Revista Subversa | Vol.14 | nº5 | dezembro de 2021

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© originalmente publicado em 20 de dezembro de 2021 sob o título de Subversa ©

Edição e Revisão: Tânia Ardito e Fabíola Weykamp

Ilustração de capa: Hilda Hilst na Casa do Sol, Encarte Flip, 2018

Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.

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Índice

Editorial Carta dos colunistas BODEGAS| Aderbal Bastos Barroso l’étincelle |Ana Mendes Agouro|Bruna Lopes Beiral| Camila Caux SEM FIM |Claudia Baeta Leal QUEIMAÇÃO | Fernando Ignez O bicho dos meus sonhos de infância |Gleidston Alis não é | Juliana Maffeis MEMENTO DAS PEDRAS | Leandro Costa Coleóptera brasiliensis | Lis Lemos Horta O ensaio, a morte e a filosofia | Márcia Silveira NÃO ERA A BARATA DE G.H. | Nathália Fernandes Essa pequena massa corpórea | Patricia Peterle Perdão | Rodrigo Lopes BEM DE PERTO, AGORA, NESSA TARDE | ESTRELA ANACORETA | Vitória Terra

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Editorial Este número marca uma nova mudança nos rumos da Subversa, que em 2022 se apresentará às leitoras e aos leitores com uma nova proposta editorial, novas formas de pensar e fazer trabalhar a arte. Depois de sete anos, quatorze volumes digitais, quatro volumes impressos, duas coletâneas e centenas de textos publicados, acreditamos que o modelo proposto até aqui cumpriu seu papel junto ao contexto literário luso-brasileiro, e que novos caminhos se abrem para serem explorados. Prevemos reinaugurar a Subversa ao longo do primeiro semestre de 2022, enquanto firmamos os norteadores desta transformação. Agradecemos a todas e todos que, ao longo destes anos, leram, divulgaram, enviaram suas produções e nos ensinaram o rico trabalho de edição de literatura. Estamos orgulhosas do impacto que geramos coletiva e individualmente, principalmente dos casos de autoras e autores que iniciaram aqui seus percursos de publicação literária, que tivemos o prazer de acompanhar. Agradecemos especialmente aos colunistas pelo vínculo, dedicação e confiança que estabelecemos. Aos ilustradores, que enriqueceram o projeto visual da revista, e à passagem das estagiárias Polly Niágara e Danielle Nogueira. Por fim, agradecemos à nossa parceria interna, entre editoras, pelo aprendizado mútuo. Daqui para frente, a editora Tânia Ardito seguirá novos rumos profissionais, a editora Morgana Rech retomará a condução do novo projeto editorial da Subversa junto da editora Fabíola Weykamp, que deixará sua coluna mensal para se dedicar à edição da revista. Com isso:

Chegou o momento de assinar o último editorial, de editar o último texto e ajustar os últimos detalhes. A saída, por opção própria, é uma porta para o futuro, respirar novos ares e abraçar novos desafios. Na memória fica um trabalho enorme, às vezes cansativo, mas sempre de muito aprendizado. No coração ficam as amizades, e o companheirismo de quem esteve ao meu lado durante o percurso. O meu muito obrigada e para terminar: Desejo, sempre, uma boa leitura. Tânia Ardito

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Cartas dos colunistas

Carta de despedida | Fabíola Weykamp

Manter na palavra uma memória presente diagramada para encontrar algum espaço onde persistir. A Revista Subversa foi-me esse espaço. Onde pude sentar-me com as pernas esticadas e o corpo mole, sem vigilância, porque não era preciso apreensão, muito embora a atenção constante, a observação demasiada também seja um estado de vigília. Então, sem a tal preocupação, pude recostar-me no nãoespaço e sentir, pela primeira vez, que havia correspondência em ocupar um espaço no não-espaço. Por exatos cinco anos e cinco meses, todo dia 25 de cada mês algumas palavras voltaram à órbita para planar igual a um balão solitário que se desprendeu dos demais na festinha de uma criança da sua rua. Um balão em pleno voo oras manso, oras em rodopios que nunca pousa e, se para: explode. Foram sucessões de voos e explosões. No ano atípico para aí da cama de ozônio, muita coisa suplicou por mudanças. E, mudanças, sejam aqui ou aí, sabemos, nunca vêm sozinhas. Aproveito dezembro para informar que houston, dessa vez, silencia sua voz de comando por essas bandas que sempre lhe foram acolhedoras, revigorantes e afetuosas. A Astronauta de pulôver azul neon (sem acentuação mesmo) agradece a companhia dos que aqui estiveram e por aqui passaram. Câmbio, desligo.

P.S.: Repito estes versos no convite último de contato com a terra e com o que está para lá dela: (…) “desequipar-se de astronauta agora, banhar-se como os peixes comer e dormir como os ursos” (excerto do poema “Para orbitar os dias”, Fabíola Weykamp, publicado em 5 de junho de 2020, pela coluna Astronauta de pulôver azul neon, Revista Subversa.)

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NOTA FINAL | Pedro Belo Clara

Estimados amigos leitores: Dado o recente anúncio da suspensão, por tempo indeterminado, das actividades desta revista, e sem saber o que os novos tempos trarão no seu regaço, gostaria de aproveitar a liberdade neste espaço concedida para expressar o meu sincero agradecimento às editoras da Subversa pelo honroso convite que me endereçaram no já distante ano de 2016, convite esse que me levou a assinar mensalmente uma coluna de poesia no espaço virtual da revista. Foram cinco anos magníficos, de grandes aventuras poéticas (não isentas de alta responsabilidade) e proveitosas trocas de impressões, com duas rubricas assinadas sempre de sorriso pronto, um sorriso que nasce do cumprir da mais prazerosa das tarefas – a única benesse, diga-se, a meio das brumas exaladas pelas dúvidas que assolam aqueles que fazem, querendo ou não, da palavra ofício. Por fim, sem que tal enumeração traduza diminuição de importância, um especial agradecimento a vós, estimados leitores, que durante todos estes anos, de modo quase constante ou apenas esporádico, me acompanharam na dita aventura dos versos publicados. Alguns, amigos de sempre (ou quase); outros, conhecidos de contactos ocasionais ou nascidos no mundo virtual; doutros ainda nunca saberei o nome, sequer o rosto. Mas a amabilidade das vossas visitas, a gentileza das palavras trocadas, a atenção do vosso olhar, o sentimento que o poema editado despertou no vosso íntimo – tudo pequenas graças que não poderei esquecer, mesmo sem saber que coração se agitou mais, que sorriso mais brilhou ou até, pois é um gesto tão natural quanto qualquer outro, que olhar impacientado nem logrou atingir o fim dum poema que ilustrou um determinado mês. Não importa, pois a alegria de dar supera qualquer género de reacção – e essa, a dádiva, é a minha felicidade primordial. Muito obrigado a todos os que me quiseram receber, em casa e no coração. (De que serve, afinal, um poema confinado ao esquecimento duma gaveta?) Foi um prazer partilhar tanto de mim com todos vós. Até breve. Pedro.

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Das pausas | Lucas Grosso

Quando minhas queridas amigas editoras Morgana e Tânia (e depois Fabíola) me falaram sobre pausar, eu entendi que a hora era propícia. Então, pauso com elas; têm meu apoio, porque tenho imenso apreço pela Subversa, revista que sempre me acolheu e que viu parte de meus poemas, alguns em livros, ganhando luz primeiro. Mas agora, a Sub precisa parar pra pensar. Parar e pensar nas palavras é minha maior luta, diz um de meus poemas, que foi publicado num distante abril de 2019. Assim, termino essa coluna falando: nossas meninas vão parar e pensar nas palavras. Mas logo elas voltam! Lucas Grosso

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BODEGAS | Aderbal Bastos Barroso

O açúcar mais vendido que o refinado era o mascavo. E o arroz com casca o mais comum. E o milho xerém, em grão ou amido sempre tinha também. Qualquer alimento, seco ou molhado, utilidade doméstica e a boa cachaça sempre rendia uma boa conversa e uma lapada de graça. O fumo de rolo ou qualquer uma outra mercadoria, tudo era comercializado a granel, e tudo saía dali muito bem embrulhadinho no papel. O feijão preto, branco ou rajado, jalo, fradinho ou de corda e outros cereais junto com os temperos da açorda dividiam o colorido e seus cheiros com o espaço bem do lado onde tinha inhame no peso ou em pedaço. Da Índia, diziam que vinha o cravo que em potes de vidros mesclavam os doces e as cocadas. As farinhas, grossa ou finas doces ou azedadas, na arroba, selamim ou quarta, estavam na mesa que eram sempre fartas! O sabão, era inteira ou meia barra, mas quando ao vendedor pediam fração era feito o corte ali mesmo no balcão. O café torrado em grãos ou moído, em meio a castanhas e frutas dava aquele colorido especial, com a linguiça, e o charque em peças que pendiam por cima de nossas cabeças. Nunca faltava óleo de coco nem o azeite de dendê ou oliva, e o bacalhau em bandas, se não inteiro, 8


só de olhar nos enchia a boca de saliva pois ao longe logo se identificava pelo cheiro.

E nada se perdia. Data de validade? Disso não se morria! Vender e comprar fiado era uma questão de confiança pois ao freguês nunca faltava esperança. A fartura era o pouco e o muito abençoado na vida das pessoas. No meu Sergipe e nas Alagoas a carne seca e a costela sem osso tanto se fazia na manteiga como na banha de porco, Saía direto do talho da salmoura para o fogão da cozinha. E fosse a hora que fosse, se à noite ou pelo dia, do requeijão ao queijo coalho, tudo a retalho nas bodegas se vendia!

