ISSN 239-5817 Vol. 6 | n.º 07 MAIO de 2017
PAULO ARCE | SUELIO GERALDO PEREIRA LUCAS GROSSO | FRANCIELI BORGES |PEDRO DE LUCENA LARA NOGUEIRA | SABRINA DALBELO | EMANOEL FERREIRA GIOVANE ADRIANO DOS SANTOS | MIGUEL VIEGAS LEAL Ilustração MARCELO LUBISCO LEÃES
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Subversa | literatura luso-brasileira | V. 6 | n.º 07
© originalmente publicado em 15 de maio de 2017 sob o título de Subversa ©
Edição e Revisão: Morgana Rech e Tânia Ardito
Ilustrações MARCELO LUBISCO LEÃES
Os colaboradores preservam seu direito de serem identificados e citados como autores desta obra. Esta é uma obra de criação coletiva. Os personagens e situações citados nos textos ficcionais são fruto da livre criação artística e não se comprometem com a realidade.
SUBVERSA VOLUME seis | NÚMERO 07
EMANOEL FERREIRA | SILÊNCIO BRUTO | 06 FRANCIELI BORGES | INSTANTÂNEOS | 10 GIOVANE ADRIANO DOS SANTOS| EXÓRDIO MODESTO | 12 LARA NOGUEIRA | QUARTO 506, QUARTO 187 | 14 LUCAS GROSSO| A PRAÇA AMADEU DECOME | 17 MIGUEL VIEGAS LEAL | ACERCA DA INDIFERENÇA | 19 PAULO ARCE | POEMA CONTEMPLATIVO | 31 PEDRO DE LUCENA | AGONIAS | 33 SABRINA DALBELO| CASAMENTO| 35 SUELIO GERALDO PEREIRA | A CAÇADA | 37
ENTREVISTA COM MARCELO LEÃES | 40
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EDITORIAL “Eu queria que os outros dissessem de mim: Olha um homem! Como se diz: Olha um cão! quando passa um cão; como se diz: olha uma árvore! quando há uma árvore. Assim, inteiro, sem adjectivos, só de uma peça: Um homem!” José de Almada Negreiros, A invenção do dia claro
Com todas as ressalvas da interpretação psicanalítica à crítica literária, fato é que foi através da literatura que Freud percebeu: há sempre uma presença estranha, dentro de cada um, pronta a encontrar na forma estética um ponto de “existência”; um ponto “onde não pensamos”, como no ensaio fotográfico do Marcelo Leães. A ficção é compulsivamente este ponto, é onde o estranho vive, faz ligações, emociona, escraviza, obedece. O artista, parece, está totalmente aberto ao estranho em si e no mundo, onde não se pensa porque a forma está sendo dada e colocada em jogo. Expressão máxima dessa abertura radical é o poema “Agonias”, de Pedro de Lucena, para quem o teclado é forma, vida e comunicação. O estranho é sensação e portanto, é forma sempre. O escritor só existe quando escreve, na ideia de Roland Barthes, isto é, onde não pensa e dá forma. Almada Negreiros, em epígrafe, quer se fusionar com a forma, quer não pensar nunca, quer ser ele próprio a obra. O artista está “sovando o barro”, como no poema do Giovane Adriano dos Santos, com toda a dor que isto acarreta. É que a ficção deixa domar e ser domado e isto é um grande paradoxo porque é como dizer que a forma controla o incontrolável. Como é doloroso e como é impressionante este acontecimento. Desejamos a todos uma leitura bem estranha. As editoras.
Ilustração: MARCELO LUBISCO LEÃES. Psicanalista, fotógrafo e membro efetivo do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre.
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Sugestão de Leitura Minha indicação de leitura é o "Variações em Sousa", um livro de poemas do Fernando Assis Pacheco, sobre lembranças da infância dele em Coimbra. Luca Argel, poeta e sambista.
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SILÊNCIO BRUTO EMANOEL FERREIRA | Belo Horizonte, MG.
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Eu não queria ter cedido, ter saído, não queria mesmo, mas foi realmente preciso, já estava ficando maluco, aí deixei minha namorada na cama e saí, saí sim, verdade, isso era noite-quase-manhã. Estava desesperado, precisava chegar ao escritório, andei um tanto, fui a pé pela Brasil, subi até a Praça da Liberdade, aí desviei, desviei dos dormitórios de mendigos, dos adolescentes bêbados, das prostitutas em fim de expediente, das poças de urina do chão, mas da melancolia da quarta-feira de cinzas não, dela não pude desviar, dela não se pode fugir, amigão, apenas seguir em frente – a melancolia vem de cima, vem dos lados, vem de toda parte, nunca foi diferente. Na infância era até pior: levavam-me à missa neste dia e lá eu via o padre riscar testas enfileiradas com cinzas. Uma estranheza, um clima sombrio, uma melancolia em estado puro, e havia coros de senhoras sinistras cantando hinos tão antigos que poderiam ainda ser em latim, sabe, como na Idade Média? Talvez até fossem mesmo em latim, sei lá, é bem possível, eu não conseguia prestar atenção em nada que tivesse a ver com joelhos no chão. Na verdade, eu não conseguia me concentrar em nada que não fossem as vozes… essas vozes… minhas vozes falando e falando dentro de mim (ou as sombras que, já naquela época, me vigiam nas esquerdas e direitas). Hoje em dia não vou em cultos ou missas, quanto mais na quarta de cinzas, mas quem risca minha testa são os dias, riscam solenemente com as cinzas dos sonhos e amores queimados por essa paródia, sabe? Paródia de uma vida que deveria ser feliz. Mas esta é outra história, não quero me alongar mais, na verdade são outras histórias (porque são muitas), não, mentira, nem são muitas, mas são mais de uma, daí o plural. Apesar de ser quase dia, estava escuro, eu tenho medo de escuro. Fui andando apressado, as vozes me falando, as sombras me seguindo, e eu pensando… Pensando no que? Eu acho que pensando que convivo com o medo do escuro desde quando vi a luz pela primeira vez. Não devo ter chorado, não por ter nascido, estava feliz após um longo nono
