava ao lado. Por isso vigiava sempre meus passos, tentando não pisar em nenhuma folha de samambaia. Calculando cada movimento. Breve retorno à cena do crime (a última vez): é noite sempre, ou quase já em seu andar, das diversas portas idênticas, prossegui sem ter dúvida sobre qual era a sua: guiada pela música, caminhei ansiosa. A porta estava aberta. Bati de leve, entrei. Você estava sentado, em frente ao computador. Olhar surpreso, e o longa metragem dos nossos encontros clandestinos passa – eu vejo – numa espiral de medo. Em todos os nossos anos de revoluções (resoluções) sôfregas e decisões de abstinência um do outro, sempre aparecíamos. Com a cara lavada como se nossos encontros tivessem sua clandestinidade aprovada por algum plano divino; autorização especial e sagrada. (Agora parece que acabou, mesmo, de fato, mas não quero voltar a esse presente agônico em que você não está) O rosto que se vira em câmara lenta. O rosto que se denuncia antes que dê tempo de inventar uma nova paixão. A boca que se desdobra em dor e alívio. •

Você ainda consegue me deixar sem ar, quando chega, sabia?

Eu sabia, Jonas, eu sei. – Bonsoir, chéri. – Fingia meu francês só para compor o drama. Adorava compor meus dramas com você. Eu me movia em preto e branco. Abraço longo. Cheiro de cerveja, cigarro e banho. (eu só queria voltar a ser quem eu fui ali dentro tantas vezes – viver pra sempre no mito que você fez de mim) Mais um sorriso. Meu desconcerto, por quê? Por que desconcerto com aquele homem (era você, um garoto apenas) sob meu insuspeito domínio? Talvez o reconhecimento humilde de que os meses em que eu o havia mantido cativo em meus braços terminaram por ceder a ele o mesmo tipo de poder ambíguo sobre mim. Aquele menino que qualquer família aprovaria se tornara uma pessoa atormentada e endemoniada que nem eu mesma, que nem eu mesmíssima que chegava ali com o corpo todo meticulosamente preparado para ele, embora eu soubesse, no auge controlado e irrevogável da minha postura adúltera, que iria prorrogar o momento até que chegássemos confusos e bêbados, praticamente desacordados, até a sua cama. Pra poder justificar, mas mais pra não precisar pensar. 85


Porém naquele dia, aparentemente, ele tinha outros planos para mim. (Mi niño malo. Eu estava lendo o livro do Vargas Llosa naquela época e vivia cheia de ideias a respeito de quem poderíamos ser, as aventuras que viveríamos – eu confiava num futuro que seria sempre de encontros. Que saudades do meu menino.) Naquele dia, após pouquíssimas doses ele me pegou numa de minhas caminhadas estratégicas pelo apartamento – caminhadas em que eu desfilava estúpida e feliz, formando um campo gravitacional qualquer que só a nós dois dizia respeito (nos seus ímpetos de fidelidade ele me havia suplicado que eu não me levantasse, que eu permanecesse sentada, que eu não descruzasse as pernas, todas súplicas às quais eu respondia com uma inocência criteriosamente planejada, rindo, rindo, tão leve) – ele me pegou com os braços no meio de uma das minhas interpretações mais elaboradas da mulher fatal que não sou. Ele me pegou de maneira um tanto quanto desajeitada. Os beijos que não encontravam os meus lábios, as mãos que se perdiam no desejo de tocar meu corpo inteiro de uma só vez, os olhos que se abriam e fechavam repetidamente sem escolher um ângulo de mirada confortável, os dedos. Ele era um menino magrinho com caráter de um homem bom. Eu era um corpo maior que as palavras e vivia pra tirar vantagem dos olhares que me apareciam, pena que Jonas era tão bom. – Hoje não vamos esperar – foi o que ele disse. Com uma sobriedade que não lhe cabia. Eu sabia exatamente do que ele estava falando, do que você falava Jonas, hoje não vamos esperar que a embriaguez nos justifique o erro; hoje não vamos esperar você esperar que eu fique quase imprestável para tentar me enfiar dentro de você com o hálito já viciado de uísque querendo crescer em você sua diaba, você que sempre me faz beber mais do que devo, você que me escutou juras de amor com os ouvidos impassivelmente frios sem nenhuma resposta me dar, você que se vira de quatro pra mim esperando esperando esperando sabendo que no fim das contas eu vou tentar no fundo você sabe que eu nunca tive mulher melhor que você e você é má, você é ruim, você que me fez ruim, você que se diverte dizendo que não deixa homem que você não ama…, você que sabe que eu te amo e isso não é suficiente pra você, você que vê que a cada viagem estúpida que faço eu te trago um agrado e são pulseiras indianas e são vestidos de renda e são lingeries que você vai usar com ele e são livros dos quais depois você vai encher a boca linda pra me falar, porque você sabe que eu não vou conseguir ler os livros que eu te dou, você que me humilha devagar com o seu vocabulário, você com a sua pose chegando do trabalho toda vestida de preto com as calças esticadas lisas os saltos altos e a cara de anjo escondendo o que você é mas você sabe bem que todo mundo está o tempo todo olhando 86