Aderbal Bastos Barroso (Betinho de Celina) |Nascido às margens do Velho Chico em Neópolis/SE. É autor de: “No Remanso do Rio” (2014); “À Sombra dos Oitizeiros” (2017); “Agridoce Melaço de Cana e Jabuticabas Maduras” (2018); “Carvão Aceso” (2019) e “A Casa que só tinha janelas”. Ed. J. Andrade, Aracaju/SE, 2021. Idealizador do Sarau Literário de Neópolis, este ano comemorando sua VI edição.

|aderbal.barroso@gmail.com

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l’étincelle | Ana Mendes entre as brancas nuvens e os brancos lençóis muito mais do que sonham os olhos e a vã filosofia a vã crença a vã opinião. entre os poros e as saídas de emergência a vida cantarolando estações atravessando contornos e corpos. não tenho pretensões de criar coisa alguma me basta desatar os dedos e cabelos e guardar nosso pequeno encontro de continentes no silêncio dos segredos mais ternos, e guardar dos ventos raivosos a centelha que principia todo o calor no peito.

ANA MENDES | nascida em Piracicaba, é curiosa por natureza e poeta por via das dúvidas. Também é estudante universitária e Editora de Comunicação do Portal Fazia Poesia. E escreve contos e notas de rodapé em poemas alheios.| mendes.ana@live.com

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Agouro | Bruna Lopes

no avesso da tripa do universo em criança fez-se ovo e galinha interrogação antepré-histórica ação ou seu potencial quem veio primeiro? o espaço varreu a vida para baixo de um buraco negro e como no princípio da contagem dos tempos haverá nada, embolado em raios gravitacionais rasgará de dentro de um, mais um e mais um futuro dentro deste criar radical raiz promessa origem de história ança estado origem de substantivo o universo é criança fez-se em astros e acidentes para destruir-se em pessoas e como no princípio da contagem dos tempos haverá nada, embolado em raios gravitacionais rasgará de dentro de um, mais um e mais um incerto dentro deste 11


criança ou universo quem é primogênito?

Bruna Lopes |Hortolândia, Brasil | é poeta, atriz, psicóloga, contadora de histórias e tantos outros nomes que a mapeiam na história. Conduz o projeto Sintomias de Tereza propondo vivências e performances a partir de pedaços e devaneios da vida humana, partilhando suas sintomias no papel e nos palcos. Atualmente está publicando seu primeiro livro. Instagram: @sintomiasdetereza

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Beiral | Camila Caux A mulher de casaco azul segura a xícara morna diante da janela hoje eu saio de casa, ela diz. Ela veste a camisa bonita segura a etiqueta para fora entre os peitos, e pensa: duas vezes avesso não é direito. A mulher no casaco azul não atravessa sem olhar a rua. Seu joelho esquerdo dói, mas ela pensa: quando manco, é com o direito. Ela senta na beira da fonte onde os mosquitos dançam. Uma unha esfrega a outra, os dois indicadores se beijam. Ela fecha o peito interno e cruza as pernas. Quando inclina o tronco ela beija a água.

Camila Caux | Berlim, Alemanha | é antropóloga, curadora e escritora.

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SEM FIM | Claudia Baeta Leal

Noite quente, sem vento. Vinho que sabe a raiva. Cabeça em velocidade furiosa e silêncio algum: o universo estacionou num momento incômodo. O fim não vem, meu bem. Ficaremos longamente aqui.

Claudia Baeta Leal

| é paulista e moradora do Rio de Janeiro. Formada em Letras e

História, servidora pública, sagitariana e mãe de Nino, é autora do livro Itinerário: ida e volta

(Editora

Letramento,

2019)

e

de

poemas

publicados

nas

revistas Alagunas (2018), 7faces (2020), no blog Urro! – Contragolpe Cultural (2020) e na coletânea Caderno de Poesias #1 do Urro! – Contragolpe Cultural (2021).

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QUEIMAÇÃO | Fernando Ignez

Quero te engolir Te sentir descendo pela minha garganta Feito brasa Pode queimar Minhas entranhas se alimentam de fogo Meu gozo é lava Seu gosto lava Em chamas Minhas artérias empoeiradas Até meu corpo entrar Em combustão espontânea A fumaça que eu exalo Vem da sua essência queimada Devorada Pela boca do meu estômago voraz

Fernando Ignez | São Paulo, Brasil | 39. Paulistano. Poeta e tradutor.

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O bicho dos meus sonhos de infância| Gleidston Alis

O bicho dos meus sonhos de infância O bicho que eu temia com toda a água do corpo O bicho que um dia eu esqueci com indiferença O bicho me espreitou na fase seca da vida A fase em que engoli sem sal e crua, inteira e fria A bola grande, branca, toda neve acumulada Abriu muito maior o vazio do meu estômago Dali despontam olhos abrasivos, causticantes Dali sobe um vapor pela garganta quente Dali concentro a dor da minha cabeça

O bicho da minha infância De dentro me engole

Gleidston Alis | Betim-MG, Brasil | é doutor em estudos literários pela UFMG, professor, escritor e cantautor, com algumas obras literárias e musicais publicadas e premiadas, além de publicações no âmbito acadêmico.

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não é | Juliana Maffeis

não é a altura que mata não é o engasgo não é acrobacia não é a arte que mata não é o trapézio não é a distância não é o egoísmo que mata não é a falta não é a queda não é a tinta não é a notícia não é a poesia não é a história que mata é a mensagem não enviada

Juliana Maffeis |Porto Alegre, Brasil | é professora e escritora. Licenciada, mestra e doutoranda em Letras, na área de Escrita Criativa (PUCRS). É autora de Solitária companhia de teatro (Ed. Patuá, 2017) e Quantas festas (Ed. Urutau, 2021), além de poemas e contos publicados em antologias e revistas literárias. Instagram | @maffeisjuliana

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MEMENTO DAS PEDRAS | Leandro Costa

PEQUENO JUÍZO Vi o pegureiro Tangendo seixos Que faiscavam E o calçamenteiro Dando aos profetas O seu descanso Quem chorará teus homens bons? Quem pedirá justiça à Deus? Nenhuma voz se ergue em prece?! Vai vigorar a injustiça? Arrulha a rola De luto canta Agouro grave Arrulha a rola Cantiga triste Da bílis vinda Arrulha a rola Peito premente Tem olho d’água Arrulha a rola Acorda o Santo

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A terra treme Os arrolados Fazem a fila Para o juízo O que dirão De ti as ruas do teu passado?

EGO

Eu A pedra no poço Da onda alvoroço Eu Desejo da queda Moeda e pedido Ferrugem futura Eu A fundamental A pedra primeira A pedra angular Cansada de unir Eu 19


A pedra no para-brisa A vida de estilhaços Pó ira da tempestade De vidro Eu Argueiro na vista cega As trancas desta janela Travanca da taramela Inerte Dormente Formigas o trem que parte Não sei quem me grita as dores As dores da partição As lonjuras ou eu? Senhor, senhor Um cobertor de trevas Um gole de sossego De todo absurdo Senhor, senhor Um leito de limo De inexistência Cheguei ao cansaço Todo cansaço pesa 20


Já não há mais sentido Todo sentido é morto Nada significa

CISCO Eu fui embora na moela do pardal Unida a outras mastigar os ordinários Aventurei-me no perigo de ser dente No coração devorador de sectários O papo do pardal é libertário Voo livre Merda ao alvo

Leandro Costa |Tianguá, Brasil | é poeta e contista cearense de Santana do Acaraú, primeira terra - livro que leu nas rodas de histórias e memórias dos avós. Seus textos, marcados por uma voz narrativa que se inspira nas lendas, folclores, memórias e histórias de seu povo, estão publicados em diversos periódicos e antologias do país. |costafranciscoleandro@gmail.com

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Coleóptera brasiliensis| Lis Lemos Horta

De vidro uma vida dentro de outra já ida, horizonte leito do planalto se duplica naquela tida, acordeando dias acima tardes a menina que tinha sido

antes de imbricar-se nas chaleiras copos e metais que filmam sua história pequena, bojuda esticada passageira ou torta de uso, calor ou pancada no canto da foto que hoje se abre com os dedos e antes só se chegava inquirindo docemente agora se rapta prende e espeta, mas ela diz

ali está só a sombra da minha casca, voo com os insetos, que deixam de si, em áspera silhueta, do teu ímpeto verde, o lastro, do mundo quando verdadeiro e novo, o rastro.

Lis Lemos Horta |Rio de Janeiro, Brasil | cresceu numa casa itinerante e mora, desde 2003, no Rio de Janeiro. Trabalha como jornalista e tradutora, escreve e desenha ‘desde criancinha’, fez parte da antologia poética “Não Mais os Falsos Infinitos” Patuá, 2021. Cria do Instituto Estação das Letras - RJ, traz nesses dois poemas o sopro de uma encarnação candanga.

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O ensaio, a morte e a filosofia | Márcia Silveira

“Tiremos-lhe a estranheza, frequentemo-la, acostumemo-nos com ela, não tenhamos nada de tão presente na cabeça como a morte.” 1

Foi provavelmente no jardim de infância da tia Rosa que eu ouvi pela primeira vez a palavra ensaiar. Uma musiquinha em homenagem ao Dia das Mães; uma dança em par para a festa junina. Durante algumas semanas, o ensaio diário era uma forma de decorar a letra da música e alguns passos, minimizando os erros até o dia da apresentação. Um meio para um fim. Muitos anos depois, no curso de francês, aprendi com monsieur Paul que essayer significava tentar. Ensaiar era, afinal, uma tentativa diária de acertar os passos que a tia Rosa havia criado para o anarriê – que vem de en arrière, como monsieur Paul também me explicou. Nos anos em que trabalhei como fotógrafa, minha preferência era pelos ensaios fotográficos. E, mais uma vez, o significado de ensaiar estava presente, pois cada ensaio era um treino. Por mais que pretendesse controlar tudo, eu nunca sabia o que iria acontecer naquelas duas horas: se fosse um ensaio de família, podia ser que a caçulinha não colaborasse, ou que o pai estivesse de mau humor, ou ainda que todo mundo estivesse de bem com a vida, mas a locação não ajudasse. Todo ensaio era uma tentativa, nenhum resultado estava dado de antemão. Eu contava com a minha experiência e um mundo de incertezas. No fim, ainda bem, tudo dava certo e o resultado eram fotos que traduziam o meu olhar sobre aquelas pessoas – a subjetividade é um dos pontos principais de um ensaio. Na minha vida de leitora, primeiro me senti atraída pelas crônicas, depois por textos também chamados de ensaios. Percebi que no ensaio, assim como na crônica, cabia qualquer assunto: literatura, viagens, detalhes do cotidiano, a vida, a morte. Ao escrever, arrisquei a crônica e o conto, mas não me sentia pronta para o ensaio, apesar de ser a minha maior vontade. Depois entendi o motivo: eu não sabia direito o que era um ensaio literário.