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mês, mas, seja como for, certamente chorei pelos tapas do médico, os tapas impiedosos de doutor, deve haver um pouco de sadismo na obstetrícia. Mas eu dizia é que estava escuro, e estava mesmo, caminhei, era quase manhã, mas ainda noite, eu com medo, sombras, vozes, calafrios, finalmente cheguei ao edifício. Seu Aluísio disse oi na portaria, respondi oi e fiz que ia adiante, para os elevadores, mas ele pigarreou, um pigarro meio elegante, aí eu me virei e ele disse É feriado até meio dia, esqueceu algo no escritório?, e eu respondi que não, um vacilo que logo notei, teria sido melhor dizer que sim, aí corrigi, falei que claro, esqueci um pendrive, coisa importante, Pode até custar meu emprego, Seu Aluísio, imagine só que catástrofe seria, minha namorada está grávida de gêmeos, como o senhor bem já sabia. Seu Aluísio ficou desconfiado, sei disso porque fez aquela cara de malandragem, as sobrancelhas em formato de esse, a boca torta num esgar, mas liberou a passagem. Ia fazer mais o quê, se eu sou supervisor e meu cargo é de confiança? Primeiro, segundo, décimo, vigésimo segundo andar, PLIN, fez o sinal sonoro, Vigésimo segundo, anunciou a voz de mulher no sistema de som, pronto, a porta se abriu e eu saí. Quinze mesas vazias, o lugar estava um deserto, claro que estaria, era quarta-feira de cinzas né. Fui à minha mesa. Aí sentei, reclinei-me na cadeira, sensação boa, até alonguei. Liguei o computador só pra ver a luz piscante, cor azul, ruído de inicialização. Esperei. Esperei. Esperei. Demorou um pouco pra acontecer, coisa de cinco minutos, fiquei ligeiramente desconfiado, descompensado, até meio desesperado, claro, achei que toda a caminhada tinha sido em vão, luz piscante, cor azul, Belo Horizonte amanhecendo na janela, vamos lá!, pensei, nem
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me mexia, mas suava, suava de molhar a camisa, até que finalmente aconteceu: as vozes, estas vozes, minhas vozes pararam de falar dentro de mim. De repente, havia só a surdez de um silêncio bruto e sem fim. Suspirei de alívio. Vi as sombras esconderem-se como ratazanas.
EMANOEL FERREIRA é brasileiro de Belo Horizonte. Jornalista e escritor. Autor de "Já tomei uns tragos de poesia e prosa pra amaciar a tristeza" (Editora Multifoco, 2016). Publica constantemente em www.facebook.com/mano.poesia | AUTOR.EMANOELFERREIRA@GMAIL.COM
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INSTANTÂNEOS FRANCIELI BORGES | Santa Maria, RS.
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Pequenos e grandes guarda-chuvas pretos, abertos, tortos, abandonados nos canteiros, calçadas - com algum vento eles assumem gestos, sopros, todavia infelizes. É extraordinário como esses objetos são mortos no mesmíssimo instante que parecem carregar toda a tristeza da vida.
FRANCIELI BORGES é curiosa com as letras e as manuseia por ofício e gosto. | FRANCIELIDBORGES@GMAIL.COM
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EXÓRDIO MODESTO GIOVANE ADRIANO DOS SANTOS | Oliveira, MG.
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Escusas pede o barro cru antes de ser cântaro na mesa dos doutos. Anacoluto, não sei o que é isso. Não conheço pessoa nem mar d a n t e s eguidos desconheço o ribatejano. .Travessão. pontos de que nunca vi falar. O que li era Sara-âmago. Estou sovando o barro...
GIOVANE ADRIANO DOS SANTOS conheceu através de livros, ainda na infância, outros lugares diferentes de onde vivia, Morro do Ferro - MG. Cantou a “Saudade sem métrica”, foi ouvido e premiado pela Academia Madureirense de Letras, em 2014. Em 2016, coseu palavras, recordou-se e publicou na Subversa. Estuda Direito na UFLA. | GIOVANESANTOS02@GMAIL.COM
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QUARTO 506, QUARTO 187
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LARA NOGUEIRA| Brasília, DF
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sete vezes tento enxergar o outro lado de fora da janela como se ainda houvesse alguma coisa fora afora e sem conseguir sete vezes o mesmo osso bate no vidro o mesmo osso setes vezes depois a parede falsa se apoia todo dia, uma outra vez para determinar a cor da pele por baixo sangue, emerge a cor que evito antes da última vez o mesmo osso à parede antes o vidro, mas não posso enxergar no outro lado aqui está embaçado e tento me lembrar os nomes riscados no muro, na esquina, estou em outra cidade procurando as coisas que deixei cair outro dia sete vezes se foram eu me vejo partir, malas à mão qualquer lugar, quero ir para qualquer lugar eu sei o espaço do desconhecido e ando com mãos livres malas à mão pela cidade que não conheço virando esquinas que não deveria queria ser parte do que desmorona e me deixa porta fora eu não tenho nada - ao redor posses livros discos não tenho nada e ando nua pelas ruas das cidades que não conheço acordo abrindo os olhos para janelas coladas no cinza e cinzas mancham meu vestido azul meu vestido preto ando nua sinto frio como entra o ar por entre prédios como entra o ar por entre dentes cerrados sinto raiva e sinto frio e me sinto só cáries assumem espaços entre meus dentes
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não assumo espaços em parte alguma não moro dentro do meu quarto ou dentro de qualquer coisa e não conheço as ruas dessa ou daquela cidade ou de qualquer outra – e limpo as cinzas e os restos de relva que trouxe no sapato sempre sinto fome agora sempre sempre sinto fome desde então quando decidi que seria algo a mais que faria parte de algo que desmorona os meninos passam pela rua e observo seus rostos limpos meus vícios não me constroem mais não vejo um que respire por tempo o suficiente ou que diga algo antes da minha própria voz planaltina belo horizonte são paulo brasília meus vícios não me conhecem mais canto a ária
LARA NOGUEIRA é poeta, pintora e fotógrafa brasileira. Publica seus poemas no blog “Arestas de Nenhum Polígono”, e suas pinturas e fotografias na plataforma Cargo Collective. | LARANOGUEIRA02@GMAIL.COM
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A PRAÇA AMADEU DECOME
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LUCAS GROSSO| São Paulo, SP.