é sim, você sabe, e você sofre e às vezes faz a cara de choro, começando com os soluços baixos, porque você sabe que cada homem até onde a vista alcança pode até te tratar bem mas só quer … e você sabe também que por mais que me apareça aqui toda perfumada e com a pele gosmenta dos cremes trilhardários que você compra, com os brincos pequenos às vezes querendo fingir de boa moça, com a blusa abotoada, mas você se denuncia, você se denuncia a cada gole que dá de bebida, você sabe que no final você bebe como um homem, um homem até mais homem que eu, dizem que eles bebem assim, você fuma como se para poder respirar, você trepa como uma puta, não, não, não, não como uma puta, porque as putas estão sempre alheias, e você por mais que finja, por mais que finja estar alheia a tudo e todos, por mais que finja esta pose indiferente, por mais que tente, eu que te conheço há tantos anos, eu que te conheço acho que melhor do que os outros que te aparecem pelo caminho, eu sei que você fode com a vida inteira gemendo por dentro – “vulcânica vida na vulva” – você gostou? Também sei fazer poema, também sei fazer poema, eu sei que quando eu entro seu grito vem forte e honesto, demônia, vaca, mentirosa, mentirosa, vou colocar esse poema dentro de um biscoito da sorte e te entregar no dia em que te encontrar de novo, num lugar muito pior.

Única vez que te vi com ódio de mim. Não te recusei naquele dia em que havia tanta raiva escorrendo do teu pescoço. Ali estivemos juntos pela última vez. Faz tanto tempo. Soube que você se casou, afinal. Mas como você pode já ter se casado? Como poderia você jamais se casar, se você habita um tempo distendido dentro da lembrança, um tempo em que nos vemos, revemos, voltamos para nossas vidas, um tempo em que minhas unhas estavam sempre esmaltadas, um tempo em que meu sorriso vinha por trás de cabelos longos, como eu era feliz, e eu sabia sim, que era feliz. E te via. De alguma forma há cercas espessas murando este ínterim alegre dentro da minha cabeça. De lá você não sai, e ali ninguém mais entra. Vivemos. Sábado depois de sábado. Sextas e domingos. E mais todas as potenciais viagens planejadas. Falávamos de filmes. E de música, acho, mas falávamos principalmente de tudo o que sobrava. Queria voltar à cena do crime e fazer o que eu tinha de ter feito – segurar sua cabeça jovem e loira, guardar ali uma trouxinha de roupa pra passar meu resto de vida. Um dia mi niño, será? Será que um dia, de mãos dadas. Gabriela Ruggiero Nor | São Paulo, Brasil | gabriela.ruggiero@gmail.com

87


Doze pares de costelas | Nina Grillo Aprendi com os médicos que perna é só do joelho para baixo, e braço é só do cotovelo para cima.

O olhar é no horizonte, as palmas são para a frente e por palma, entende-se a parte da frente das mãos.

Há que saber a posição do nariz, em relação à boca — é superior; a do crânio, em relação aos cabelos — é profunda;

88


a posição da língua, em relação aos dentes.

A língua é interior aos dentes, sabiam?

Mesmo com a língua mordida, principalmente com os dentes cerrados.

Há que saber olhar para alguém, ainda inteiro, e saber o que anda por baixo.

*

Há que saber

89


descrever a dor e espetar a agulha no sítio certo, de preferência naquele, onde é possível auscultar o ápice dum pulmão triste.

