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EDIÇÃO 29 • JUNHO 2017 • ROGÉRIO FASANO
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ROGÉRIO FASANO Sócio do Grupo Fasano
MEIO BRASILEIRO, MEZZO ITALIANO defCAPA29.indd 1
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EDITORIAL D
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randes cineastas lançaram filmes em 1967: Charles Chaplin (A Condessa de Hong Kong), Orson Welles (Falstaff), Howard Hawks (El Dorado) e John Huston (Os Pecados de Todos Nós) são alguns exemplos. Mas a turma do Cine Paissandu, no Rio de Janeiro, deixou de lado os medalhões e escolheu Bonnie & Clyde, de Arthur Penn, e The Graduate, de Mike Nichols. Um dos frequentadores do Paissandu era o jornalista Roberto Muggiati, que conta nesta edição como esses dois filmes de diretores pouco conhecidos revolucionaram Hollywood – e a própria história do cinema. Pouca gente sabe, mas o restaurateur Rogério Fasano, nossa capa, queria ser cineasta. Adolescente, foi morar em Londres, onde pretendia estudar cinema. Um revés nos negócios da família o trouxe de volta a São Paulo – onde pouco depois abriu o seu primeiro restaurante. Deu tudo errado. Nem por isso Rogério desistiu, como revela na corajosa e divertida entrevista a J.A. Dias Lopes e Walterson Sardenberg Sº. A segunda casa de Rogério, em compensação, tornou-se um sucesso. Abriu caminho para um portfólio que reúne hoje 15 restaurantes e quatro hotéis. E, até 2019, outros quatro hotéis com a grife Fasano devem ser inaugurados. Três no Brasil e um em Miami – concretizando o velho sonho de Rogério de dar um zoom no mercado americano. Alguém aí falou em crise? Hotéis cinco estrelas, restaurantes de primeiríssima e bebidas evocam grandes comemorações. Nem podia ser diferente nesta edição que celebra os sete anos de THE PRESIDENT. Assim, Silvana Assumpção escreveu sobre um dos maiores festeiros de São Paulo, o perfumista Aparício Basílio da Silva. Ronaldo Bressane perfilou a animada Beyoncé. Silvio Lancellotti homenageou as deliciosas vieiras. Fechando o aniversário com chave de ouro, você vai conhecer ainda Michel Friou. Ele é o enólogo francês responsável por um dos melhores – se não o melhor – vinhos chilenos, o Almaviva. Cheers!
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ANDRÉ CHERON e FERNANDO PAIVA Publishers
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EXPEDIENTE
THE PRESIDENT PUBLICAÇÃO TRIMESTRAL DA CUSTOM EDITORA EDIÇÃO 29
PUBLISHERS André Cheron e Fernando Paiva
REDAÇÃO DIRETOR EDITORIAL Fernando Paiva fernandopaiva@customeditora.com.br DIRETOR EDITORIAL ADJUNTO Mario Ciccone mario@customeditora.com.br REDATOR-CHEFE Walterson Sardenberg So berg@customeditora.com.br ARTE EDITOR Guilherme Freitas guilhermefreitas@customeditora.com.br ASSISTENTE Raphael Alves raphaelalves@customeditora.com.br PREPRESS Daniel Vasques danielvasques@customeditora.com.br PROJETO GRÁFICO Alessandro Meiguins e Ken Tanaka COLABORARAM NESTE NÚMERO TEXTO André Borges Lopes, J.A. Dias Lopes, Luciana Lancellotti, Luiz Guerrero, Marcos Diego Nogueira, Marcio Gaspar, Marcio Scavone, Milly Lacombe, Raphael Calles, Roberto Muggiati, Ronaldo Bressane, Rodrigo Cardoso, Sergio Crusco, Silvana Assumpção, Silvio Lancellotti e Willians Barros FOTOGRAFIA Angelo Pastorello, Marcio Scavone Ricardo Rollo, Richard Avedon e Roberto Torrubia TRATAMENTO DE IMAGENS Felipe Batistela ILUSTRAÇÃO Raphael Alves MAPA Roberto Torrubia REVISÃO Goretti Tenorio CAPA Rogério Fasano, em retrato cedido pelo Grupo Fasano
THE PRESIDENT facebook.com/revistathepresident @revistathepresident www.customeditora.com.br
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PUBLICIDADE DIRETOR EXECUTIVO André Cheron andrecheron@customeditora.com.br DIRETOR COMERCIAL Oswaldo Otero Lara Filho (Buga) oswaldolara@customeditora.com.br GERENTE DE PUBLICIDADE E NOVOS NEGÓCIOS Alessandra Calissi alessandra@customeditora.com.br EXECUTIVOS DE NEGÓCIOS Northon Blair northonblair@customeditora.com.br Marcia Gomes marciagomes@customeditora.com.br ADMINISTRATIVO/FINANCEIRO ANALISTA FINANCEIRA Carina Rodarte carina@customeditora.com.br ASSISTENTE Alessandro Ceron alessandroceron@customeditora.com.br REPRESENTANTES REGIONAIS GRP – Grupo de Representação Publicitária PR – TEL. (41) 3023-8238 SC/RS – TEL. (41) 3026-7451 adalberto@grpmidia.com.br CIN – Centro de Ideias e Negócios DF/RJ – TEL. (61) 3034-3704 / (61) 3034-3038 paulo.cin@centrodeideiasenegocios.com.br Tiragem desta edição: 12.000 exemplares CTP, impressão e acabamento: Bandeirantes Soluções Gráficas Custom Editora Ltda. Av. Nove de Julho, 5.593, 9º andar – Jardim Paulista São Paulo (SP) – CEP 01407-200 Tel. (11) 3708-9702 ATENDIMENTO AO LEITOR atendimentoaoleitor@customeditora.com.br Tel. (11) 3708-9702
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LUIZ SANDLER | +55 11 3042 4853 ou +1 912 480 0709 | luiz.sandler@gulfstream.com *O alcance mostrado é baseado no alcance teórico NBAA IFR em Mach 0,85 com oito passageiros e quatro tripulantes. O alcance real será afetado por controle de tráfego aéro, condições meteorológicas, velocidade de operação, opções de equipamentos e outros fatores.
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44 CAPA
104 ROTEIRO 4x4
22 AUDIÇÃO
61 BLACK BOOK
112 VELOCIDADE
26 OLFATO
74 PERFIL
118 GARAGEM
30 PALADAR
82 MEMÓRIA
124 MULHER
34 TATO
90 CULT
132 LUXO
38 ADEGA
96 VENTO
138 THE PRESIDENT
Liberté, Égalité, Beyoncé. Por que a cantora americana chegou a um patamar invejável
Samba com atitude de rock. Há 45 anos, os Novos Baianos lançavam Acabou Chorare
Aparício criou a primeira grife de perfumaria fina no Brasil. As demais vieram no seu rastro
Muito além da alta gastronomia, as vieiras são até mesmo o símbolo do Caminho de Santiago
Uma seleção dos campeões da falta de tato, gente capaz de emendar uma gafe na outra
Almaviva: um grande vinho chileno com a chancela da Casa Rothschild
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Crise, que crise? Rogério Fasano vai inaugurar três hotéis no Brasil e um em Miami
O novo CEO da Montblanc, vinícola no Uruguai e empreendimento Brookfield
Um beatle e todos os stones pediram cantando liberdade para Angela Davis
Uma faceta pouco comentada do grande fotógrafo Richard Avedon: as capas de discos
Em 1967, dois filmes mudavam a história do cinema. Hollywood nunca mais seria a mesma
De Walt Disney a Steve Jobs, os muito ricos preferem os jatos executivos da Gulfstream
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SUMÁRIO
Uma viagem redonda pela Canastra, terra de queijos tão especiais quanto ela
Já está combinado: daqui a cinco anos você poderá comprar o seu carro autônomo
SUVs superfortes e luxuosas da Lexus, Hyundai, Volvo e Volkswagen
A praia da encantadora Renata Bardazzi, bailarina do Balé da Cidade de São Paulo
O Hotel Ritz, de Paris, é tão elegante que dele derivou um adjetivo: ritzy
Há 75 anos, preso, Gandhi começava a libertar a Índia do jugo britânico
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FOTO MARCELO NADDEO
COLABORADORES
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CAPA
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AUDIÇÃO
J.A. DIAS LOPES
RONALDO BRESSANE
MARCIO GASPAR
No recém-lançado livro A História É
Autor dos poemas de Metafísica Prática
Ele foi assessor de imprensa e produtor
Amarela, com as 50 melhores entrevistas
(Editora Oito e Meio) e do romance
em grandes gravadoras. Depois, repórter
de Veja, ele emplacou três: Maradona,
Mnemomáquina (Editora Demônio
de cultura em vários veículos. Também
Lech Walesa e Pavarotti. Fundador da
Negro), este paulistano safra 1970 é
trabalhou em comunicação corporativa.
revista, onde trabalhou 23 anos, tem
escritor, jornalista, professor de escrita
Escreve nesta edição sobre o disco
uma coluna no site da publicação. Com
criativa – e súdito fiel da multiartista
Acabou Chorare, que, aos 14 anos, mudou
Walterson Sardenberg Sº, entrevistou
americana Beyoncé, a quem, extasiado,
sua vida: “Eu achava que música brasileira
Rogério Fasano para esta edição.
perfilou para este número.
era coisa de velho e careta”.
OLFATO
PALADAR
TATO
SILVANA ASSUMPÇÃO
SILVIO LANCELLOTTI
SERGIO CRUSCO
Adolescente, esta carioca há três décadas
O jornalismo gastronômico é só uma
Jornalista freelancer, colabora para a
radicada em São Paulo conviveu com o
das áreas de atuação deste arquiteto
empresa de geração de conteúdo
empresário Aparício Basílio da Silva, seu
de formação. Tanto na mídia impressa
Skyword e assina o blog dringue.com,
assunto nesta edição. “Sinto tristeza até
quanto na TV, foi de crítico de música
onde mistura coquetéis, cerveja e vinho
hoje ao lembrar sua morte estúpida.”
popular a comentarista de esportes,
com música, cinema e literatura. Dono
Versátil, Silvana escreve tanto sobre
entre outras funções. Neste número,
de um estilo refinado e bem-humorado,
economia quanto sobre cultura. Foi
escreve sobre vieiras. Ou, em português
recorreu a esses atributos no texto sobre
diretora de redação de THE PRESIDENT.
de Angra dos Reis, coquille Saint Jacques.
os gaffeurs, gente sem muito tato.
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COLABORADORES
PERFIL
VENTO
ROBERTO MUGGIATI
MILLY LACOMBE
ANDRÉ BORGES LOPES
Um dos grandes nomes da imprensa
Entre diversas outras atividades
Mineiro de Uberaba, é consultor de
cultural no país, este curitibano já morava
jornalísticas, a carioquíssima Maria Emília,
tecnologia gráfica e, nas horas vagas,
no Rio de Janeiro em 1967 quando foram
a Milly, foi comentarista de esportes
pesquisador da história da aviação.
lançados os filmes Bonnie & Clyde e The
da SporTV e colunista da revista TPM.
Jamais voou em um jato para executivos
Graduate, de que trata nesta edição. “Eu
Escreveu quatro livros, começando por
Gulfstream, seu tema neste número,
frequentava o Cine Paissandu, uma sala
Segredos de uma Lésbica para Homens
mas avisa: “Se quiserem me levar de
grande, ruidosa e vibrante no Flamengo”,
(Editora Jaboticaba). Lapidou o perfil de
graça com a família num desses, juro não
relembra. “Era o point carioca de cinema.”
Angela Davis para este número.
perguntar quem é o dono”.
ROTEIRO 4x4
MULHER
LUXO
MARCOS DIEGO NOGUEIRA
ANGELO PASTORELLO
WILLIANS BARROS
Se para muitos música, viagens, cervejas e
Clicar bailarinas, ou seja, profissionais
Conhecido entre os amigos como
esportes fazem parte dos momentos de
que dominam com segurança todos
“Homem Atlas”, o paulistano radicado
lazer, para este paulistano tais assuntos
os movimentos do corpo, é com ele
em Porto Alegre, colaborador de
significam, antes de tudo, produção
mesmo. “Já fiz vários ensaios com elas”,
National Geographic e Viagem e Turismo,
de conteúdo. Viajou para escrever a
entusiasma-se. Mas com Renata Bardazzi
adora perpetrar textos curiosos sobre
reportagem sobre a serra da Canastra.
foi especial. “Eu a fotografei na praia,
povos, culturas e lugares. Estreia na
Diz ele: “Fui atrás de queijos e acabei
onde as possibilidades de luz e texturas
revista contando andanças dos famosos
descobrindo um santuário maravilhoso.”
interagindo com ela eram muitas.”
pelo Hotel Ritz de Paris.
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CULT
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VISÃO
POR RONALDO BRESSANE
ABELHA-RAINHA Como Beyoncé se transformou numa das mulheres mais poderosas do mundo
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aqui a alguns milênios, quando os alienígenas estiverem decodificando a linguagem deixada por esta espécie, descobrirão que os termos “empoderamento” e “Beyoncé” cresceram na mesma época, na mesma proporção – e são fatos diretamente relacionados. Não deve ser coincidência o fato de o zeitgeist prófeminista ter Beyoncé Giselle KnowlesCarter como
Uma pose para as lentes de Ellen von Unwerth
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incontestável madre superiora. Desde a girl band Destiny’s Child, todos os seus álbuns trazem mensagens de empoderamento às mulheres bem como às minorias – e todas são escritas por ela especialmente para sua aveludada voz de afinadas quatro oitavas. Por trás da floresta de números que cerca a texana de 36 anos em qualquer reportagem, alguns fatos são incontestáveis: raras artistas estiveram no topo por tanto tempo – já são duas décadas de reinado –, venderam tantos discos e ganharam tanto dinheiro. Sua marca, segundo a revista Forbes, vale US$ 350 milhões. Ao lado do marido, o produtor musical Jay-Z – é preciso lembrar que dentro do capitalismo o casamento não passa de uma joint venture –, de quem Beyoncé está grávida de gêmeos, a pensão de dona Carter bate no bilhão de dólares. Tudo isso sem sequer mudar a cor do louríssimo cabelo. E sem deixar de ser negra, demasiadamente negra. Poder atrai poder. E a mensagem de Beyoncé, desde o início de sua
carreira, foi: yes we can. Não à toa Beyoncé e Jay-Z espelharam na música o companheirismo sexy, elegante e autoconfiante do casal Michelle e Barack Obama. Poucas artistas promoveram a mensagem de empoderamento feminino em toda a integridade de suas carreiras como Beyoncé. Em “Independent Women”, você ouve a jovem Bey e suas colegas do Destiny’s Child celebrando as mulheres que se viram sozinhas. Em “If I Were a Boy”, ela destaca as injustas duplas jornadas das mães solteiras. Na já clássica “Single Ladies”, Beyoncé manda a mulherada levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima depois de um pé na bunda. No hino “Run the World”, ela avisa quem está no comando. Em “Flawless”, ao lado da poderosa escritora Chimamanda Ngozi Adichie, avisa ao mundo que seu império não tem nada que ver com seu marido. Em seu sexto álbum, Lemonade, pede para as mulheres que experimentaram uma infidelidade se puxarem, reconhecerem a verdade
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No clipe de “Rocket”, do seu quinto álbum
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Material de promoção da gravadora Sony Music. Nem precisava
daquela dor única para reaparecer do outro lado mais forte do que antes. Uma bofetada com luva de boxe de pelica na fuça feia do maridão metido a espertinho. É um álbum que também fornece uma voz poderosa e jamais antes ouvida para mulheres negras que se sentem mal representadas na sociedade. Como qualquer outra mulher no mundo, a definição de empoderamento para
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Beyoncé cresceu junto com ela. A artista usa sua plataforma para promover igualidade, independência, ética, autoafirmação e compromisso. Todo millenial cresceu ouvindo a poderosa mensagem da cantora. Analisando a criação da marca Beyoncé, hoje é possível perceber que ela traçou uma estratégia e cumpriu-a à risca. Na girl band de onde despontou, se mostrou adepta da sororidade ao mesmo tempo que se impunha inquestionavelmente como líder. Ou seja, a garota legal que toda garota quer ser. Em seguida, foi conquistando o respeito da crítica não só como cantora mas também como atriz, seja fazendo comédias ao lado de Steve Martin e Eddie Murphy, seja interpretando papéis dramáticos como o de Diana
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De shortinho em Trancoso, na Bahia. Acima, nos tempos do álbum I Am... e, à direita, com roupa de sua grife
Ross em Dreamgirls, provando-se uma artista completa. Nossa diva Elza Soares não poderia estar mais certa quando disse, outro dia: “Vejo Beyoncé como uma filha”.
Não bastassem seu talento musical, seus clipes alucinantes e seu discurso feminista, ela ainda acha tempo para viver no cinema as cantoras Diana Ross e Etta James – e dar conta do recado
Black Power
Quando se associou a Jay-Z, vinda do pop, agregou ao seu pacote os valores do estrelato do hip hop – hoje o gênero musical mainstream por excelência. Shawn Corey Carter, o Jay-Z, além de ser um dos rappers que mais venderam discos na história, é também produtor musical e empresário de múltiplos interesses – gravadoras, roupas, bares, restaurantes, futebol, beisebol. Órfão e ex-traficante de crack, viu morrerem gigantes do rap como The Notorious B.I.G. em sua caminhada até o megaestrelato. Ou seja: é um herói da superação – este mito no storytelling de todo american hero. Se a infância confortável de Beyoncé, em uma família de classe média metodista, comandada por um
simpático vendedor de máquinas Xerox e uma cabeleireira, não lhe forneceu nenhum trauma (o pai a levou ao primeiro show, de Michael Jackson, que determinou sua vocação), o casamento com um instável e poderoso ex-bad boy pode somar este valor: o de mulher segura em face de qualquer adversidade. É inegável que não se vira diva sem ganhar o público gay. Que o digam Madonna, Lady Gaga e as nossas Anitta, Ivete Sangalo e Karol Conká. No álbum I Am... Sasha Fierce, Beyoncé deu vida a seu alter ego, com parcerias com Lady Gaga e canções que tocavam direto o coração de jovens gays. Ela conseguiu cortejar o público gay sem perder as fãs adolescentes e sua recém-
conquistada conexão com o hip hop. No final dos anos 2000, Beyoncé era já a maior estrela do planeta, com hinos como “Girls (Who Run the World)” e “Love on Top” e charmosos flertes com o hip hop como “Party”, além de parcerias com nomes como Jay-Z, Nicki Minaj e Kanye West. Sua consistência como atriz atingia um ponto alto com sua interpretação como Etta James no ótimo Cadillac Records, em que contracena com Adrien Brody. Em 2012, se tornou mãe de Blue Ivy. Mas aí quase no fim de 2013 Beyoncé lançou sem aviso um álbum com seu nome, que a colocou na posição de única artista a emplacar cinco discos seguidos como número 1 na Billboard, vendendo um milhão de cópias digitais
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Na caçamba, em 2006, e, dez anos depois, lançando o álbum Lemonade
Suas canções parecem muito pop. De fato, são. Mas podem tratar de depressão pós-parto, brutalidade policial, bulimia e desigualdade econômica em seis dias. O álbum de electro rhythm’n’blues também foi aclamado pela crítica, que ressaltou temas mais sombrios nunca antes explorados, como bulimia, depressão pós-parto, medos e inseguranças em relação ao casamento e à maternidade. Seu som também mudou: foram-se os refrões pegajosos e melodias pop e chegaram composições mais desafiadoras e próximas ao soul – sem tirar o pé dos sofisticados beats hip hop. Então, o sexto álbum, o politizado Lemonade, que poderia ter o explosivo potencial de afastar os fãs, na verdade acaba os reaproximando. Direitos civis
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são o centro do disco, fazendo com que Beyoncé agregue, aos valores do pop, do hip hop, da mãe, da pensadora e da libertária, agora também a força e a verdade de uma ativista política. A violência do furacão Katrina sobre a população afrodescendente de New Orleans, a brutalidade policial e desigualdade econômica da perspectiva dos negros são explícitas no belo clipe “Formation”. Como se toda essa estratégia de dominação mundial não bastasse, o tempo não parece mostrar as garras
sobre os 62 quilos contidos em 1,69 metro nas geniais medidas 89-66-99 – um mix de ascendência creole da Louisiana (africana, francesa e indígena), por parte de pai, com distantes ecos da Irlanda e da Espanha por parte de mãe. Várias vezes eleita a mulher mais sexy do planeta, a herdeira de Tina Turner descansa carregando pedra: o principal treinamento desta futura mãe de gêmeos são os extenuantes shows de até três horas, em média 150 por ano. Poder atrai poder – e não há nada mais afrodisíaco do que o poder. A persistir nesse ritmo incansável de produção, nos ajoelharemos ainda por muitos anos ante a aparição desta majestade. P
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AUDIÇÃO POR MARCIO GASPAR
SEMPRE TININDO E TRINCANDO
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oi em 1972, no período mais violento da ditadura, que surgiu Acabou Chorare, disco que trazia uma orgia de guitarras, pandeiros e cavaquinhos quando ainda ecoava a discussão sobre a presença de instrumentos elétricos em gêneros nacionais como o samba e o chorinho. Músicas como “Brasil Pandeiro” – que Assis Valente havia composto para Carmen Miranda em 1940 – e, principalmente, “Preta, Pretinha” viraram sucessos radiofônicos quase da noite para o dia. Essa foi só a primeira surpresa. Ato contínuo, o país começou a prestar mais atenção naquele bando de cabeludos que vivia em comunidade hippie e exibia uma alegria de viver para muitos incompatível com aqueles tempos escuros. Ao mesmo tempo, pululavam os boatos que ligavam os integrantes do grupo a experiências com drogas e a prática do amor livre. E mais: os Novos Baianos cantavam letras que para muita gente não faziam sentido. Os militares, por exemplo, não enxergavam ali “linguagem subversiva ou de mensagens subliminares contra a ordem e os bons costumes”, jargões utilizados pela Censura para banir boa parte da produção cultural da época. Se o regime não os levava a sério,
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o mesmo pode se dizer da intelligentsia, quebrada pelo exílio em terras estrangeiras ou atarantada em meio ao desânimo local. E também a crítica musical, mais preocupada com a recente volta de Caetano e Gil, o programa de TV Som Livre Exportação, de Elis e Ivan Lins, e o incensado LP Construção, lançado no ano anterior por Chico Buarque.
Assim, ninguém imaginaria que, quase meio século depois, Acabou Chorare estaria consolidado como um dos melhores e mais influentes discos da música brasileira em todos os tempos; e que os Novos Baianos remanescentes ainda estivessem lotando shows em todas as cidades por onde passam, apresentando basicamente aquele mesmo repertório para entusiasmadas gerações
de novos e velhos fãs. “A gente não falava diretamente de política, mas tinha aquele anarquismo baiano que deixava a ditadura com as calças na mão”, lembra hoje Paulinho Boca de Cantor, uma das vozes do grupo. “Não passava pela nossa cabeça pegar em armas ou entrar em algum partido, mas a gente tinha coragem e entusiasmo. Nossa música foi como uma manhã de sol naquela escuridão toda; isso a gente sabia.” De fato: o taciturno general Médici era o presidente do país em que qualquer grupo com mais de três pessoas reunidas ao ar livre era considerado suspeito; onde o principal jornal da maior cidade estranhamente publicava receitas de bolo em sua primeira página; e, na casa ao lado, o seu vizinho poderia estar observando você por trás das cortinas, enquanto havia uma boa chance de o motorista de táxi (ninguém usava o termo “taxista”) ser um informante da polícia. A juventude urbana se dividia, grosso modo, entre os politicamente engajados e a turma do desbunde, duas tribos que raramente se misturavam, mas que tinham em comum uma constante paranoia: afinal, a possibilidade de ser preso por portar um baseado ou um livro de Herbert Marcuse era a mesma. E poderia acontecer a qualquer momento.