Os sons de um trombonista ensaiando The shadow of your smile E uma ambulância [emergência?] cães – três a farejar novos domínios provisórios e um que só queria estar comendo ou dormindo pássaros? Vários (mas eu só conheço um -a cambacica, que parece um bem-te-vi anão) em um banco de pedra, um casal trocando confidências [ou infidelidades?] e então, uma mulher dançando – ou praticando yoga? sombreada pelos edifícios que fazem a praça parecer o átrio de um castelo medieval inventado pela minha imaginação [sou suserano ou vassalo? trovador/bobo] respiro a praça sinto nos pulmões constância e flores e convicções a limítrofe esquina da Rua Cerro Corá com a Sepetiba flores mortas – que não dizem nada flores mortas, sem cartão -flores mortas são sua própria história: trombones cachorros pássaros e flores casais trovadores e yoga na Praça Amadeu Decome
LUCAS GROSSO é professor e pesquisador de Literatura. Aspirante a escritor, já escreveu e publicou em algumas revistas e blogs de Literatura – com mais frequência na Capitu (https://revistacapitu.com.br/) e em seu blog (Lucasgrosso.blogspot.com/). | LH.GROSSOSILVA@GMAIL.COM
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ACERCA DA INDIFERENÇA MIGUEL VIEGAS LEAL| Loulé, Algarve.
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António L. refletia nas palavras do médico enquanto mergulhava o corpo num banho de imersão de água fria e os lábios num cálice de vinho tinto. Resumia-se a isso apenas, não haviam velas acesas, incensos, ou luzes a meio gás, não era o ambiente duma parada romântica, porque, aliás, não só já se sabia velho para essas aventuras como o senhor doutor lhe recomendara não exaltar o coração. Vendo bem, havia-o restringido de tantas outras coisas que tentava lembrar-se do que é que de facto podia fazer sem esticar o pernil, e quando encontrava algo para se entreter nem sempre tinha a certeza se era cem porcento seguro. Contudo, há vicíos e hábitos que um homem vai acumulando ao longo da sua vida e dos quais não se pode desfazer mesmo que o corpo já não possua o vigor de os suportar. - Se o senhor doutor não quer que faça nenhuma dessas coisas, por que não se atreve a escrevê-las numa receita médica? Caso contrário, vou esquecer-me delas, e com imenso gosto. - Oiça-me, meu caro senhor António, - era tão eloquente e educado a falar que chegava ao ponto de irritá-lo. - o seu coração está como um equilibrista na corda bamba. Precisa duma vara para se equilibrar, mas ela não é garantia de que não dê um passo em falso, entregando-se assim ao destino do abismo. No seu caso, a vara é cada comprimido que toma e o passo em falso todos estes comportamentos de risco que lhe digo. - ah!, que grande imbecil era aquele homem quando se punha com as suas metáforas, deixando-
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o ainda mais confuso. Preferia que fosse direto e que dissesse que se não morresse amanhã então morreria no dia seguinte. - Não lhe posso prometer que não tenha outro ataque, senhor António. - Os comprimidos não me importo de bebê-los, mesmo a contragosto. Agora, deixar de fumar? Ressacar com esta idade seria morte certa. Um homem não pode viver sem buscar o prazer. - Antes não ter azares que prazeres. O senhor tem que se conformar com a realidade. - que lata a dele! Se todos fossemos inconformados seria o mundo um lugar melhor. Estar conforme é morrer! Setenta e seis anos de vida eram o suficiente para António aperceber-se da sua própria teimosia, que, segundo lhe iam dizendo, vinha a acentuar-se nos últimos tempos, porém essa sua característica não o impedia de discernir que o médico tinha razão. O ataque de coração não fora por acaso, a velhice chegara e as provas estavam todas à sua volta. Bastava, por exemplo, olhar para o botão giratório do volume da telefonia. Acostumara-se desde jovem a ouvir música em altos berros. Anos atrás com os altifalantes a meia potência já os seus ouvidos estremeciam, mas, naquele momento, durante o seu banho rejuvenescedor, o ponteiro encostavase ao fundo da escala e a música já não o fazia vibrar. Tinha a consciência de que mal ouvia, de que, em parte, os seus hábitos também contribuíram para isso, mas, o que haveria ele de fazer, deixar de ouvir, por exemplo, o caos de Bitches