Há que saber que o ápice deste pulmão é mais ou menos aqui, onde o dedo pousa cansado num segundo espaço,

depois de escorregar pescoço abaixo, até

90


chegar à poltrona, onde assenta o esterno,

depois de deslizar ainda mais, até um altinho que cresce, inevitavelmente, com a idade

e depois, ainda, de deslizar um bocado mais para a direita, até encontrar um osso que, quase como crista, grita: aqui.

Sim, é daqui que se contam todas as costelas do mundo.

91


COMO APRENDI A VER FANTASMAS* | Ana Gabriela Rebelo A primeira vez que encontrei uma delas eu estava sozinha em casa depois de uma manhã inteira na escola. O dia estava fresco, ventava muito e eu me lembro de me sentar de uniforme escolar e meias de algodão sobre o colchão alto da cama da mãe. Lembro da luz que entrava pela janela do quarto e do cheiro que subiu no ar quando abri o antigo álbum de casamento. Lá estavam crianças em trajes sociais, a igreja escura, o padre posando para a foto e o bolo confeitado de pasta branca. O rosto da mãe assim mais jovem e, de todo modo, mais velho – porque constantemente eu tenho essa impressão de que as pessoas vivas serão sempre mais velhas nas fotografias. Atrás do bolo confeitado, como que escondida para que ninguém pudesse ver, havia uma imagem de cinco pessoas sentadas em um brinquedo de parque, todas, sem cabeça. Aquela imagem, mal enquadrada e já desbotada pelo tempo, me evocou algum tipo de exotismo misterioso. Foi aí que comecei a ver que havia algo de diferente nas fotografias feitas ao acaso. A mãe dizia que eram erros, mas por algum motivo tinha pena de jogá-las fora. Por isso colocava todas elas dentro dos álbuns, enfiadas por detrás das outras fotografias, as boas. Eu gostava das ruins, especialmente daquelas com paisagens tremidas e pessoas embaçadas. Encontrar aquelas fotos era como ver o que mais ninguém podia ver. Assim foi que comecei a minha busca pelo invisível, vasculhando pelas brechas dos álbuns de família. Só depois entendi que o invisível está por toda parte O melhor das fotografias talvez seja o movimento de procura, a busca por alguma coisa que não se sabe bem o quê. O pior, é sentir aquilo que falta – sempre falta. Fotografias me doem. Como fantasmas que, por um breve momento, pudessem ser reais novamente. Desde que você se foi eu espalho fotografias pelo chão da sala. Como pequenos portais, espelhos, passagens no tempo. Já faz cinco anos que eu te vi pela última vez, você nunca mais voltou. Foi desde então que eu passei a vasculhar fotografias escondidas nas dobras das coisas. E talvez seja por esse motivo que eu possa sempre te ver nos lugares onde você não está. *trecho de romance em processo de escrita Ana Gabriela Rebelo | Rio de Janeiro, Brasil | é escritora, psicóloga e artista interdisciplinar. Autora de Caderno de Sonhos (Editora Urutau,2020) e do site Paisagens possíveis: www.paisagenspossiveis.com | anagabrielarebelo@gmail.com

92


Coluna | Coisas que o vento conta por Pedro Pelo Clara Janeiro de 2021

ENQUANTO OS CISNES DANÇAM

É como trincar uma laranja esquecida à sombra do pomar, dizes, como ter um filho nos braços e depois deixá-lo nas gargantas do sal, como sorrir às fontes perdidas no cessar de asas do pássaro ferido.

Larga os espinhos das mais amargas flores, a acidez dos frutos rejeitados; deixa que te mostre como longos e felizes são os dias do estio.

Esquece-te na delicada ternura dos miosótis, na ária com que o melro se despede das horas quentes.

93


Quando o orvalho vier para encher o jardim de beijos de luar vem lembrar o silêncio das mãos, dum olhar que se perde num mar de nada; vem beber, como quem morre, a sóbria honestidade dum corpo despido.

Eis a evidência inquestionável, absurdamente clara:

os amantes estão sós e nus no centro do mundo, num abraço imenso cantando em sussurros um verso que não conhece tempo.

NOVEMBRO,11

Poemas de folhas caídas: as longas avenidas do parque, onde uma luz despida de cor

94


acaricia timidamente a melancolia da hora tão branda, tão feliz.

Flores de bronze vidram-se nas alturas cobertas pela platina da estação, a pátina depurada dum ano de turquesas, de fontes e canções.