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MONTAIGNE, M. Que filosofar é aprender a morrer. In: Os ensaios: uma seleção. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010

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Bem, quando eu não sei o que é alguma coisa e desejo muito saber, a solução é estudar. Então aprendi que foi com Montaigne, lá no século XVI, que surgiram os ensaios (essais) literários. E que os textos ao estilo de Montaigne não procuram estabelecer verdades, mas mostrar o que o autor pensa sobre um assunto. Vi neste ponto uma relação com a filosofia, meu atual campo de estudo. Quando o Oráculo de Delfos afirma que Sócrates é o homem mais sábio de Atenas, é em função do seu “saber do não saber”. Mais sábio é aquele que tem consciência da ignorância inerente ao ser humano, já que a Verdade não pode ser alcançada por nós, meros mortais. Por isso a filosofia é o amor à sabedoria – o máximo que um ser humano pode alcançar – e não a sabedoria em si. Entendi que para escrever um ensaio é preciso realizar o que os gregos chamavam de epoché, uma suspensão do juízo – esquecer o que já foi dito, ou aprender a deixar morrer o que já fora aprendido. O que, em termos de fotografia, equivale a um descondicionamento do olhar. Mais uma vez, o ensaio se encontra com a filosofia: um dos ensaios de Montaigne, “Que filosofar é aprender a morrer”, aborda este tema, presente na filosofia antiga. Os estoicos e epicuristas realizavam exercícios espirituais que tinham por objetivo manter sempre presente a ideia da morte, para que se pudesse, assim, aproveitar e apreciar a vida. Além disso, para Platão, filosofar é se preparar para a morte, quando a alma, livre da prisão do corpo, encontra – agora sim – a verdade. O ensaio à la Montaigne também remete à ideia socrática de que uma vida não examinada não vale a pena ser vivida. Ao escrever sobre os mais diversos assuntos, sempre de forma subjetiva, Montaigne examina seus pensamentos, permitindo-se, inclusive, mudar de ideia e se contradizer. Nada é categórico, a verdade absoluta não está ao alcance. Na costura da experiência com a bagagem cultural, escrever se torna um desvelar do mundo, uma conversa, uma descoberta de si mesmo no decorrer do processo. Sem conclusões. Um meio sem um fim. Não sei, estou divagando. Mas talvez o ensaio tenha um pouco desse vagar, um passeio pela mente na tentativa (sempre) de clarear os cantos nebulosos do pensamento. Ora, então parece simples entender o que é um ensaio. Mas não é – e por um motivo: existem diversos tipos de ensaios, não apenas o de Montaigne. E alguns deles são, sim, categóricos e procuram impor verdades. Não pretendem apenas conversar, mas persuadir. E está feita a confusão: será um ensaio? Um artigo? Uma crônica? Confesso que ainda não sei direito como definir um ensaio e me pergunto se é possível ter essa clareza. Várias palavras ao longo deste texto tentam jogar uma luz neste mistério: incerteza, ignorância, pensamento, morte, 24


processo. Mas é o máximo que eu posso fazer: tentar, essayer. E aqui surge outra questão: será mesmo necessário, na hora de colocar as palavras no papel, definir previamente que tipo de texto será escrito? Sem dúvida, era mais fácil compreender o significado de ensaio quando ele se resumia às dancinhas da tia Rosa e aos retratos. Pôr os pensamentos no papel não é fácil e é aí que se encontra o desejo de tentar, a dor e a delícia de ensaiar. Então, mesmo sem saber, continuo escrevendo. Por não saber, continuo tentando. ***

Márcia Silveira | é escritora e fotógrafa. Formada em Design Gráfico e pós-graduada em História da Arte, atualmente cursa o último ano do bacharelado em Filosofia. Escreve sobre livros no jornal Diário do Rio. Já teve contos e crônicas publicados em diversas antologias e está escrevendo seu primeiro livro de ensaios. | mscmarcia@gmail.com

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NÃO ERA A BARATA DE G.H. | Nathália Fernandes As duas mulheres seguiam rumo ao lar. Com o motorista não trocaram muito além de informações que dessem a certeza de que aquele era o caminho correto. E elas, as passageiras esperadas. O motorista não se atentou muito para as feições ou sequer ao nome de uma delas, que era a responsável por chamar o táxi e pagar a corrida. Seria em vão, porque eram tantos entra e sai, leva e traz, vai e vem. Lembraria talvez até os primeiros dois minutos e meio da corrida que somariam um quarto do tempo em que ficariam no seu carro, como sempre é nesse trajeto. A responsável por pedir, pagar, perguntar tinha um nome curto, poderia ser apelido, com L ou M. Laura, Mariana, lembrava em vão. Não, Laura e Mariana não são apelidos. Não queria se esforçar muito, tinha medo de perder a rotatória. Mas as palavras, que eram Nomes, continuavam a vir, enquanto ele contornava um tanto irritado. Tentava não fazer movimentos muito bruscos e procurava se concentrar nos buracos absurdos que se espraiavam por todo o bairro que era por sorte o mais fedorento e imundo da cidade. Buracos e semáforos por todas as esquinas, ele obrigado a parar e contemplar a feiura larga, imensa, vazia de horizontes. Preso na amplitude grotesca, não notou o filhotinho de barata pousado no volante, só podendo vir mesmo daquele trecho da corrida. Seria pouco provável que seu carro fosse invadido por uma borboleta ou joaninha para que, encantado, se voltasse novamente à beleza. E o desencanto era tanto que só notou na arrancada. A coitada da barata, sem saias de filó, bateu as asas em voo baixinho e incerto, obstáculo para a visão do motorista à rua. E assim ele a olhou. Não apenas uma vez, para então expulsá-la com repulsa, mas ao contrário: no trajeto inteiro a contemplou e em nenhum momento gesticulou de maneira a extingui-la. Como também não parecia querer escondê-la, temeroso de que as passageiras julgassem o carro como sujo, reclamassem, dessem avaliações condenatórias. Ele, com sua brutalidade crua, transformava a insensatez em cuidado, detalhes, colo. 26


Aos poucos dava voltas mais suaves no volante, porque a baratinha, infante que era, poderia perder o equilíbrio. Diminuía o som do rádio, outrora sempre estourado, pois a sensibilidade dos ouvidos dela deveria ser muito aguçada, muito além da audição de cachorros e gatos. Fechava as janelas, pois também não poderia arriscar perdê-la, era muito jovem para o ímpeto do mundo. E no intervalo oferecido pelos semáforos, olhava-a. Admirava as anteninhas semelhantes às linhas de costura, os olhos de botões miúdos, as patinhas com fiapinhos iguais aos bordados mal aparados feitos para acompanhar a mãe, o corpo onde via a tábua de passar onde a mãe endireitava os tecidos antes de entregá-los aos clientes. Só que para lembrar era preciso chegar mais perto. O rosto em lupa mirando as antenas, depois os botões, mais um tanto para entender as perninhas e, de repente, no limiar de sua boca e o dorso da barata, o corpo reagira à ação, e o homem, mais afastado, encontrou a tábua de passar roupas da mãe. A tábua que pertencia também à vó, à tia da vó, à prima da tia, à irmã da prima, tábua hereditária escassa do ferro também herdado de ascendentes incalculáveis. De madeira roída pelos cupins e devorada pelos dias, a tábua pré-histórica era a barata de G.H., que o motorista sequer conhecia. Não gostava de literatura, porque não gostava do que não sabia identificar. Não entendia signos, símbolos, sinestesias, significantes, silepses, ou ao menos assim se enganava e protegia. Via a mãe, sempre em pé, com pernas inchadas e decoradas com veias roxas e verdes, via o cheiro de carne seca, que sempre odiou, o cheiro de fígado, rabada, pé de galinha, salsicha, barata. Barata não, barata só encarava, cuidava, não cheirava ou comia. Embora tivesse mesmo cheiro das gavetas de meias, cuecas, camisas, tudo numa só, cuecas, meias, camisas furadas. Cheiro forte que grudava nas blusas encardidas e surradas, roupas tão velhas quanto a tábua de passar, roupas nunca propriamente suas porque sempre estavam de passagem, indo de mão em mão, vai e vem, entra e sai, leva e traz. Não conseguia ter certeza a quem “pertenciam” anteriormente, porque os detentores temporários 27


eram tantos que a mãe se enganava. Enganava-se com sorriso no rosto, tanto fazia de quem haviam sido alguma vez, mais uma vez o filho não passaria frio, mesmo que os rasgos criados pelo uso lembrassem a ilusão daquele calor. Os furinhos do uso intenso permitiam a entrada do ar frio das noites interrompidas às quatro da manhã, dos vãos que caminhavam junto aos respingos do chuveiro elétrico, do chafé feito há uns dias que não esgotava de não se esgotar porque a mãe e o pai pouco ligavam para a herança imperial. “É nessa casa de esquina”, foi o alarme para o grão histórico ser novamente o bicho nuclear, perene, caleidoscópico, Mãe & Semente. Continuava ali, como se repousasse dos lugares insólitos na clausura do carro feito de suor e sangue, legado de família. Laura e Maria saíram, felizes e ignorantes da presença animalesca, ocupadas demais com o enfim de voltarem ao lar. Enquanto o motorista e a barata aliviavam-se também, com o enfim de estarem sós.