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Por que Acabou Chorare, dos Novos Baianos, foi considerado o melhor disco brasileiro de todos os tempos
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AUDIÇÃO
Para surpresa geral, o disco tocou muito nas rádios e vendeu nada menos que 150 mil cópias. Mesmo assim, o grupo recebeu poucos convites para shows e o dinheiro minguava no sítio de Jacarepaguá Em 1970, os Novos Baianos haviam lançado seu primeiro LP, É Ferro na Boneca, que trazia basicamente a trilha que o grupo compusera para o filme Caveira, My Friend, de Álvaro Guimarães. “Inclusive, o nome Baby Consuelo veio daí: era uma personagem do filme”, conta Paulinho. Depois de É Ferro na Boneca, Galvão, Baby, Moraes Moreira, Paulinho Boca e Pepeu Gomes, que formavam o núcleo dos Novos Baianos, trocaram São Paulo pelo Rio, mas a situação financeira era péssima. Foram acolhidos por João Araújo, então diretor da gravadora Philips e que mais tarde ficaria famoso como o capo da Som Livre e pai de Cazuza. Além de levar os baianos para morar em sua casa, Araújo arranjou um contrato para eles na gravadora em que trabalhava. “Chegou a sair um compacto duplo”, conta Paulinho. “Mas a gente se desentendeu com o pessoal da Philips e o LP não deu certo.” Ao menos, o dinheiro do contrato serviu pra alugar um apartamento no bairro de Botafogo.
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É Ferro na Boneca trazia um som pop/rock, flertava com o tropicalismo e apresentava a poesia anárquica de Luiz Galvão, com metáforas de apologia às drogas e à transgressão. Mas faltava alguma coisa. Faltava uma luz. A luz de João Gilberto. Cantinho do Vovô
A história é conhecida: Galvão e o papa da bossa nova eram amigos desde a cidade natal de ambos (Juazeiro, na Bahia), se reencontraram no Rio de Janeiro e as dicas de João foram fundamentais em Acabou Chorare. “Ele tinha voltado do México e o Galvão resolveu ir atrás dele”, continua Paulinho. “Mas ficamos naquela coisa de todo mundo que tenta se encontrar com o João: vai e volta, marca, desmarca... Até que deu certo e ele passou a frequentar nossa casa.” Uma das histórias dessa relação entre João e os Novos Baianos acabou virando folclore: alta madrugada e João toca a campainha do apê do grupo; um deles vê de relance, pelo olho
mágico, um sujeito sério de terno e gravata. Apavora-se e dá o alarme: “Gente, sujou! A Polícia Federal tá aí na porta!”. Mas não foi bem assim, esclarece Paulinho. “A cena aconteceu, mas com uma outra pessoa”, ressalva. “A história foi contada com o João como personagem principal, mas isso não ocorreu e ele não gosta dessa coisa de ser confundido com ‘cana’.” Paulinho, no entanto, confirma que João aparecia de madrugada sem avisar. “Nossa grande diversão era ficar esperando ele chegar”, relembra. “Rolava uma brincadeira telepática entre nós, pra adivinhar a que horas ele estaria na porta do prédio.” João Gilberto recomendou a gravação de “Brasil Pandeiro” e inspirou a composição da faixa-título. Mas a maior parte das músicas já estava pronta havia bastante tempo. “O repertório já vinha daquele LP que não tinha dado certo na Philips”, conta Paulinho. “Mas com o João o repertório foi se modificando e se abrasileirando; foi sendo polido, burilado. O João falou que a gente já trazia uma bagagem de música brasileira e que essa bagagem tinha que ser mostrada, que tínhamos que olhar pra dentro de
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À esquerda, a turma no sítio. Acima, Pepeu, Galvão, Baby, Paulinho e Moraes Moreira hoje
nós mesmos. Ele nos botou no caminho de casa: ensaiava vocais com a gente e nos acompanhava com aquele violão maravilhoso. O Moraes pensou até em largar o violão, ao ouvir o João tocar na frente dele.” O apartamento ficou pequeno para o grupo, que já incluía também o baixista Dadi, o baterista Jorginho Gomes, os percussionistas Bola, Baixinho e Charles Negrita, o bailarino e “agitador” Gato Félix, sem falar dos agregados que sempre chegavam e, frequentemente, acabavam ficando. A trupe mudou-se para o sítio Cantinho do Vovô, em Jacarepaguá, e foi lá que um novo integrante, Paulo César Salomão, misto de técnico de som e Professor Pardal, turbinou as guitarras de Pepeu com capacitores removidos do aparelho de TV da casa e montou um estúdio no galinheiro do sítio. “O dia a dia no sítio era assim: café da manhã reforçado, baba (gíria baiana para as ‘peladas’ de futebol), ducha natural com banho coletivo e daí música, direto; a gente tocava todo dia e toda a vizinhança ouvia nosso ensaio”, rememora Paulinho. “A execução foi ficando primorosa
e, quando fomos gravar, estávamos tinindo. Acabou Chorare foi gravado em quatro canais no Estúdio Somil, num clima superdemocrático. Todo mundo no grupo tinha voz, todo mundo era igual.” Moda de viola
Para surpresa geral, Acabou Chorare, lançado pela Som Livre, foi um estrondoso sucesso, alcançando incríveis 150 mil cópias vendidas. Curioso ressaltar que sua faixa de maior êxito, “Preta Pretinha”, quase uma moda de viola interiorana que conta uma singela história de amor na ponte Rio-Niterói, pouco ou nada tem a ver, em termos de som e de temática, com o restante do LP ou com o que os Novos Baianos fariam depois. Mas, fato raro, quase todas as faixas de Acabou Chorare tocaram bastante nas rádios. Da delicada canção-título às explosões de alegria de “Tinindo Trincando” e “A Menina Dança”, da desavergonhada brasilidade resgatada em “Brasil Pandeiro” ao irresistível samba “Besta É Tu”. Como escreveu a jornalista Ana Maria Bahiana, “Acabou Chorare fez
mais pela saúde da música brasileira e do astral do país do que qualquer remédio político”. “A gente não tinha ideia de que aquele disco viraria essa coisa perene e nem mesmo imaginávamos que seria o sucesso que foi”, conta Paulinho. “Acabou Chorare rendeu dinheiro, mas não rolavam muitos shows, tinha muita gente morando no sítio e éramos mesmo esculhambados nesse sentido. Tinha um saco atrás da porta da cozinha onde botávamos toda a grana e nego pegava o que queria, quando precisasse. Teve lance de comprar camisa e chuteira de futebol pra todo mundo, ao mesmo tempo que não sobrava grana pra comer.” Se o dinheiro desapareceu com rapidez, o tempo fez com que o reconhecimento da excelência de Acabou Chorare só crescesse, chegando a ser eleito “o melhor da música brasileira em todos os tempos”, em votação realizada pela revista Rolling Stone no ano de 2007. Listas e eleições são sempre polêmicas, mas talvez o prêmio se justifique pela sua inusitada e original proposta de alegria em oposição à carranca dos militares; e pela definitiva derrubada da fronteira entre instrumentos acústicos e elétricos na música brasileira, provando que o samba, o baião e o chorinho também podem ter gosto e atitude de rock. E tem ainda a influência de Acabou Chorare, renovada década após década, de Marisa Monte a Tulipa Ruiz, da Orquestra Imperial a Céu. Enquanto continuam fazendo shows pelo país, os Novos Baianos planejam a gravação de um novo disco, com músicas inéditas. “O clima tá tão legal entre nós que, outro dia, a Baby falou que a gente devia voltar a morar juntos”, diverte-se Paulinho. Para os Novos Baianos, parece que o sonho não acabou. Ainda bem. P
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OLFATO POR SILVANA ASSUMPÇÃO
NA TRILHA DE APARÍCIO O perfume Rastro e seu criador se foram. Mas deixaram um legado de bom gosto inapagável
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oa quase uma heresia, para quem o conheceu ou ao menos faz ideia de quem foi este sofisticado empresário, artista plástico e figura destacada da alta sociedade paulistana, quando alguém não reconhece o nome Aparício Basílio da Silva. Pior ainda, quando só o conhece como a vítima de um bárbaro assassinato, que deixou seu corpo marcado pela tortura de 97 perfurações a tesoura e faca. Aparício morreu em outubro de 1992, mas até hoje, volta e meia, esse crime é relembrado como um dos mais chocantes já ocorridos em São Paulo. Ele faria 57 anos de idade em 12 de dezembro e sua superior elegância era, por assim dizer, um dogma, dada como certa e indiscutível pelas três décadas anteriores. Além de criador do que se tornaram dois ícones de bom gosto nos anos 1960 e 70, a boutique e a colônia Rastro – esta a primeira fragrância fina 100% brasileira –, ao morrer era presidente do Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo havia dez anos. Nascido em São Paulo numa família de classe média, filho mais velho do casal catarinense Antônio, corretor de imóveis, e Virgília, dona de casa, chegara a essa
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posição por sua cultura, decantado carisma e um talento que se manifestava em várias paixões: foi escultor, pintor, designer de objetos, de acessórios de couro e roupas femininas. Além da marca Rastro, era dono também da Faiança, de louças, e da loja Trama, de tecidos para decoração. Como artista plástico, um de seus trabalhos mais conhecidos foi uma série de esculturas e múltiplos inspirados em pacotes. Foi exibida pela primeira vez em Nova York. Também incursionou pelo teatro, produzindo em 1978 a peça Chuva, de Somerset Maugham, protagonizada por Consuelo Leandro, Sérgio Mamberti e Raul Cortez; e pela literatura, com livros misturando desenhos e poesia na forma de legendas. O primeiro, escrito em francês, Mois, Tout Nu, foi editado em 1968 no Rio de Janeiro pelo Atelier de Arte, com introdução de Vinicius de Moraes e tiragem numerada; o segundo, de 1976, editado também no Rio pela Rocco e escrito em inglês – A Romantic Is Born –, teve apresentações de
Carlos Drummond de Andrade e Vinicius. Em 1989, publicou ainda, pela Paz e Terra, um livro de crônicas, Escritos Visantes. Tudo isso a par de uma trajetória empresarial que lhe rendeu fortuna como dono da perfumaria Rastro, que nasceu em 1965 com o lançamento da colônia Rastro, produzida artesanalmente no fundo da loja na rua Augusta. Em dez anos, já era uma fábrica com 550 funcionários. Não se imagine que, por ser artesanal, a Rastro era uma fragrância simples. Tinha um aroma inovador, moderno, muito distinto dos perfumes conhecidos. Seu desenvolvimento foi encomendado à tradicional fabricante suíça de essências Firmenich, com filial no Brasil desde a década de 1950. O trabalho levou muito tempo em testes e provas, até sua deliciosa e fresca mistura de lavanda, rosa, jasmim e outras flores,
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com traços cítricos e amadeirados, passar pelo crivo de Aparício, que há anos sonhava criar um perfume exclusivo para a loja. O resultado, dizem os especialistas em perfumaria, era difícil de classificar – uma mescla dos gêneros citrus, fougère e floral. E vinha embalado de forma também original, num frasco de laboratório com tampa também de vidro, esmerilhadas uma a uma, fornecidos pela Cristaleria Jaraguá. Cult de nascença
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Em 1978, aos 42 anos, ele posou como o rei da primeira marca brasileira de perfumes finos
Não é de admirar seu sucesso instantâneo, explosivo. A colônia Rastro já nascia herdeira do nome e do carisma da loja que foi uma das primeiras boutiques da Augusta e decisiva na criação de sua fama fashion. Fundada por Aparício, com uma sócia, em 1956, era havia bastante tempo um de seus points mais chiques e descolados quando a efervescência cultural dos anos 1960 e 70 a transformou na principal artéria da moda e da vanguarda da cidade. Aparício fazia eventos e expunha obras de arte entre os produtos vendidos – roupas, bolsas, sapatos e outros acessórios femininos, além de alguns objetos de design –, a maioria criações dele. Os amigos “quatrocentões, artistas e fashion people em geral”, como descreveu a jornalista e pesquisadora de moda carioca Gilda Chataignier, num texto em que rememora suas andanças pela Augusta, se reuniam na loja pelos fins de tarde. Foi na Rastro que a própria jornalista lançou em São Paulo seu livro 1440 Minutos de Mulher, de 1963. Ela recorda que Aparício, na época, já andava às voltas com o lançamento de seu perfume – para se ver como seu desenvolvimento foi demorado. Depois desdobrada em uma família de produtos, sabonete, talco, desodorante e as colônias Citrus de Rastro,
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R de Rastro e Midas (essa uma espécie de gel em que flutuavam partículas de ouro), a marca Rastro ganhou o mercado nacional e transformou Aparício e seu irmão e sócio João Carlos Basílio da Silva, nove anos mais moço, nos maiores industriais brasileiros de perfumaria fina por quase duas décadas. Foi João, que tinha formação técnica em química e era excelente gestor, que conduziu todo esse crescimento, desde os tempos em que ele mesmo fabricava a colônia nos fundos da Rastro, misturando os ingredientes fornecidos pela Firmenich. A marca entrou com menor vigor pelos 80, depois que os irmãos se desentenderam numa briga sem muita explicação. João vendeu a Aparício sua parte e saiu da empresa em 1979. Deixou a Rastro tinindo, com US$ 25 milhões em caixa e vendas mensais de um milhão e meio de unidades só do item desodorante. Mas, com a administração entregue ao impulsivo Aparício, sempre às voltas com suas atividades no MAM, suas criações pessoais e sua intensa circulação social, os negócios começaram a desandar. Um exemplo de seu estilo foi a compra de uma nova fábrica para a empresa no interior de São Paulo, sem nem ver suas instalações, que depois se mostraram
Em casa em 1992 (ano de sua morte), e as capas que desenhou para os próprios livros
Em 1985, no MAM, e uma escultura mostrada pela primeira vez em Nova York
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inadequadas. “Alugou um jatinho, foi lá assinar o contrato e voltou”, conta João. As crises econômicas que assolavam o Brasil naquela década também não ajudaram, bem como a concorrência de fragrâncias importadas. O glamour de Aparício seguia intocado, mas a Rastro entrou numa situação ruim com seus fornecedores, o que levou a alterações nas fórmulas dos produtos e perdas de mercado. Em 1986, pazes feitas, João voltou para tentar reerguer uma empresa em estado caótico, depois de firmar novo acordo societário com o irmão. Teve muito trabalho, mas vinha conseguindo levantar a Rastro e trazer de volta os fornecedores quando a trágica morte de Aparício derrubou seu ânimo. O golpe foi tão forte que ele e sua irmã Maria Helena Guimarães (a conhecida empresária dona dos restaurantes Spot e Ritz em São Paulo) passaram dois anos mantendo os empregados e todos os custos do famoso tríplex de Aparício na rua da Consolação, sem ter coragem de entrar lá. Diga-se que esse apartamento, onde hoje em dia mora Maria Helena, vivia sendo mencionado em colunas sociais, seja pelas
telas de Volpi, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral e outros grandes artistas que recheavam suas paredes ou até por seu closet, onde se perfilavam mais de 200 camisas e 60 pares de sapato. O que se dirá das festas memoráveis que abrigou, a que compareciam as mais relevantes figuras em todas as áreas, tudo junto e misturado. Receber e praticar seu propalado lema de “surgir, sorrir e sumir”, como fazia em outras festas, às vezes várias na mesma noite, em Aparício era também quase uma arte.
Quanto aos produtos Rastro, depois que a marca foi trocando de mãos continuaram a ser vendidos e também a faltar no mercado. Muita gente batia pernas para encontrá-los, e ainda agora têm presença discreta nas drogarias. Mas nada mais é como antes, nem fórmulas, nem embalagens. A loja Rastro (que teve também uma linda filial no Rio de Janeiro, na avenida Atlântica) acabou fechada pelo próprio Aparício nos anos 1980 e a Trama depois, pelos irmãos. Foi ao sair
Quando o assassinato ocorreu, o baque foi tão grande que João e Maria Helena, os dois irmãos do empresário, levaram dois anos para entrar no tríplex em que Aparício morava e dava festas memoráveis João acabou vendendo a marca Rastro para a Dorsay-Monange (que em 2007 a revendeu para a Hipermarcas) e mantendo a fábrica (já outra, em São Paulo, na Vila Olímpia) produzindo para terceiros. Até bem pouco tempo, era comandada por seu filho Pedro, que recentemente decidiu passá-la adiante para iniciar um negócio próprio. Desde a venda da marca, João mergulhou nas gestões do Sindicato da Indústria de Perfumaria e Artigos para Toucador no Estado de São Paulo e da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos, dinamizando suas atividades e sendo continuamente reeleito como presidente.
cedo de um jantar e resolver dar uma passada numa das únicas boates gays de São Paulo na época, a Rave, na rua Bela Cintra, que Aparício fez a pior escolha de sua vida. Achou graça num garoto de programa e saiu de lá com ele. Deve ter mudado de ideia depois que este lhe pediu para parar o carro e pegarem um casal seu amigo, que o esperava ali perto. Os murros no empresário começaram ainda dentro do carro, num pesadelo que só foi acabar no terreno baldio às margens da represa Billings, em São Bernardo do Campo, onde seu corpo foi encontrado vendado com uma tira rasgada de sua própria camisa e marcado pela tortura que sofreu. A tortura aconteceu porque os três criminosos, um já morto e os outros cumprindo pena, queriam a todo custo extrair as senhas dos cartões bancários de Aparício, que ele, desligado como era das miudezas da vida, simplesmente não sabia. Eles também não faziam a menor ideia de quem era Aparício Basílio da Silva. P
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PALADAR POR SILVIO LANCELLOTTI
O ESTALO DAS VIEIRAS Elas estão na arte, na religião, nos brasões e no nosso litoral. Somos um dos 15 produtores mundiais
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ntre 10 de junho de 1940 e 2 de maio de 1945, ocorreu no chamado Mare Nostrum da Europa a crucial Batalha do Mediterrâneo, que antepôs belonaves do Eixo, no caso basicamente Alemanha e Itália, e dos Aliados dos Estados Unidos, da França e da Inglaterra. No confronto, o Eixo perdeu 234 embarcações, contra 132 dos Aliados. Relata uma das lendas do conflito que, em setembro de 1943, já derrotada a Itália, o ultrassensível sonar de um submarino britânico de última geração, à cata de alguma nau restante dos inimigos, captou um rumor estranho a cerca de 300 metros de profundidade. De acordo
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com o operador do aparelho, era o barulho de um tropel inusitado de minibatuqueiros. Por uma semana o mistério perdurou. Até que, de volta à base no estreito de Gibraltar, um tripulante do submarino comentou o episódio com o comandante de uma frota de pesqueiros do lugar – e o cidadão quase morreu de tanto gargalhar. Explicou que se tratava de um fato comum no Mediterrâneo e na Costa Oeste da Europa, de Portugal até a Noruega: a migração de um tipo de conchas bivalves da família das pectinídeas, mais conhecidas como coquilles de St.Jacques, as vieiras que a gastronomia adora. Caso raríssimo e formidável de moluscos embutidos que se locomovem à procura de águas de temperaturas mais confortáveis, ou para fugir de predadores, o seu estrépito inusitado provém de um ato físico – e hidrodinâmico. De formato No Caminho de Santiago peculiar em relação aos e no brasão mexilhões e às ostras, de Winston Churchill no desenho do símbolo
envergado pelos peregrinos de Santiago de Compostela ou da Shell do petróleo, as vieiras sugam o líquido do seu ambiente pela sua face rombuda e o expelem, aos jatos, através do seu terminal achatado. Nesse exercício fantástico, batem e rebatem os limites das suas carapaças, à moda dos ritmistas do Carnaval. Casquinha traiçoeira
Ao contrário de outros moluscos de cascas, como as ostras e os mexilhões que, graças a apêndices filamentosos, se grudam a pedras, recifes, à vegetação do oceano, à madeira dos píeres, ao concreto das bases das pontes e até mesmo ao aço dos encouraçados, as vieiras só dispõem de tais acessórios, batizados de bissos, ainda muito jovens, quando se encadeiam umas às outras para que as correntes não as dizimem. Impressiona, aliás, a sua estrutura fisiológica depois de adultas. Possuem dezenas de olhos, embora só distingam formas e luzes. Possuem órgãos como um pericárdio, com direito a ventrículo e a aurícula, artérias e veias. Alimentam-se de plâncton, que centenas de cílios, praticamente invisíveis, lançam ao seu interior e, melhor, ainda propiciam a filtragem de to-
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xinas e de sólidos intrometidos. Usam um estômago, um rim e um intestino na digestão e na depuração. E, enfim, eliminam os restos, acredite se quiser, por um ânus. No departamento da reprodução, curiosamente, praticam o hermafroditismo. Ou seja, cada qual tem dois sexos. Quando se separam as cascas das vieiras, essencialmente se vê o seu adutor, um músculo alvo, cilíndrico, central, aquele que preserva a unidade das duas conchas e que, em função da sua maravilhosa elasticidade, possibilita o abrir e fechar nas suas viagens pelo mar. Absolutamente comestível, e prazeroso. De todo modo, os verdadeiros apreciadores da iguaria mais apreciam o anexo coral-esbranquiçado que se encaixa ao seu redor, a sua gônada, coleção de células indispensáveis à procriação. O segmento esbranquiçado representa o testículo. O coral, o ovário, rigorosamente o pitéu das coquilles. E imaginar que muita gente descarta o coral, por medo de que seja um miolo contaminado... O conjunto adutor e coral assegura às vieiras dois sabores contrastantes na mesma mordida. O adutor, firme, lembra a lagosta. O coral, macio, se assemelha ao caviar. No entorno da cidade espanhola de Compostela se levam as coquilles ao forno, com cebola e presunto picadinhos, debaixo de farinha de rosca. Na região da Provença, na França, se servem com alho batido, azeite e salsinha. No Japão, se perpetra tanto no sashimi e sushi, como no hotategai, com arroz e shoyu adocicado. Bares modernos dos EUA mesclam os defumados do adutor às
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Da Vênus de Botticelli (1495) ao pop do símbolo da Shell e do filme Quanto Mais Quente Melhor (1959): molusco reverenciado
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PALADAR
Na receita espanhola acima, as vieiras são gratinadas com farinha de rosca. Na Provença, na França, elas levam alho, azeite e salsa
A China é, de longe, o maior produtor do mundo, seguida pelo Japão. Mas o Brasil faz bonito. Há 27 anos, abnegados se aplicam, no Sul do país, ao desenvolvimento de vieiras de ótimo valor comercial castanhas de praxe. No Brasil, se misturam vieiras e siri na traiçoeira casquinha. Geograficamente, na natureza, mesmo que em espécies diferentes, as vieiras se distribuem por todo o planeta. Foi na Idade Média, porém, em torno do século 9, que surgiu a sua pesca. Considerava-se, então, que o mundo acabasse no cabo Finisterra, no extremo ocidental da Galícia, na Espanha. Em tal região, o apóstolo Tiago, o Maior (?-44 d.C.), proveniente da Palestina, teria feito uma empolgante pregação pública, destinada a converter os povos pagãos da Península Ibérica. Daí, de retorno à sua terra, morreu martirizado e os seus restos desapareceram. Em 814, um eremita, supostamente de nome Pelágio, anunciou que havia descoberto a tumba de Tiago junto à Finisterra. Logo, cristãos de todas as plagas desandaram a acorrer ao
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cabo para honrar o apóstolo e absorver as suas bênçãos etéreas. A única maneira de os peregrinos provarem a sua longa marcha: voltarem com as amostras das conchas – pois os moluscos, claro, devoravam. Até o papa Bento 16
Na mitologia, as conchas funcionam como sinônimos do ocaso, a luz derradeira antes do Mar Tenebroso e da cruel escuridão do Apocalipse. Nas artes, significam fertilidade, caso do quadro O Nascimento de Vênus, que Sandro Botticelli (1445-1510) pintou, cerca de 1485, para os Médicis, seus mentores. E ainda se sobressaem na heráldica: integram os escudos de Winston Churchill (1874-1965), de Lady Di (1961-1997) e de seus filhos, William e Harry. Só? Examine o brasão que um certo cardeal Joseph Ratzinger adotou ao se transformar, em 2005, no
papa Bento 16. Lá aparece, escancarada, e douradinha, uma coquille. Cientistas do século 18 informaram, com exagero, é óbvio, que naqueles idos uma capa de vieiras ocupava o litoral da Europa, no Atlântico, desde o golfo de Biscaia até o mar do Norte. Na verdade, contudo, foi quando o seu consumo culinário se multiplicou, a ponto de, cerca de 1930, biólogos denunciarem que o produto estava à beira da exaustão. Decidiu-se, felizmente, pelo controle da sua cata e por uma extensiva recuperação por intermédio da chamada maricultura, graças à disseminação de fazendas de criação em baías adequadas. Hoje, a maricultura já participa com 75% da extração internacional. A China, disparadamente, lidera o ranking, com 2 milhões de toneladas anuais. Atrás segue o Japão, com 600 mil. Num total de 15 países produtores se inclui o Brasil, em particular no Sudeste-Sul, de São Paulo a Santa Catarina, onde, desde 1990, abnegados se aplicam ao desenvolvi-
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Em sashimi, como pede a tradição japonesa, e um toque defumado como gostam os americanos. Por fim, com redução de Porto Ruby
mento de vieiras cientificamente denominadas de Nodipecten nodosus, de crescimento fácil, ótimo valor comercial e um tamanho que pode atingir os 18 centímetros. O cultivo principia pela obtenção de sementes, moluscos em fase juvenil, de aproximadamente 10 milímetros. Obtêm-se as sementes por recolha microscópica, mais barata, ou por hatchery, a sua evolução em laboratório. Para a recolha funcionar com eficiência, é indispensável a presença de uma vasta população que libere gametas de modo farto e em sincronia, coincidência nem sempre viável. De todo modo, quando a natureza auxilia, o sucesso se demonstra infalível. Para minorar os efeitos dos acidentes, do acaso ou dos azares, a Universidade Federal de Santa Catarina, que já efetua experiências primorosas com mexilhões e com ostras, inaugurou uma ala exclusivamente para as vieiras. Já se constatou, por exemplo, que as melhores épocas para o cultivo vão da primavera ao verão. E que as piores se situam no inverno.