Digamos disto beleza, uma beleza tão frágil, tão pura, que nos beija com ternura virginal na paz das despedidas inevitáveis. Tudo o que em retorno apetece dar é uma entrega absoluta ao seu abraço, um esquecimento completo no seio dum desejo de morrer dentro do seu corpo em desfolha.

Tudo o que o coração sabe querer é isto, é aqui: deixar o corpo no bronze do despojo, largar a mão na tua

95


sem palavra para o pedir e de olhos gentilmente fechados sonhar as altas árvores que diante se quedam, as altas árvores onde pequenos pássaros saltitam como as pequenas crianças sorriem na diversão do parque.

ENCANTAMENTO Por trilhos de neve e silêncio, um caminhante levado pela mão do deslumbre. Por cada passo seu, uma flor fascinada abre-se à vida.

À saída dos bosques, furtiva como sabe ser, uma raposa o observa. Recebe a estranha presença com melodia de quietude.

96


Um corvo grita, subitamente, como se um êxtase brotasse das funduras do seu ser. Passa sobre a estrada sem rastro deixar no imenso manto de algodão.

Solitários, de novo, os abetos, esse misterioso abrigo de cervos com pele de poema. Na sua mudez profunda parecem chamar as estrelas para nova vigília azul.

Os passos cessam, agora, como se profano fosse dar som a sossegos profundos. Dois olhos cerram-se, suaves, ao passar da álgida brisa alisando o horizonte que enegrece.

Para breve o reino

97


das sombras e dos sonhos, a certeza de que a maravilha subsistirá noutra pele.

Um sorriso lento fecha o dia com sabor a romã e azevinho.

Fevereiro de 2021 FILHO E PAI CONVERSAM SOBRE POESIA

Só assim pode ser, meu pai, só assim lhe merece o nome: poesia é a ideia elevada a sol do coração, e o sentimento apenas lhe confere brilho e calor. É em suas linhas que se encontra o homem: na sua voz a voz de muitos, no seu depurar a raiz

98


dos tormentos maiores. Meu filho: cada momento é o poema, e esse poema é verso dum outro em eterna composição, sem início que se conheça ou fim que se adivinhe.

Com o vagar dos trevos, à terra devolvia-se a água de todos os gelos.

Enquanto tanto era dito, só o malmequer se apercebeu como o saltitar da felosa num ramo em rebento era a rima perfeita para a tarde cintilando ao sol de inverno.

99


Março de 2021 O REPOUSO DO PEQUENO PÁSSARO Escolheu o seu pequeno quintal para cumprir o longo sono. Ou talvez o breve sopro que inflamou tão frágil ser aí se tenha decidido extinguir. Que sabe o Homem sobre mistérios que não vê? Da funda melancolia de morrer à beira-canto? Gentil no gesto, de olhar compassivo em cada camada, a mulher de cabelos de prata recolhe o pequeno corpo onde habitaram tantas canções para deleite de flores e frutos. Com as mãos em prece murmura um poema de muitas partidas. E sorrindo na leveza das coisas que não requerem entendimento, à terra entrega o pródigo filho – na certeza de que o espírito gémeo do seu esperará por si no dorso dum dragão azul, cruzando as vagas do grande mar.

PEDRO BELO CLARA nasceu em Lisboa, Portugal. Um ocasional preletor de sessões literárias, atualmente é colaborador e colunista de diversas publicações literárias portuguesas e brasileiras. O seu último trabalho foi dado aos prelos sob a epígrafe de “Lydia” (2018). É o autor dos blogues Recortes do Real, Uma Luz a Oriente e The beating of a celtic hear.

100


Astronauta de pulôver azul néon por Fabíola Weykamp Janeiro de 2021 PROMESSAS ou sobre as voltas que o corpo dá para se encontrar

1. Afiar as garras sem abrir mão de alçar voos

2. Dançar porque o corpo precisa de comoção e breve pouso

3. Do amor: saber dessa sina e, mesmo assim, acompanhar o mergulho afinal, recordar-se-á sempre, sempre, sempre

101


a queda

4. Ao selar nova caixa com fotos e tickets de exposições em que se elevou as mãos ao peito e a voz suspendeu as promessas reservar espaço de outra caixa no armário

5. o tempo é sempre um castelo de areia fina em eterna repetição do dia dos finados quando venta muito e as roupas ficam largas