Nathália Fernandes |Santos, Brasil | Escritora, professora e estudiosa de Clarice Lispector. Gosto de filosofia, psicanálise, botecos. Tenho tentado me entender. | nath.ferolicar@gmail.com

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Essa pequena massa corpórea | Patricia Peterle

Essa pequena massa corpórea que sou em andanças e rasantes em meio ao verde de repente é parada por um obstáculo concreto rígido transparente o baque é um BAQUE em milésimos a queda potencializada força da gravidade. Queda amortizada pelo solo seivoso antes carnoso que me acolhe atônito.

Massa marrom-amarelada em meio ao verde de repente Frêmito. Sentidos atordoados. Ali, um pouco distante, uma mancha preta ameaçadora percebe a minha presença fareja a minha carne viva

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(ou semi-viva?)

Um grunhido anuncia o perigo na terra pavor enquanto a mancha preta em sua câmera lenta farejando se aproxima. Um som estranho inteligível tudo suspende em meio ao verde de repente. A mancha preta na diagonal não mais se move mas olha fixamente na expectativa da preda.

Miúdas gotas de água caem sobre mim entrevejo a sombra de uma espécie de concha articulável com cinco gráceis garras é a massa alongada aninhada ao meu lado. Sinto algo rasentar a penugem (os sentidos vão voltando) essa grande massa corpórea não parece ser outra ameaça mesmo em disfarce mesmo que tudo retorne pó

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nada zumbe tudo estagnado

entre um baque e um bater de asas a fileira das lunáticas formigas as larvas beatas invisíveis as aranhas tecendo outra teia a fita dessa memória e o retorno à incerteza de outras andanças e rasantes

*

E pensar como muita coisa no mundo passa e não deixa rastros esquecer alguém é como esquecer a luz da escada acesa ligada por horas ou dias e é ela mesma quem te faz recordar

Hoje vi que a tênue luz do corredor ficou acesa

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passei por ela me lembrei de você preferi não apagá-la

Patricia Peterle | (São Paulo, 1974) | mora em Florianópolis. É crítica literária, professora de literatura italiana, tradutora de textos literários e filosóficos. Seus poemas foram publicados Acrobatas, Mallamargens, Ruído

Manifesto, Revista

Sepé e Palavra

Comum, Mirada Janela Cultural.

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Perdão | Rodrigo Lopes

Perdão não há, meu amigo. Que tu mataste a confiança no meu peito aberto. Nem doido bandido faz isto que fizeste com amigo do lado esquerdo do peito. Traíste, coitada cobra, o melhor que havia no meu fado de orgulho, identidade e fé. Perdão não há, meu amigo, porque rendeste de fuzil à mão o pássaro colibri encantado que meu corpo era. Joguei aos porcos pérolas variegadas, filho pródigo traído pelo pai. Sem banquete ou boas-vindas, errante sigo pelo mundão, cada vez mais ermo e cheio de gente. Gente como tu e eu, gente profusa de confianças, gente do interior e gente de almas vazias. Perdão não há, meu amigo, só me sobra uma face, impedido de dar-te a restante, 33


sob pena de estar sem rosto diante do espelho do tormento.

Rodrigo Lopes | Rio de Janeiro, Brasil | ou apenas Lopes para os amigos, descobriu-se poeta ainda na escola. Desde então, tem a leitura como paixão e a escrita como necessidade. Toca seu violão todos os dias no final do dia para adocicar um pouco a alma. Costuma funcionar.| lopesro@gmail.com

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BEM DE PERTO, AGORA, NESSA TARDE | ESTRELA ANACORETA | Vitória Terra

Dá-me essa criança quero enrolar meus braços flácidos nesse corpo pequeno cheirar seu pescoço quase inexistente e ficar bem perto dessas narinas transparentes ver esses micro-afluentes cor de rosa rabiscarem minhoquinhas no seu rosto

dá-me esses lábios melíponos para lembrar de meus seios cheios do quanto entreguei minha vida e do quanto ela jorrou doce quero mordiscar seus dedos quase sem ossos provocar seus olhos até me sentir naquele tempo distante

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dá-me essa reminiscência minúscula presença de plumas perfumadas sobre o crânio traz-me por um instante aquele futuro imenso que tive recém-nascido.

ESTRELA ANACORETA Um gole mais desse mar de sal pesando nas tripas vazias de liberdade um pavor alvoroçado pelo grito do pensamento exército amordaçado no silêncio engolido à força ancestrais fossilizados ressuscitam no diamante estelar guardado sabe se lá de onde por quem bem no fundo da consciência furacões remexem os uniformes da revolta dos sargentos lambuzados de algas e lodo e cheiro podre espadas soldadas em seus estojos corroídos encalhados na zona morta borbulhando nas encostas misturados aos sonhos fuzilados ao doce que atiçou a pólvora e apagou os rituais da fé dos siboneyes degola que aspergiu sangue inocente em terra violada sem altar sem louvor sem temor

Um gole mais desse mar de sal pesando nos corações inchados 36


de dor e de vontades que jamais pariram os repartidos pães sagrados para os fugitivos filhos da ilha.

Vitória Terra |Uberlândia, Brasil| nasceu em Maracajú, MS. É fundadora do Terra Franklin Advogados, especializada em filosofia do direito e em direito processual civil pela UFU, MBA/FGV, Escritora e poeta, publicou NÃO MAIS OS FALSOS INFINITOS, POEMAS DE OFICINA, Ed. PATUÁ.

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Coluna | Coisas que o Vento Conta Por Pedro Belo Clara Outubro de 2021

A BALADA DO VELHO HOMEM No silêncio das pedras, espera – um pássaro, uma flor, um grito?

A quietude do velho homem não suplica promessas. Há em si uma estrela anoitecendo lentamente.

Na pérgula que o abriga, a trepadeira dilacerada não conta os anos em que floriu. No sossego da tarde, parece cintilar no seio da desolação que tudo permeia com a dignidade duma árvore despida.

Será o mesmo brilho que nuns olhos antes jovens despontara em tempo de frutos e fontes? 38


De tão vagos abrem estradas ao infindo…

O tempo corre e envelhece quem quase toca um novo berço. Mas a mudez dos trevos pressente o segredo:

um botão de rosa, no peito, sonhando abrir em borboleta.

Novembro de 2021 DIA DE VISITA A água na chaleira ferve de entusiasmo – assim o coração do velho homem palpita.

Já colhidas as margaridas, com gesto ponderado apronta o bule ao serviço.

As favoritas daquela 39


que em silêncio ama, a bebida predilecta dos seus apetites.

Que mais faltará?

De súbito, uma canção (e secretamente a certeza dum maio ressurecto, colorido de andorinhas):

a amiga está a chegar.

DEPOIS DO LANCHE O outono bate-lhe à janela, suave e doce como a carícia que a morte aos náufragos reserva – mas no peito de vidro rachado cintila uma primavera inesperada.

O perfume daquela que tanto ama povoa ainda cada recanto da casa, fazendo da solidão sua

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uma flor aberta ao peso do tempo.

Sem noite que lhe deponha o sorriso, com um beijo nas faces palpitando, é sentido o gosto em saborear nova fatia do carinho cozinhado por quem lhe trouxe rosas em novembro.

Sem mágoas desperta um tempo de salgueiros e trovas junto ao rio. Que feiticeira arriscaria tal previsão?

Mas a alegria ignora o engano que por tantos dias lhe serve de raiz.

A cerejeira do jardim liberta uma folha da prisão de vicejar. Caindo inerte sobre a terra, despede-se do vento após a mais bela das danças que sabe. (Consumiu o verão a pensá-la e na hora voou sem pensamento.)

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Um pisco canta. E o homem sorri.

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Dezembro de 2021 ANTES DO SOL NASCER que seja rosas em botão lírios de madrugada amendoeiras em flor nevando as curvas da estrada

que seja orvalho cintilante céus de imenso azul cravos embebidos no aroma duma brisa rumando ao sul

que seja oceanos de luz limpando fundas mágoas rios serenamente correndo ao encontro de largas águas

que seja sorriso e abraço que seja festa e alegria a vertigem duma estrela cadente de beijos e maresia!

essas dunas de alvura plena 43


onde dois vultos se enlaçam o silêncio doirado que fica dos loucos dias que passam

ah, que seja rosas em botão três lírios de madrugada! – e o coração como ave cantando na manhã esperada

PEDRO BELO CLARA | nasceu em Lisboa, Portugal. Um ocasional preletor de sessões literárias, atualmente é colaborador e colunista de diversas publicações literárias portuguesas e brasileiras. O seu último trabalho foi dado aos prelos sob a epígrafe de “Lydia” (2018). É o autor dos blogues Recortes do Real, Uma Luz a Oriente e The beating of a celtic hear.