Um ótimo indicador para os roteiros a serem adotados de agora em diante. Ousaria eu, como desfecho desta aventura, recomendar uma receita? Cerca de uma década atrás, Alain Ducasse, um feiticeiro da gastronomia, passou um punhado de dias no Brasil, a convite de Giancarlo “La Tambouille” Bolla (1940-2014), também o proprietário do refinado Leopolldo. Em dupla, Ducasse e Bolla organizaram um jantar em petit comité, para o qual, privilegiadamente, me convidaram. Saboreei uma delícia inolvidável. Eram poucos ingredientes, mas uma feliz combinação. No topo de uma rodela perfeita de batata cozida, 5 centímetros de diâmetro e 1 centímetro de espessura, um adutor e o seu coral, meramente chapeados na manteiga, cinco segundos de cada lado. De molho, uma redução excepcional de vinho do Porto, do tipo Ruby, envelhecido 20 anos. Juro, a melhor dentre as melhores alquimias que desfrutei em minha vida. Pena que a minha incompetência nunca me deixou repeti-la. P
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TATO
POR SERGIO CRUSCO COLAGENS RAPHAEL ALVES
POR DENTRO DO FORA A falta de tato, mais corriqueira do que parece, pode provocar gafes terríveis e até incidentes diplomáticos
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ressa, descuido, incontinência verbal, ignorância, alguns tragos a mais ou pura falta de tato. Sim, falta de tato. Vários caminhos ou estados emocionais levam à gafe e boa parte da humanidade tem em suas memórias o capítulo dedicado aos momentos em que, se pudesse voltar no tempo, preferiria ter ficado de boca fechada. Ou nem ter nascido. No mundo de biografias oficiais outrora sonhado por Paula Lavigne, deveriam ser esses os trechos censurados. Ou talvez ela mesma procure esquecer o bafafá que causou com o movimento Procure Saber. Gafe coletiva em que até Chico Buarque, filho de historiador, entrou de gaiato. E depois se desculpou. Perdoa-se, naturalmente. Quem nunca sofreu com o equívoco Matheus e Reagan estão no Olimpo dos gaffeurs
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de uma escolha, de um gesto ou de uma frase? Um deslize pode manchar irremediavelmente a história de um sujeito, dependendo do tamanho – do deslize e da fama do sujeito. Em outros casos, as gafes compõem uma deliciosa coleção de anedotas, como a do picaresco Vicente Matheus, presidente do Corinthians em diversas gestões. “Gostaria de agradecer à Antarcticas pelas Brahmas que nos mandaram” é uma de suas frases mais lembradas, proclamada antes de existir a Ambev, quando as marcas eram rivais. Dizer que havia contratado um jogador talentoso do Recife, um certo Lero-Lero (confundindo o nome de Biro-Biro), ou prometer “anestesia geral” para os sócios inadimplentes do clube são outras de suas tiradas memoráveis. Um filósofo, afinal: “O difícil, vocês sabem, não é fácil”, afirmava. Matheus, imigrante espanhol de origem humilde, era um gaffeur adorável e amado por
sua torcida, num tempo em que era um tanto mais difícil pegar alguém no pulo. Mas não se safavam personalidades nascidas em berço esplêndido, como a socialite-símbolo Carmen Mayrink Veiga, que, em tempos menos corretos, soltou sua maior pérola numa entrevista à revista Veja: “Sempre trabalhei como uma negra”. Hoje, Carmen seria sumariamente executada no tribunal das redes sociais, no qual bastam cinco minutos de rolagem na timeline para compilar um Febeapá (Festival de Besteiras que Assolam o País) mais robusto que o de Stanislaw Ponte
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Preta. Que tal uma visitinha ao Twitter de Luana Piovani? Ou uma lida nos comentários de internautas em sites de notícias – em qualquer notícia? Geografia errada
A falta de tato nunca foi tão amplificada, repercutida e replicada. Boa estratégia é fazer boca de siri e não se prestar a vexames que tingem a história de humor involuntário. Como os descuidos do ex-presidente americano Ronald Reagan, metido a piadinhas, que levantou um brinde ao “povo boliviano” durante visita oficial a Brasília, em 1982. Tentou consertar o engano dizendo que a Bolívia era a próxima escala de sua viagem pela América
Latina. Não era. Outra de suas derrapadas diplomáticas poderia ter tido consequências mais sérias. Antes de uma transmissão de rádio, acreditando estar testando o microfone, anunciou um ataque imediato à Rússia. O som estava aberto, o mundo vivia os tempos de Guerra Fria, mas não houve maiores implicações, apesar de a União Soviética ter ficado de orelhas em pé. Pânico mesmo causou Orson Welles, narrando pelo rádio, em 1938, uma adaptação de A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells. O roteiro, escrito em forma de noticiário, sugeriu a muita gente que os Estados Unidos estavam de fato enfrentando um ataque alienígena. Alguns biógrafos, no entanto, garantem que as
notícias sobre a onda de medo foram alimentadas e exageradas pelo próprio Welles, que de pós-verdade entendia um bocado. O que não é Cidadão Kane se não a melhor tese sobre mentiras repetidas diversas vezes tornando-se reais? A gafe programada dos ETs invasores alavancou sua fama e pavimentou-lhe a glória como roteirista e diretor de cinema. De qualquer forma, enganos interestelares parecem não arranhar a fama de quem os comete, sobretudo se tiver brilho próprio. Hebe Camargo, em 1969, perguntou ao astronauta americano Neil Armstrong se na Lua havia luar. Ele deve ter achado uma gracinha. Distopias geográficas parecem mesmo um generoso terreno para
“O difícil, vocês sabem, não é fácil.” Sem dúvida. Mas difícil mesmo é escolher a gafe mais memorável de Vicente Matheus, folclórico e prolífico ex-presidente do Corinthians. Incluindo esta, é claro gafes, como a cometida pela candidata à vice-presidência americana Sarah Palin em 2008. Numa entrevista à TV, alertou para os perigos que a Rússia representava, bem depois da Guerra Fria. Como governadora do Alasca, dizia
Carmen Mayrink Veiga não foi páreo para Hebe (na foto, com o astronauta Neil Armstrong)
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TATO conhecer muito bem a região, a olhos nus: “São nossos vizinhos. Dá para ver a Rússia daqui”, afirmou. Uma olhadela no mapa-múndi a livraria de ser alvo de chacota: há mais de 100 quilômetros de oceano separando os dois lugares. Esse mesmo cuidado não teve o internauta brasileiro que sugeriu, recentemente, uma severa devassa nos bens de Lula, a começar por uma gigantesca fazenda na divisa da Paraíba com o Acre. Virou meme, o pateta, com direito a mapinha demarcando o tamanho de sua burrice.
dizer “corriente”, mas meteu-se na história um tradutor argentino que colocou no fim da frase a tal “chingada”, palavra extremamente vulgar para os mexicanos. Significa aquilo que você acabou de pensar. Trapalhada em black tie
Willem não teve culpa, mas levou a fama pelo pequeno desastre semântico, reproduzido em todas as televisões do mundo hispânico. É parecido com citar Paulo Coelho achando que recita Drummond. Ou compartilhar sentenças de autoajuda das mais rastaqueras
Nesses tempos de redes virtuais, uma das gafes frequentes é atribuir a grandes personalidades do passado frases que jamais proferiram. Foi o que fez Trump em relação ao seu predecessor Abraham Lincoln A gafe linguística é outro estilo de confusão que gera boas anedotas. O falso cognato, então, um perigo. Na certa você conhece alguém que, em território hispânico, acreditou ser uma mulher embarazada alguém tanto ou quanto confusa. Nobres também caem em esparrelas parecidas. Willem-Alexander, então príncipe da Holanda (hoje é rei), em 2009, acreditou-se muito espirituoso ao terminar seu discurso com um dito popular durante visita ao México: Camarón que se duerme se lo lleva la chingada. O certo seria
atribuindo-as a Clarice Lispector – pobre Clarice. E pobre Abraham Lincoln, que também ganhou uma frase falsa rodando nas redes: “E no final, não são os anos da sua vida que contam, mas a vida nos seus anos”. Ele nunca disse isso, mas alguns republicanos acharam a fala muito edificante e trataram de viralizá-la. E quem a usou para comemorar o aniversário de Lincoln no Instagram, quando todos os outros já a haviam apagado de sua timeline? Donald Trump, o rei da gafe.
Cerimônias em geral são ótimas oportunidades para o registro de gafes inesquecíveis, quando o black tie e os suntuosos vestidos dão mais glamour a qualquer tipo de trapalhada. Vide a lambança da troca de envelopes na última entrega do Oscar, que fez Warren Beatty e Faye Dunaway passarem pelo vexame de anunciar La La Land como melhor filme, em vez de Moonlight, o verdadeiro vencedor. A ansiedade ou a certeza de ser o melhor levou alguns atores a pagar micos na história dessa celebração que coleciona tropeços. Humphrey Bogart, certo de que levaria a estatueta por Casablanca, chegou a levantar-se para recebê-la na festa de 1944. Ao ouvir o anúncio do vencedor – Paul Lukas, por Horas de Tormenta – começou a aplaudir. De pé, já estava.
Clarice Lispector e Abraham Lincoln: pobres vítimas das citações da internet
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A vítima de Cher foi a elegância. As de Churchill foram Bessie Braddock e Lady Astor, ambas desprovidas de beleza
Há casos em que o prêmio em si é a gafe. Cinéfilos de todas as idades até hoje não perdoam a escolha de uma aguada, embora simpática, Judy Holliday como melhor atriz pela comédia Nascida Ontem, em 1951, enquanto a briga do outro lado era realmente pesada: Bette Davis por A Malvada e Gloria Swanson por Crepúsculo dos Deuses em duas das atuações mais poderosas da história do cinema. Mas a Academia parece não ter aprendido a lição e seguiu cometendo erros fenomenais. Alguém consegue explicar, até hoje, o que fez Cher subir ao palco por Feitiço da Lua em 1988, deixando para trás Glenn Close e Meryl Streep? Talvez nem a própria vencedora, que, de tão atrapalhada, agradeceu ao cabeleireiro em seu discurso, esquecendo de citar o roteirista e o diretor do filme. Mancada, ressalve-se, redimida por
um anúncio, com pedido de desculpas, na revista Vanity Fair. Por que nos comprazemos tanto com esse tipo de mico? Cuidar da vida alheia sempre foi um dos esportes preferidos de quem não tem lá muito o que fazer ou anda descontente com a própria existência. Outra impertinência, talvez a maior, bastante amplificada pelo fenômeno das redes. Basta uma celebridade morrer – mesmo que com 97 anos, depois de ter vivido feliz e produtivamente, tendo bebido apenas água – para que milhões sintam-se instantaneamente íntimos. A ponto de dizer: “Também, nunca se cuidou”. Ah, a bisbilhotice, esse pleno estado de gafe. Imperdoável, merece
resposta imediata. As do primeiro-ministro britânico Winston Churchill eram as melhores. Historiadores discordam se foi para a congressista socialista Bessie Braddock ou para a conservadora Lady Astor (nesse quesito, abelhudos se irmanam e transcendem diferenças ideológicas). O fato é que, deixando a Câmara dos Comuns, em Londres, um tanto tralalá, foi abordado por uma delas: “O senhor está lamentavelmente bêbado”. Ele foi na lata: “Minha querida, você é feia. E quer saber mais? É lamentavelmente feia. Amanhã devo estar sóbrio e você continuará sendo feia”. P
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ADEGA POR FERNANDO PAIVA
A ALMA VIVA DE MICHEL FRIOU Andarilho, apaixonado pela terra e pelos cavalos, seu nome está ligado ao mais respeitado vinho chileno
O
enólogo responsável pelo
do licor Grand Marnier) e seu marido.
e as duas principais publicações dedica-
melhor vinho produzido
Friou permaneceu no vale do Apalta até
das a Baco: a americana Wine Spectator e a
no Chile atualmente é um
2004. No ano seguinte, ligou seu destino
britânica Decanter.
francês alto, educado, de
fala baixa e pausada, cujos cabelos cres-
“Friou está ligado ao sucesso do Almaviva e do Clos Apalta, dois rótulos chilenos que brigam hoje por reconhe-
pos começam a se acinzentar. Michel
União de duas casas de respeito – a
Friou mora em Santiago do Chile com
Baron Philippe de Rothschild S/A e a Viña
cimento entre os grandes do mundo,
a família e adora cavalgar e mergulhar.
Concha y Toro – e produzido com uma
até na própria França”, elogia o jorna-
A primeira vez que esteve naquele país
mistura de cepas clássicas de Bordeaux,
lista especializado Edgard Reymann,
foi pelas mãos de outro Michel, francês
com predomínio da Cabernet Sauvignon,
de São Paulo, responsável pelo blog
como ele. No caso, Michel Rolland,
o Almaviva segue à risca a cartilha da
edgardenofdelights. “É dono de um
o polêmico enólogo proprietário de
terra dos grandes châteaux: terroir excep-
profundo conhecimento sobre o
diversas vinícolas em Bordeaux e con-
cional, vinícola única e equipe técnica de-
vale Central, que abriga o vale do
sultor muito bem pago de uma centena
dicada integralmente à produção de um
de outras mundo afora, em mais de 13
só rótulo. Para comemorar os 20 anos da
países. “Ele era meu amigo e tive sorte”,
parceria, firmada em 1997 entre a baro-
recorda-se Friou. Naquele 1995, Friou
nesa Philippine de Rothschild e Eduardo
participou de sua primeira colheita na
Guilisasti, a Almaviva acaba de lançar a
América do Sul, na Viña Aquitania, obra
safra 2015 – merecedora de inéditos 100
de quatro conterrâneos seus que, havia
pontos por parte de James Suckling, da
uma década, passaram a procurar terras
Wine Spectator, para um vinho chileno.
no Chile para produzir vinhos segundo o figurino bordalês. Na sequência, ele trabalhou na Casa
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de maneira umbilical a outro empreendimento franco-chileno: Almaviva.
Almaviva: feito no Chile com tradição de Bordeaux
Hoje com 51 anos de idade, Friou tinha apenas 30 quando a Almaviva realizou sua primeira colheita. Corria 1996
Lapostolle, onde ajudou a desenvolver
e, dois anos depois, as garrafas deixavam
o respeitado Clos Apalta. A Lapostol-
o Chile rumo ao mercado mundial, onde
le foi outra aposta bleu, blanc et rouge
obtiveram o chamado “sucesso instantâ-
no lado ocidental da cordilheira dos
neo”. Isso porque encantaram de pronto
Andes, bancada por Alexandra Marnier
os doutores no assunto, leia-se Robert
Lapostolle (do clã que fundou e é dono
Parker, Jancis Robinson, Serena Sutcliffe
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ADEGA O Almaviva descansa durante 18 meses em barricas novas de carvalho francês
Maipo, onde são produzidos alguns dos melhores vinhos chilenos.”
morar.” Durante as férias de verão, o
Os seis meses seguintes foram de-
garoto sempre voltava a Nantes para tra-
dicados àquilo que Friou classifica hoje
balhar no campo. “Aqueles dois meses
como sua “maior aventura”: produzir
guém visceralmente ligado à terra como
eram maravilhosos, nunca encarei como
espumante na cidade de Pula, a duas
Michel Friou. Ele nasceu nos arredores
trabalho, eu adorava.”
horas de carro de Mumbai, na Índia,
Nem poderia ser diferente para al-
de Nantes, e seus avós dos dois lados da família trabalhavam com pecuária de
Nada mais natural, portanto, que, na hora de fazer faculdade, Friou esco-
debaixo de uma temperatura média de 40o C. “Utilizávamos uvas Ugni Blanc e a bebida era até aceitável”, diz, rindo.
Produzir espumante na cidade de Pula, a duas horas de carro de Mumbai, na Índia, sob uma temperatura média de 40 graus centígrados foi aquilo que ele chama de “minha maior aventura”
Caráter bordalês
Próxima parada, Nouméa, capital da Nova Caledônia, território ultramarino
leite. “Criavam vacas da raça normanda
lhesse agronomia e enologia na SupA-
francês a 16 mil quilômetros de Paris,
e meus primos seguiram essa tradição”,
gro em Montpellier, no sul da França,
um arquipélago cenográfico banhado
conta. Michel passou boa parte da in-
uma das escolas mais respeitadas do
pelo mar de Coral, no Pacífico Sul. “Meu
fância nas fazendas dos avós – até que,
país. “Me especializei em viticultura e
contrato como agrônomo previa oito
quando tinha 5 anos, os pais se muda-
depois consegui o grau de enólogo.” E,
meses de trabalho, mas acabei ficando
ram para Paris.
em vez de prestar o serviço militar, foi
quatro anos”, conta. Entre as lembranças
trabalhar para o governo francês, de-
que trouxe de lá, ele lista o conhecimento
e foi cuidar da tropa da Guarda Republi-
pois de formado, em Sabah, província
das diversas culturas da Melanésia, os
cana”, relembra. “Naquela época havia
malaia na ilha de Bornéu. “Passei dois
incríveis mergulhos nos recifes de coral
cerca de 150 cavalos em dois quartéis,
anos cuidando do aprimoramento da
e o trabalho feito nas aldeias do interior
um perto da Bastilha, outro nas proxi-
produção de caniços para a fabricação
do país, nas montanhas. “Lugares de uma
midades do Quartier Latin, onde fomos
de móveis de ratã.”
paz e de uma beleza extraordinárias.”
“Meu pai era especialista em cavalos,
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As vinhas no vale do Maipo, com a cordilheira nevada ao fundo
O SENHOR QUE TUDO PODIA CONHEÇA A LENDA EM TORNO DO CONDE DE ALMAVIVA Almaviva é um personagem da ópera As Bodas de Fígaro (Le Nozze di Figaro), de
De volta à França, passou quatro meses
Wolfgang Amadeus Mozart. Concebida entre 1785-86, estreou em Viena em 1o de
estagiando em Bordeaux, no Château
maio de 1786 e é considerada por muitos a obra-prima do compositor austríaco. Tem
Margaux, onde conheceu seu xará Rolland
como protagonistas o conde de Almaviva e seus servos Fígaro e Susanna, noivos e
– que o convidou a vir para o Chile.
prestes a se casar.
“O Almaviva vem ganhando status a
A ação se passa no castelo do conde, perto de Sevilha, por volta de 1785. E trata
cada ano”, afirma Edgard Reymann. O
de uma lenda medieval: o odioso jus primae noctis, “direito da primeira noite” ou “di-
especialista recorda que, em março de
reito do senhor”, que daria a este a prerrogativa de se deitar com as servas antes de
2013, provou nove safras. Trata-se de um
entregá-las aos maridos. Embora não exista qualquer prova documental sobre esse
grande vinho, daqueles que você pode
costume, ele chegou intacto até nós. Em 1998, o filósofo francês Alain Boureau dedi-
comprar para beber hoje ou depois de
cou um livro inteiro a derrubar esse mito.
muitos anos de guarda – uma caracterís-
A questão é que, durante o Iluminismo, Voltaire (1694-1778), filósofo interessado
tica de vinhos mais caros, em geral. “De
em retratar a Idade Média como a época do obscurantismo e da opressão, escreveu
qualquer modo, um Almaviva 2011 sai
uma peça sobre o assunto. A credibilidade de Voltaire deu força à lenda, que ainda
hoje por cerca de R$ 1 mil.”
sobrevive. No filme Coração Valente (1995), por exemplo, o guerreiro escocês William
Feito com um blend de uvas Cabernet Sauvignon, Carménère e Cabernet Franc (algumas safras levam ainda porcenta-
Wallace, vivido por Mel Gibson, casa-se em segredo para evitar a violação de sua noiva pelo detestável senhor feudal. A peça teatral La Folle Journée ou Le Mariage de Figaro, de Pierre-Augustin Caron de
gens mínimas de Petit Verdot ou Merlot),
Beaumarchais (1732-1799), serviu de base para a ópera de Mozart. Um descendente
trata-se de um vinho de caráter tipica-
direto de Beaumarchais foi casado com a baronesa Philippine de Rothschild, presiden-
mente bordalês. “E, quando comparado
te do Château Mouton Rothschild até perto de seus 80 anos, quando veio a morrer.
aos melhores Bordeaux, faz bonito”,
Esse parentesco permitiu o uso do nome e da caligrafia original do autor, utilizados
afirma Reymann. “Prova de que a produ-
nos rótulos do Almaviva. Que também trazem grafismos dos nativos mapuche, a prin-
ção do Chile está chegando a um grau de
cipal tribo do Chile. (FP)
excelência, maturidade e constância.”