Fevereiro de 2021 PREENCHIMENTO DO CORPO Ainda não há para onde ir e, no entanto, o corpo não entende À noite, como acontece com os filhotes de cães e com os filhos de nossas irmãs, os músculos resolvem que é hora de esticar

102


e, querendo esticar dentro de um lugar apertado de movimento-necessário, obriga o corpo ao deslocamento descontrolado espasmos de corrida

Antes de dormir, geralmente, quando pequenos as crianças e os cães correm pela casa atiram-se do sofá para cama última energia restante esticando músculos dentro do lugar antes adormecido

Dentro da cidade fechada o país de bandeiras e fitas [vamos supor que acontece, de fato que ultrapassa o campo imagético e atinge a camada do bom senso alheio da coisa urgente e concreta da não-morte] dentro da vastidão do isolamento de estruturas que cruzam articulações arrastar os móveis, à noite também tem sido apelo dos músculos retraídos

103


: Imploram para não enfraquecer não esquecerem-se deles logo agora que há espaço de sobra para correr nas avenidas sem trânsito

Logo agora que caminhar e não esbarrar no abdômen conhecido abre precedência para nova narrativa, ainda não há para onde ir

Mas o corpo só quer

Março de 2021 GESTÃO DO SOFRIMENTO OU CINISMO NEOLIBERAL

1. empurro-me com a barriga o mal-estar do mundo me consome a mão me põe a dormir 2. todo dia uma vontade diferente de gritar não aguento mais 3. qualquer cascalho algumas folhas secas 104


ou moscas a circular, não importa sempre há o que espanar de cima dos túmulos cuja saudade é úmida faz sombra e embala o bebê 4. estamos todos prestes a nos tornar o início e, prontamente, o fim de alguma coisa de alguém de alguma memória tudo é substituível quanto perecível 5. pés gelados: primeiro lembrete da miséria 6. as faltas: aviso-prévio do esgotamento psíquico

Fabíola Weykamp | Editora Convidada e Colunista pela Revista Subversa, dois livros publicados.

105


Sem palavras por Lucas Grosso Janeiro de 2021 Resenha: Enquanto os dentes – Carlos Eduardo Pereira Romance lento, todavia, cativante; cria empatia entre o leitor e a personagem rapidamente. Nele, acompanhamos Antônio, cadeirante, negro, de quarenta anos, gay, de classe média, que está voltando à casa dos pais: um comandante branco da marinha que não vê há vinte anos, e uma dona de casa negra. É essencialmente sobre as diversas violências, preconceitos e discursos que cruzam a vida de Antônio, através de suas memórias. Temos a figura do pai racista, homofóbico, e totalitarista; a opressão de cadetes veteranos na escola naval; o preconceito econômico na universidade; o descaso institucional com portadores de deficiência. Livro gradioso, inovador.

Enquanto os dentes – Carlos Eduardo Pereira, Todavia, 2017.

Fevereiro de 2021 Resenha: Torto arado – Itamar Vieira Júnior Um dos grandes romances dos últimos anos. A grande técnica de Itamar é não “inventar a roda” em termos de prosa literária. Ele inova a partir de um estilo de romance “tradicional”, sobre a resistência de uma comunidade quilombola contra um sistema político opressor. Dessa forma, consegue enfatizar a profundidade das personagens, sem se preocupar em criar heroínas de comportamento idealizado e fantasioso. As gêmeas/narradoras Bibiana e Belonísia relatam as lutas de sua vila quilombola contra as muitas opressões impostas: racismo, violência, apagamento histórico… E o principal, a escravidão contemporânea do agrobusiness contra a agricultura familiar. Clássico contemporâneo absoluto!

Torto arado – Itamar Vieira Júnior, Editora Todavia, 2019. 106


Março de 2021 Resenha: Levante – Henrique Marques Samyn Livro de poemas sobre os ecos da escravidão no Brasil de hoje. Henrique, autor negro-brasileiro, faz os textos como se eles fossem vinhetas de uma cena ou legendas de uma fotografia; ele completa as lacunas da História Oficial com imagens poéticas de uma história possível. Dessa forma, quando o autor fala de Zumbi ou Luís Gama, por exemplo, sua preocupação não é tanto a biografia deles, mas o que eles representam, eles como símbolos. O projeto gráfico, com imagens abstratas e escuras, reforça essa ideia: mostrar sombras e apagamentos da história negrabrasileira contemporânea. E, também, entender essas sombras como resistência. Levante – Henrique Marques Samyn Editora Jandaíra, 2020

LUCAS GROSSO | Mestre em Letras. Estudou Milton Hatoum na graduação e Milan Kundera no mestrado. É professor de inglês na prefeitura de São Paulo. Lançou “Nada”, pela

Editora

Patuá,

é

colunista

da

Subversa

e

escreve

no

blog www.lucasgrosso.blogspot.com.