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Brew para sempre? Óbvio que não. Isso só era plausível na cabeça do médico por ser um moço novo ainda, mas para António era impensável continuar os restos dos seus dias a jogar pelo seguro. Ria-se como, na ótica exacerbada do médico, o seu espírito se assemelhava ao de um garoto que acaba de saltar da asa da mãe cheio de garra para absorver e salvar o mundo duma só vez. Nada disso. Fazia dele uma ideia errada. O que aquele senhor de bata branca não compreendia é que António buscava os motivos mais simples para viver, aos quais, está claro, não podia passar indiferente. Teria mais que tempo para ser apático quando morresse. Entretanto, a porta da casa-de-banho abriu-se, raspando nos mosaicos do chão, de modo que essa reflexão que António L. fazia acerca da sua situação desvaneceu-se sem que desse conta. A sua atenção prendeu-se então na rapariga que entrava na divisão e se aproximava da telefonia, baixando depois o volume e, com consequência, despromovendo os sintetizadores intercalados com o trompete a mera música ambiente. Os saltos altos fizeram-se logo ouvir a cada passo que dava na direção da banheira, e por entoarem por toda a casa António não os costumava considerar como audição agradável, todavia naquele momento pôs-se a apreciá-los apesar de não saber bem porquê. A rapariga, chegando-se junto dele, inclinou-se sobre a banheira e beijou-o na boca, beijo mais fugaz não poderia existir, e, pegando-lhe no cálice de vinho, levantou-se de novo e bebericou dele. Após isso,
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atirou um comprimido para o líquido, esperou até se dissolver, e só depois o retornou a António. Se o outro soubesse daquele tratamento ilegal recusar-se-ia duma vez por todas a acompanhar a sua doença. - Não me importava de tomar banho consigo se não insistisse em tomá-lo com água gelada. - enfim, como ninguém era capaz de entender que aqueles banhos atrasavam o seu processo de envelhecimento! A rapariga (sim, era uma prostituta, mas contratada a tempo inteiro) dizia sempre o mesmo, apesar desta vez não ter feito referência às horríveis consequências que, segundo ela, se poderiam manifestar ao nível cardíaco. - Recusar-me-ia a tomar banho consigo qualquer que fosse a temperatura da água. Seria um momento íntimo que ambos dispensaríamos viver. É, ou não é verdade, minha querida? Lia, assim se chamava, acendeu um cigarro dum maço para ali abandonado e sentou-se na tampa da sanita, inclinandose para a frente e apoiando-se com os cotovelos sobre joelhos, juntando estes de modo a que as suas pernas formassem um triângulo com o chão. António L., por instantes, entreteve-se a admirá-la pois não deixava de ser uma criatura curiosa. Não receava mostrar a sua nudez às paredes da casa, porém teimava em percorrê-la de saltos altos o dia inteiro, e quando António a questionava acerca dessa sua particularidade corava como se escondesse um segredo comprometedor. «Não gosto de andar descalça», respondia por vezes, o que era vago demais visto que dispunha de um
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par de sapatilhas; contudo, houve certa vez que disse algo que ia encontra da teoria de L., «Senão não chego aos armários», e não adiantou mais explicações. Isto bastou para que desconfiasse que a rapariga não se sentia bem em ser baixa, envergonhando-se da sua estatura como se tratasse duma deficiência, e somando a isso os seus seios diminutos, cuja aquela posição de tronco inclinado favorecia o seu descaimento, constrastando com a largura das suas ancas. Tudo isso eram disparates na opinião de António. Meu Deus, como a invejava! Quem lhe dera a ele ainda conservar uma pele suave e firme e umas bochechas que não se parecessem com as dum cão, capazes de se segurarem contra a gravidade. Mas, que alternativa tinha ele (e todos os outros) se não envelhecer? Era dos poucos assuntos com os quais só se podia combater resignando-se, esquecendo-se deles, e, por isso, há algum tempo que já se deixara de importar com a arquitetura que o seu corpo ia tomando. Tratavam-se, sem sombra de dúvida, de inquietações de gente nova, e quanto mais velho se tornava não conseguia perceber por que essa malta as tinha, ou por que ele próprio as tivera. Duma coisa ele tinha a certeza, achava Lia bonita enquanto ele se ia transformando numa aberração. - O carteiro passou e entreguei-lhe o envelope com a sua história. Espero que a revista a aceite, o senhor escreve muitíssimo bem. - perante este elogio não pôde ele conter uma gargalhada, que, logo a seguir, puxar-lhe-ia uma tosse
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de arrancar os alvéolos dos pulmões. A rapariga, por sua vez, deu três passas no cigarro com extrema rapidez. - Ora, minha cara, enquanto não conceber uma análise crítica das minhas escritas nunca me poderei saber como posicionar entre o fracasso e a genialidade. - Mas é a verdade. - A verdade é superficial, ao contrário duma boa mentira. - Como queira. António continuou a observar a prostituta, enquanto esta conservava igualmente o pensamento vazio mas de olhar preso
nos
azulejos
brancos
da
parede.