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CAPA POR J.A. DIAS LOPES E WALTERSON SARDENBERG Sº
AOS 55 ANOS, O PERFECCIONISTA ROGÉRIO FASANO SE PREPARA PARA INAUGURAR QUATRO HOTÉIS E AUMENTAR O GLAMOUR DE UMA MARCA QUE REÚNE 15 RESTAURANTES
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CAPA
A pasta italiana: sempre em primeiro plano
FOTO: MARCIO SCAVONE, DO SEU LIVRO LUZ INVISÍVEL
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N
ão fosse a solene débâcle do investimento polpudo em uma marca de uísque nacional – o Brazilian Blend – e talvez estivéssemos saudando, hoje, o novo longa-metragem do cineasta Rogério Fasano, da mesma linhagem de outros diretores paulistas, como Roberto Santos, Luís Sérgio Person, Carlos Reichenbach e Fernando Meirelles. Sim, o restaurateur morava em Londres, na adolescência, com uma razoável mesada paterna e disposto a estudar cinema, quando o pai, Fabrizio Fasano, o chamou de volta a São Paulo para ajudá-lo a sair de uma concordata que tragou todo o patrimônio da família. Pouco depois, aos 20 anos, Rogério, ou melhor, Gero, como o chamam amigos e parentes, estava à frente de seu próprio restaurante, que, para complicar ainda mais o orçamento do clã, foi um demolidor fracasso. Malgrado a primeira iniciativa infeliz, o rapaz tomou gosto pelo ramo. “Fui fisgado”, admite. Retomava uma tradição familiar que passara por um hiato. O primeiro restaurante sob a égide dos Fasano, a Brasserie Paulista, foi montado em São Paulo em 1902 – ano em que, curiosamente, houve a inauguração do primeiro grande cinema da cidade, o Paulicéia Fantástica. Rogério, portanto, tinha um sobrenome a zelar. Um nome também: seu avô Ruggero, Gero como ele, abriu, em 1945, a primeira casa gastronômica a estampar Fasano em uma placa. Antes de inaugurar seu segundo restaurante, Rogério resolveu investir no enredo familiar, optando pela culinária do norte da Itália, que conhecia desde o “arroz amarelinho” (o risoto à milanesa) preparado pela nonna Ida. De lá para cá, teve início um interminável e bem-sucedido plano-sequência com a abertura sucessiva de restaurantes e hotéis premiados, sempre sob o olhar cuidadoso de um ex-futuro cineasta que prefere cuidar pessoalmente da câmera. Hoje, são 15 restaurantes e quatro hotéis, pulverizados em cinco marcas (Fasano, Gero, Parigi, Baretto e Nonno Ruggero) e cinco cidades: São Paulo, Rio de Janeiro, Punta del Este, Brasília e Porto Feliz (SP). Só de empregos diretos, o conglomerado acolhe 1.500 funcionários. O ex-futuro cineasta não se julga, porém, um grande produtor. Ou seja, alguém capaz de lidar diariamente com as finanças “sem bocejar de sono”. Prefere se autointitular um minucioso “fiscal da qualidade”. Por isso, sempre se aliou a sócios que são,
na prática, mais capitalistas do que especialistas em restaurantes e hotéis. Foi assim com o Grupo JHSF, a quem se associou em 2007 e que, no momento, detém 65% de participação nos restaurantes e hotéis. Graças a esse reforço financeiro, Rogério terá sucessivas inaugurações a comandar, a começar pelo hotel Fasano de Angra dos Reis, ainda neste ano. No ano que vem, os hotéis devem chegar a Belo Horizonte e Salvador. O avanço territorial não para por aí. Para 2019 esté prevista a inauguração das unidades em Trancoso, no sul da Bahia, e Miami, quando o grupo Fasano irá, enfim, fincar uma estaca nos Estados Unidos – um velho sonho de Rogério. “São projetos que nasceram anos atrás”, explica, antes que lhe apontem os óbvios riscos de investir em um momento de crise econômica, vinda da voragem da instabilidade política. Perfeccionista, Rogério é, acima de tudo, um grande formador de elencos e diretor de atores. Prova disso é o elogiado serviço de seus restaurantes e hotéis, algumas vezes resultado de pitos individuais que já viraram folclore. “Posso ser muito bravo com um funcionário, sim”, assume. “Mas minha braveza dura no máximo uns cinco minutos”, ressalva. Tanto é assim que a imitação bem-humorada de Rogério dando broncas espalhou-se entre os seus colaboradores. “Eles puxam as calças para o meio da barriga, pois gosto de calças de cintura alta, e falam um monte de palavrões”, diverte-se, rindo um bocado. “Dizem que o meu melhor imitador é o Almir. Pudera. Está comigo há 35 anos.” Aos 55, Rogério tem três stents que lhe reabriram artérias e evitaram infartos. Mantém a forma praticando tênis no clube Paulistano, agremiação fundada dois anos antes da Brasserie Paulista e encravada a quatro quadras e 550 metros do hotel Fasano, instalado na rua de um só quarteirão que leva o nome do patriarca: o italiano Vittorio Fasano. O restaurateur está casado com a decoradora Ana Joma, mãe de um garoto de 11 anos que ganhou o nome do trisavô, Vittorio. Rogério também é pai de Anna, de 26 anos, do primeiro casamento, com a jornalista Kiki Romero. A entrevista que se segue foi concedida em um começo de tarde de um dia de semana, numa mesa de canto do restaurante Nonno Ruggero, em São Paulo. Ela revela como o ex-futuro cineasta é, a exemplo de seu ídolo Francis Ford Coppola, um grande contador de histórias.
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CAPA THE PRESIDENT: Seu avô Ruggero
tem algo a ver com você ter escolhido a mesma profissão dele? Você conviveu com ele?
Passei um período na casa dele, na rua Maranhão, em Higienópolis. Isso me diferenciou um pouco na família. Mas já peguei meu avô doente, ele morreu logo. Eu tinha 6 anos, na época. No antigo Fasano, recordo de uma cena: ele me colocando em cima do balcão, a casa nem tinha aberto ainda. Nem lembro como era o restaurante. E a sua forte ligação veio daí.
Criei uma conexão forte com a nonna, tinha paixão por ela. Esse negócio de morar com eles me fisgou. Desde a infância, tenho necessidade de busca de origem. O lado paterno foi muito presente na minha vida. A minha mãe perdeu o pai muito cedo, antes mesmo de se casar. E a minha relação maior foi com a avó paterna. Fui até ver o lugar onde ela nasceu, conheci a escola em que meu avô estudou. Bacana. Como era essa proximidade com a sua avó?
Eu jantava com ela desde a adolescência, toda quarta-feira. Inclusive era um truque para ganhar namorada. Eu levava para jantar na casa da nonna. Tinha sempre o risoto à milanesa, o amarelinho. Quando chegava sozinho, meu grande barato era pedir: “Nonna, fale do nonno”. Recordo de algumas coisas que ela comentava: o nonno falava quatro línguas, tocava piano clássico, era trabalhador. Era engraçado. Repetia sempre que o problema da Europa era a Península Ibérica. Os dois eram da Lombardia?
Sim. Ela nasceu em Cassano Dada, cidadezinha entre Bérgamo e Milão. Meu avô nasceu no Brasil, na verdade. Porque
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nossa imigração aconteceu em duas fases. Quem veio ao Brasil foi o meu bisavô. Isso porque o pai dele importava café e precisava de um olheiro, aqui, de café. Aí meu bisavô prosperou. Inclusive teve duas fazendas de café e exportava o próprio café para o pai, na Itália. O primeiro restaurante Fasano, que ele abriu, se chamava Brasserie Paulista. Era do meu avô com o melhor amigo dele. Como surgiu a Brasserie Paulista?
Nesse caso era o oposto do que é hoje. Meu bisavô Vittorio era o sócio capitalista. Aí o que aconteceu? Ele faleceu e meu nonno Ruggero ficou órfão com 16 anos de idade [a bisavó, Marietta, havia morrido dez anos antes]. Foi enviado à Itália. Encontraram lá vaga numa escola muito fechada e de certa nobreza, a escola militar de Moncalieri, próximo a Turim. Cada aluno tinha um cavalo próprio e, dentro do quarto, um piano. Depois de terminar o período na escola, ele foi morar em Milão. Porém, foi convocado para a Segunda Guerra Italo-Etíope [19351936]. Era louro, de olhos azuis e com pele muito clara. Foi comandante de cavalaria e acabou pegando uma doença de pele por ter ficado exposto um ano ao sol africano. Acabou dispensado por causa disso. A Itália, que já vivia sob o fascismo, logo entraria na guerra...
Ele conseguiu sair da Itália antes de a Segunda Guerra Mundial estourar [em 1939]. Percebeu que a situação ia pegar fogo. Trouxe a esposa (minha nonna Ida), o meu tio Fabio, com 5 anos, e meu pai, Fabrizio, dois anos mais jovem. O nonno Ruggero conseguiu recomeçar a vida montando uma banca de aves e ovos no Mercado Municipal. E a vizinha dele era a tia do Mario Amato [presidente da Fiesp entre 1986 e 1992], que viria a ser sócio do
meu pai no uísque Old Eight. Como foi essa história?
A Brasserie Paulista ficava numa esquina arredondada. E o novo Fasano também era uma esquina, só que em proporções muito maiores. Isto porque um tal de conde Lara comprou o imóvel onde era o antigo Fasano, mais os imóveis laterais, e fez, na época, um dos primeiros arranha-céus da cidade. Então, ele teve a ideia de instalar a Brasserie Paulista embaixo. Saiu pela cidade perguntando: “Com qual Fasano eu tenho de falar?”. Reponderam: “Olha, o que é sério e trabalhador é o mais menino deles, que se chama Ruggero e trabalha no Mercado Municipal”. Isso foi em 1945. E ele procurou o seu avô?
Sim, esse conde Lara chamou meu avô para um café e falou: “Olha, eu tenho um espaço onde era o antigo restaurante do teu pai e queria reabri-lo com você. Te dou todo montado. Você entra com as mesas, as cadeiras e a louça”. Por vergonha de dizer que não tinha dinheiro nenhum, o nonno declinou do convite. Chegou a comentar com a vizinha de barraca e ela disse: “Ruggero, você é maluco. Essa é a oportunidade da sua vida!”. No dia seguinte, essa vizinha chegou com um saco de dinheiro em moedas e incentivou: “Vai lá falar com o conde Lara. Me devolva o dinheiro quando puder”. Meu avô depois devolveu, claro. Ligou para o conde Lara: “Olha, eu tenho o dinheiro. Só que eu quero chamar de Fasano, não de Brasserie Paulista”. Foi o primeiro a estampar a palavra Fasano na porta. E as histórias do Jardim de Inverno do Fasano da Paulista? O restaurante recebeu de Eisenhower a Fidel Castro.
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O que fez o Fasano do meu avô famoso não foi o restaurante. Era um lugar muito agradável, mas era famoso pela coxinha. No menu, tinha estrogonofe, steak Diana, coquetel de camarão e petiscos, além da parte de confeitaria. Não era especializado em gastronomia italiana, ao contrário do Cá’d’Oro. Quanto ao Jardim de Inverno Fasano, na avenida Paulista, era um espaço gigantesco, lindo. No segundo andar, teve festa de casamento de 80% das famílias endinheiradas de São Paulo. Todos os eventos eram nesse piso, inclusive o jantar para o presidente americano Dwight Eisenhower. Como foi esse jantar?
Meu avô contratou 300 garçons para 300 convidados. Mandou fazer esculturas de gelo com a forma da Estátua da Liberdade, todas com velinha dentro. Na hora de servir, apagaram-se as luzes e entraram as 300 Estátuas da Liberdade. Eisenhower se levantou e chorou copiosamente. Era o que meu avô fazia de melhor. Ele organizava festas no interior, também. Chegou a ter um aviãozinho para levar o catering. Isso era o Fasano. Na época de Natal, vendia 8 mil perus para a cidade inteira. E o seu pai nessa história?
Ele nunca gostou, de fato, de ter um restaurante. Até porque já tinha lançado o uísque Old Eight. Sempre ligado em marketing, acabou fazendo um acordo com a TV Record. Quando vinham grandes cantores ao Brasil, havia um jantar de gala no Fasano. Meu pai havia morado dez anos nos Estados Unidos e falava muito bem inglês. Estudou lá fora, inclusive, com o Roberto Civita. Contratou Nat King Cole e Marlene Dietrich, por exemplo, já acertado com a Record. Mas aí o Old Eight foi conquistando a liderança de mercado, batendo
o Drury’s – e meu pai ganhou muito dinheiro. O restaurante passou a ser apenas curtição. Quando minha avó morreu, o Fasano foi fechado porque não tinha mais sentido. Meu pai não queria tocar. Vendeu junto com a marca, para a Liquigás. Como isso influenciou você?
Cresci ouvindo essas histórias, mas longe de mim querer fazer um restaurante. Não passava pela minha cabeça. Até porque eu tinha pai rico. Aos 16 anos, fui estudar cinema em Londres. Na verdade, eu não sabia o que queria fazer. Só gostava muito de morar em Londres.
Aí a família te chamou de volta ao Brasil?
Eu trabalhava em Londres como barman e recebia ajuda financeira do meu pai para o curso de inglês – que eu não pagava, porque não ia. Meu inglês era muito ruim, pois eu convivia com muitos brasileiros. Aí fui fazer um curso de imersão em Oxford. Pelo menos o inglês eu queria aprender. Hoje, não é nota 10, mas me viro muito bem. De volta ao Brasil, aos 20 anos, lembro-me de um dia tocar o telefone, e meu pai atender. Por sorte ou destino, eu estava ao lado e falei para ele: “O que foi essa
“O TOMBO FINANCEIRO DO UÍSQUE BRAZILIAN BLEND PEGOU NOSSA FAMÍLIA DE JEITO. PERDEMOS TUDO: CASA, FAZENDA, BARCOS, TUDO, TUDO. E MEU PAI AINDA FICOU DEVENDO” Você havia terminado o colegial no Dante Alighieri?
Sempre estudei no Dante. Só que, como passei seis meses fazendo intercâmbio nos Estados Unidos, no último ano do colegial, saí do Dante, onde teria repetido por faltas. Fui para o Liceu Eduardo Prado. Meu diploma é de lá. Havia o lema: “Liceu Eduardo Prado, entra burro e sai tapado”. Quando você estava em Londres, seu pai sofreu um grande revés financeiro ao lançar o uísque Brazilian Blend.
Houve um problema na fórmula do uísque. Meu pai era jovem e, em vez de admitir e falar “essa eu perdi”, tentou resgatar o produto. O Brazilian Blend foi o patrocinador da Copa do Mundo de 1978 na TV brasileira. Imagine o tamanho disso. Era o nosso uísque e a Shell nos intervalos. O tombo pegou a minha família de jeito. Perdemos tudo: casa, fazenda, barcos, tudo, tudo. E meu pai ainda ficou devendo.
conversa estranha?” Ele disse: “Rogério, engraçado. Ligou o [João Alves] Veríssimo querendo reabrir o Fasano no Shopping Eldorado”. Meu pai disse ao Veríssimo que estava em concordata, cheio de pepinos e que não poderia assumir um restaurante, que exige dedicação total. Daí eu falei: “Pai, eu quero”. Havia um problema com a marca Fasano, não?
Pois é. Depois de tudo fechado, o meu pai me diz: “Esqueci um detalhe. Quando vendi o Fasano para a Liquigás, acho que a marca foi junto”. Aí entrei em contato com o senhor Ligabó, da Liquigás. Ele foi muito generoso. Disse que precisava consultar os patrões, em Turim. Depois, me devolveu a marca pelo preço simbólico de um centavo. Como foi o seu primeiro restaurante?
Meu pai lembrou do nonno. Disse: “A partir de agora, você não terá mais fins de semana. Está preparado para isso?”. Sou
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CAPA supergrato ao Veríssimo, que acreditou num moleque de 20 anos. O Shopping Eldorado estava um pouco à frente do seu tempo. O Veríssimo queria fazer um piso de gastronomia, levou o Rodeio e o Gallery para lá. Abrir um Fasano foi ideia do José Victor Oliva. Minha grande besteira foi me deixar ser convencido a abrir uma casa de nouvelle cuisine, modismo que estava explodindo no mundo Você cozinhava?
Jamais cozinhei profissionalmente. Fiz um restaurante francês, com um nome muito pretensioso: Jardin Gastronomique Fasano. Contratei um chef discípulo do Paul Bocuse. Foi um desastre. O cara abria duas nozes mínimas e servia como prato. Uma desgraça. Um fracasso. Eu teria tudo para dizer: “Me dei mal nesse ramo, não quero mais, vou procurar outra coisa para fazer”. Mas o ramo me fisgou. Falei para o meu pai: “Quero montar um restaurante pequenininho, na rua, chamado Fasano, de cozinha do norte da Itália, que é a que conheço bem”. Eu queria fazer aquilo que gostava de comer quando ia aos nossos almoços com a nonna: ossobuco à milanesa, escalope, risotos... Sempre a nonna.
A pasta italiana: sempre em primeiro plano
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Saímos do Eldorado e fizemos o Fasaninho na rua Amauri. Na época, a sociedade éramos apenas meu pai e eu. Aí fui à Itália e procurei um chef da Lombardia. Encontrei o Luciano Boseggia. Foi um estrondoso sucesso. Para quem vinha de um fracasso, o Fasaninho foi um golaço. O único problema era o contrato malfeito de locação do imóvel. Depois de quatro anos, tivemos de sair. Com o dinheiro da indenização, que recebemos para não brigar, compramos o ponto da rua Haddock Lobo e fizemos o Fasanão. Por um lado foi muito importante. Por outro, um peso enorme.
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Como assim?
Eu queria um restaurante e ganhei um castelo. Isso dividiu a cidade. Era de uma suntuosidade fora do comum, com um pé-direito altíssimo. Demandou três anos e meio de obras, além de endividamento. O arquiteto me engabelava. Quando vi, recebi aquele castelo e pensei: “PQP! Tenho só 26 anos!”. Aí eu forçava muito a barra para o meu pai ir comigo, dizendo que só tinha clientes dele. Ele brigava: “Você quer que eu seja um maître de luxo”. Como foi a divisão de opiniões sobre a casa?
Tinha gente que dizia: “Que bacana! Finalmente São Paulo tem um lugar assim”. Outros rebatiam: “Esse lugar é absurdo, too much. É over”. Saíram muitas inverdades. O que derrubou logo de cara foi uma matéria do Estadão. Eu ainda era um pouco ingênuo para essas coisas. A repórter me perguntou: “Quanto pode custar um jantar no Fasano?”. Eu falei: “Senhora, isso não é uma pergunta. O preço depende dos pratos e da bebida”. Eu já trazia trufas. Hoje, trago ao longo de três meses por ano, quando os concorrentes, em geral, trazem durante só uma semana. Pois bem, a tal repórter conferiu os menus, somou duas entradas de trufas, dois pratos de trufas, mais um vinho Château não-sei-o-quê e saiu na capa do Estadão: “Um jantar no novo Fasano custa US$ 700 por pessoa”. Como foi a repercussão?
Foi parar no Jornal Nacional. Picharam a fachada do restaurante. No dia seguinte, metade do salão havia cancelado a reserva. Era 1990, tempo do Plano Collor, imagine. Foi punk. Sofri muito. Mas sabia que o restaurante tinha de vencer pela qualidade. Comecei a importar carne dos Estados Unidos. Trazia arroz de fora também. Só eu
tinha essas matérias-primas. Diziam: “Que absurdo importar arroz na terra do arroz”. E teve a questão das reservas também.
Saiu uma matéria grande na Folha de S.Paulo que dizia que só se podia entrar com reserva e gravata. Imagine isso num boca a boca numa São Paulo muito menor do que é hoje. Virou um estigma. E não era verdade. Nunca houve essa regra. Fomos pioneiros em instituir a reserva, mas nunca foi obrigatória. Você acha que vou impedir o cliente de se sentar a uma mesa, se ela estiver vaga?
jogavam as peças no mar, embaladas em isopor. Ele ia com um botinho dele e pegava. O Renato servia a mim e ao Giancarlo Bolla [falecido sócio do Gallery, do Leopolldo e do La Tambouille]. Você chegou a ser detido no aeroporto por ter trazido alcachofrinhas...
Não por causa das alcachofrinhas. Mas porque, assustado, fugi da Polícia Federal. Naquele dia, primeiro pegaram o Manoel Beato [sommelier responsável pela adega do grupo Fasano]. Depois, fui eu. Fiquei seis horas de castigo tomando bronca. Hoje, importamos a alcachofra sem problemas.
“LEMBRO QUE, ANTES DO FASANO, NÃO SE VALORIZAVA O CHEF. O PORTEIRO É QUE ERA IMPORTANTE. IMAGINE, AS CASAS FAZIAM DE TUDO PARA ROUBAR O PORTEIRO DO GALLERY” Em compensação, o governo
Foi o Fasano que valorizou a figura
Collor abriu as importações, o que te
do chef?
ajudou muito. Como fazia na época
Sim. À exceção da rede de hotéis Méridien, foi o primeiro restaurante na história de São Paulo a dizer: “Eis o meu chef, o senhor Luciano. Ele pode sair nas capas de jornal e de revista”. Ninguém fazia isso. Valorizamos a profissão. Lembro que o porteiro é que era importante. Imagine, as casas faziam de tudo para roubar o porteiro do Gallery. Nenhum demérito, por exemplo, ao Giancarlo Bolla. Ele sempre foi uma pessoa na qual me espelhei. Porém, o Giancarlo vestia terno e gravata para uma matéria da Exame VIP. Para a revista Gula, colocava jaleco de cozinheiro. Então, ficava essa figura dúbia entre chef e dono de restaurante. Na verdade, o Giancarlo era um homem de salão muito bom. Nunca foi um chef. No Cá’d’Oro, sempre foi maître. Nunca cozinheiro. Então, o Fasano foi o primeiro restaurante a elevar a categoria do chef. Para você ter ideia,
em que elas não estavam liberadas?
Já fiz muito muamba, fazia o sinal da cruz antes de passar pela alfândega. Eram outros tempos. Tinha um contrabandista, o senhor Renato, que escalava navio pela corda. Ele comprava tudo de navio italiano: arroz, presunto, mortadela. Os cozinheiros a bordo faziam muamba pra cacete. Aí um dia eu liguei para ele e perguntei: “Renato, cadê as minhas coisas?”. Ele respondeu: “Sr. Rogério, ha cambiato il comandante” (mudou o comandante). Eu falei: “E eu com isso?”. Ele retrucou: “Ma il comandante è tedesco” (mas o comandante é alemão). Eu falei: “Foda-se, o que eu tenho a ver com isso?” E ele: “Ma quando il comandante é tedesco, non mi fanno entrare, cazzo!” (Quando o comandante é alemão, não me deixam entrar!). Sei que esse Renato tinha também outro método: os cozinheiros
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CAPA quando me tiraram o Luciano, pagaram luvas para ele sair daqui. Contrataram como se fosse um Neymar. Você valorizou os chefs, mas não acha que hoje eles se tornaram estrelas demais?
Acho que existe uma vaidade muito grande. Tem chef muito pensador, não é? Estou com saudade do antigo cozinheiro. Sou o único restaurante que tem estrela no Michelin sem que o dono seja chef. Brinco que sou o último dos moicanos. Gosto do restaurante do restaurateur. É o cara que entende a cidade. Os restaurantes de chefs costumam ser muito técnicos, com salão travado, sommelier que te impõe uma carta. Isso acontece muito em lugares três estrelas Michelin. Você não se sente à vontade.
E qual foi o papel do Gero nisso?
O Fasano me deu muita experiência e reconhecimento. Já o Gero me trouxe alegria. Tanto é que eu quis dar muito de Gero ao novo Fasano. Quando eu disse que iria sair da Haddock Lobo, as pessoas me chamaram de maluco. Eu queria rejuvenescer o Fasano, manter um pouco da formalidade, mas dar a ele uma contemporaneidade que o antigo não tinha. E o mais importante: eu não caso com os muros. Isso eu vi com o meu avô. Ele tinha tudo no centro da cidade. Dez anos depois estava tudo destruído. Depois passou para a Paulista. Hoje é a Faria Lima que bomba. O centro da cidade vai mudando.
Vai mudando. Se, de repente, daqui a dez anos, esse hotel não for bem mais aqui,
“SAÍRAM REPORTAGENS TERRÍVEIS SOBRE O FASANO. SABE QUEM ME AJUDOU? O PAULO FRANCIS. ELE DISSE NA TV QUE EM NOVA YORK NÃO HAVIA UM RESTAURANTE ITALIANO TÃO BOM QUANTO O NOSSO” O salão é muito importante?
Acredito que tudo faça parte de uma experiência. Óbvio que começa pela gastronomia, mas o salão é muito importante. Sentir-se bem é muito importante. Assim como a luz, o serviço, o sommelier, o garçom e o barman. Tem de ter na equipe gente que saiba conversar. Sou muito mais um restaurante de metrópole. Costumo brincar dizendo que, se tivesse um restaurante no interior da França em que todos os comensais, absolutamente todos, viessem falar comigo sobre foie gras, juro que dava um tiro na cabeça. Deve ser a coisa mais chata do mundo. Hoje é você. Amanhã será outro e o assunto não muda: “Mostre para ele como você produz o foie gras”. Aí você vai lá e mostra. Gosto de falar da vida. Sou um cara de metrópole e me realizei com isso.
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tem de mudar de lugar. Eu já não aguentava mais o antigo Fasano porque via o quanto o Gero era divertido. Você montou o Gero exatamente para ter algo mais informal.
Eu estava lendo uma matéria sobre os bistro à côté e bistro en face. Era uma tendência de se usar uma infraestrutura gigantesca da casa-mãe em um pequeno restaurante. Escolhiam um lugarzinho do lado e faziam uma versão light e mais jovem, com preço menor, do restaurante-mãe. Daí olhei pela janela e vi a casinha com a placa “Aluga-se”. Saí correndo. As donas, velhinhas, já tinham alugado. Ia ser uma charutaria. Chorei e consegui convencer as velhinhas a alugar para mim. Aí nasceu o Gero. Um restaurante happy não é só baseado na gastronomia, mas no
clima. As pessoas riem. É o que acontece no Fasano de hoje também. O Fasano da Haddock Lobo intimidava as pessoas?