107


Folhetim – Embarcação Fevereiro de 2021 O meu primeiro e último dia | Tiago Correia Noite de 29 de janeiro de 1992

Eu ainda não existo. Eu ainda não nasci. Quando digo que ainda não existo é porque as pessoas consideram que só se existe no instante do nascimento. Por isso, eu ainda não existo. Só não existo porque ainda não nasci. Bem. Amanhã será aniversário do meu irmão. As pessoas estão organizando a festa. Minha mãe quase não consegue ajudar. Seu corpo apresenta sinais de que o último ciclo da gestação vai ser concluído. Em breve, o bolo vai para o forno. Os doces estão sendo enrolados pelas mãos de nossas tias. Meu pai, sempre muito orgulhoso do seu primeiro guri com minha mãe, já providenciou as bebidas para a comemoração. Aqui dentro algo curioso está acontecendo. Uma força estranha me faz empurrar a cabeça contra uma parte rígida do corpo de minha mãe. Não posso dizer que sinto dor. Eu não conheço o que é dor. O que sinto são contrações que chegam do corpo da minha mãe. Nesse instante, fico sufocado. Depois, vem um barulho. Fico confuso e por alguns segundos não consigo escutar o coração de minha mãe. Quando isso não acontece, vejo o coração bem bater forte. Não conheço o rosto da minha mãe, mas o seu corpo é a minha casa. As horas vão se passando, os intervalos das contrações, diminuem. Cada vez mais a força me empurra contra uma parede rígida do corpo de minha mãe.

Madrugada de 30 de janeiro de 1992

De repente, um som muito forte. O líquido que todo o tempo amaciou minha estadia no ventre começa a desaparecer. Minha mãe fica agitada, nervosa. Me pergunto, o que será que está acontecendo. Aqui dentro, a força persiste em me empurrar. Tento não ir. Tenho medo de sair. Tento não ir. Tento não ir. Tento não ir. O que me espera? Minha mãe grita. O que há? O líquido que me envolvia, quase não sinto mais. É o fim. Como será o fim? Será que o fim é nascer? Tudo está rígido e pesado. Minha mãe grita. O que será que está acontecendo? Porque meu pai não faz comigo o que minha mãe fez durante todos os meses que estou 108


aqui dentro? É só colocar as mãos sobre a barriga de minha mãe e cantar cordeirinho de nanã. Ai! Ocorre agora um movimento muito brusco. Minha mãe respira muito forte. Estou ficando sufocado, outra vez. Cadê o ar. Meu Deus! Tudo é estranho. Eu preciso sair. Alguém interrompe o escuro e ilumina aqui dentro, por favor. O que é isso. Estou ficando desesperado. Não me tirem daqui. Eu preciso fugir dessas mãos. Estou saindo da casa de minha mãe. Ela grita o maior de seus gritos, o da separação do meu corpo ao seu. Minha mãe se multiplicou. Estou com frio. Alguém bateu em minha bunda. Dói. Eu choro. Somo com os gritos da minha mãe e o som é ensurdecedor. O homem que me segura pelos pés se aproxima da minha mãe. Eu a reconheço pelo cheiro. Nesse instante, sou apresentado a face amada da minha mãe. O seu sorriso. Os seus olhos… O homem interrompe nosso encontro e faz um alerta: olhe, mãe, como ele nasceu. Eu quero saber como eu nasci. Eu nasci com o quê. Não posso ser respondido.