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Coluna Sem Palavras por Lucas Grosso Outubro de 2021 Fendas Extraordinárias, de Gabriele Rosa Livro de contos em que Gabriele, poeta e dramaturga negra do Rio, trata de personagens de cânones literários (Geni, Julieta etc.) por meio de contos regressivos. Ou seja, contos começando pelo final. Nessa técnica, ela vai desconstruindo as imagens sedimentadas que a versão canônica traz, por meio de histórias possíveis sobre as personagens. Quase sempre as histórias envolvem faces das personagens que a versão original não revela, dessa forma estabelecendo uma nova perspectiva das obras tradicionais, além de uma criação literária sobre temas como sexualidade, preconceito e violência institucional. Um ótimo livro sobre a violência oculta em contradições e intimidades. ROSA, Gabriele. Fendas extraordinárias. Patuá: São Paulo, 2019

Novembro de 2021 Linha de arrebentação, de Joana Côrtes Livro de poesias bem musical e cheio de simbolismos novos, e tradicionais sob uma perspectiva nova. Joana, mulher negra, nordestina, lésbica, e candomblecista usa todas essas identidades sociais que lhe atravessam, e mais aquelas gerais (sua posição política e seu recorte geracional), para criar um livro de poesias muito pessoal – e, por isso mesmo tão cativante. Joana cria imagens de exaltação aos ícones, símbolos e valores que a sociedade reacionária e racista ataca, mas ela faz isso sem soar dogmática ou panfletária. Seu livro é, primeiro, uma celebração da liberdade e da vida cotidiana, através da poesia e da música! Linha de arrebentação , Joana Côrtes – Urutau, 2020

LUCAS GROSSO | Mestre em Letras. Estudou Milton Hatoum na graduação e Milan Kundera no mestrado. É professor de inglês na prefeitura de São Paulo. Lançou “Nada”, pela Editora Patuá, é colunista da Subversa e escreve no blog www.lucasgrosso.blogspot.com.

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Correntezas Outubro de 2021 Escrever, pintar, fantasiar – expressões contemporâneas*| Sílvia Fernandes […] Cada fantasia é uma realização de desejo, uma correção da realidade insatisfatória. (Freud 1908, p. 330)

Com papel e caneta tinteiro, Freud mimetiza o espírito vital dos poetas e da criação literária em seu breve texto de 1908, intitulado O poeta e a fantasia[1]. Diante da folha em branco, os que se dedicam ao arranjo dançante das palavras recolhem seu material de conteúdos oníricos latentes, em que desejos não satisfeitos emergem como força motriz e artefato na produção da vida psíquica. A fantasia, que segundo Freud guarda ancestralidade com a brincadeira infantil, será aqui representada de duas formas: como expressão do fervilhar onírico dos escritores, sensíveis às “impressões cambiantes” e oscilações da vida (FREUD, 1908, p. 331) e como pintura traduzida em telas. Logo, frente à contemporaneidade, e nela imersos, a fantasia é o modo como sonhamos em vigília e como poderemos, quem sabe, a partir de sua tradução em arte, oferecer prazer estético aos que experimentam a turbulência dos nossos dias. Em tempos de morte exponencial fantasiar seria também a arte de construir abrigos protetores tornando-nos heróis de nós mesmos? Neste texto, pretendo explorar as dimensões supracitadas sobre o ato de fantasiar. Parto de uma tela pintada em tinta a óleo, de minha autoria, e sigo com uma reflexão sobre um poema de Matilde Campilho — poeta portuguesa — em seu livro Flecha (CAMPILHO, 2020). Na tela, busco elaborar emoções vividas em 2020, um dos mais desafiadores anos vivenciados por todos nós em decorrência da pandemia global. Particularmente os poetas — livres artesãos da palavra — são inquietos e inconformados sonhadores a rascunhar desejos e imagens borradas a partir do “inconsciente em vigília”[2]. Cada vibrato da fruição literária poderia traduzir o que Freud chamou de “prazer preliminar” (FREUD, 1908, p. 338) a nós oferecido por esses sonhadores. O prazer maior adviria do mergulho libertador na profundidade de nosso inconsciente, o “não lugar” em que fantasiamos entre corais oníricos, quase sempre deformados. A escrita do “sonhador em pleno dia”, termo com o qual Freud (1908, p. 333) definiu o poeta, tem o poder de driblar a censura própria ao

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sonho. Desse modo, os produtores do texto literário fantasiam sem censura e nos inscrevem em seus devaneios. Poderíamos considerar que também os pintores e artistas, em geral, nos têm ajudado a sonhar em tempos insones, figurando seus e nossos medos, afetos e ambivalências a partir de sua arte? Quanto prazer e pulsão de vida nos autorizamos, sem censura, a partir deles? Explorando vestígios espalhados no arquipélago freudiano talvez possamos esboçar algumas possibilidades de articulação entre a escrita literária, a pintura e a fantasia; entre a inscrição fantástica dos poetas e pintores na extemporaneidade psíquica e o impacto da produção desses artistas em nossa subjetividade sempre em movimento. Passado, presente e futuro são — como argumentou Freud (1918) — os tempos de nossa atividade ideativa e neles a fantasia flutua, atravessa, paira e realiza o desejo. Mas sobre que linguagem estamos falando? Basicamente, minha referência é a fruição estética que poetas, pintores e artistas — hábeis em criar sem roteiro prévio — nos propiciam ao explorar recantos de suas ilhas e sombras. Cada escrita, cada traço em tela constitui-se enquanto modo de atuação de si, de nós mesmos, enquanto reflexos da cultura na qual somos todos sujeitos e agentes submergindo e emergindo em nossos densos ocasos. Talvez seja possível supor que em determinados momentos limite da vida social, tais como os que temos vivido, a poesia e a estética escancarem as portas de nossas fantasias por meio desses nobres atos de fruição. Simultaneamente, nos colocamos em escuta, nossas e dos outros, quando então a latência onírica pode ser, quem sabe, produtivamente simbolizada.

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A tela – 2020

Tela 2020. Tinta a óleo, pincel e espátula. Sílvia Relfer[3], 2021.

Ao longo dos meses iniciais da pandemia, o tom contemporâneo mais agudo parecia expressar o não saber; o escuro que obnubilava o ser e o ver ou, ainda, os silenciamentos provocados pelas perdas, perplexidades e dores pelo confinamento e impossibilidades — ainda que momentâneas — de elaborações. Mas as descobertas enunciavam a vida psíquica ativa, legitimando o que Freud nos assegurou: a psicanálise, enquanto teoria, está/será sempre inacabada porque provém da experiência e esta é inesgotável (FREUD, 1913). É a experiência sensível, por vezes mnemônica, que produz a arte e ambas são expressões singulares no que tange aos efeitos produzidos na vida anímica. A escuridão da tela era e ainda pode ser a dimensão menos acessível de nossos inconscientes individuais e coletivos. Parece haver um quantum de intensidade psíquica no escuro tão (e nada) revelador aí refletido. Mas há também lembranças encobridoras (FREUD, 1899) em suas camadas feitas em espátula e pincel, em movimento similar aos que escavam minas e sítios. Talvez o medo não dito tenha deitado no divã da arte e começado a elaborar o futuro que é sempre presente; 48


o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas futuras, como brilhantemente descreveu o filósofo Agostinho em suas reflexões sobre o tempo (AGOSTINHO, 1997). Que descobertas faremos como sujeitos e como sociedade a partir de nossos tempos? A dimensão global da crise sanitária afeta cantos, calçadas, janelas e faces mascaradas; afeta nossa angústia para além de sua constituição como afeto. O afeto de angústia foi afetado e atravessado por flechas (como veremos na poesia de Campilho). Na tela 2020, afetos foram abrindo matizes laranjas de esperanças em sol de ocaso, que se esconde, que se nos impacta como sujeitos cindidos. Os movimentos inerentes aos nossos processos psíquicos são refletidos no azul do lago em correnteza e em suas margens incontornáveis. Enquanto a generosidade das tintas dispostas na paleta me convocava aos primeiros traços, muitas palavras ecoavam no cotidiano espremido entre as notícias funestas de uma nau em desgoverno e a possibilidade distante de reviveres. O tempo e o inconsciente — sempre atemporais — convidam, então, a fantasia a atravessar os silêncios subterrâneos em suas contradições e a elaborar na análise, na caneta, na espátula e no sol que se esconde na imagem qual seria o novo (re) arranjo da escrita, da vida enquadrada na tela do computador, e da outra, tão vasta, espalhando-se na tela em branco à espera de expressão. Que sonhos e eventos emergirão a partir de nossos vestígios diurnos nos tempos atuais em que, como nas brincadeiras infantis, fantasiaremos a fim de realizar desejos de amanhecer em tempos de escuridão psíquica e de flechas que atravessam o mundo?

Flecha A flecha que atravessa o mundo nunca desaparece, não desiste, não fecha a porta na cara de ninguém. Ela apenas existe, assobia, plana sobre tudo sem ceder a pressões humanas. Milhões de feitiços, não isentos de medo, esperam sempre por nós. Que bom que é deixá-los à cabeceira, enrolados no cabo ou na flecha, e apontar os sonhos ao dia seguinte. Entre o sono e a vida, um dia de cada vez, caminhando sobre a caruma, vamos escutando e contando as histórias. Uns aos outros, a nós mesmos, e àqueles que vêm depois de nós. (CAMPILHO, M., 2020)

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O poema Flecha está no livro publicado em 2020, pela autora lisboeta, Matilde Campilho. A beleza dos “devaneios pessoais” de Campilho ilustra o que Freud afirmou sobre o ato de o poeta nos “brindar com suas peças”. O prazer que sentimos ao acessar a arte da escritora pode ser proveniente de fontes distintas e a nós não é revelado o segredo mais íntimo de sua técnica (FREUD, 1908, p. 338). Uma flecha pode apontar, sugerir direções, entrecruzar caminhos possíveis e por vezes desconhecidos. Na poesia, ela é leve, podendo planar livremente (como a fantasia), assobiar, imprimir novos tons à existência na medida em que atravessa o mundo e os sujeitos. A vida contemporânea, sobretudo a partir de 2020, tem sido plena de incertezas e descaminhos e o divã parece estar se tornando o espaço da primazia da busca de sentido (ou direção?) para o sujeito caminhante. Em exercício ensaístico, talvez possamos fantasiar que a arte do psicanalista está também inscrita/escrita no poema: escutar e contar histórias; entre o sono e a vida, um dia de cada vez. Quem sabe a flecha poderia ainda ser significada como o sujeito em movimento analítico, com seus passos hesitantes, planando, juntando a “caruma”, isto é, as folhas secas do existir com as quais se acendem lareiras ou luzes. Na poesia, Campilho traz a bela imagem do caminhar sobre as folhas secas. Ao que parece, sobretudo em nossa contemporaneidade cambiante, analistas e analisandos têm seguido carumas que sinalizam trilhas possíveis. Na poesia de Campilho, assim como em minha tela, podemos vislumbrar alguns vestígios da vida desses “sonhadores diurnos” e suas criações. De um lado, uma analisanda em formação psicanalítica, experimentando a crise global e seus efeitos, simbolizando desejos cambiantes na mistura de texturas, representações e cores; do outro, uma poeta consagrada cuja escrita se articula em fios, aqueles mesmos que o analista persegue com suas técnicas e ouvidos, uma artesã cuja escrita oferece aos seus leitores um campo inteiro de carumas como setting, sem “fechar a porta na cara de ninguém”. A poesia de Campilho propõe a flecha e a cabeceira como elementos que se articulam: liberdade e percursos; apaziguamento e descanso. Ela, a poesia, pode ser vivenciada como uma proposta de sonho e de (re) significação do presente em meio à insônia do mundo. Quem sabe, poderemos adormecer em seus versos, por ora, enquanto nos reconciliamos com nossos ocasos e acalentamos a fantasia restauradora que ainda virá?