Sim. A imponência assustava. As pessoas falavam baixo. E ainda saíram aquelas matérias nos jornais. Sabe quem me ajudou? O Paulo Francis. Ele disse na TV que em Nova York não havia um restaurante italiano tão bom. Lembro que fui falar com o senhor Frias, na Folha de S.Paulo, para ver se ele podia me ajudar. Eu queria fazer um anúncio mostrando que um dos Mesquita, dono do Estadão, foi ao Fasano e pagou US$ 60 e não US$ 700. Eu tinha a nota fiscal comigo. O Frias me disse: “Eu adoraria fazer isso por você, mas você vai se ferrar num grau que nem imagina”. Aí ele ligou para o Mesquita na minha frente e, em seguida, me disse: “Vai lá que estão te esperando”. Fui falar com o Augusto Nunes, diretor de redação do Estadão na época. Ele reconheceu o erro e pôs o jornal à minha disposição. Aliás, mais tarde, citou publicamente o caso do Fasano como uma falha grave do Estadão. O Fasano ter ficado de pé foi um milagre, porque aquela matéria de capa era para ter nos quebrado. E a formação dos funcionários? Você tem fama de perfeccionista.
Não tenho um método. As redes hoteleiras criam uma cartilha de atendimento. Não temos isso. Formamos no dia a dia. Digo ao funcionário: “Olhe, por favor, não fale assim. Nunca mais fale assim”. Cliente para mim tem de ser tratado por “senhor”. Se eu tenho intimidade, chamo de “você”. Se não tenho, continuo chamando de “senhor”. Você critica o excesso de serviço.
Exato. Falo para o pessoal: “Sejam transparentes. Sumam”. Porque agora tudo que você pede é acompanhado de
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1. O nonno Ruggero, a nonna Ida e os netos Rogério, Andrea e Fabrizio Júnior, em 1962; 2. Fabrizio e Daisy, os pais de Rogério, no baile de formatura, no Hotel Esplanada; 3. Aos 17 anos, quando morava em Londres; 4. Com o amigo Kaká; 5. No dia do casamento com a decoradora Ana Joma; 6. No lobby do Hotel Fasano de São Paulo, com o amigo Isay Weinfeld; 7. Ao lado dos filhos, Anna e Vittorio
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CAPA uma pergunta, é insuportável: “Me traz uma água?”. E o garçom: “Com gás ou sem?”. Você responde “Sem gás” e ele: “Gelada?”. “A Coca-Cola com gelo é diet?” Você está conversando e o garçom te interrompe. Aí você perde o fio da meada. Não pode ir à mesa a cada dois minutos para perguntar se está tudo bem, o excesso do serviço é muito chato. Que requisitos são necessários
Há alguma expressão italiana que você usa muito?
Sim, uso muito a palavra cazzo... Falo muito palavrão. Isso é um erro, eu sei. Nessas viagens você aproveitou, claro, para conhecer os profissionais
para se abrir um bom restaurante?
que trouxe da Itália para o Brasil.
O lugar precisa ter personalidade. Fui agora mesmo a restaurantes muito simples em Portugal, e são fantásticos. Também fui a outros, mais sofisticados, também fantásticos. O mais importante é você servir aquilo que, de fato, gosta de comer. Fico lendo as entrevistas dos chefs desses restaurantes moleculares. Quando perguntam o que gostam de comer, a resposta é sempre a mesma: “Arroz, feijão, picadinho e ovo frito”. Porra, então por que não servem isso, se gostam tanto assim? Eu sirvo o que adoro. Estou trazendo uma pancetta maravilhosa. Tenho prazer de pôr no meio da mesa e dizer ao cliente: “Experimente”. Quando o restaurante passa essa verdade, costuma me agradar.
Quando abri a Forneria San Paolo, fiquei 20 dias em Nápoles, procurando um chefe pizzaiolo. Achei um, chamado Enzo, pequeno e muito metido. Quando saía para a rua, ele consultava os pelos do braço e dizia: “Trenta e due percento”. Estava medindo a umidade do ar, que é muito importante para calcular a quantidade de fermento na massa. Por isso, às vezes o pão da padaria é mais murcho, e outras vezes, mais crocante. Aluguei um flat mobiliado para o Enzo e a mulher dele. Ele viveu ali por três meses. Estava em São Paulo para ensinar meus funcionários. No primeiro mês, já engravidou uma moça que fazia a limpeza do salão. Não parou de aprontar. Até que o devolvi para a Itália. Aí me liga o dono do tal flat, e me conta que o Enzo vendeu tudo o que havia lá dentro: geladeira, fogão, quadros, cafeteira. Vendeu até o carpete e a tábua do vaso sanitário, você acredita?
Você já disse que luxo é poder alugar um carro na Itália e viajar pelo interior do país. Qual foi a melhor dessas viagens?
Adoro viajar pela Itália. A última viagem que fiz, em companhia do Isay [Weinfeld, o arquiteto], foi especialíssima. Mas as melhores muitas vezes não foram por causa do lugar, mas de um amor recente que estava comigo. Lembro-me de andanças pela Borgonha em que eu parava o carro e transava atrás das árvores em áreas de piquenique. Ainda tinha 30 e poucos anos. Ou 40. Estava com mulher
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nova. Mas conhecer a Itália foi sempre muito gostoso. Hoje, me gabo de descobrir pelo sotaque se alguém é vêneto, lombardo, napolitano ou turinês.
O que você espera de um chef?
Sorriso, prazer, vontade, talento. Esse negócio de chef estrela pra mim não rola. Chibatada dentro da cozinha, nem pensar. Aqui precisa ter bom astral. Eu trouxe um chef certa vez que é um bosta. Aliás, acho que mais tarde ele até foi preso. Sabe o que ele fez? Pegou um dia a mão de um maître e enfiou na água quente. Meu pai
presenciou e deu uma porrada nele, nunca vi meu pai tão bravo. Acho que esses chefs autoritários são, no fundo, inseguros. Já fui tido como um patrão muito bravo. Mas minha braveza dura cinco minutos. Depois já está tudo bem, entendeu? Outro dia me perguntaram: “Mas você, não sendo chef, como consegue manter o Fasano entre os melhores restaurantes?”. Respondi: “Justamente porque, se preciso, posso trocar o chef”. É uma puta vantagem que o chef dono de restaurante não tem. Como você percebe que um chef está pisando na bola?
Basta ver como reage a equipe dele. O último chef do Fasano, quando saiu, a cozinha me pediu autorização para abrir dois espumantes e festejar. Ele jamais se preocupou com o bem-estar dos funcionários. Só com o dele. Que pratos principais você trouxe para o Brasil?
Os risotos, com certeza. As polentas. Aquela polenta taragna, por exemplo. As milanesas, certamente. E a cultura da vitela, claro. Trazíamos de fora. Porque aqui, como em todos os países que criaram gado para corte, não há carne de vitela. Deixa-se o boi crescer. A carne de vitela, de boi jovem, é produzida na Itália, na Áustria, países montanhosos, onde se cria gado para leite e não para corte. Infelizmente, a importação de carne de vitela foi proibida. Foi você quem introduziu o tiramisù por aqui?
Ah, foi o Fasano, sim. O autêntico, digo. Tinham começado a fazer essa sobremesa por aqui, mas usavam cream cheese no lugar do mascarpone. Não é a mesma coisa, claro. Aí passei a importar o mascarpone e o meu tiramisù ficou famosíssimo. Eu era muito amigo do Gianni Grisendi [ex-pre-
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sidente do grupo Parmalat no Brasil], e, depois de uma conversa, ele desenvolveu um mascarpone que me fornecia. Mais tarde, com a abertura das importações, ficou mais fácil achar o italiano. Outra coisa que lançaram no Brasil de maneira equivocada foi o carpaccio. Chegou aqui como carne cortada congelada, fatiada em máquina. Tudo movido pela ideia de que quanto mais fininho, melhor o carpaccio. O que não é verdade. O carpaccio genuíno é cortado na ponta da faca e nunca congelado. Sabe o que acontece? O congelado descongela no prato e sai aquela pequena aguinha, que para mim é disgusting. São as distorções. Há muitas de-
Sim, ouço muito as pessoas falarem: “Minha cozinha é a do quarteirão!”. Você vai e os chefs estão usando peixes da Amazônia. Pô, são pelo menos cinco horas de avião para chegar aqui. Isso é ingrediente local? Qual a diferença em se trazer um maravilhoso turbot da Espanha? Cozinha do quarteirão, no duro, é o que o chef José Gordón faz no restaurante dele, a Bodega El Capricho de Jamuz, perto de León, no norte da Espanha. Aí, sim. Comi ali uma das três melhores carnes que provei na vida.
Você não acha que essa cozinha molecular é uma moda que está passando?
Acho que sim, acho que as pessoas já se encheram o saco. Pelo menos no meu rol de amigos, eles me pedem: “Pelo amor de Deus, Rogério, nós vamos comer comida, né?”. Não preparo nada com nitrogênio líquido. Brinco, dizendo que usava nitrogênio líquido para tirar verruga. Poxa, se tira verruga, o que não faz no teu estômago?
“EU TROUXE UM CHEF QUE PEGOU A MÃO DE UM MAÎTRE E ENFIOU NA ÁGUA QUENTE. MEU PAI PRESENCIOU E DEU UMA PORRADA NELE. CHEFS AUTORITÁRIOS SÃO, NO FUNDO, INSEGUROS”
las na reinterpretação da culinária italiana, não?
Na cozinha italiana, o que faz a diferença é a matéria-prima. Veja o caso do molho à carbonara. É um prato simples, mas precisa dos produtos corretos. No Brasil se costuma preparar com creme de leite e bacon. É até gostosinho de comer. Ora, pode até ser feito com capricho e boa vontade, mas não é um carbonara, certo? A receita original é preparada com emulsão de ovo e guanciale, um defumado feito com a bochecha do porco. Importar um bom guanciale é que é o problema. Por que o Luciano [Boseggia] virou o rei do risoto? Ele sempre foi bom cozinheiro, sim. Mas nem é tão complicado fazer risoto, desde que se use arroz arbóreo italiano. E só o grupo Fasano tinha essa matéria-prima. E pensar que saíram matérias, no começo do restaurante, chamando arroz arbóreo de frescura. Uma das modas agora é dizer que se faz “cozinha do quarteirão”, isto é, usando apenas ingredientes de pequenos produtores das redondezas.
Como era?
Fiquei maluco com essa história. Provei uma costela espetacular. Era macia e muito saborosa. Perguntei qual era o segredo e me disseram que era “vaca vieja”. Exatamente. Vaca velha, que foi de leite, mas, depois de dez anos, já não tinha mais leite. Com a idade, já não se aproveita o filé-mignon e outras partes nobres. Mas a costela fica ótima. Tanto que eles só servem a chuleta. E custa uma fortuna. Você dá liberdade aos chefs?
Sim. Eles podem criar um menu autoral. Mas, acima de tudo, têm de gostar da cozinha clássica italiana. Quando vou entrevistar um chef lá na Itália, o cara diz: “Perché la mia cucina, la mia cucina, la mia cucina”. Eu rebato: “Alto lá, antes de você existe uma cozinha chamada italiana”. Hoje, há uma obrigatoriedade em ser criativo. Quando você come um prato que tem na memória, pode dizer: “Poxa, esse foi o melhor filé à Rossini que comi na vida”. Que referência você tem da dita cozinha molecular?
A mais recente lista da revista britânica The Restaurant saiu e ninguém deu muita bola.
É impossível eleger os 50 melhores restaurantes do mundo, não há critério possível para se chegar a um consenso. Se a lista fosse dos 50 chefs de vanguarda, vá lá. Você não pode comparar um lugar em Tóquio, que faz sushi e só atende oito pessoas, com o Le Bernardin de Nova York, que tem uma carta de vinho de 3 mil rótulos só de vinhos brancos e um sommelier que te explica exatamente como é cada um. Eu teria vergonha de fazer a barba de manhã cedo e pensar: “Tenho o melhor restaurante do mundo”. Qual será próxima cozinha eleita?
Não sei. Olhe, pense no restaurante do Bottura [o chef Massimo Bottura, da Osteria Francescana, em Módena], que foi considerado o melhor do mundo. Aliás, um cara muito legal. Aquilo virou turismo. As pessoas todas tirando fotos dos pratos, deixando mochila no chão. Uma coisa de louco. Graças à fama, o perfil do cliente
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CAPA
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1. Aberta em 1902, a Brasserie Paulista foi o primeiro restaurante da família; 2. Programa do show de Marlene Dietrich no Jardim de Inverno Fasano, no Conjunto Nacional, avenida Paulista; 3. Posando feliz, ao lado de um ídolo: Francis Ford Coppola, o cineasta de O Poderoso Chefão; 4. Com o sócio Zeco Auriemo, do Grupo JHSF; 5. Na abertura da Locanda Fasano, em Punta del Este, o primeiro hotel Fasano no exterior; 6. O hotel Fasano de Miami tem inauguração prevista para 2019
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mudou. Se você ligar lá, lhe dirão que só poderá fazer reserva daqui a seis meses. Quer dizer, o Bottura deve estar feliz com a afluência, mas... Como inovar os pratos clássicos?
Você pode deixar a receita mais leve. Os risotos que eu servia nos anos 1990, eu não comeria mais. Eram muito mais cremosos, no sentido de muito mais manteiga e queijo. Hoje, são tirados antes do ponto. Ficam mais líquidos, para que você não tenha que amanteigá-los com um quilo de parmesão, um quilo de manteiga. A cozinha italiana é menos pro-
Aprendem desde cedo a comer pratos fortes, como a tripa. Elas comem o que os homens comem. Não tem essa coisa de pedir: “Eu queria um linguadinho, uma saladinha verde, bem leve”. Poxa, o que é leve? Eu não sei, minha senhora, o que é leve. Coma bem e bastante e depois faça ginástica. Como foi que você, um restaurateur, aderiu ao ramo da hotelaria?
O Fasano Hotel só existe porque o Cà’d’Oro existe. O Cà’d’Oro era um restaurante que deu vazão a um hotel. Sempre foi o meu sonho repetir essa trajetória. Senti que poderia concretizá-lo quando
será usado por executivos, claro.
O de BH fica no bairro de Lourdes, um lugar nobre. Será bem aproveitado por executivos que passam sempre pela cidade e hoje não encontram um hotel com o padrão de serviços e qualidade do Fasano. Acho que também conseguiremos aproveitar o fluxo de turismo que cresceu por conta de Inhotim. E o de Trancoso? Está sendo erguido na linda praia de Itapororoca. É único hotel do lugar. Isso garante privacidade e contato com a natureza. O Isay fez um belo projeto.
pensa a experimentalismos?
Quando saiu uma dessas listas da revista The Restaurant, e apenas três restaurantes italianos estavam incluídos, um crítico da Itália disse aliviado: “Isso é a garantia de que continuaremos a comer bem”. Porque italiano tem essa consciência da boa cozinha familiar. Eles são até chatos com isso. Você pergunta: “Onde eu como a melhor milanesa em Milão?”. Eles respondem: “Na casa da minha nonna”. Pô, então manda a tua nonna abrir um restaurante, caramba! Essa coisa da comida da nonna é um pouco too much. Mas, de fato, eles são muito ligados à cozinha tradicional. Sempre digo que a França tem os melhores restaurantes do mundo agrupados numa única metrópole. Paris, claro. Isso ocorre até por circunstâncias históricas. Depois da Revolução Francesa, aqueles 200 cozinheiros do rei abriram restaurantes ou foram trabalhar em algum. Mas a Itália é esplêndida em pequenos restaurantes de cozinha local. Até o vinho é local.
Até o vinho. Nada é inventado. Não tem essa de dez pessoas numa mesa pedirem dez pratos diferentes. Não funciona assim. As mulheres italianas não têm frescura.
“TIVE DE SAIR DA FESTA DE INAUGURAÇÃO DO PRIMEIRO HOTEL FASANO. DEPOIS DE DESCERRAR A PLACA, PASSEI DUAS HORAS CHORANDO. FOI O DIA MAIS EMOCIONANTE DA MINHA VIDA”
descobri três terrenos aqui nessa rua. Virou uma ideia obsessiva. Quando descerramos a placa do hotel, foi o dia mais emocionante da minha vida. Choramos eu, meu pai e o Isay. Fiquei duas horas fora da festa, porque não conseguia parar de chorar. O primeiro hotel a ser inaugurado da nova safra será o de Angra do Reis. Onde fica?
Fica no lindo local onde havia o antigo Hotel do Frade. Será praticamente dentro d’água. E até por conta disso vou fazer um restaurante de crudo lá, com muitas opções cruas de frutos do mar. O projeto é da Bernardes Arquitetura, que fez um hotel com só 60 quartos. Paraty é a região mais próxima que oferece conceitos de hotelaria com bom padrão, mas não vejo nenhum resort com a proposta do Frade por lá. Depois, virão os hotéis de Belo Horizonte e Salvador, que usará o antigo prédio do jornal A Tarde. O de BH, que não é uma cidade turística,
Por fim, o Fasano de Miami. Você acha que os hóspedes serão, de início, principalmente brasileiros?
Ficará no coração de South Beach. Nós fomos convidados a operar, mas o investimento é todo de uma empresa de real estate chamada HFZ. Olhe só que coincidência: eles já haviam contratado o Isay para assinar o projeto. Ainda temos questões em aberto. Se você quer saber, ainda não decidi como será a culinária, mas claro que o hotel chamará a atenção de brasileiros que já frequentam Miami e conhecem a nossa marca. E o sonho de abrir um restaurante ou hotel em Nova York?
Se encontrarmos local e parceiro certos e dentro de uma situação econômica favorável, com certeza Nova York pode se tornar realidade. E por que não alguma cidade europeia? O que dá mais trabalho: hotel ou restaurante?
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Rogério e o pai: inseparáveis como massa e vinho
Mil vezes um restaurante. É muito difícil botar um hotel de pé. Exige um investimento vultoso. Mas, uma vez aberto, é só seguir à risca um determinado número de regras. Não exige a presença do dono. Já um restaurante, nunca se sabe. Não há regras. Há restaurantes que você olha e diz: “Isso aqui não vai pegar nunca”. E não é que pegam? Vai ver o dono é muito simpático, tem trânsito na mídia, uma série de fatores que não têm nada a ver com a comida. Fala-se em crise, mas São Paulo inaugurou um hotel de primeiríssima, o Palácio Tangará, e tem outros na agulha. Como você explica?
Acho que São Paulo está over ofertada em matéria de luxo. São shoppings de luxo, hotéis de luxo, restaurantes de luxo. E ainda há vários projetos vindo por aí. Acho excessivo. Estou curioso para ver o que vai acontecer. São Paulo não é Nova York.
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Você diz que não existe um melhor restaurante do mundo. Mas para avaliar hotéis há critérios mais objetivos. Quais são os melhores?
O primeiro quesito vai ser location. Quando você abre a janela do quarto no hotel Splendido, em Portofino, na Itália, e vê a baía de Portofino, aquilo te deslumbra. Não deve nada ao desenho do Rio de Janeiro. Ter história para contar também, casos de um Copacabana Palace ou um Ritz de Paris. Fiquei agora no hotel Maria Cristina, em San Sebastián, na Espanha. Que maravilha! O Fasano do Rio tem grande location e é um hotel divertido. No Brasil, é difícil encontrar lugares em que o Sol se põe no mar. No nosso hotel, em Ipanema, é assim. Em Copacabana e no Leblon, que são vizinhos de Ipanema, já não é. Como foi a associação com o grupo JHSF?
Essa associação ocorreu em 2007. Fui eu que os procurei. Sempre tive sócios
que administram. Não sou um gestor vocacional, mas um fiscal de qualidade. É muito entediante para mim se você ficar me mostrando dez vezes números, sabe? Eu fico bocejando. Até brinco: “Cara, esse negócio de ganhar dinheiro é muito chato, eu não gosto, não preciso, então deixa como está”. Ganhar dinheiro não tem correlação nenhuma com fazer sucesso. Não posso me queixar de não ter feito sucesso. Agora, transformar sucesso em dinheiro é outra coisa, que nem sempre eu soube fazer. E dinheiro é fundamental para que os negócios evoluam. Por exemplo: quero comprar fornos que custam 40 mil euros cada um. Para isso, a empresa tem de estar lucrativa e estável. O que mudou na sua vida depois de três stents?
O meu problema não é gordura na veia. Eu e meu irmão temos outro problema. Nosso organismo produz muito cálcio, que vai parar na veia. É algo que tenho de
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controlar. Graças a Deus, nas três vezes em que houve excesso de cálcio na veia, eu tive sinais: senti dor, tive falta de ar. Nunca infartei. Minhas veias foram desobstruídas antes disso. Sempre em afluentes menores e menos importantes. Preciso ficar sempre fazendo exames, controlando e coisa e tal. Fazendo dieta...
Não. Não abuso da comida. Pelo que como, deveria ser magérrimo. O problema é o vinho, que é extremamente calórico e bebo desde os 15 anos. Você prefere vinho francês, não é?
Minha paixão são os Borgonha. Adoro o vinho italiano. Mas são vinhos mais difíceis. Tomar um bom Barolo é inacreditável, mas tem de estar na época certa. O ideal é cozinha italiana, vinho francês, carro alemão e mulher brasileira. Você planeja abrir mais restaurantes?
Por aqui, não. O que eu quero fazer é uma sanduicheria, num lugar pequenininho, jovem, descolado. Quero chamar de Gero Panini. Eu tive as Forneria, né? Mas eram grandes, com cardápio diversificado. Quero uma casa só de sanduíches, uns 14 tipos de panini. Vamos falar um pouco de cinema, sua velha paixão.
Estou no barato das séries americanas. Elas estão comendo o cinema, porque convocaram os melhores roteiristas e os melhores atores. O dinheiro está lá agora, né? Vi uma série, recente, Prisioneiro de Guerra, sensacional. E também The Night Of, maravilhosa, com o John Turturro. Sem esquecer de Família Soprano, a melhor coisa que eu vi nos últimos anos. Você é daqueles que varam madrugadas assistindo a séries?
Nos fins de semana fico até as 5 da
manhã. Mas tenho saudade, por exemplo, do grande cinema italiano: Antonioni, Bertolucci, Vittorio de Sica, aquela Lina Wertmüller, Mario Monicelli, Dino Risi. Sem contar os franceses, e americanos como Coppola e Kubrick. Não sou saudosista, mas revejo muitos filmes antigos. E música? Você ainda gosta daquela das décadas passadas?
Eu gosto muito do Clash, Lou Reed e David Bowie. E de Paulinho da Viola. Sou apaixonado por ele. Adoro Caetano e Arnaldo Antunes. Já amei Talking Heads, Smiths e Pink Floyd. Mas tenho
a história com o Ron Wood, guitarrista da banda?
Foi no dia da inauguração do restaurante Fasano em Punta del Este. Você sabe que o Ron usa um penteado em que os cabelos ficam para cima, né? Parece um índio pataxó. Ele chegou com um amigo meu e, para entrar no restaurante, é preciso passar por um jardim em que instalamos um sistema de irrigação automático. E não é que esse sistema funcionou, inadvertidamente, bem na hora em que o Ron estava atravessando o jardim? O cara ficou encharcado. Parecia um ninja se defendendo
“ADORO VINHO ITALIANO, MAS SÃO VINHOS MAIS DIFÍCEIS. MINHA PAIXÃO SÃO OS BORGONHA. PARA MIM, O IDEAL É VINHO FRANCÊS, COZINHA ITALIANA, CARRO ALEMÃO E MULHER BRASILEIRA”
CDs do Radiohead, um grupo mais recente. Gosto, sobretudo, de João Gilberto. Ouço bem alto, com headphones. Cada vez que João repete, faz tudo diferente. Ele é infernal, de uma sutileza admirável. Você se lembra de um show do João em São Paulo em que deu caca? Foi uma bobagem. Um show para convidados. Para quem não era fã. Show para convidados em geral é uma bosta. Quando vi, meu pai estava roncando na plateia. Quem você viu ao vivo e não esquece?