Manhã de 30 de janeiro de 1992

Meu irmão ficou em casa. Quando acordou, encontrou minhas tias na sala, esperando-o para passar o café. Ao saber do meu nascimento e da ausência de minha mãe em seu aniversário, meu irmão caiu num banho de lágrimas. Lágrimas pela falta que nossa mãe faria, mas também pela ameaça que a minha chegada simbolizou para sua festa. O dia do dia 30 de janeiro era para ser da arrumação da mesa e finalização dos doces, mas sem nossa mãe, a festa poderia não acontecer. Nossa tia, animando meu irmão, tentava garantir a realização do aniversário. Ele me denunciava. A culpa era minha por lhe tirar a presença de nossos pais da festa. Com os minutos, as lágrimas do meu irmão foi esvaziando à medida que a sala foi ganhando balões de festa. Minhas tias esperavam notícias sobre o meu nascimento. Queriam saber como ocorreu o parto e com quem eu parecia. Diziam que meu irmão era a cópia do meu pai. Mas eu… com quem pareceria. Essa pergunta nunca foi respondida. A festa do meu irmão aconteceu, timidamente. Nem todas as bolas foram usadas, nem as latas de brigadeiro e casadinho. Meu irmão, de longe, assistindo o seu aniversário vazio, ausente de mãe, e com a presença de meu pai bêbado, traumatizou-se para sempre. Essa foi a sua última festa de aniversário. Em toda a minha vida nunca teria uma festa. Ter nascido no mesmo dia do meu irmão simbolizaria, para mim, uma infância inteira sem festa de aniversário. Nunca poderia convidar meus amigos da escola para comemorar a prosperidade e a vida, porque fazer isso seria confrontar com o trauma de meu irmão. Minha mãe preferia respeitá109


lo diante da ausência materna que ele viveria a partir do dia que nasci. Ao nascer, rompi com parte do convívio diário de meu irmão com minha mãe. O rompimento aconteceu sem um preparo, que poderia chegar num comunicado prévio, diagnosticado em um exame de ultrassom. Nenhum médico teve a coragem de sentar com minha mãe, meu pai e meu irmão para contar sobre minha chegada. Minha chegada simbolizaria uma guinada na vida de toda família. Ao fim da conversa, o médico perguntaria se eles estavam preparados para enfrentar todo o dia, o medo e o NÃO, mas que o SIM seria possível, mas deveria ser construído. Desde o dia do meu nascimento, minha mãe nunca duvidou da possibilidade da coragem e de construir o SIM. Meu pai agiu com indiferença, nunca construiu o SIM, nem nunca me entregou o NÃO. Meu irmão era uma criança. Minha mãe nunca me deixou um segundo para ir cuidar do meu irmão. Com meu nascimento ela se descobriu, se redescobriu. Redescobriu suas duas mãos. Com uma, acalmava o coração do meu irmão, e com a outra, colocava as onze fraldas de pano entre minhas pernas antes de tomar o primeiro ônibus às cinco horas da manhã para chegar pontualmente na consulta no hospital das clínicas.

Tarde de 30 de janeiro de 1992

Minha mãe está no quarto. Agora, sozinha. Eu já não moro mais dentro do seu ventre. Deixei-o para poder existir. Aqui, onde estou agora, não consigo abrir os olhos. Quando tento, aparece uma luz imensa. O pouco que vejo… é luz. Todas as paredes, brancas. Estou envolvido por algo. As pessoas de minuto a minuto se aproximam de mim, todas, absolutamente, todas, vestindo branco. Eu nunca escutei as vozes dessas pessoas. Elas se aproximam, colocam um instrumento frio sobre meu peito, forçam minhas pernas para baixo, mas elas só querem ficar suspensas. No ar. Como se quisesse voar. Gosto quando soltam minhas pernas e elas ficam como são. Para o ar. Escuto alguém dizer que já está na hora de ir falar com minha mãe. Lá na enfermaria 2, leito 8, entram três homens acompanhados de duas mulheres. Se aproximam de minha mãe. O grupo de branco se aproxima, pergunta como ela está se sentido. Não são respondidos, mas questionados: cadê meu filho? A resposta vem após silêncios e trocas de olhares entre eles. A respiração profunda do homem encarregado de noticiar o diagnóstico denuncia o medo da reação de minha mãe. O homem se chama Lourenço. Médico ortopedista. Se formou na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Aparentemente tem trinta e oito anos. E dez anos de profissão. Ele arrasta a cadeira, senta, abre o prontuário, olha para minha mãe, e 110