Ambos
permaneceram calados até terminarem o copo de vinho e o cigarro. - A cama está feita. - Vamos, então, querida. Ajude-me só a levantar. - adorava frases com duplo sentido. A rapariga destapou o ralo da banheira. Depois, assentou uma mão atrás do ombro dele, mas não necessitou esforçarse pois ergueu-se sozinho, graças a Deus ainda conservava as suas forças e equilíbrio, a mão funcionara apenas como placebo. Tirou uma toalha do cabide, havia várias de cores diferentes mas escolheu-a à sorte, secou-se, e, terminando a sequência de processos que constituem o ato maior de tomar banho, estendeu-a na porta, o calor era tanto que não valia a pena instalá-la num cordel ao sol. Da casa-de-banho António seguiu Lia até ao quarto, sempre de mão dada e
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com cuidado para que não lhe enfiasse um salto num dedo do pé. Ao abeirar-se da cama reparou como o coração bombeava aos seus ouvidos, o sangue corria-lhe tão depressa que lhe levantava o tímpano, de modo que não precisava de estetoscópio para se auscultar. Não precisava de ser médico para perceber que esse seu órgão não operava nas condições ideais, de tanto bater podia despedaçar-se. Aliás, os ruídos que lhe chegavam aos ouvidos que as suas válvulas produziam ao abrir e fechar atrofiavam-lhe os nervos. Não é suposto ninguém ouvir os seus barulhos internos, a não ser, está claro, os de intestinos. Não comunicou à rapariga a sua aflição, até porque aquelas arritmias revelavam-se sempre inofensivas, mas talvez já se tivesse apercebido das suas mãos trémulas. Logo se atirou para a cama de barriga para cima na ilusão de que se curasse. O tímpano pareceu-lhe menos nervoso, contudo o alívio
de
pressão
nessa
região
aconteceu
com
a
consequência de a sua nuca também começar a palpitar. Jogou-lhe a mão mas não sentiu nada, o que o fez concluir que era imaginação sua, que por outra razão que não cardíaca se achava com uma sensibilidade aumentada. Pelo menos, era disso que se queria convencer, e tanto assim foi que quando Lia começou a roçar-se nele essa sua preocupação caiu por terra. Até na cama, de cócoras sobre a bacia dele, a miúda não se dignava a retirar os malditos sapatos de salto alto, que
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apesar de não fazerem ruído ali eram capazes de perfurar os lençóis e o colchão, ou, lá está, de se enfiarem nas suas pernas. Tratavam-se, de facto, de objetos que, ainda não sendo dotados de habilidade mortal imediata, poderiam ser considerados como arma branca. De qualquer das formas, António sossegou-se o suficiente para cerrar os olhos, poisar as suas mãos sobre a anca da prostituta, intercalando entre umas festas nas pernas ou um aperto nos seus seios, e sentir o calor interno dela cobrindo-o. Além disso, e voltando ainda aos saltos altos, gostava de pensar neles como uma marca da exclusividade dos seus serviços, sendo essa outra razão para não lhos poder descalçar. Sem aviso, uma dor grotesca comprimiu-lhe o centro do peito, contorceu-se por não estar à espera, e, por instinto, principiou-se a tossir com aflição na tentativa de a expulsar através do trato respiratório. Mas, como seria óbvio, as suas primeiras suspeitas confirmaram-se, a dor não podia ser vomitada, seria simpático demais por parte do seu corpo permiti-lo, até porque prejudicaria um súbito ardor que se desenvolveu instaneamente garganta acima. A
rapariga
parou
os
seus
movimentos
rítmicos,
mas
conservou-se sobre ele. - Continua. - ainda não haviam razões para ela parar, era impossível António se cansar como quando tinha dezassete anos, a não ser que a dor lhe tivesse ocultado o prazer. Lia encostou a mão à sua testa, em jeito de diagnóstico, porém, António não se achou na condição de protestar ou
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exigir a sua escravidão sexual ao perceber a sua expressão de preocupação. - Está muito quente, senhor L. E o seu coração bate depressa. - como adivinhava a pergunta que ela lhe faria a seguir: Sente-se bem? - mas ele próprio não lhe sabia o que responder, à parte da dor, sim, encontrava-se de cabeça lúcida, de forma que a pergunta correta deveria ter sido «Vai morrer?». - Vou. - disse, corrigindo-a através da resposta. - Vem aí o segundo, a este não me escapo. - Não diz coisa com coisa. Quer um copo de água? - Não tenho sede. Continue mas é a mexer-se que é para isso que lhe pago, minha querida. E depressa que não tenho a vida toda. - consciencializou-se que estas seriam as últimas palavras que conseguiria dizer sem que a dor lhe tremesse a voz. Momento inoportuno, vieram-lhe à cabeça as palavras do médico, «o seu coração está como um equilibrista na corda bamba», mas, pela primeira vez, não fez juízo delas. Se antes não as respeitava, o que não significava que não acreditava que constituíssem verdade, agora sentia-se despreocupado delas por completo, eram-lhe indiferentes. A sua cabeça iase aligeirando, começava a cerrar-se uma névoa em torno dos seus olhos mesmo conservando-os fechados, mas, apesar disso, conseguia manter o foco no objetivo de se abrir no interior de Lia antes que a dor de peito se lhe tornasse insuportável. Para além de desprezar a verdade medicinal, a
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eloquência com que a cuspia passou a irritá-lo tanto como a má educação dos filhos dos outros, aliás via agora quão grande era a estupidez de se ter deixado afetar por ela, nunca valera a pena. Era estranho pensar assim, eram assuntos que iam contra a sua maneira de ser, mas que agora se tornavam banais, neutros, sem importância. Seria a morte que, depois de se aproximar, lhe lançava o feitiço da plenitude para lubrificar a foice? Tudo levava a crer que sim, apesar de estes lhe serem terrenos desconhecidos, e que ia pisando sozinho. É que tampouco já não lhe apetecia ouvir o trompete de Miles Davis, a que volume fosse, descansados poderiam estar os vizinhos, ou menos ainda acreditava nos efeitos revigorantes dum banho de água fria. De forma igual se estava nas tintas para receber a recusa da revista quanto ao seu texto, daí a quinze dias o carteiro deixaria uma carta na
caixa
do
correio
dizendo
qualquer
coisa
como
«reconhecemos os elementos narrativos presentes na sua história, contudo não estamos, de momento, interessados na sua publicação». O discurso era sempre o mesmo há anos, bastariam ter-lhe dito quando novo que nunca ultrapassaria a mediocridade, e teria desistido logo aí, mas as pessoas nunca haviam sido francas consigo. Tê-lo-iam dado esse bom conselho, que não tinha talento, e, não valendo a pena, logo dedicar-se-ia a outra coisa. Pior que descobri-la tarde de mais só morrer antes disso. Mas, já não havia nada que fazer quanto a isso, tanto lhe dava. E, quanto ao vinho, se agora o bebesse saber-lhe-ia a água. Idêntico fenómeno aconteceria
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ao ouvir os saltos altos, escutá-los-ia como a uma criança caminhando em bicos de pés. Era
assim
que,
acontecimentos
negligenciando e
preocupações
a que
sua a
vida
e
os
compunham,
António corria para o orgasmo, levando ainda uma ligeira vantagem sobre a dor. Quando, por fim, explodiu de prazer, tornando-se imediatamente também indiferente a este, outra dor maior atravessou-lhe o peito até à coluna, e, não a conseguindo suportar, desprezou também a necessidade de respirar. A morte, que até então, apesar de o obcecar (como a todos os homens), incentivava-o a incoformar-se perante o mundo era a mesma que agora o injetava de ataraxia para com este. Destarte António L. ia sendo transportado com tranquilidade
da
incoformidade
à
indiferença,
ou,
escolhendo as palavras certas, da vida para a morte.