Um outro show do João Gilberto, este no Tom Brasil, quando ele cantou o Hino Nacional de maneira impressionante. Vi o Clash duas ou três vezes, o Bowie, o Lou Reed nos Estados Unidos, o Pink Floyd na Inglaterra. Vi Ramones. Mas não gosto de shows em estádios, embora tenha ido ao dos Rolling Stones porque, afinal, são os Stones. Por falar em Stones, como foi
dos jatos. A gente ri, mas imagine um cara puto da vida. Fui até a minha casa e peguei uma camisa Lacoste para dar para ele. Para complicar, a cozinha ainda demorou uma hora e meia para fazer o prato do Ron. Deu tudo errado naquele dia. Você já assistiu a Playtime [Tempo de Diversão, comédia de Jacques Tati]? Foi aquilo. É verdade que o arquiteto Philippe Starck queria tampar a visão do morro dos Dois Irmãos no hotel Fasano do Rio?
Ele queria fazer uns arcos em volta de toda a piscina. Disse a ele que isso tampava a vista dos Dois Irmãos. Ele bateu o pé. Disse que os arcos eram inegociáveis, que queria que as pessoas vissem o oceano “by frames”. Poxa, então vá para a Ponte dos Suspiros, já que ele mora em Veneza! Como assim, “by frames”? Aí alguém me deu uma dica. Inventei uma multa da prefeitura se tampasse a visão dos Dois Irmãos. O Philippe teve de engolir. P
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B R O O K F I E L D R E L Ó G I O S H O T E L V I N H O S B E AT L E S
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CARILLON MIAMI
Q
AO SOM DAS ONDAS ualificado entre os cinco me-
e Anti-idade Adonis Maiquez na realização
lhores hotéis de Miami Beach
de atividades clínicas e seminários regulares.
pelo site especializado em via-
No quesito gastronomia, há quatro op-
gens TripAdvisor, o Carillon Miami Wellness
ções. Entre elas, o restaurante de culinária
Resort deve ficar ainda melhor nos próxi-
sazonal THYME, comandado pelo chef Fritz
mos meses. De olho na temporada de com-
Zwahlen, que oferece as principais refeições
pras no final do ano, o hotel deverá passar
do dia, enquanto o Juice Bar acena com pe-
por uma renovação entre junho e outubro
tiscos e sucos saudáveis. É possível ainda es-
deste ano, com um projeto assinado pelo
colher o que deseja sem sair da suíte.
designer Peter Silling. As áreas trabalhadas incluirão lobby e também as 150 suítes.
O Carillon tem seis categorias de acomodações de um dormitório e outras três
A atmosfera praiana, unida ao agito
com dois dormitórios, com amenidades que
com um quê de relaxamento de Miami, é
incluem jogos de cama da marca Frette e
reafirmada pelas quatro piscinas das áreas
cozinha completa com utensílios KitchenAid
comuns e pelo spa, que ocupa 6,5 mil me-
e Miele. A vista para o mar e para a cidade
tros quadrados. As atividades incluem ainda
é praticamente livre de obstáculos e garan-
a curadoria do médico certificado pela Aca-
tida com janelas que vão do chão ao teto.
demia Americana de Medicina Regenerativa
(RAPHAEL CALLES) carillonhotel.com
Exercícios para quem quer. E sossego de frente para o mar
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FILARMÔNICA DE HAMBURGO
ENFIM, O SOM
D
o antigo depósito onde eram em-
chim Gauck, ex-presidente a Alemanha.
pilhados milhares de sacos de ca-
O complexo abriga duas salas de concerto
cau em grão, os arquitetos suíços
– com 2.150 e 550 lugares –, apartamentos
Jacques Herzog e Pierre de Meuron, ganha-
de luxo, restaurantes, bares, centro médico,
dores do prêmio Pritzker, aproveitaram só
academia, um hotel cinco estrelas e terraço
as paredes de tijolo aparente. Elas serviram
com vista para a cidade e o porto.
de base para a estrutura de aço e vidro es-
“Só não sabíamos se seria um so-
pelhado que, conforme o ângulo, lembra a
nho, um pesadelo, uma vergonha ou um
proa de um monumental navio (110 metros
milagre”, ressalvou Gauck. Isso porque
de altura) atracado no Elba – rio que demar-
o prédio, iniciado em 2007 a um cus-
cava a fronteira entre as duas Alemanhas du-
to previsto de 77 milhões de euros, foi
rante a Guerra Fria. Depois de uma década,
inaugurado apenas em janeiro último.
a Filarmônica de Hamburgo, cidade natal de
E custou 865 milhões de euros – dez
Mendelssohn, Brahms e Angela Merkel, final-
vezes mais. Seja como for, a nova Filar-
mente ficou pronta.
mônica de Hamburgo estreia, ao que
A
inauguração
em
Speicherstadt,
consta, como a sala de espetáculos de-
o bairro dos antigos armazéns portu-
tentora da melhor acústica do mundo.
ários, entusiasmou o país. “É uma ma-
elbphilharmonie.de
ravilha da arquitetura”, declarou Joa-
Por dentro e por fora, muita ousadia
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BEATLES
MEIO SÉCULO
T
odo mundo sabe: it was fifty years ago today. Ou seja, em junho completam-se 50 anos
BULGARI
do lançamento do mais revolucionário
BY ZAHA
álbum dos Beatles, o formidável Sargent Pepper’s Lonely Hearts Club. Aquele
m dos últimos projetos da arquite-
crítico Kenneth Tynan, do sisudo diário
ta iraniana Zaha Hadid (1950-2016)
londrino The Times, chamou de “um
ganhou vida na Bulgari. A joalheira
momento decisivo na civilização ociden-
U
romana apresentou a reinterpretação das pe-
mesmo que, dias após o lançamento, o
tal”. Não pecou pelo excesso.
ças da coleção B.zero1, com anéis e pingente
Para comemorar, a gravadora EMI
que remetem ao Coliseu. Em esculturas de
lançou várias edições especiais do ál-
ouro rosa ou branco, a arquiteta reinter-
bum. Uma delas especialíssima: uma
pretou as linhas tradicionais que remetem à
caixa com nada menos que seis CDs,
cidade, com seu viés contemporâneo. Zaha,
incluindo o disco original, uma versão
aliás, assina uma das mais belas construções
mixada, gravações de ensaios, o sin-
contemporâneas da capital italiana, o Museu
gle com “Penny Lane” e “Strawberry
Maxxi. (MARIO CICCONE) bulgari.com
Fields Forever” e versões inéditas de
S.T. DUPONT
E
FINÍSSIMO ntre o símbolo de status e o objeto de arte. A S.T. Dupont sabe bem percorrer essa estrada. Os seus clien-
tes são a prova disso. Os isqueiros e produtos de couro da marca conquistaram de Pablo
Picasso a Jackie Kennedy. A nova geração de isqueiros faz jus a esse legado. A coleção Slim 7 traz peças de luxo ultrafinas, com apenas 7 mm, além de uma gama de 10 cores. Eles chegaram com chama perfeita e várias opções de acabamento. (MC) st-dupont.com
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SOM MAIOR
A CAIXA CERTA
A
s caixas acústicas Bower & Wilkins são tão perfeitas que, entre os clientes da empresa britânica, es-
tão os estúdios Abbey Road, da gravadora EMI. Sim, onde os Beatles gravaram em toda a carreira do grupo. Para os audiófilos, a vantagem das caixas acústicas fabricadas desde 1966 pela Bower & Wilkins é a linha de produtos que, mantendo a alta qualidade exigida pelos estúdios profissionais, é destinada ao uso residencial. “She’s Leaving Home”, “Lucy in the
Assim acontece com a 803 Diamond 3,
Sky with Diamonds” e “A Day in Life”.
importada com exclusividade para o Brasil
A caixa também tem fac-símiles de pôs-
pela Som Maior. Com 1,16 metro de altura e
teres da época, DVDs e Blu-Rays com
33,4 centímetros de largura, ela tem desenho
clipes e gravações de ensaios. Sem es-
arrojado e dimensões adequadas ao uso do-
quecer o libreto com 144 páginas. Única
méstico. O nome Diamond não pode ser vis-
pisada na bola: a capa em 3D parece ho-
to como mera retórica de marketing. Uma de
menagear Their Satanic Majesties Request,
suas principais distinções, afinal, são os domos
o frustrante álbum psicodélico dos Rolling
dos tweeters, feitos de diamante. Enfim, uma
Stones. (WALTERSON SARDENBERG Sº)
joia rara. (WS) sommaior.com.br
FRÉDÉRIQUE CONSTANT
te superior que faz a apresentação do órgão
HEART BEAT
grande parte, pela precisão do relógio. Com
A
regulador do mecanismo, responsável, em um olhar atento, o usuário perceberá que ele
verdadeira paixão de um aficio-
realiza quatro oscilações completas por segun-
nado por relojoaria vai além da
do. De corda automática, a peça ainda oferece
marcação das horas. Ela está na
uma autonomia de corda de 42 horas.
possibilidade de observar o funcionamento
Para complementar a visão desse detalhe
de cada um dos componentes de um meca-
do movimento, o relógio realiza a indicação
nismo. Pois o modelo Frédérique Constant
de horas e minutos por dois ponteiros cen-
que desembarcou no Brasil recentemente faz
trais, que varrem um mostrador em branco
a apresentação de uma das principais peças
ou em preto, de acordo com a versão da
do movimento diretamente no mostrador.
peça. O modelo está disponível com caixa
branco); ponteiros e indicadores de horas
O Slimline Automatic Heart Beat conta
de aço (e mostrador branco) ou aço reves-
acompanham a tonalidade da caixa. (RC)
com uma abertura no mostrador em sua par-
tido de ouro rosa (com mostrador preto ou
frederiqueconstant.com
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MONTBLANC
NOVA DIREÇÃO, MESMO OBJETIVO
O
NICOLAS BARETZKI ASSUME COMO CEO DA MONTBLANC
início da carreira de Nicolas
O mestrado em auditoria e finanças pela
misturados com os elementos que vêm
Baretzki no Grupo Richemont
École de Hautes Etudes Commerciales de
da história e herança vinda da manufatura
teve início em 2008, quando as-
Paris, somado com seu amplo conhecimento
[de relógios] Minerva.
sumiu a diretoria comercial da Cartier. Mar-
do mercado internacional, fez de Baretzki o
E para o Brasil?
cou presença também na Jaeger-LeCoultre
candidato ideal para assumir à frente da com-
Estou muito otimista. Nossos clientes
e, mais recentemente, como vice-presidente
panhia, que atua nos segmentos de joalheria,
brasileiros apreciarão os novos relógios, que
executivo de vendas da Montblanc, onde
cutelaria, instrumentos de escrita e relógios.
unem a performance de corrida com visual
atuava ao lado do então CEO, Jérôme Lam-
Essa foi a primeira vez que ele conversou
e toque vintage. Essa coleção é a favorita dos
bert. Um anúncio em novembro de 2016
com um veículo brasileiro no atual cargo e
brasileiros desde o lançamento.
promoveu Lambert a chefe de operações
comentou seus planos para o Brasil.
do Grupo Richemont e ocasionou a subida de Baretzki a CEO da marca alemã.
Ainda somos um mercado importante para a companhia?
Como pretende atuar?
Historicamente, o Brasil é um mercado
Continuaremos a trilhar o caminho de
muito importante para a Montblanc. Es-
sucesso que a Montblanc tem seguido, com
tamos muito ativos nos últimos 25 anos e
base nas realizações atuais e na defesa de
nossos investimentos continuam altos. Hoje
valores que fazem a maison ser um ícone.
temos oito butiques próprias, cinco franque-
Queremos surpreender novas gerações de
adas e a maior rede de pontos de venda,
entusiastas e entregar inspiração com ex-
com cerca de 100 lojas e joalheiros. Nossos
celente design, funcionalidade e inovações.
clientes locais gostam muito da expertise
Qual o papel dos novos relógios da
europeia da Montblanc, seja ela a edição
linha TimeWalker nos seus planos?
especial [de caneta] Meisterstück UNICEF,
Até agora tivemos um retorno
fabricada em Hamburgo, a coleção de couro
muito positivo. A nova coleção é uma
inovadora Urban Spirit, ou o relógio cronó-
expressão contemporânea e dinâmica
grafo UTC TimeWalker, nossa mais recente
do que a Montblanc pode alcançar com
adição em relógios fabricados na Suíça. No
relógios esportivos profissionais
último ano, tivemos muito sucesso. (RC)
Baretzki e parte da linha de couros da maison para Unicef
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OFFICINE PANERAI
como patrocinadora da competição é
EM ALTO-MAR
America’s Cup 3 Days Automatic Ac-
A
o modelo Panerai Luminor Marina 1950 ciaio – 44 mm. Esse relógio apresenta
mais tradicional competição de
a tradicional caixa Luminor, que conta
embarcações a vela do mundo
com o famoso protetor de coroa. Ele
teve as águas transparentes
auxilia na entrega de respeitáveis 300
da baía de Great Sound, nas Bermudas,
metros de estanqueidade.
como plano de fundo para este ano. A
Dados como horas e minutos cen-
35ª edição da America’s Cup conta agora
trais, além de pequenos segundos e
com o patrocínio das Officine Panerai,
data, são entregues em um mostrador
relojoaria suíça de origem florentina que
em preto elaborado no estilo “sanduí-
já intitula sua própria competição, Pane-
che” da companhia, em que uma cama-
rai Classic Yachts Challenge. Além de
da de material luminescente fica apa-
seu suporte ao torneio, a relojoaria
rente através de recortes na camada
também patrocina os times Oracle
superior. Eles são proporcionados por
Team USA, dos Estados Unidos, e
um mecanismo automático que garante
Softbank Team Japan, do Japão.
três dias de reserva de energia. Detalhes
A principal apresentação da
em azul e vermelho, assim como a ins-
maison para celebrar seu pri-
crição “America’s Cup”, dão mais valor
meiro ano de participação
ao modelo. (RC) panerai.com
O modelo que celebra a America’s Cup
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BROOKFIELD INCORPORAÇÕES
DE FRENTE PARA O IBIRAPUERA ASSIM SERÁ A TORRE CURITIBA 381
E
m uma manhã de sexta-feira, os 14
Guardian como uma das dez melhores áre-
executivos da Brookfield Incorporações,
graus de temperatura que predo-
as verdes urbanas do mundo.
os moradores terão a impressão de esta-
minavam no bairro do Ibirapuera
O verde do parque foi a espinha dor-
não alteraram o movimento na bucólica
sal em torno da qual tomou corpo o novo
A apenas 400 metros do Obelisco do
praça Carlos Gardel. Ali, famílias inteiras
imóvel da empresa, previsto para ser en-
Ibirapuera, o Curitiba 381 acompanha um
passeavam entre as muitas árvores. Na
tregue aos proprietários em 2019. As linhas
movimento presente em grandes cidades
pista indicada para a prática de cooper,
retas da torre única do Curitiba 381 Ibira-
do mundo e que confere maior valorização
dois moradores da região aceleravam as
puera e dos três modelos de apartamentos
a endereços ao redor de parques. Assim
passadas em meio a comentários sobre o
que constam nela – Panoramic, com 332
ocorre, só para citar duas cidades, em Lon-
mercado financeiro. A apenas 184 passos
metros quadrados, The Penthouse, 591
dres, com o Hyde Park, e em Nova York,
da praça, no número 381 da rua Curitiba,
metros quadrados, e House, 719 metros
com o Central Park. Mais charmoso parque
o sol incindia sobre um lugar iluminado:
quadrados – aproveitam ao máximo o sol
de São Paulo, o Ibirapuera se consolidou
um terreno de 1.997 metros quadrados,
e valorizam o terraço. Nele, garantem os
também como um vigoroso polo cultural.
rem debruçados sobre o parque.
o último à disposição naquela charmosa e pequena via. É nesse endereço que será erguido o Curitiba 381 Ibirapuera. Empreendimento imobiliário de altíssimo padrão com apenas 15 apartamentos, um por andar, ele foi arquitetado para um público que busca exclusividade. Assinado pela Brookfield Incorporações, uma das mais reconhecidas empresas do setor imobiliário, o projeto teve como orientação e influência a contemplação do parque Ibirapuera, eleito pelo jornal inglês The
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Perspectiva ilustrada da fachada
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Shows, museus, esportes e uma diversidade de frequentadores dão vida aos 1.200 hectares que o compõem. Agora, imagine admirar isso tudo de uma posição privilegiadíssima. Na sala de todas as unidades do empreendimento da Brookfield Incorporações, uma janela de 8 metros com vidro autoportante transparente e sem qualquer obstáculo à frente estará ali para que o morador desfrute da experiência de contemplar dentro de casa o verde e a vida do parque. Essa e outras soluções, como uma área de lazer acima do nível da rua que confere privacidade e maior conforto visual aos frequentadores, estão presentes nos projetos arquitetônicos e paisagísticos da LE Arquitetos e de Alex Hanazaki Paisagismo, respectivamente. Planejado para levar muita luz natural para dentro das unidades, o Curitiba 381 conta, ainda, com a assinatura da renomada arquiteta Patrícia Anastassiadis na decoração das áreas comuns. “A torre tem
EXCLUSIVIDADE À BEIRA DO PARQUE
design contemporâneo e foge do neoclássico que marca muitos empreendimentos de altíssimo padrão em São Paulo”, diz João Mendes, diretor de Incorporação da Unidade São Paulo da Brookfield Incorporações. “Da suíte principal, o bairro dos
• Ponto de energia para carro elétrico
Jardins e sua densa vegetação poderão ser
• Piscina com borda infinita
igualmente admirados.”
• Piscina coberta com raia de 25 metros aquecida e revestida de pedra vulcânica, em ambiente climatizado
Além dos Jardins, Vila Nova Conceição, Itaim Bibi, Moema, Vila Mariana e Paraíso são os bairros nobres paulistanos vizinhos do Curitiba 381, que estará incrustado em uma região com abundância de serviços, comércios, bares e restaurantes de quali-
• Botão antipânico nos apartamentos, biometria nos elevadores sociais e na entrada de serviço
dade. E, vale reforçar, ao lado da extensa
• Bicicletário
e acolhedora área verde da praça Carlos
• Brinquedoteca
Gardel. (RODRIGO CARDOSO)
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• Cinco e seis vagas de garagem e depósito privativo para cada unidade
Perspectiva ilustrada do lobby, com obra da Amalia Giacomini
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Perspectiva ilustrada do living da unidade Panoramic, com vista para o parque Ibirapuera
Perspectiva ilustrada da unidade The Penthouse Perspectiva ilustrada da piscina coberta
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BODEGA GARZÓN
BONS VENTOS COMO UMA VINÍCOLA FUNDADA HÁ APENAS UMA DÉCADA VEM RECONSTRUINDO A REPUTAÇÃO DO URUGUAI NO ENOTURISMO
U
m sonho, um oceano e uma fortu-
Resolveu apostar alto: convidou, para as-
na. Três ingredientes de uma recei-
sessorá-lo, ninguém menos que o italiano
ta de sucesso que vem alavancando
Alberto Antonini, que já foi o principal
a posição do vinho uruguaio no cenário inter-
enólogo da aclamada Antinori, na Toscana,
nacional. A história teve início em 1999, com a
hoje sócio do projeto argentino Altos las
visita do homem mais rico da Argentina, Ale-
Hormigas, em Mendoza. Ali, precisamente
jandro Bulgheroni, à região de Maldonado, que
no povoado de Garzón, a 18 quilômetros
abriga José Ignacio e Punta del Este, o balneário
do Atlântico e 160 metros sobre o nível
mais luxuoso da América do Sul.
do mar, plantou 217 hectares de vinhas,
Decidido a produzir vinhos excep-
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dando início à Bodega Garzón.
cionais, o empresário do ramo petrolei-
A trajetória que viria pela frente incluiria
ro viu naquela área um grande potencial
um conhecido desafio: domar a Tannat, uva
para desenvolver seu projeto vitivinícola.
de origem francesa, protagonista da viticul-
O enólogo Christian Wylie e um dos Albariño produzidos na Garzón
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DESIGN tura no Uruguai. Trata-se de uma variedade
experimentar”, afirma o enólogo Christian
com temperamento difícil, que quando mal
Wylie, gerente-geral da Bodega Garzón.
vinificada torna-se agressivamente adstrin-
FORA DA GAVETA
P
roduzido com madeira e me-
gente, gerando vinhos rascantes e até mes-
Harmonização
mo rústicos. Por outro lado, quando bem
O terroir de Maldonado também vem
trabalhada, tem resultado extremamente
gerando brancos surpreendentes e gas-
agradável, que se traduz em tintos elegantes,
tronômicos, elaborados com Pinot Grigio,
designer húngaro Bálint Eckhardt para
com taninos arredondados e final longo.
tal, o WineD é um projeto de saca-rolhas idealizado pelo
Viognier, Sauvignon Blanc e, especialmen-
ser fácil de utilizar. Basta fazer mo-
Tendo isso em mente, foi preciso muito
te, a Albariño, que, no caso dos exem-
vimentos giratórios com a alça para
trabalho, pesquisas e alguns milhões de dóla-
plares produzidos pela Garzón, resulta
que a rolha seja removida da garrafa
res para transformar o sonho em realidade.
em vinhos frescos e aromáticos, bastante
de vinho suavemente. Fora de uso,
Isso aconteceu em apenas uma década. “É
minerais e com ótima acidez, excelentes
o cilindro de madeira pode ser ex-
uma vinícola com o melhor terroir de todo
companhias para frutos do mar.
posto como uma peça de design,
o Uruguai, que está mudando tudo o que
E se o assunto é gastronomia, há ainda
sabemos sobre vinho no país”, disparou a
mais história para contar. Pensando em re-
jornalista Amber Gibson, em reportagem
ceber apreciadores dos quatro cantos do
para a revista americana Saveur.
planeta, Bulgheroni tratou de construir, na
A imprensa internacional, aliás, vem
propriedade distribuída por 19 mil metros
reconhecendo sobretudo rótulos como
quadrados, um hotel de luxo e um clube
o Bodega Garzón Single Vineyard Tannat
que proporciona aos visitantes a criação de
2015, que acaba de receber 95 pontos da
vinhos próprios. A cereja do bolo é o res-
revista britânica Decanter: foi considerado
taurante do hotel, que tem no comando
pela publicação o melhor tinto varietal de
o principal nome da gastronomia argenti-
2017. “Para uma vinícola nova, de um lu-
na atualmente. O chef patagônico Francis
gar desconhecido, contar com pontuações
Mallmann assumiu o papel de embaixa-
consistentes de formadores de opinião
dor e diretor culinário da Bodega Garzón.
ajuda muito o consumidor na decisão de
(LUCIANA LANCELLOTTI) bodegagarzon.com
camuflando sua função principal. (LL) behance.net/balinteckhardt
Colaboraram neste número: Luciana Lancellotti, Mario Ciccone, Raphael Calles, Rodrigo Cardoso e Walterson Sardenberg Sº
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PERFIL
POR MILLY LACOMBE
HÁ 45 ANOS, ANGELA DAVIS ERA PROCURADA PELO FBI COMO TERRORISTA. HOJE, DESCOBERTA PELAS NOVAS GERAÇÕES, TEM PELA PRIMEIRA VEZ SEUS LIVROS LANÇADOS NO BRASIL
A
ngela Davis continua bastante ocupada. Aos 73 anos, a professora, filósofa e ativista americana de esquerda tem sido regularmente convidada a dar palestras, a aparecer em programas de TV e a seguir dizendo em público o que pensa. Boa parte dessa reiterada fama se deve à eleição do ultraconservador Donald Trump, um opositor óbvio. Mas, ainda que Trump não tivesse chegado ao poder, é de se imaginar que ela continuaria nos palanques, como faz desde os anos 1960. O renovado interesse pelas coisas que Angela Davis diz tem uma explicação para além de Trump. Nas últimas três décadas, a economia americana dobrou de tamanho, só que a classe média não teve seu poder de compra e de renda aumentados. No mesmo período, o lucro de corporações atingiu patamares nunca vistos enquanto a mobilidade social, aquela usada para criar o mito do Sonho Americano, desceu a níveis históricos. Dados como esses revelam por que Angela Davis segue ocupadíssima em palanques: a batalha contra a desigualdade social, que só faz aumentar nos Estados Unidos e no mundo, é o tema do momento. Não à toa, no ano passado, ela teve pela primeira vez um livro lançado no Brasil, pela Boitempo: Mulheres, Raça e Classe. O sucesso de vendas levou a editora a publicar um segundo: Mulheres, Cultura e Política. Angela Yvonne Davis nasceu no Alabama em janeiro de 1944, filha de professores da escola secundária que, no começo dos anos 1950, se mudaram para um bairro
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de classe média e, portanto, de maioria branca, em Birmingham. Na época, não era raro que a Ku Klux Klan colocasse bombas nas casas de negros que ousavam morar em regiões afluentes, e Angela cresceu dentro dessa bizarra realidade. Acabou se graduando com honras pela Brandeis, em Massachusetts, fez mestrado na Universidade de San Diego e doutorado em filosofia na Alemanha. De volta aos EUA, conseguiu um emprego como professora na UCLA, a universidade de Los Angeles. Mas foi demitida por Ronald Reagan, então governador daquele estado, sob a alegação de que as ligações dela com o Partido Comunista a incapacitavam de dar aulas. A demissão fez nascer a ativista de palanque.