cuidadosamente começa a falar. Olha, mãe, seu filho nasceu saudável, pesa três quilos e cem. Tem quarenta e oito centímetros. É um guerreiro. Minha mãe se assusta com o adjetivo. Das três gestações anteriores que teve, em nenhuma, médico lhe disse que ela tinha parido um guerreiro. Sentiu azia de medo por ter parido um guerreiro. O que era aquilo. Um guerreiro. Antes de mim, três gestações e dois lutos. Duas filhas mortas nos primeiros meses de existência. Quando dei sinal que estava a caminho, minha mãe, ainda enlutada, já caminhava para cessar qualquer possibilidade de gestação. A cirurgia para retirada do útero estava marcada. Não queria mais correr o risco de enterrar no Jardim da Saudade outra parte sua. Enquanto sentiu medo ao saber que pariu um guerreiro, ficou aliviada. Tentou acreditar, por um instante, que guerreiros lutam, mas não morrem fácil. Ter parido um guerreiro seria indicativo que o seu filho estava vivo. Até quando. Não se sabia. Ali, com os médicos, ela assistiu acontecer um ensaio sobre a deficiência. Os médicos procuravam palavras assertivas. Naquele instante, quando soube que pariu um guerreiro, minha mãe chorou com a quase certeza de que ela não merecia ser mãe. Ela precisaria passar a vida inteira dizendo que pariu um filho ou um guerreiro – será. Quanto pesa parir um guerreiro – pensou. Era a presença de meu irmão, diante das mortes de suas filhas, que contradizia a hipótese de minha mãe de que ela não mereceria ser mãe. Era a existência do meu irmão com alergias, renites e febres se tomasse sorvete, que fazia ele acreditar que vivia a maternidade cheia de preocupações e xaropes. Um dia, minha mãe passou a acreditar que só poderia ser mãe de menino, nunca de menina. Isso a causava dor. Quando engravidou de mim, por dois ou três meses, eu era uma menina em sua barriga. Por dois ou três meses, a esperança era de que uma nova menina estava sendo gerada. A sua terceira menina, com fé em Deus, iria sobreviver. Ela agradeceria a Deus pela nova hipótese, mesmo diante de dois lutos. No exame de ultrassonografia, eu era um menino. Minha mãe sofreu pela terceira vez. Enquanto ela chorava, o médico que lhe deu a notícia, chamou a minha tia para conversar. Pediu que investigassem a gestação. Algo de estranho estava acontecendo. E por isso, a importância de fazer outros exames. Minha tia, diante do sofrimento de minha mãe, se calou e entregou nas mãos de Deus porque ele sabe o que faz, afirmou ela para si mesmo.

Tarde de 30 de janeiro de 1992

Após o nascimento, a equipe médica do Hospital das Clínicas sentou para estudar o caso do seu filho, e segundo a bibliografia, ele nasceu com a Síndrome 111


da Artrogripose Congênita. MÃE, SEU FILHO TEM ARTROGRIPOSE MÚLTIPLA CONGÊNITA. Ele só vai andar com cinco anos, não sabemos se vai conseguir falar, tampouco ter uma vida normal. Por isso, estamos encaminhando, com urgência, para os hospitais: M. G., S. K, S.R. Lá você vai ser orientada a… Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita. Mãe, seu filho tem artrogripose múltipla congênita.

Noite de 30 de janeiro de 1992

Minha mãe passou a tarde inteira com o nome do meu diagnóstico. O que era isso? Que nome estranho era esse? Que agonia sentia! Sabia que quando amanhecesse a sua vida, definitivamente, ganharia outro ritmo. Ela tinha um filho deficiente físico com artrogripose múltipla congênita, e ela não sabia o que isso significava. Minha mãe só sabia que tinha, mas não sabia o que tinha. Hoje, quando ela me conta, chora. Mas, não chora por mim, mas pelo medo que sentiu em não conseguir. Minha mãe viveu esse capítulo com a idade que tenho hoje. Carregou o seu filho deficiente físico sem medo das pessoas que vivem no 112


mundo. Carregou como uma leoa que tem entre os dentes um filho prometido para não vingar. Minha mãe me levou para o ponto mais alto da cidade, entre dúvidas, ergueu-me e gritou bem alto para o universo acompanhá-la pelo caminho que trilharia comigo, o seu filho, o seu filho deficiente físico. …

113


Edição e Revisão Tânia Ardito e Fabíola Weykamp

Ilustração de capa Luana Kolling

Recepção de originais CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

114


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.