MIGUEL VIEGAS LEAL tem 21 anos, é de Loulé, Algarve. Começou a
escrever aos 14 anos, logo que compreendeu que através da escrita podia aceder mundos que de outra forma seriam impossíveis de visitar. Tem contos publicados em vários sites na internet, e tem livros infantis em fase de edição nos EUA, em português e inglês. Obteve uma menção honrosa no II Concurso Literário Francisco Guerreiro, na vertente de prosa, com o conto "a menina que queria desafinar". Espera aprender a escrever cada vez melhor. | MIGUEL.VIEGAS.LEAL@GMAIL.COM
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POEMA CONTEMPLATIVO
PAULO ARCE| Campinas, SP.
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Contemplar boquiaberto o nada E nada oferecer ao mundo: Esse é um dia normal Contemplar o mundo com a boca aberta Uma coisa qualquer, sem significado algum E não oferecer resistência, pura inércia Contemplar o mundo com os dentes à mostra, língua caída E os olhos fixos, meio sem vida Meio sem reação, com uma mansidão bovina Contemplar a vida, dia após dia Sem nada complementar Atividade meramente contemplativa Contemplo minha existência Sem movimento Envelheço
PAULO ARCE é professor universitário e funcionário público. Escreve poesias e contos para rebater a monotonia sufocante dos dias. Vencedor do "I Concurso Literário Era uma vez" (2015) da IMA (Informática dos Municípios Associados de Campinas), na categoria de contos. Teve suas poesias "um cachorro", "terceto das onze e meia" e "os troféus" publicadas na Revista Subversa.
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AGONIAS PEDRO DE LUCENA |Recife, PE.
GIOVANESANTOS02@GMAIL.COM
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Das agonias que me invadem o ser Muitas são as que me não deixam ser Seguro de mim mesmo, um ser em desespero, Uma estranha criatura a vagar. As angústias que me inundam Me levam para o alto mar Onde as águas são mais turvas e profundas, Onde perdido não sei navegar. Onde estás ó alma minha? Sai desse calabouço de solidão, Sai dessa agonia de escravidão. Liberta-te dessa gota de ilusão.
PEDRO DE LUCENA tem 18 anos, é autista e se comunica digitando em um teclado. Pedro cursa o ensino médio no Colégio Grande Passo, em Recife. | CARLOSLUCENA2000@YAHOO.COM
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CASAMENTO SABRINA DALBELO | Bento Gonçalves, RS.
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cativo animal cativo
SABRINA DALBELO é escritora de tudo um pouco. Mantém as páginas do facebook “Se Tem Nome Existe” e “Pensamento Sem Moldura”, onde posta comumente on-line, sem revisão, logo que vem aquela coisa, tipo inspiração. | SABRINADALBELO@HOTMAIL.COM
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A CAÇADA SUELIO GERALDO PEREIRA| Formiga, MG.
Despontando na manhã solante como sendo em via de encontro na
planície
chapadão,
junto
terra
rachada,
senão
canicular,
vegetação além espinhenta rasteira, ao um pampa meu irmão e eu no tordilho.
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O animal matreiro sumiu o rastro na caatinga; várias entre vezes desarte campanha tínhamos que apear para descobrir caso não era engano o trilheiro. Perdendo-o _ de si soltava perseguidor, a conter abobalhamento_, com a esperteza de nunca ser situada embrenhou nos meandros do sertão, farejava o seguro em lugar perpassando difíceis caminhos. Sobre no céu, o calor aumentante, Sol seguia seu rumo e nós remoíamos todavia porventura chão poeirento a tudo conquanto é direção. Batida firme obtemperar ensejo suave os cavalos repisavam, faculdade negativo espantar feroz bicho atocaiado dentre que um sem folhas do mato: ramagens articulando só gravetos. Sorte pulo da surpresa, bobear possibilidade em longe, cair suso do felino tinha a hora certa. Chiando fim amolecer o cisco da goela, garganta dura exemplo pedia água _da botija melhor cabaça_ ela caiu oferecendo fria mesmo boca rachada. Secura boa é a matada logo no término. Saliva com terra vivente posto desta região gostam sentir; força lhe que dá em valorar mais preciosidade contida nas cacimbas. Seguindo fomos, à muito longe tal não dispor ido, na noite desta passada atacou o rebanho e assim ao menos gorda até barriga pesa; devagar teria mais bem andadura tão sua, descansando, resfolega outrossim preguiça faminta de saciada. Num máximo aliviar carga grande urina, libera face marca localidade, pista certa nem demorar deixava tempo. Bucho
enche
na
carne
seca
com
farinha
e
rapadura
ensombrando umbuzeiro; o calor esparramava no distante da vista em que ondulante terra e azul do acima eminente provida sucessão atmosférica vapores confundavam. Sono dando para sim peso nas pálpebras amolengadas de cansaço_ firme tanto desejar ao chão nas marcas.