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PERFIL © LIONS GATE ENTERTAINMENT INC
O palanque é seu hábitat desde os anos 1960
No dia seguinte ao afastamento, foi chamada para discursar a um numeroso grupo de ativistas que se manifestava no campus da UCLA. Na ocasião, contou ter sido afastada de suas funções porque o governo da Califórnia achava que política não deveria entrar na sala de aula. Contrapôs sua discordância frontal dessa proibição. Afirmou que a política deveria fazer parte de todas as salas de aula. Algumas de suas palavras no evento: “A politização da universidade se dá pelo domínio da opinião do poder econômico. Essa é a única posição política que vale em um campus.” Um ex-beatle e os Rolling Stones
Para Angela, o racismo nos EUA era estrutural e institucionalizado. Ela lembrou que apenas 3% dos alunos universitários da época eram negros. “Os negros que moram nos guetos dessa cidade não sabem ler, não há preocupação em educá-los, e por isso eles não têm os requisitos para serem aceitos por uma universidade.” Chamou a isso de conspiração. Logo depois, em 1972, seria acusada de fornecer a arma – um fuzil de cano cortado – usada durante uma tentativa frustrada de resgatar presidiários durante julgamento na Califórnia. A arma fez uma vítima fatal. Antes de receber voz de prisão, Angela fugiria, entrando na lista de mais procurados do FBI. “Fugi porque seria morta”, explicou mais tarde. Quando foi encontrada, dois meses depois, o então presidente, Richard Nixon, se
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declarou aliviado por ver essa perigosa terrorista finalmente atrás das grades. A detenção de Angela desencadeou um enorme movimento para libertá-la, que fez nascerem o documentário Free Angela and All Political Prisioners, o livro Angela Davis: an Autobiography e várias canções. Duas, em especial, lançadas em 1972. Uma de um ex-beatle; a outra dos Rolling Stones. “Angela”, de John Lennon, está no álbum duplo Some Time in New York City, de John e Yoko Ono, que traz uma foto da ativista na capa. “Irmã, você ainda é a professora do povo/ Irmã, sua palavra chega longe/ Irmã, existem um milhão de raças diferentes/ Mas todos nós dividiremos o mesmo futuro no mundo/ Eles te deram a luz do sol/ Te deram o mar/ Te deram tudo menos a cha-
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Procurada pelo FBI e enaltecida nos bottons e no cinema
ELA FOI DEMITIDA POR REAGAN E PRESA PARA ALÍVIO DE NIXON. COMEÇAVA UMA CAMPANHA INTERNACIONAL PELA SUA LIBERTAÇÃO. A PRESSÃO DEU RESULTADO
Condecorada por Fidel Castro, ela sempre desafiou os conservadores
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PERFIL
Com os Panteras Negras, há 45 anos. À esquerda, dois de seus livros, incluindo o mais recente. À direita, na capa de um álbum de John Lennon e Yoko Ono
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ve desta prisão/ Sim, te deram café/ Te deram chá/ Eles te deram tudo menos a igualdade.” “Sweet Black Angel”, de Mick Jagger e Keith Richards, faz parte de outro álbum duplo, Exile on Main Street. “Tem um doce anjo negro/ Pregado na minha parede/ Bem, ela não é nenhuma cantora, ela não é nenhuma estrela/ Mas com certeza ela fala bem, com certeza ela se move rápido/ Mas essa garota está em perigo, ela está acorrentada / Não existe ninguém para libertá-la?” Panteras Negras
SUAS ROUPAS E SEU PENTEADO ACABARAM IMITADAS ATÉ POR CANTORAS FAMOSAS. ANGELA AFIRMA QUE JAMAIS PENSOU EM LANÇAR MODA. MAS LANÇOU
Angela Davis seria libertada pouco mais de um ano depois e inocentada de todas as acusações. A essa altura já não haveria mais como calá-la. Angela havia se transformado em um ícone. Os cabelos fortemente armados, os vestidos curtos usados com longas botas, as blusas de gola rulê e as jaquetas de couro; tudo conspirava para que sua imagem fashion entrasse no imaginário popular como a da mulher à frente de seu tempo. Seu penteado não demoraria a ser copiado por outras negras, como as cantoras Aretha Franklin, Diana Ross e Roberta Flack, e por ativistas feministas em geral. Membro do revolucionário Partido Panteras Negras, Angela batalhava contra a imagem de ditadora de moda. Queria ser vista como revolucionária e não como fashionista. Em 1994 chegou a escrever um artigo colocando-se contra o status de ícone da moda, a essa altura já consolidado. Ela explicaria que seu penteado e suas roupas eram declarações políticas e não deveriam ser entendidos como nada além disso. Seus apelos não foram ouvidos. Anos depois a revista do New York Times a elegeria uma das maiores trendsetters, ou lançadora de tendências, da história. Pelo mesmo motivo Angela relutou, e reluta, em falar da vida pessoal. Diz estar em batalha por transformações de impacto coletivo e que, diante disso, pouco importa sua história. Mas em 1997, em entrevista para a revista OUT, se declarou lésbica. Desde então luta pelos direitos civis do grupo, e no mesmo ano seria contratada como professora pela Universidade de San Diego, de onde se transferiria para a Universidade de Santa Cruz, pela qual acabou se aposentando recentemente. O que mudou na revolucionária da década de 1970 para a revolucionária da era Trump é o tom do discurso. Se antes muito de sua batalha era contra o racismo e em nome de uma América negra, hoje Angela entende que não se pode mais falar de racismo sem incluir os movimentos indígenas, LGBT, dar voz ao imigrante, ao deficiente físico, aos trans, à educação acessível, a um sistema de saúde gratuito para todos e ao que chama de marco zero de todas as batalhas: as questões do meio ambiente que podem destruir o planeta.
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PERFIL Menos agressividade, mais afeição
Em janeiro deste ano, falando para uma plateia em Memphis por ocasião do feriado em homenagem a Martin Luther King, que foi assassinado na cidade do Tennessee, previu que o período com Trump no comando será duro para os direitos civis e pediu que todos estivessem preparados para ocupar as ruas contra retrocessos, repressões e opressões. “Não vamos deixar que ele governe confortavelmente”, pediu. Lembrou que 95% das mulheres negras votaram contra Trump (“A mulher negra é o grupo mais sofisticado na atual era política”, declarou), um dado pouco divulgado, mas fez críticas a Hillary Clinton, que disputou com Trump a presidência, dizendo que a candidata tem uma noção obsoleta do feminismo e que fala de uma versão categórica de mulher recusando-se a ver que o mundo não comporta mais esse tipo de simplificação. No mesmo discurso, ressaltou que o conceito de imigrante ilegal deve ser esquecido porque não há no mundo ser humano que possa ser considerado ilegal e chamou a atual situação dos presídios americanos, que têm absoluta maioria negra, de escandalosa. Disse, ainda, que é preciso começar a falar em abolição do presidiário e não mais em encarceramento em massa. Seguiu afirmando que não se pode mais explicar o sistema capitalista sem apontar que o racismo faz parte de suas bases e lembrou que todas as transformações estruturais começam de baixo, de movimentos que levam o oprimido às ruas. “Não foi [Abraham] Lincoln que aboliu a escravidão; foi o movimento abolicionista que
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Em 1974 e hoje: o mesmo hair style. Mas outro discurso
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fez isso”, disse antes de concluir: “Temos de estar preparados para batalhar pelos próximos anos e Trump, na verdade, quer tornar a América branca outra vez”, parafraseando o slogan de campanha do atual presidente. No ano passado, Angela, que tem dezenas de livros publicados, lançou mais um. Freedom Is a Constant Struggle é uma compilação de entrevistas, discursos e ensaios. Ao longo das décadas, sua mensagem perdeu munição agressiva e ganhou em afeto. Se antes entrava em batalhas que muitas vezes envolvia sangue, espancamentos e repressão – porque essa é história das batalhas por direitos civis no mundo –, agora diz que a revolução não precisa incluir violência. Ela sabe que o grande projeto não é necessariamente apoiar este ou aquele candidato, mas o de transformar as instituições, os costumes e os hábitos de uma sociedade. P
ANGELA DEFENDE QUE O CONCEITO DE IMIGRANTE ILEGAL DEVE SER ESQUECIDO, PORQUE NÃO HÁ NO MUNDO SER HUMANO QUE POSSA SER CONSIDERADO ILEGAL
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MEMÓRIA
POR WALTERSON SARDENBERG SO
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O FOTÓGRAFO NOVA-IORQUINO RICHARD AVEDON TAMBÉM FOI GRANDE COMO AUTOR DE CAPAS DE DISCOS
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MEMÓRIA
N
o inverno de 1976, Richard Avedon aguardava Mud-
dos brasileiros que mais fotografaram capas de discos, de Roberto
dy Waters chegar. Iria fotografá-lo para a capa do LP
Carlos a Barão Vermelho. “Isso te obriga a ser seletivo. Com câ-
Hard Again, produzido por um velho conhecido, o gui-
meras assim, não dá para disparar uma foto atrás da outra.”
tarrista Johnny Winter – a quem, por sinal, já clicara
O principal cliente de Avedon entre as gravadoras era a Columbia.
para outras duas capas. Era um dia frio, e Muddy despontou na porta
O fato de os estúdios da companhia – hoje, Sony Music – estarem ins-
trajando um trenchcoat e usando chapéu. Já fazia menção de tirá-los,
talados até hoje na rua 54, em Manhattan, deve ter ajudado. Facilitava.
quando Avedon, ágil, o pegou pelo braço e o levou até a parede com
Avedon morava relativamente perto, num edifício da avenida 57. O
o imaculado fundo branco que preparara para a sessão fotográfica.
motivo principal desse vínculo, seja como for, era a liberdade de cria-
Foram quatro cliques. E só. Não era preciso mais.
ção. Isso porque, ao longo de 24 anos (de 1961 a 1985), o diretor de arte
Embora seja fã de Muddy Waters, o fotógrafo JR Duran admite ter
da Columbia foi o ousado John Berg, que morreu em 2015, aos 83 anos
comprado o disco do blues man por causa da
– ele próprio um antológico capista, como
“belíssima capa”. Lá estava o velho Águas
revela a série para o grupo Chicago. Por en-
Lamacentas flagrado por inteiro: um bon vivant gaiato e pimpão. “Para fazer um bom retrato nem sempre é preciso clicar muito”, diz Duran, lembrando que Avedon (1923-2004) muitas vezes se restringia a um único rolo de filme, de 12 chapas. “Não tem essa história de sempre criar uma camaradagem com o fotografado”, comenta. “Mais de 90% das pesso-
PARA A CAPA DE HARD AGAIN, DO BLUES MAN MUDDY WATERS, ELE FEZ APENAS QUATRO FOTOS. BASTOU
as que fotografei nunca mais vi na vida.” Duran sublinha que o artista nova-ior-
comenda da gravadora, Avedon fez as capas de Broadway’s Fair (1962), de Julie Andrews; The Second Album (1963) e My Name Is Barbra (1965), de Barbra Streisand; Bookends (1968), de Simon & Garfunkel; The Second Winter (1969), de Johnny Winter; New York City, You’re a Woman (1971), de Al Kooper; Fresh (1973), de Sly and the Family Stone; Together Live, de Johnny e Edgar Winter (1976), e Hard Again (1977), de Muddy Waters.
quino, descendente de judeus russos, jamais foi um adulador. Ao contrário. Ele cita como exemplo o retrato do duque de Windsor Edward VIII com a mulher, Wallis Simpson, feito para a revista Harper’s Bazaar, em 1957. O casal foi surpreendido com uma expressão aflitiva, até de entojo. “Antes de fazer a foto, Avedon, cruel, contou ter acabado de ver um caminhão atropelar um cachorrinho”, diverte-se Duran, para quem um bom retrato é “um golpe de vento, um sopro; tem de notar que o cavalo vai passar selado e montar”. Richard Avedon foi um mestre do retrato. Para muitos, o maior deles, apesar da economia de recursos. Ele descartava as cores em favor do preto e branco. Preferia o fundo branco ou cinza, sem nenhuma cenografia. Fazia questão de eliminar toda e qualquer interferência na imagem. Dessa maneira, centrava toda a atenção no fotografado. Era um antibarroco, um anti-David LaChapelle. Frugal, costumava recorrer a uma única fonte de luz, quase sempre frontal e de cima para baixo. No mais, bastava o fotografado, fosse anônimo ou famoso, com seu brilho, suas cicatrizes. Quase sempre sem adornos e mirando a lente de frente. “Ele gostava das câmeras com negativos de médio e grande formatos: 4 x 5, 6 x 7, 6 x 6, 8 x 10”, ressalta Frederico Mendes, um
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FOTOS REPRODUÇÃO
Julie Andrews sapeca, Sly Stone cheio de energia, Al Kooper numa supersessão fotográfica e Barbra Streisand glamourosa em seu chanel. Só uma gota de sépia no mar de preto e branco
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MEMÓRIA
Whitney Houston caseira, Joan Baez sonhadora e a dupla Eurythmics repleta de humor. Um artista de frente
Brincalhão, John Berg listou certa vez as vantagens de trabalhar
(Vanguard, 1965), de Joan Baez; Tenderness Junction (Reprise, 1967),
como diretor de arte em uma corporação gigante e cujo mandachuva,
dos Fugs; Gypsys, Tramps & Thieves (Kapp, 1971), de Cher; Walking Man
William Paley, era um colecionador de Picasso e Matisse. “Eu tinha
(Warner, 1974), de James Taylor; Dark Lady (MCA, 1974), de Cher;
poder, respeito, reconhecimento, influência, assentos de primeira
Cahoots (Capitol, 1971, uma contracapa, na verdade), da The Band;
classe e grandes almoços. E nenhuma encrenca se chamasse Milton
A New Album (RCA, 1976), de Lena Horne; This Time (Warner, 1980), de Al Jarreau, e I Saved the World Today (RCA,
Glaser ou Richard Avedon para ajudar.” Convidar Avedon para fotografar uma capa de disco não era apenas uma questão de orçamento polpudo. Mas também uma aposta anticonvencional. “Havia um preconceito contra capas de discos em preto e branco”, lembra Frederico Mendes. “Elas eram permitidas em álbuns de jazz, como dos selos Verve e Blue Note. Mas não na área pop. As gravadoras achavam que preto e
1999), da dupla Eurythmics.
AS GRAVADORAS DESCARTAVAM CAPAS EM PRETO E BRANCO. MAS AVEDON ABRIU RARAS CONCESSÕES AO COLORIDO
branco não vendia.”
modesta loja de roupas em Manhattan. A rigor, preferia fotografar – ou ser fotografado. Não se furtava em alugar carrões ou pedir cãezinhos emprestados só para figurarem nos retratos posados na família. Presenteou o filho adolescente com uma Rolleiflex de lente dupla. Avedon levou-a na bagagem quando serviu como fotógrafo segunda clas-
Avedon fez raras capas coloridas. A do
se na Marinha Mercante. Carregou-a, tam-
disco Red Hot and Cool (1955), do Dave Bru-
bém, para a universidade, onde cursou dois
beck Quartet, não conta. Foi lançada numa época em que o fotógrafo
anos de filosofia. Gostava de elocubrar sobre o ato de fotografar. Uma
ainda se limitava aos editoriais de moda. Além disso, tratava-se de
de suas máximas: “Todas as fotografias são verdadeiras. Mas nenhu-
um produto fora do mercado: o disco era presenteado a compradores
ma é a verdade”. Outra: “No minuto em que você pega a sua câmera, já
de cosméticos Helena Rubinstein. Para a Columbia, Avedon utilizou
começa a mentir – ou a contar a sua própria verdade”.
cor apenas nos LPs de Johnny Winter, um artista albino.
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Jacob Israel, o pai de Avedon, tinha uma
Aos 22 anos, começou a clicar para a Harper’s Bazaar. Inspirou-se
De resto, suas capas coloridas para outras companhias não estão
no fotógrafo húngaro Martin Munkacsi, o primeiro a fazer editoriais
à sua altura. Por exemplo: Never, Never, Never (MCA, 1973), de Shir-
de moda fora do estúdio. Levou a ideia às últimas consequências.
ley Bassey, e Whitney (Arista, 1987), de Whitney Houston. Não im-
Aos 34, era tão famoso que inspirou o personagem Dick Avery, de
pressionam. Basta cotejá-las ao preto e branco de Farewell, Angelina
Fred Astaire, par romântico de Audrey Hepburn no filme Funny Face
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ON AVEDON, POR MARCIO SCAVONE a uma cirurgia. Estava ali para clicar uma campanha da Bloomingdale’s. Ou vagando pelo Meio-Oeste americano, já consagrado, procurando drifters e apicultores que justificassem numa fração de segundo sua própria existência. Sim, porque o fotógrafo é um obcecado. Assim vejo o artista. O que esses gigantes fizeram para a minha geração de fotógrafos foi aliviar a culpa, quando suprimos a eventual falta de talento com obstinação, perfeccionismo e dias de 30 horas. Avedon fez capas de discos, pois são retratos. Assim como André Kertesz fotografou para a revista House and Garden em Nova York pela elegância de suas cadeiras em branco e preto solitárias e molhadas no Jardim de Luxemburgo num outono esquecido. Ou, ainda, Irving Penn, chamado para fotografar embalagens para uma campanha dos cosméticos Clinique, pois fotografava bitucas de cigarro e as animava de vida e memória. Viravam gente, no seu olhar. Das capas de disco de Richard Avedon, penso naquelas em branco
e preto, mais fotográficas, mais perto de sua assinatura visual. Simon & Garfunkel na luz e sombra praticamente exalam aquele adágio: “Hello darkness, my old friend”. Ou aquelas capas feitas com as chapas 10 x 8, sangradas, que Avedon usava como escudo e aríete para penetrar a cidadela da individualidade dos seus fotografados, que, segundo ele, o procuravam como as pessoas procuram os médicos: para saber como estão. É assim o retrato de Muddy Waters, que com certeza não precisou consultar seu clínico geral por anos, pois tinha passado por Dick Avedon. O branco neutro, o estúdio, a terra de ninguém, o olhar fixo. É por aí que me encontro com ele.
MARCIO SCAVONE POR NATALI ZARTH
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aço retratos, e digo isso com a convicção da famosa autoapresentação do diretor John Ford numa daquelas reuniões de sindicato em Los Angeles durante o macarthismo. Segundo consta, ele se levantou e disse: “Meu nome é John Ford e eu faço westerns!”. Meus ídolos eram dois: Richard Avedon e Irving Penn. Não demorou muito, descobri o terceiro pé do meu tripé: Helmut Newton. É claro que já havia me inteirado de David Bailey e do filme Blow-Up, do Michelangelo Antonioni. OK, eram quatro fotógrafos. Deixo de lado a imagem desgastada do tripé. Avedon dizia: “Se passar um dia em que eu não tenha feito alguma coisa relacionada com fotografia, é como se tivesse negligenciado algo essencial para a minha existência. É como se eu não tivesse acordado”. Bem, aqui estou martelando as pobres teclas deste Macintosh e justificando este final de tarde. Richard Avedon, na cama de hospital trazida para o estúdio, apenas uma semana depois de ser submetido
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MEMÓRIA (Cinderela em Paris), de Stanley Donen. Nos anos 1960, trocou a Bazaar
retratos foram considerados impiedosos. Talvez nem tanto quanto o
pela Vogue e, em paralelo, fotografou o movimento pelos direitos ci-
portrait da atriz Sharon Stone, então no auge, encomendado pela re-
vis e se dedicou ao portrait. Foi preso em Washington DC, quando re-
vista New Yorker. “A Sharon chegou muito atrasada ao estúdio e Ave-
gistrava manifestações anti-Vietnã, país onde, aliás, esteve clicando
don, vingativo, a clicou quase disforme”, conta Juan Esteves, outro
as vítimas da guerra.
fotógrafo brasileiro ótimo de portraits. “Ele não era fácil.”
Na década de 1980, percorreu 17 estados dos EUA, fotografando 752 pessoas anônimas. Sempre em fundo branco. O resultado foi o
O cinza que é vermelho
monumental livro In the American West, com retratos de mineiros,
Juan Esteves tem uma queda especial pela capa do LP Walking
condenados, açougueiros, garçonetes, va-
Man, de James Taylor. “Antes mesmo de me
gabundos, donas de casa e outros desvali-
tornar fotógrafo, fiquei entusiasmado por
dos do sonho americano, “gente que nunca escreveu a história do país”. Alguns desses
ELE MORREU TRABALHANDO. FAZIA UMA SÉRIE COM POLÍTICOS E PODEROSOS. SOFREU UMA HEMORRAGIA CEREBRAL
aquela imagem”, diz. “Um dos aspectos que me chamaram a atenção é aparecer o frame, a barra preta do negativo 8 x 10. Mostra que o retrato está ali por inteiro. Avedon fez questão de não manipulá-lo.” Juan também gosta muito das capas de A New Album, de Lena Horne, e Fresh, de Sly Stone. “Elas revelam uma outra característica do Avedon: instruir e captar, como poucos, o movimento do fotografado dentro do estúdio”, analisa. Já Frederico Mendes admira sobretudo
duas capas da década de 1960. Em especial, a de Bookends, de Simon & Garfunkel. “A foto insinua, antes de tudo, a cumplicidade da dupla”, avalia. “E há uma questão técnica curiosa. O fundo cinza do Avedon, na realidade, é vermelho vivo. Se usasse um fundo cinza de verdade, o tom seria mais fechado, menos luminoso.” Outra capa que Frederico exalta é a de Farewell, Angelina, de Joan Baez. “Há um ventilador suave e distante nos cabelos”, nota. “Mas Avedon não teve a preocupação de deixar a Joan lindíssima. Ela nem está maquiada. Aparecem os dentes, que não são tão bonitos quanto os lábios. Isso tudo ressalta a autenticidade da cantora.” Richard Avedon morreu de hemorragia cerebral, aos 81 anos, em 2004, no Texas, quando a grande arte das capas de discos já entrara em extinção. Estava fazendo uma série de retratos de políticos e poderosos, publicada após sua morte com o nome Portraits of Power. Em setembro de James Taylor e Cher de olho
Audrey Hepburn, para a capa de Harper’s Bazaar. Um ciclo se fechava.
na câmera.
“O Avedon influenciou todo mundo”, resume JR Duran. Para Juan
E a capa
Esteves, o nova-iorquino muito magro, de rosto encovado, conseguiu
da Bazaar
algo que os fotógrafos perseguem quase sempre em vão. “Você não
feita pelo neto
distingue no trabalho do Avedon o que é comercial do que é autoral.
de Avedon
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2014, Michael Avedon, seu neto, fez o portrait de Emma Ferrer, neta de
Ele impôs sua marca sobre o conservadorismo do mercado.”