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Referências bibliográficas AGOSTINHO. Confissões. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus, 1997. CAMPILHO, M. Flecha. Lisboa: Tinta da China, 2000. FREUD, S. [1899] Lembranças encobridoras. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Ed. Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago, 1996. pp.285-307. FREUD, S. [1908] O escritor e a fantasia. Obras Completas, vol. VIII. [1906-1909]. 1ª ed. Tradução: Paulo Cesar de Souza. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2015. p. 325-338. FREUD, S. [1913] Princípios básicos da Psicanálise. Obras Completas, vol.10. Trad. e notas: Paulo Cesar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

Notas de fim * Este texto foi elaborado em intervalos de três semanas, sob escuta de algumas das canções do violonista brasileiro Ulisses Rocha: Rio Acima; Manhã, Rindo da Saudade e Ar. Agradeço a este grande artista por compartilhar seu talento e sua arte. [1] A tradução em algumas edições é “o poeta” (Der Dichter) e não “o escritor” como consta na edição aqui adotada (FREUD, 1908). [2] Termo de conotação estética que venho adotando a partir do estudo da obra Freudiana iniciado na SPCRJ em 2021. A ideia é brincar de espelhar a constante atividade do inconsciente que nunca adormece. [3] Pseudônimo que reúne e sintetiza meu nome completo: Sílvia Regina Alves Fernandes.

Sílvia Fernandes | Rio de Janeiro | Dra. em Ciências Sociais, Professora Associada da UFRRJ e Membro Associado da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro. Tem Pós-doutoramento no Centro de Estudos Latino Americanos da Universidade da Flórida, em Gainesville, EUA. Possui artigos e livros publicados e teve seu poema Sonâmbulo premiado e publicado na coletânea Contos e Poemas, Seropédica: EDUR, 2017. | e-mail: fernandes.silv@gmail.com 51


“A orquestra foi um ato de contrição”| Dois poemas e Entrevista com Milena Martins Moura Neste outubro de 2021, tivemos o prazer de ler em primeira mão a obra A orquestra dos inocentes condenados, livro de Milena Martins Moura. Na sequência, convidamos a apreciar dois de seus poemas, bem como conhecer Moura a partir de uma breve, mas muito importante, entrevista que tratará de temas presentes na obra como luto, saúde mental e a solidão de um corpo neurodiverso. Informações sobre lançamento e como adquirir a obra logo ao final do texto. a escrita que lambe o chão sai do escuro todo fim de ano natal e finados porre de vinho crise alérgica foto ruim e divórcio sai com fome esperando sacrifício e soluço a escrita mambembe que lambe a ferida e cura a ressaca que segura os pés do suicida ao topo do prédio volta pro escuro anônima sem nunca dormir entre os reis esse vazio tem dedos enormes. segura a minha língua numa pinça enquanto eu me debato. ai, falta o ar, faltam o bom, o velho e o conhecido. te falei que eu sigo hábitos rígidos e rotinas compulsivas? acordo, sofro, escovo os dentes e não morro todo dia todo dia. 52


hoje eu deixei de pular os degraus ímpares da escada. quebranto, cansaço. hoje eu não derramei a lágrima da madrugada. secura, secura. não escurece mais às oito horas. roubaram o dezembro, roubaram o dezembro que eu lembro de quando era fácil, quando era só puxar o ar sem choro. ai, sobra sobra suor nos olhos. eu tive tanto medo que achei estar a salvo. é o verão sem horário do rio de janeiro quase em janeiro. é o cortejo é o cortejo dos corpos em negação.

[ENTREVISTA]

O livro “A orquestra dos inocentes condenados” foi escrito durante o atípico e brutal tempo que estamos vivendo devido à Covid-19. Nesse cenário, como a questão do luto direcionou ou influenciou na escrita destes poemas? O livro como um todo é um grande luto, porque já nasceu como uma forma de lidar com diversas perdas: de pessoas, da normalidade, da vida como a conhecemos e, até certo ponto, do controle sobre mim mesma. E o que é o luto senão o processo de se acostumar com a perda? Por isso, cada poema a seu modo, escrever a Orquestra foi uma tentativa de me manter firme. Não como quem finge firmeza pra ver se acredita ou convence alguém, mas como quem se deixa desabar e se refaz das ruínas, o que é uma metáfora pobre, porém bem mais próxima do que se imagina da verdade nesse caso. A Orquestra foi um ato de contrição.

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Há várias passagens de reencontro com o passado como estes em que o eu-lírico relembra uma cena familiar provavelmente reunida para as refeições: “o olho azul do meu avô/ na cabeceira da mesa/ helina helina vem sentar” e segue o acesso às lembranças “ô daniel para de história (…) maria lucia pintou cabelo” (p. 82)? Como foi resgatar as memórias de infância em meio ao luto? A infância me voltou com muita força durante o isolamento. Se antes de todo o caos desse tempo atípico a infância já era como um retorno à casa depois de uma viagem longa, durante a solidão do isolamento ela se tornou também um tipo de terra firme. Lembrar a infância significava lembrar que há uma vida para além dessa que estamos vivendo, e que ela pode voltar, o que eu com frequência tendi a esquecer. Estar em isolamento, afastada da família e dos amigos, da normalidade das coisas, dos lugares e dos hábitos costumeiros, me levou muitas vezes a acreditar que a vida de antes era como outra vida, que não a minha, e que quem eu havia sido era como outra pessoa, que não eu. Por isso, voltar ao edifício Irene, a Madureira, à Vila, à mesa do meu avô, à frente da Telefunken 1984 que já estava ali quando eu nasci foi segurar a minha própria mão pra não me perder de mim. Meus avós não viveram pra morrer de Covid. Meus avós morreram quando eu era jovem. helina morreu quando eu era criança. daniel, quando eu começava a descobrir que havia crescido. Uma época em que morrer parecia algo distante. Como a vida passou a parecer depois do vírus.

(…) “ajeita primeiro a calcinha na pele gruda na pele não não saia não se mova depois corta a etiqueta rente mais rente quase rasgando isso melhor veste a blusa checa se pinica pinica troca” (MOURA, M. M, 2021, p. 60) A rotina sistemática (p. 60) é poeticamente marcada na própria construção e sonoridade de suas estrofes. Como a rotina agravada pela pandemia estimulou a criação dessa sonoridade em A orquestra dos inocentes condenados? 54


Primeiramente devo explicar que, como mulher autista leve, sempre tive hábitos e pensamentos bastante rígidos. As rotinas são parte essencial da minha autorregulação emocional: por elas, tento controlar ao máximo o ambiente que me cerca e, dessa maneira, ter um pouco de conforto no dia a dia. Deve ser realmente lindo não se preocupar com a posição dos pratos no escorredor de louças, deve ser libertador, mas eu nunca vou ficar sabendo, porque nunca não vou perder o chão se as nuvens do desenho não estiverem viradas a 45 graus. Isso serve para absolutamente tudo na minha vida. Sem as rotinas, a organização, a rigidez dos hábitos, eu não consigo ter controle sobre mim mesma para estar funcional. Para além disso, esse poema trata do transtorno obsessivo compulsivo, outro mecanismo forte na tentativa de controlar o caos da vida. No poema, eu falo de como preciso checar todas as coisas: voltar pra ver se apaguei a luz, fechei a porta do banheiro, guardei as facas de um modo que não possam cair e ferir os gatinhos. A disfunção sensorial também aparece e, com ela, a tentativa de não perder o controle sobre mim mesma. Tenho sentidos muito mais sensíveis: assovios, mastigação, toques indesejados, luzes fortes ou piscantes, tudo isso pode ser gatilho forte para crises de sobrecarga. Quando eu falo no poema sobre a meia dobrada e digo que, naquele momento, só o pé existe, não é uma metáfora. Porque o toque indesejado da meia no pé desestabiliza todos os outros sentidos e se torna o centro de todas as atenções. Então a rigidez das rotinas, dos hábitos e dos padrões de pensamento, uma clara tentativa de controlar a aleatoriedade da vida (que não segue as relações de causa e efeito rígidas segundo as quais meu cérebro tende a funcionar), não é resultado da pandemia. No entanto, foi muitíssimo intensificada por ela. Tempos atípicos mostram que não estamos no controle e, por isso, demandam de pessoas como eu mais mecanismos que deem a sensação de estarmos. Uma sensação falsa e que sabemos que ser falsa. Nunca estivemos no controle. Em nossa leitura, sentimos o tom intimista das notas do eu-lírico quando retorna ao passado em busca da segurança daquele tempo em relação ao presente. Como nos versos “você não se odeia o bastante milena” e “isso não é coisa de mocinha milena”. Seria uma forma de você somar sua biografia e misturar com a criação do eu-lírico?