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Meu irmão ao lado e eu no tronco dormimos encostados, rápida vitalidade afim do repouso digestivo a continuar seria bem-vindo. Barulho assusta, está nota próximo a perseguida; estribos soando causa anexa presença em relincho dos cavalos estacando pata, de prumo posição. Divide ratifica modo fizemos a cercar: um para o lado outro por outro,
torna poeira indubitável do solo vento aos cascos levanta.
Amaçarocado agora vejo de espinhos pelagem no tufo capim do animal; espingarda mão canhestra apruma seja pontaria, atiro?_! alvo mas difuso oculta movendo bala inclusive erra condução. Som voa longe ecoando dimensiona paragem tamanho vasto. Escapole divisa exceção sabedora modesto mundo nativa, igual cor entranhando ambienta matizes de pelos. Porém é acerto gemidos se escuta, raspão em parte tenha acometido projétil por largado correr do animalejo efeito principalmente acuado. Obstante nada lugar sofrimento, cujo vou cautelando se se objeto demanda em acossar me compita. Por detrás à moita robusta estruturante em cipó com entrelaço formidáveis estava ele: emborcava vermelho nesta mão no peito baleado, crime sob igualmente segurança do sangue a sumo nosso empapando, pó, torrão duro, desiste todo sair rápido. Sinal dado haja vista por ora tinha sequer onça, o que vi lado inegável esconder era razão infeliz irmão para me assustar.
SUELIO GERALDO PEREIRA é g raduado em Letras pela UNIP, Universidade Paulista, e especializado pela AVM Faculdade Integrada em Português Jurídico. Já lecionou português e espanhol em escolas estaduais. | SUELIOP03@HOTMAIL.COM
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“cada um de nós carrega no bolso uma narrativa visual particular” Entrevista com Marcelo Leães
Conversamos com o psicanalista e fotógrafo Marcelo Leães (Porto Alegre, 1981), autor do ensaio Onde não pensamos, do qual algumas imagens foram selecionadas para ilustrar o presente número. Entre outras questões, Marcelo falou sobre o papel da imagem na construção da subjetividade e seus movimentos na interação cultural e em uma sessão de análise. Sua experiência clínica articulada ao interesse pela fotografia permite uma pesquisa profunda sobre estes elementos, reflexões que apresenta com frequência em artigos e eventos. Marcelo é membro efetivo do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre; sua publicação mais
recente foi o capítulo A Vida Subjetiva do Objeto Artístico, que integra o livro Interlocuções na fronteira entre psicanálise e arte (Ed. Artes e Ecos, 2017).
SUBVERSA | Indo direto ao ponto: É possível fotografar o inconsciente? MARCELO
|
pretensão
de
através
da
Nunca
tive
representar, fotografia,
o
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inconsciente. O movimento surrealista com as pinturas de Dalì e o filme O anjo exterminador de Buñuel, por exemplo, representam bem
essa
intenção
criando
obras
de
grande
beleza
e
criatividade. Uso a fotografia para produzir reflexão no espectador e me interessa muito o engajamento e a relação de cada pessoa com a imagem. Quando fotografo, busco sempre algo que gere inquietude seja pela beleza ou pela estranheza, aversão... penso a imagem, sobretudo, como um objeto de cuidado, um objeto social. Afinal, cada pessoa mantém uma relação muito particular com as imagens. Na medida em que possa produzir participação e reflexão naquele que se depara com ela, torna-se preciosa e um objeto, vamos dizer, da/para a cultura que é onde as formações do inconsciente se fazem presentes. A fotografia e sua relação com o inconsciente pode ser pensada como uma armadilha para o olhar na medida em que uma narrativa passa a ser criada a partir do envolvimento das pessoas com a composição da imagem... aí que vemos a polifonia das subjetividades. De certa forma, cada fotografia tem, acho que inerente a ela, a capacidade de gerar uma ficção daquilo que se vê.