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milena não se odeia o bastante, porque milena se recusou a desistir de muitas coisas que lhe disseram não ser coisa de mulher. E isso não é esperado de uma mulher. Uma mulher que insiste é queimada em muitas fogueiras. milena, no entanto, também nunca se amou.

Por fim, como você pensou em trabalhar o lançamento da obra? Para os leitores interessados, onde eles podem encontrar o livro à venda e saber mais sobre o seu percurso literário?

O lançamento será realizado em modo virtual no canal de YouTube da Editora Primata (www.youtube.com/PoesiaPrimata) no dia 15 de outubro, às 19 h, e terá a participação do poeta Macaio Poetônio, editor da Primata e responsável pela Orquestra, e da escritora Priscila Branco, editora da revista toró e da Macabéa Edições, além de colunista da revista cassandra. Quem quiser adquirir a Orquestra pode acessar o site da Editora Primata em https://www.editoraprimata.com/produto/551144/a-orquestra-dos-inocentescondenados-de-milena-martins-moura.

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[Resenha] A poesia sinfônica de Milena Martins Moura

Lançado recentemente pela Editora Primata, o livro de poemas “A orquestra dos inocentes condenados” da escritora Milena Martins Moura nos permite mergulhar na subjetividade de um corpo neurodiverso, cujas experiências são delicadamente transformadas numa composição poética que submerge ao campo mais sensível das emoções humanas como luto, saudade e a solidão. No primeiro contato com os versos de Milena, deparamo-nos com o poema “eu já vi esse filme”, no qual somos conduzidos ao ritmo fantástico de sua poesia sinfônica que vem revelar um eu-lírico esgotado dos rituais cotidianos de uma sociedade abstraída das condições reais: por Favor Não / o vermelho não aparece / nos filmes da Disney / o vermelho não aparece / nos anúncios de tampão / por favor NÃO / esse filme asséptico / vimos nos natais. É nesse compasso que a autora nos provoca em seu intenso lirismo “o reles ato” em prol daqueles que não são todo mundo nesta Terra, cuja caixinha não se encaixa, pois “e quem não é todo mundo é ninguém”, no qual é considerado errado nascer diferente. A poeta também nos apresenta o seu ato justo, o seu desabafo: está faltando alguma coisa / um rosto / nasceu é um anjo / que pena / saber existir / caber onde deve (…) da terra prometida / debaixo do sol a pino / eu também quero o leite e o mel. A orquestra dos inocentes condenados também é a orquestra dos esquecidos no mundo dos “transtornados”, do qual a sociedade deseja tomar posse das narrativas. A poeta traz à tona por meio do poema “som” o debate da saúde mental, nele abarca um sentimento de renúncia em meio a tensão existencial de um indivíduo abatido pela sociedade: vão me tirar a vontade de viver hoje de novo / alguém / nhac nhac nhac/. E, assim, o eu-lírico envolvido no subjetivismo corporal do sujeito em oposição ao objeto, esse produto oferecido à alma a fim de remediar que a sujeita ao “normal”, mas que o reprime de cuidados: que eu sou a louca / e o doutor ainda me pede / que lhe olhe nos olhos / e me oferece um remedinho / para curar a minha identidade / pesada demais aos demais / e quem lembra de me trocar os curativos? Em outros momentos, sua poética transporta-nos para a mesa que se encontra desabitada, embora preparada para uma refeição, cujo sabor principal é o amargo da solidão de um eu-lírico contido de provar o mel que se vê entre as ausências e o luto: arrumar a mesa / para as bocas de ninguém / arrumar arrumar a mesa / arrumar arrumar a mesa / para os corpos ausentes / para o morto e os enlutados. Aos donos de corações sensíveis nos espelhamos em seus versos refletidos de lembranças dolorosas, mas também carregados da saudade, sentimento este que denominados as ausências afetuosas, assim, a leitura nos leva 57


à mesa de recordações: um olho humano / tristeza / gota no poço escuro / saudade / o olho azul do meu avô / na cabeceira da mesa. A poesia de Milena Martins Moura é profundamente realista em manifestar a intensão de nos enviar um recado (a verdade de nossa pequenez diante do universo): somos pequenos / estamos sozinhos / e fazemos merda / sem precisar de ajuda cósmica. Portanto, A orquestra dos inocentes condenados é uma exclamação necessária metamorfoseando a obra de arte em um sublime protesto mágico, no que é particular ao que é coletivo. A Orquestra dos Inocentes Condenados de Milena Martins Moura Editora Primata poesia ISBN: 978-65-88866-57-3 102 páginas R$ 35

Poderá encontrar o livro à venda no site da Editora Primata: https://www.editoraprimata.com/produto/551144/a-orquestra-dos-inocentescondenados-de-milena-martins-moura

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[Entrevista] Umbuama – uma jardinagem poética | Daniel Rodas

Conversamos com o poeta Daniel Rodas a respeito de Umbuama, seu belíssimo livro de estreia publicado pela Editora Urutau. Convidamos para ler a entrevista e alguns poemas da obra. Como foi o processo de criação de Umbuama, o seu livro de estreia? Umbuama começou a ser gestado logo no início da pandemia, em Março de 2020. Pairava ainda um sentimento de incerteza, de indecisão com relação ao futuro. Não tinha ideia do tamanho da tragédia que se tornaria a pandemia no país, tampouco seus desdobramentos políticos – algo que ainda hoje, quase dois anos depois, não temos certeza – e acredito que um pouco dessa sensação de limiar alimentou a produção do livro. Os poemas em si foram brotando aos poucos, natural e vertigionosamente, como tudo o que escrevo. Sempre digo que sou o tipo de escritor de fluxo: não planejo, escrevo. Deixo-me levar pela torrente fluída das palavras. Só quando o poema está “pronto” é que começo a podagem, o cultivar diário, o ato de fincar cada verso-folha no devido lugar. Sendo assim, o processo de criação do Umbuama foi algo muito próximo de uma jardinagem poética: deixar a semente cair, brotar e nascer por si mesma, e só aos poucos ir dando forma, para que as raízes finquem e a poesia floresça.

Em nossa leitura, encontramos a Mãe-Terra como o elemento predominantemente e primordial. Como surgiu o tema para a obra? Qual a sua ligação com a MãeTerra? Sou fascinado por mitos e figuras simbólicas. Pela energia dos símbolos, dos arquétipos; algo que transcende à mera especulação filosófica. Não se trata de abstração, mas da potência concreta que dá origem às coisas. Para mim, isso é a Mãe-Terra. Isso é Umbuama: a Mãe-Umbu, a Mãe-Umbuzeiro. É algo que transpõe categorias e definições, que está além do verbal, mas que se concretiza – paradoxalmente – no verbo. O tema da obra, portanto, surgiu da necessidade de me reconectar poeticamente com essa energia primordial, com essa força vital contida na Natureza, da qual não raro nos distanciamos. Acredito que muitos dos problemas que enfrentamos hoje – tanto a nível individual, quanto social, ou qualquer outro que se assinale – tem origem nesse distanciamento da Natureza, nesse deslocamento que antagoniza o humano e o não-humano, colocando o primeiro como “superior” ao segundo. Para mim, não há distinção entre a Natureza “externa” e Natureza “interna”, entre a Natureza humana e os elementos; tudo está intrinsecamente conectado, tudo faz parte de um ciclo. Sendo assim, a proposta 59


de Umbuama é buscar – ou pelo menos, propor – uma reconexão com a nossa própria Natureza, com o no Eco – no sentido de voz e de lugar. E a imagem da Mãe-Terra simboliza isso: essa energia vital que existe dentro nós, mas que se encontra adormecida e precisa ser reencontrada.

O Umbuzeiro, árvore típica do Nordeste brasileiro, tem o significado de abrigo e conforto. No seu poema ele é: “…ancião dos velhos tempos/ rabugento, talvez/ Mas sábio” (p.33). A questão que queremos colocar é: a poesia seria o seu Umbuzeiro? Não sei exatamente… Confesso que não acredito tanto na ideia de poesia enquanto “abrigo e conforto”. Para mim, está mais para o contrário: poesia é incômodo, impacto. Acredito na poesia como um ato de remar contra a corrente dominante, mas em consonância com um fluxo maior, o fluxo poético. O umbuzeiro, nesse caso, não representa exatamente a minha poesia – até porque, apesar de Umbuama ser meu livro de estreia, é apenas uma pequena parcela da minha produção poética, que engloba uma variedade até um tanto contraditória de temas – mas representa essa energia vital e ancestral, essa força, repito, não abstrata, mas concreta: a capacidade de nos conectarmos ao nosso Eco – ao som que reverbera dentro de nós. Com isso, o umbuzeiro talvez represente não a poesia em si, mas parte do processo poético, o “abrigo” final que se busca após a batalha – essa sim, a própria poesia.

Na pequena biografia contida na obra, encontramos que você faz parte de um grupo de teatro. De alguma forma a experiência como ator influência na sua escrita? Posso dizer hoje que, sem sombra de dúvida, só me atrevo me chamar de poeta (será que me atrevo mesmo?) por causa do teatro. Foi o teatro que, seja de forma sutil, seja de forma visceral, me ajudou a encontrar minha própria voz poética, minha força expressiva, que sempre esteve presente, mas que demorou a se expressar em sua totalidade – e acredito que ainda não cheguei lá. O fato é que o teatro foi essencial nesse processo. Desde 2017, faço parte do grupo ExperIeus da cidade de Monteiro-PB – para onde me mudei para cursar Letras-Português na UEPB – dirigido pela atriz e professora Cristiane Agnes Stolet Correia, uma pessoa muito querida e que foi muito importante nesse processo de descoberta poética. Foi graças à direção intensiva da Cris – e sem dúvida assertiva, quando havia necessidade – que pude desenvolver melhor e dar forma à minha expressividade, ampliando o meu contato comigo mesmo e com o mundo que me cerca. Porque afinal a poesia é isso: contato. Não há poesia sem contato, sem diálogo, sem o ato 60


de abrir-se ao mundo. E o teatro tem me possibilitado isso. Ainda que eu não me considere nem de longe um ator profissional – até porque não é essa a minha pretensão – tenho um respeito e uma admiração imensa pela arte teatral, a qual entendo como parte essencial da minha vida e da minha construção enquanto poeta e ser humano.

Você é editor da Revista Sucuru, Revista Nordestina de Literatura e Arte; pode nos contar como está sendo a experiência de editar uma revista literária? A Sucuru foi de longe a minha “loucura poética” de 2021. Criei a revista, a princípio, do nada, sem nenhum apoio institucional, apenas a coloboração de amigos. Isso em Fevereiro de 2021. Agora, meses depois, consiguimos ver a revista dar seus frutos: em quase dez meses, publicamos quase trezentos artistas, entre estreantes e veteranos, de todo o país e até do exterior. Alcançamos milhares de pessoas com nossas publicações mensais e ajudamos e expandir um pouco os horizontes da literatura brasileira contemporânea, um espaço ao mesmo tempo tão diverso e ainda tão segregado. Ajudamos – e acredito que esse é o maior objetivo da Sucuru – a dar voz a autores/as/is marginalizados, com pouco ou nenhum espaço nas grandes publicações, oriundos de regiões tidas como “distantes” (distantes para quem?), como o sertão nordestino, de onde viemos. Somos uma revista vinda do Nordeste, mas pertencemos ao mundo. Por tudo isso, tem sido uma experiência essencial, que tem sim os seus percalços, mas que tem se mostrado um passo importante na minha caminhada. Espero continuar esse projeto e expandí-lo ainda mais.

Para terminar: como foi a experiência de lançar um livro em meio ao caos de 2021? E ainda, há algum outro projeto em vista? Lançar o Umbuama em plena pandemia teve seus altos e baixos. Até agora não consegui organizar um lançamento presencial, tenho divulgado e vendido o meu livro unicamente pela internet e pelo site da editora. Mas no final das contas, não tenho do que reclamar. O próprio ato de ver meu trabalho poético sair da gaveta já é algo grandioso para mim, que até pouco tempo sequer publicava os meus escritos, embora tenha uma montanha de coisas guardadas que quero publicar futuramente. E isso responde à segunda questão: meu próximo projeto é de continuar a publicação dos meus escritos. Tenho vinte livros de poesia guardados no meu computador, além de dois romances e três livros de contos. Quero ver o que merece ser publicado, revisar e publicar. Claro, tudo na hora certa, dentro do seu fluxo. Pois se tem uma coisa que aprendi nos últimos tempos é que precisamos deixar que as coisas fluam, que as transformações ocorram naturalmente, sem 61


forçar. A torrente da vida é como a água: flui, apesar das pedras. Só precisamos aprender a nadar.

Poemas de Umbuama velhice

O pasto de cabras sob o sol de setembro. Galhos retorcidos — como mãos de criança — Adornam as cores da paisagem. Ao sul, eco de rio. No céu, riscar de pássaros. E na cadeira de balanço — na varanda Aos pés do pé de coco — Repousam os dedos As mãos e os cabelos embranquecidos Da tenra árvore humana Frondosa de silêncios-véus

instante réptil O sol Bebendo o horizonte A vaca Mugindo no brejo O velho Passando na ponte O tempo Correndo num tejo

andorinha Não escolho em quem faço Caca Só vejo a cabeça E a camisa alva

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O resto é sociologia dos Fundos 40 graus As flores Rugem No verão

Para saber mais sobre o autor ou adquirir a obra, confira as redes sociais:

Instagram: https://www.instagram.com/daniel.rodas.75/ Facebook: https://www.facebook.com/daniel.rodas.75 Blog pessoal: https://faroisnoturnos.blogspot.com/ Para adquirir a obra direto no site da Editora Urutau: https://editoraurutau.com/titulo/umbuama

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[Resenha] Umbuama: a energia primordial contida na natureza dos versos de Daniel Rodas

Nascido em Teixeira- PB, Daniel Rodas é dramaturgo, poeta e escritor. Além de ser editor da Revista Sucuru, também é autor de “Umbuama”, seu livro de estreia lançado recentemente pela editora Urutau. A obra “Umbuama” revela em seu próprio nome o tema central do livro: a natureza. Nele nota-se um neologismo que abriga em si a combinação do termo “umbu” que vem de “umbuzeiro” (uma árvore da região nordestina) com o sufixo “ama” que simboliza “mãe”, como também reflete o verbo “amar”. Sendo assim, o livro de poemas manifesta no coração de seus versos os elementos da natureza, no qual o seu objeto principal está intrinsecamente ligado à Mãe-Terra, que segundo o autor, também é Mãe-Umbu: “Isso é Umbuama: a Mãe-Umbu, a MãeUmbuzeiro. É algo que transpõe categorias e definições, que está além do verbal, mas que se concretiza – paradoxalmente – no verbo. O tema da obra, portanto, surgiu da necessidade de me reconectar poeticamente com essa energia primordial, com essa força vital contida na Natureza, da qual não raro nos distanciamos.” (RODAS, Daniel. Revista Subversa: entrevista, 2021) O livro é dividido em três partes (“Gaia”, “Parvati” e “Pachamama”), cujas denominações representam as deusas-mãe — criadoras do universo em diferentes culturas mitológicas — seguindo o fluxo de força primordial originária: a primeira parte é chamada de “Gaia”, uma divindade grega que simboliza a Terra, já a segunda, no que lhe concerne, de “Parvati”, outra Deusa-Mãe, entretanto, nesse caso, ela é a encarnação de “Mahadevi”, (deusa-mãe no hinduísmo), sendo considerada a encarnação da energia vital do universo. Por fim, a terceira parte do livro, traz em seu nome a divindade maior dos povos andinos, a “Pachamama” que simboliza a “Mãe do Universo”, que está intimamente vinculada aos componentes da terra, do feminino e da fertilidade. Umbuama é, portanto, Gaia, que é Parvati e também Pacha-mama, que é a força primordial da origem do Universo. O livro incorpora em sua essência os aspectos bucólicos que nos provoca os sentidos físicos com os seus versos que narram o cotidiano da natureza: no céu, riscar de pássaros. / e na cadeira de balanço — na varanda / aos pés do pé de coco — / repousam os dedos / as mãos e os cabelos embranquecidos (p. 13). Nele é possível sentir o sabor de coco e ouvir o canto dos pássaros. Além disso, a obra exprime uma conexão com a existência humana por meio de sua lírica livre que expressa sentimentos entre a revolta, a revolução e a doçura rústica, que conecta símbolos aos elementos sociológicos, no qual compõe sua 64


crítica aos tempos modernos que espelham a humanidade presa no cordão umbilical cavernoso, como em seu poema “Sono Florestal”: as árvores não querem vingança. / As árvores querem dormir. / Sem as lambidas do fogo / Sem os rangidos das serras. / As árvores querem dormir seu sono/ Profundo. / Fundo / Como o princípio das eras. (p. 25) Os poemas em “Umbuama” transmitem um tom sonoro de uma voz política revolucionária, mas também traz um em seus versos a mágica visual — que tinge os versos no imaginário em vermelho sangue — e ao mesmo tempo nos choca com a realidade pungente: teoria do mosquito Mosquitos matam Setecentos e vinte cinco mil Pessoas Todos os anos (Dizem pesquisas) Isso é mais que as guerras Mais que as serpentes Mosquitos são genocidas? Não Mosquitos matam Seres humanos Não matam outros mosquitos. (p. 35)

Umbuama é uma belíssima obra capaz de cativar e causar múltiplos sentimentos, por meio de sua originalidade poética que cria uma ponte e um elo, não só entre as deusas primordiais, mas também, parafraseando o autor, a tenra árvore humana (poema Velhice, p. 13). Portanto, a poesia de Daniel Rodas traz uma conexão do humano com o universo, indo de encontro a uma só energia originária da Natureza, que vive dentro de nós. por Revista Subversa

“Os poemas de Umbuama assentam-se, portanto, na materialidade das coisas sobre a terra. Não para a simples contemplação da paisagem e de seus elementos materiais, mas como fagulha que impele o sujeito poético a perquirir sobre a geografia mais íntima do Ser e produzir imagens da beleza íntima da matéria que não teme a passagem do tempo, mas o acolhe em seu interior e se molda às suas investidas, como o velho umbuzeiro que consegue resistir às intempéries e fincar-se soberano sobre a terra.” 65


Prof. Dr. Marcelo Medeiros (trecho da orelha do livro)

Lições do Umbuzeiro Arvorar as raízes Da vida

Fazer-se carne Mesmo que ao Vento

Buscar sustento Nas profundezas Da terra

Matar a morte Na teimosia do Instante

Estar aqui Agora e amanhã

Mas sem nunca Esquecer 66


As tardes do Ontem. Umbuama: Editora Urutau, 2021.

Como adquirir: O livro pode ser adquirido pelo site da Editora Urutau no link: https://editoraurutau.com/titulo/umbuama Ou diretamente com o autor, pelo e-mail drodas917@gmail.com, pelo Facebook (https://www.facebook.com/daniel.rodas.75/) ou pelo Instagram: https://www.instagram.com/daniel.rodas.75/

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Edição e Revisão Tânia Ardito e Fabíola Weykamp

Ilustração de capa Hilda Hilst na Casa do Sol, Encarte Flip, 2018

Recepção de originais CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM

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