SUBVERSA | Como as imagens se movimentam numa sessão de análise? As técnicas, o analisando, as cores que surgem, o foco... Tudo isso pode ser comparado ao processo fotográfico, na sua opinião? MARCELO | As imagens também estão presentes. Nossa vida é, primordialmente visual: narramos situações, lembranças, fazemos
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planos, narramos filmes, vivências... os sonhos também têm uma predominância visual e, antes de adquirirmos a fala, estávamos imersos em um mundo de imagens de onde o sujeito emerge na linguagem. A narrativa do sonho, o que se produz de texto a partir dele, por exemplo, já é um tempo outro daquele que quando sonhamos e que é um trabalho essencialmente em imagens. Não à toa, muitas vezes, o esquecemos. Mas sim, a imagem é importante e bem-vinda numa análise ou em nosso cotidiano. Freud fez 2 ou 3 analogias do inconsciente diretamente com a fotografia ou o processo fotográfico. Numa delas, compara o modo como selecionamos nossas lembranças ao negativo de um filme analógico do qual selecionamos um frame para ampliar (ou tornar consciente) e aquele negativo não-selecionado é o que fica relegado ao esquecimento porém, ainda, com potencial de ser acessado. Essa é uma noção tópica do inconsciente de Freud (consciente, pré-consciente e inconsciente) e do processo de esquecimento e rememoração. Daí podemos propor que cada ampliação - ou cada rememoração - sempre terá uma particularidade, pequenas nuances, cada vez que for retomada. Lacan vai contribuir com a idéia de que o inconsciente se estrutura como uma linguagem e no começo da sua teorização nos brinda com a idéia de seu esquema ótico, que não é fotográfico, mas é imagético. Propõe pensar a importância da perspectiva em que se olha quando unificamos uma imagem de nós mesmos e inscrevemos uma história em nossas vidas. Ele atribui à imagem um papel fundador na constituição do Eu e na matriz simbólica do sujeito. A fotografia, como invenção do ser humano industrial, permite várias analogias tanto no seu processo (revelação, impressão,
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estudos da luz, contrastes etc) como no contato com o público... bem, como toda analogia, tem inúmeras limitações porque nunca irá ser precisamente o que se quer designar. Mas é, no entanto, uma tentativa e, por isso, bem válida. SUBVERSA | Na atualidade, estamos inclinados a fotografar tudo o tempo todo. O que você acha disso no que diz respeito à nossa interação efetiva com a realidade externa? MARCELO | É uma questão inquietante e atual. A fotografia é uma forma de nos subjetivarmos, isso é algo presente e inegável. A pergunta que convido é: o que fazemos com isso? Acredito que cada um de nós carrega no bolso uma narrativa visual particular e podemos até tirar proveito. Existe um escrito de Ludwig Börne, que sugere em A Arte de se tornar um escritor original em três dias, que se tome nota de tudo que passar pela cabeça, pensamentos, opiniões, impressões. Três dias depois volte-se ao que produziu e ficarás espantado com a quantidade de novos e inauditos pensamentos que teve. Quem sabe o fato de fotografarmos tudo o tempo todo se assemelha a uma criança que brinca criando um mundo de fantasia que ela leva muito a sério - e isso é fundamental -, se emociona com aquilo enquanto mantém uma separação nítida entre o que fotografa e a realidade. No entanto, penso que acabamos perdendo um pouco de alteridade, de contato com o outro enquanto buscamos através da filmagem ou da fotografia incessante algum tipo de experiência que não estaria
localizado
especificamente
naquele
tempo-espaço,
naquele evento, show, jantar, etc mas em um outro lugar imaginário de nossas cabeças. Quiçás, se cada um consultar o que leva consigo em seu bolso poderá encontrar um ótimo
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material de análise. Como ouvi uma frase de um fotógrafo outra vez, a fotografia é um espelho dotado de memória, mas incapaz de pensar. Esse ato de pensamento, cabe a nós faze-lo. SUBVERSA | Também estamos nos tornando hiper-expositores de nossa própria imagem, cercados de ferramentas que nos permitem mostrar não só como nos vemos, mas como nos sentimos. O que você acha disso?
Penso que a imagem sempre carrega encarnada consigo algo que é do seu autor. A hiperexposição é algo novo e penso que tenhas
denominado
hiper(exposição)
se
compararmos
a
frequência que expunhamos nossa imagem antes e depois da revolução digital - perfis digitais, timelines, transmissões ao vivo, etc. Ainda assim, a atitude de hiperexpor-se, nesse sentido, é uma decisão singular e motivada por diversos fatores e, por isso, descarta a possibilidade de uma homogeneização dessa prática. Nos subjetivamos a partir dos meios digitais além de trazer consigo uma possibilidade de divulgação impensável em outras épocas. Mas que relação estabelecemos com essa ferramenta? esse é, pra mim, um ponto importante: se se torna um ponto de apoio da vida emocional das pessoas, as mídias digitais, por serem predominantemente
impessoais,
tornam-se
um
ponto
frágil
principalmente porque o autor busca moldar uma narrativa de si para veicular aquilo que idealmente gostaria de ser. O grau de engajamento nessa tarefa é o que causa espanto nas pessoas. Uma brincadeira ilustra bem isso: na década de 80 um analisante entrava na sala do seu analista e, tomado por uma aura paranóica dizia: doutor, tem alguém me seguindo!!! ao passo que
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em 2017, um analisante se recosta no divã e, depressivamente, dispara doutor, como?! não tem ninguém me seguindo!!! O viés que me interessa salientar é que a fotografia das mídias digitais tem um endereçamento de reconhecimento da própria imagem, de um valor de algo que não estava no momento da experiência mas que se faz presente pelo fato de possuirmos aquele instante e dividi-lo instantaneamente com os demais. Essa é uma leitura possível...
a
fotografia
tem
uma
escamoteação
quase
imperceptível que, se analisarmos de forma mais detida, se faz presente: aproveitando a possibilidade de analogia da lente fotográfica (ótica) com o olho humano perguntamos: quem me olha na hiperexposição que faço de minha própria imagem? No ato do selfie, vale retomar a indagação: quem me olha no meu selfie? Tem algo fundamental na questão da visão sobre a importância, no processo de desenvolvimento de todos nós seres humanos, que é o fato de fazer-se olhar, um movimento de apelo de se fazer reconhecido pelos outros, pela cultura. Será isto que está posto em xeque na hiperexposição da própria imagem? de fisgar o gozo dos outros sobre nossa própria imagem? De qualquer forma, acho fascinante que toda a produção humana, seja ela científica, artística e até mesmo religiosa, se apóia numa idéia de uma falta fundamental a todos nós. É a partir desse vazio fundamental, desse buraco, que o ser humano, em sua singularidade, é capaz de produzir as mais belas criações estéticas e as piores aberrações éticas.
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Edição e Revisão Morgana Rech e Tânia Ardito MORGANA RECH & TÂNIA ARDITO CONTATO.SUBVERSA@GMAIL.COM
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