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POR ROBERTO MUGGIATI
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HÁ MEIO SÉCULO, BONNIE & CLYDE E THE GRADUATE REVOLUCIONAVAM O CINEMA AMERICANO
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CULT
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oi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a era da sabedoria, foi a era da insensatez, foi a época da crença, foi a época da incredulidade, foi a temporada da Luz, foi a temporada das Trevas, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, não tínhamos nada diante de nós, íamos todos diretamente para o Céu, íamos todos diretamente no sentido oposto.” A abertura do romance A Tale of Two Cities (Um Conto de Duas Cidades), de Charles Dickens, trata da época da Revolução Francesa, mas se aplica admiravelmente ao final dos anos 1960. Em particular, a 1967. Naquele ano, meio século atrás, acontecia em San Francisco o Verão do Amor: o sonho hippie tornava-se onipresente. O mundo acompanhava o fenômeno, sobretudo a geração mais jovem. Com a nova riqueza dos Estados Unidos, surgia uma Warren Beatty e Faye Dunaway: tiros nos anos duros da Depressão
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onda de hedonismo sob o lema “sexo, drogas e rock’n’roll”. Mas um grande contingente de jovens optava também pela militância política, concentrada nos protestos à Guerra do Vietnã. Foi sobre esse pano de fundo que dois filmes se destacaram – e mudaram a linguagem do cinema americano: Bonnie & Clyde/Uma Rajada de Balas e The Graduate/A Primeira Noite de um Homem. À primeira vista, tinham pouco em comum. Bonnie & Clyde se baseava na história verídica de um casal de assaltantes – Bonnie Elizabeth Parker e Clyde Chestnut Barrow – que morreu fuzilado (ele aos 25 anos; ela aos 23) depois de uma orgia sangrenta de assaltos a lojas, postos de gasolina e bancos nas regiões rurais do sul dos EUA durante a Depressão. A única opção de vida de Clyde, segundo o filme, era roubar bancos. Ele é mostrado como um Robin Hood, num assalto em que pergunta a um homem diante do caixa: “Esse dinheiro é seu ou do banco?”. “É meu”, responde o homem. “Então pode ficar com ele”, diz Clyde. Já The Graduate inspirou-se num romance de Charles Webb sobre inconfidências universitárias. São duas histórias aparentemente bem distintas. Uma passada no ambiente rural dos anos 1930; outra na sofisticada comunidade
urbana de Los Angeles nos sixties. Mas muita coisa une Bonnie & Clyde e The Graduate. Eles batem de frente contra a moral vigente, a ponto de serem quase amorais. É cheio de orgulho que Clyde recita o seu lema: “Roubamos bancos”. Em The Graduate, o sexo desenfreado do jovem universitário com a mulher do sócio do pai foge aos padrões da respeitável classe média alta californiana. Em suma: anti-heróis. A primeira meia hora dos filmes é ocupada quase exclusivamente pela dupla protagonista. São todos outsiders, renegados sociais. Clyde sai da penitenciária, graças a um artifício: decepou com um machado dois dedos do pé direito para escapar de quebrar pedras com uma marreta o dia inteiro. Ele conhece Bonnie, uma garçonete insatisfeita, e a convence de que uma vida gloriosa a aguarda no crime. “Você não vai ter um minuto de paz”, adverte. “Você promete?”, ela devolve com um sorriso malicioso. No primeiro encontro com Benjamin, a Sra. Robinson apresenta suas credenciais: “Você sabia que eu sou alcoólatra?”. Fuma, bebe e exibe as pernas. O estranhamento de Ben, universitário recém-formado, é graficamente delineado nas primeiras cenas. Enquanto desfilam os créditos, ele é levado como um zumbi
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pela esteira do aeroporto. Já no seu quarto, o rosto em close com o aquário ao fundo, o pai vem insistir que desça para falar com os convidados da festa em sua honra. Ben se diz preocupado com o futuro, ele quer um futuro. . . “diferente”. Na cena grotesca em que o pai o obriga a exibir na piscina seu presente de aniversário – um escafandro de borracha com arpão e nadadeiras –, a alienação é física e total: o pobre jovem mais parece o Monstro da Lagoa Negra. Devoradora insaciável
Bonnie e Clyde não seria o filme que é sem a participação de Warren Beatty, que produziu, atuou e colaborou no roteiro. Escrito por David Newman e Robert Benton, o script circulou entre os estúdios americanos e a nouvelle vague. Truffaut se interessou, mas ia fazer Farenheit 451. Jean-Luc Godard foi convidado também. Queria filmar em Nova Jersey no inverno, os produtores argumentaram que a história se passava no ensolarado Texas. Godard: “Je vous parle de cinéma, vous me parlez de météo. Au revoir”.
Visitando Paris, Warren Beatty soube do projeto por intermédio de Truffaut. De volta a Hollywood, comprou os direitos, mas achou o roteiro contaminado por cacoetes do cinema francês. Precisava de um diretor americano para dar um jeito na história. Beatty convocou o relutante Arthur Penn, 45 anos, que o dirigira em Mickey One. Com Beatty produtor, sua irmã Shirley MacLaine era forte candidata ao papel de Bonnie. Mas, quando ele tomou gosto pelo personagem de Clyde e decidiu interpretá-lo, Shirley ficou fora – imaginem: uma dupla assassina e incestuosa! Várias estrelas brigaram pelo papel: Jane Fonda, Ann Margret, Leslie Caron, Sue Lyon, Cher. Mas a eleita foi uma novata, Faye Dunaway – ela disse que foi escolhida “pelo esmalte dos meus dentes”. Com 26 anos, Faye só havia feito dois filmes inexpressivos, ambos em 1967. Mas sua atuação num deles impressionou Arthur Penn, que tentou “vendê-la” para Beatty. Ele resistiu no começo, mas depois se convenceu de que ela possuía uma “inteligência e força que a tornavam pode-
rosa e romântica”. Com poucas semanas de preparação para o papel, Faye ainda precisava emagrecer para chegar à silhueta da Depressão. Simplesmente parou de comer e perdeu 15 quilos. Faye Dunaway é a força motriz e o fio condutor do filme, que tem ainda duas estreias notáveis: Michael J. Pollard, no papel de motorista de fuga dos assaltantes; e Gene Wilder, que é sequestrado pela gangue dos Barrow, acrescida pelo irmão de Clyde, Buck (Gene Hackman) e por sua mulher, Blanche (Estelle Parsons). Na época, Bonnie
O PAPEL DE FAYE DUNAWAY SERIA DE SHIRLEY MACLAINE. O DE DUSTIN HOFFMAN, DE ROBERT REDFORD
Dustin Hoffman, Anne Bancroft e Katharine Ross: bagunçando os padrões morais
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CULT
FOTOS REPRODUÇÃO
Cena final 1: Bonnie e Clyde recebem rajadas de balas. Estelle Parsons. ao lado, ganhou o Oscar como coadjuvante
e Clyde foi muito criticado pelo excesso de violência. A tecnologia ajudou: foi um dos primeiros filmes a usar squibs – pequenas cargas explosivas coladas a sachês de sangue cenográfico e detonadas dentro das roupas do ator para simular o impacto dos tiros. A cena da emboscada final é de uma sanguinolência brutal. (Na vida real, foram disparados 130 tiros em Bonnie e Clyde. No filme, parece muito mais, embora a cena dure apenas 25 segundos.) O crítico Bosley Crowther, do New York Times, assinou uma resenha negativa e iniciou uma campanha contra a violência no cinema. O jornal, considerando-o insensível aos novos tempos, demitiu-o e colocou em seu lugar Pauline Kael, que escrevera um longo ensaio na revista The New Yorker exaltando Bonnie e Clyde. No filme, Clyde é impotente. Na vida
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OS DOIS FILMES ABRIRAM O CAMINHO PARA OS EXCESSOS DE O PODEROSO CHEFÃO E DE O ÚLTIMO TANGO EM PARIS
real, o assaltante era um heterossexual notório, embora tenha sofrido abusos na prisão. A impotência foi uma invenção de Beatty, querendo tornar o personagem mais complexo. Mas, quase no final, a dupla Beatty/ Penn se arrepende e concede a Clyde uma relação sexual completa e prazerosa com Bonnie, num déjeuner sur l’herbe à beira da estrada, momentos antes de serem mortos. Se o excesso de violência incomodou em Bonnie, o que perturbou em The Graduate foi o excesso de sexo. Mrs. Robinson – magistralmente interpretada por Anne Bancroft
– mostra-se uma devoradora insaciável e não dá tréguas ao recém-formado (agora também em sexo) Benjamin Bradock. Elaine, sua filha, volta para as férias. A Sra. Robinson proíbe Ben de sair com Elaine. Mas o rapaz é insistente. Diz a Elaine que teve um caso com uma mulher casada. A Sra. Robinson ameaça contar tudo à filha, mas Ben se antecipa e revela a Elaine que sua amante era a mãe dela. Elaine volta à universidade e Ben corre atrás dela, que resiste, mas vai aos poucos se interessando por ele. Mrs. Robinson interfere e arranja o casamento da filha com um estudante de medicina. Ben fica sabendo à última hora e corre para a igreja. Chega atrasado: a noiva e o noivo se beijam depois do sim, mas Ben começa a berrar dos fundos do templo. Elaine, vestida de noiva, deixa tudo para trás e corre ao encontro de Ben. Famílias e convidados engalfinham-se com o casal, que escapa da igreja barrando a porta com uma (santa) cruz. Ben e Elaine correm de mãos dadas e embarcam num ônibus municipal. O diretor era praticamente estreante no cinema: Mike Nichols, 36 anos, começou como comediante nos anos 1950, formou
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com Elaine May o famoso duo Nichols e May e dirigiu teatro na Broadway na primeira metade dos anos 1960. Sua estreia no cinema, em 1966, foi Quem Tem Medo de Virginia Woolf? – que rendeu Oscars para as duas atrizes, Liz Taylor e Sandy Dennis. Cai o código de censura
A essa altura, Nichols já tinha a fama de tirar o melhor dos atores, mesmo inexperientes. Provou isso com Dustin Hoffman em seu primeiro filme de destaque. Ninguém imaginaria Benjamin Bradock na pele de outro ator. Na verdade, o papel era destinado a Robert Redford, mas Nichols teve a
coragem de apostar em Hoffman. O próprio ator reconheceu: “Uma garota como Katharine Ross jamais se apaixonaria por um cara como eu”. E Ross concordava: “Ele parecia ter um metro de altura... tão desgrenhado. Vai ser um desastre”. O produtor Joseph E. Levine achou que Dustin fosse um dos office boys. Nichols escolheu Hoffman justamente por seu ar desajeitado e inseguro. Um absurdo: Doris Day seria Mrs. Robinson na primeira escolha de elenco. Felizmente, a Namoradinha da América recusou, em virtude das cenas de nudez. Anne Bancroft nasceu para ser Mrs. Robinson. A atmosfera de The Graduate deve muito
mais de 30 anos para satisfazer Nichols, um diretor jovem que exigia muito das câmeras”. Bonnie & Clyde custou US$ 2,5 milhões e alcançou uma bilheteria de US$ 70 milhões. The Graduate saiu por US$ 3 milhões e faturou US$ 105 milhões. Bonnie teve dez indicações ao Oscar e venceu duas: Estelle Parsons, melhor atriz coadjuvante, e Burnett Guffey, melhor fotografia. The Graduate teve sete indicações e deu o prêmio de melhor diretor a Mike Nichols.Os dois filmes injetaram uma linguagem independente e autoral no agonizante Studio System hollywoodiano e ajudaram a enterrar o rígido código de censura da indústria cinematográfica, substituído em
à música de Paul Simon, interpretada por Simon & Garfunkel – outra escolha de Nichols. (A canção “Mrs. Robinson”, composta para a personagem do filme, tornou-se um hit e ganhou dois Grammies.) Foi Nichols também quem escolheu Robert Surtees para a fotografia. Veterano dos anos 1920, Surtees disse: “Precisei usar tudo o que aprendi em
1968 pelo sistema de classificação da Motion Picture Association of America. Em 1972, O Poderoso Chefão, em matéria de violência, e O Último Tango em Paris, no quesito sexo, escalaram os patamares máximos até a liberdade total. Uma abertura que começou, cinco anos antes, com Bonnie e Clyde e A Primeira Noite de um Homem. P
Cena final 2: Dustin foge com a filha de Mrs. Robinson, nome, aliás, da canção que virou hit
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VENTO
POR ANDRÉ BORGES LOPES
JATINHOS QUE SÃO JATÕES OS AVIÕES PARA EXECUTIVOS DA GULFSTREAM SE TORNARAM OS MAIS DESEJADOS PELOS MUITO RICOS
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O G650 ER tem painel futurista. Bem diferente do Albatroz e dos velhos anúncios
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A semelhança com aviões militares não acontece por acaso. Para entendê-la, vamos voltar aos anos 1940 – quando a Grumman Aircraft era o principal fornecedor de aeronaves da Marinha dos Estados Unidos. Das pranchetas da empresa saíram os famosos Cats, caças embarcados em porta-aviões, que derrotaram os rápidos e lendários caças do império japonês. As fábricas em Long Island, subúrbio de Nova York, também produziram aviões de patrulha naval, vitais na batalha contra os U-boats alemães. Alguns vieram prestar serviços no Brasil: os Albatroz, de patrulha e resgate, e os Tracker, caçadores de submarinos que operavam no porta-aviões Minas Gerais. Na euforia econômica do pós-guerra, o fundador Leroy Grumman decidiu apostar também no mercado civil. Para não bater de frente com concorrentes consolidados – Boeing, Lockheed e Douglas – escolheu um nicho: a aviação executiva. O conceito não era novo: nobres, milionários e poderosos há décadas estavam FOTOS REPRODUÇÃO
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o longe, um jato taxia rumo à cabeceira, balançando com suavidade sobre as rodas. A elegância e a classe lembram um velho sedã americano. Impressiona o comprimento das suas asas, longas e esguias como as de um planador hi-tech. Dois grandes motores aceleram e, com menos ruído do que se espera, o avião ganha velocidade. A decolagem é curta, trem de pouso e flaps recolhidos em sequência e o jato sobe em ângulo agudo para desaparecer entre nuvens, a 41 mil pés. O destino é desconhecido, mas pode ser um pequeno aeroporto do outro lado do mundo, após 15 horas de voo sem escalas pela estratosfera, esbarrando nos limites da velocidade do som. A cena até lembra decolagens de jatos de espionagem, mas esse é um voo normal e pacífico do G650 ER – versão Extended Range do Gulfstream 650. Há cinco anos, esse avião reina soberano na dinastia de objetos de desejo voadores do mais icônico fabricante de jatos executivos do planeta. Em breve, vai ganhar a companhia dos G600 e G500, ligeiramente menores mas ainda mais modernos e sofisticados. Os novos modelos concluem a mais recente metamorfose da linha de jatos de luxo da Gulfstream Aerospace – e consolidam a confortável dianteira tecnológica que essa empresa americana mantém há mais de meio século sobre os concorrentes ao redor do mundo.
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VENTO Uma revista da empresa e o Gulfstream I de Walt Disney
seduzidos pela velocidade, liberdade e privacidade dos aviões particulares. A novidade foi projetar do zero uma aeronave de senhada para funcionar como escritório e apartamento voador para os que pudessem pagar por isso. Era preciso reunir o espaço e o conforto dos melhores aviões comerciais à capacidade de operar em pequenos campos de pouso. Sem abrir mão de velocidade, de uma grande autonomia de voo e do que houvesse de mais moderno em termos de segurança e recursos de navegação. A corrida espacial começava a agitar o mundo e os barbudos de Fidel Castro deixavam Sierra Maestra para entrar em triunfo em Havana quando, no começo de 1959, o primeiro “Grumman Gulfstream” foi entregue no mercado. Comparado aos DC-3 e aos Curtiss Commando – as sobras da guerra que dominavam o mercado –, o turboélice G-159 era um palácio voador. Tinha uma cabine ampla e pressurizada, comparável às dos melhores aviões comerciais da época. Seu teto, com 1,88 m de altura, permitia caminhar de pé entre poltronas de couro largas e reclináveis. Ar condicionado, isolamento acústico, móveis luxuosos, mesas de reunião dobráveis, recursos de comunicação e entretenimento em voo, cozinha, banheiros espaçosos e acesso interno ao compartimento de bagagem definiram quase tudo o que seria padrão na aviação executiva das próximas décadas. Como a corrente marinha que lhe emprestou o nome, os Gulfstream I tinham autonomia para cruzar o Atlântico rumo à Europa. Duas confiáveis turbinas Rolls-Royce Dart garantiam uma velocidade de cruzeiro de 560 km/h voando acima dos 33 mil pés de altitude – números excepcionais para a época. Também faziam o trajeto direto de Nova York a Los Angeles em menos de oito horas, levando 12 passageiros em condições inigualáveis de conforto. Uma preciosidade caindo sobre desejo dos prósperos empresários ianques, com negócios espalhados por um país continental, numa época de comunicações precárias.
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O primeiro exemplar foi entregue para a companhia de petróleo Sinclair Oil e, em pouco tempo, os “Gee-One” já faziam sucesso entre empresários, magnatas e celebridades. Walt Disney reservou um para uso pessoal, exposto hoje em seu parque na Flórida, no qual voaram inúmeras personalidades do show business e da política americana. Elvis Presley pagou US$ 1,2 milhão por um exemplar decorado com carpete dourado, bar e som estéreo – que deu de presente a seu empresário, o coronel Tom Parker. Até empresas aéreas regionais se interessaram pelo modelo. Assim, a fábrica produziu uma versão alongada para 38 passageiros – primeira e última vez que um Gulfstream novo foi vendido como avião de linha aérea. Velozes e furiosos anos 1960
A Grumman estimou que poderia vender mil unidades do G-159, mas o tempo correu bem mais rápido que as previsões. Além do rock’n’roll, da revolução sexual e das viagens à Lua, a década de 1960 viu a aviação a jato encurtar as distâncias no mundo. Ainda no final dos anos 1950, já haviam sido lançados os primeiros jatinhos executivos, como o Lockheed JetStar (1957) e o North American Sabreliner (1958), aviões de cabine acanhada e pequeno alcance. Mas com as empresas aéreas já voando a mais de 800 km/h em Boeings, Caravelles e Coronados, os “Gee-One” foram reduzidos a tartarugas voadoras.
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O monumental Gulfstream II sobrevoa Monument Valley
Os anos 1960 também foram de mudanças para a Grumman. A divisão militar em Long Island surfava na onda da Guerra Fria, com contratos bilionários para fornecer centenas de novos aviões para a Marinha – entre eles o F-14 “Tomcat”, o caça mais sofisticado e caro da época. Em busca de eficiência, foi decidido isolar os negócios da aviação executiva em uma planta separada. Ao mesmo tempo, engenheiros e projetistas buscavam um modo de instalar motores a jato na confortável e bem-sucedida fuselagem do G-159. Uma fábrica nova foi erguida na cidade de Savannah para abrigar a linha Gulfstream. A mudança para a Georgia atendia a vários interesses: com espaço abundante, era possível dispor de uma pista de testes exclusiva, e não faltaria lugar para novas ampliações. Por outro lado, o conservador estado sulista vivia o auge das revoltas da população negra pelos Direitos Civis e contra as más condições de vida e de trabalho. Uma indústria de alta tecnologia oferecendo centenas de empregos bem remunerados vinha a calhar para acalmar os ânimos. Enquanto isso, ganhava forma o G-1159, ou Gulfstream II. Da Rolls-Royce veio um par de possantes turbinas “Spey” agora montadas numa nova cauda em formato de “T”, consolidando o que seria a configuração dominante na aviação executiva. As asas dianteiras ganharam inclinação para trás e um perfil totalmente novo, baseado na tecnologia dos aviões de ataque A-6 “Intruder” da Grumman, habilitados a voar no limite da velocidade do som.
ALGUNS DOS PRIMEIROS JATOS PARA EXECUTIVOS DA COMPANHIA FORAM COMPRADOS POR WALT DISNEY E ELVIS PRESLEY O “Gee-Two” decolou pela primeira vez em outubro de 1966. Mantendo a espaçosa cabine da versão anterior, podia cruzar os ares a Mach 0,88 (cerca de 940 km/h) e a 45 mil pés de altitude: quase a mesma velocidade (e mais alto) que os Boeing 727 – então o avião comercial mais rápido nas linhas domésticas americanas. Primeiro jato executivo de longo alcance do mercado, em maio de 1968 a nova ave honrou a tradição do seu nome ao cruzar sem escalas o Atlântico Norte. Mais alto, mais rápido, mais longe
Mais de 250 jatos G-II foram construídos entre 1967 e 1979. Durante esse período, ganharam aperfeiçoamentos – em especial no desenho da asa, aprimorado para gerar mais sustentação com menos arrasto. Isso significa que o avião consegue voar mais alto, mais rápido e mais longe usando a mesma quantidade de combustível. A mais visível dessas inovações se deu com a introdução dos winglets. Entenda-se por isso as dobras na ponta das asas. Elas simplesmente transformam as ondas de choque do deslocamento em empuxo adicional.
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VENTO
Os modelos G-III (à esquerda) e G-V: cada vez indo mais longe
4 CURIOSIDADES SOBRE OS GULFSTREAM • Dos mais de 200 turboélices G-1 fabricados entre 1959 e 1969, estima-se que cerca de 20 a 30 ainda estejam ativos. Um único exemplar recebeu registro brasileiro: o PT-KYF, comprado pela Ford Motors em 1961 e transferido para a filial brasileira nos anos 1980. Mudou de dono várias vezes e vive hoje em triste aposentadoria, no pátio de um aeroporto em Curitiba. • À medida que foram envelhecendo e ficando mais baratos, muitos Gulfstream G-II foram adaptados para tarefas especializadas por operadores civis e militares. Uma das adaptações mais curiosas foi feita pela Nasa na década de 1970: modificou dois aparelhos para simularem as características do voo planado dos ônibus espaciais. O avião era usado para treinar os astronautas antes das missões. • No começo dos anos 1990 a Gulfstream anunciou uma parceria com a Sukhoi, tradicional fabricante de caças da ex-URSS, para o desenvolvimento de um jato executivo supersônico. As empresas chegaram a apresentar as especificações técnicas do S-21, que deveria levar até dez passageiros, com alcance de 4.300 quilômetros voando a Mach 1.4. O projeto nunca evoluiu além de modelos em escala e desenhos em 3D. • Na sua configuração de máximo alcance, o G650 ER decola com carga limitada a 816 kg, entre tripulantes passageiros e bagagens. Mas seus tanques saem lotados com quase 22 toneladas de querosene de aviação, uma vez e meia a capacidade da maioria dos caminhões-tanque que abastecem os postos de gasolina nas cidades.
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Apresentada em 1980 nos novos modelos G-III – que traziam uma cabine mais longa –, a novidade também foi incorporada a uma versão modernizada do irmão menor, o G-II B. Com novos motores e novas asas, o G-III provou do que era capaz: foi o primeiro jato executivo a sobrevoar os dois polos terrestres. Os winglets logo se espalharam para toda a indústria. Hoje são raros os aviões de longo curso que não os usam. Mas não é só a tecnologia que explica o sucesso da Gulfstream. Em 1978, Allen Paulson – um aviador milionário que havia feito fortuna negociando aviões comerciais usados – comprou da Grumman a divisão de aviação executiva, inclusive a fábrica em Savannah. Quatro anos depois, incorporou à sua nova empresa o setor de aviação do conglomerado Rockwell, dando origem à nova Gulfstream Aerospace. Com 2.500 funcionários e capital aberto, tornou-se a maior fabricante mundial de jatos privados. Bons produtos, a excelência do pós-venda e um foco direcionado ao atendimento das necessidades e desejos do seu sofisticado público fizeram com que os negócios disparassem. Em 1985, a Gulfstream já tinha vendido mais de 150 G-III, além de 40 G-II B, e preparava o lançamento do novo G-IV.
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As linhas elegantes e todo o conforto do G650 ER
Havia sido incluída pela primeira vez na lista das 500 maiores empresas indicadas pela revista Fortune. Foi quando Paulson surpreendeu o mercado ao vender o controle acionário para a Chrysler por US$ 637 milhões. Mas o entusiasmo da gigante automotiva pelo mundo aeronáutico foi breve: quatro anos depois Paulson e um grupo de investidores recompraram a empresa. Ele permaneceu no comando até 1992, quando se aposentou e vendeu suas ações aos sócios. Hoje a companhia é uma subsidiária da General Dynamics, empresa fabricante do caça F-16. Por cima da turbulência
A prosperidade dos anos finais do século 20 beneficiou a indústria da aviação executiva. No topo do mercado, a Gulfstream continuou a apresentar produtos inovadores. O G-IV trouxe pela primeira vez aos jatos executivos um alcance realmente intercontinental: 8 mil quilômeros. Ele chegou associado ao revolucionário glass cockpit: computadores de bordo e telas multifuncionais substituindo instrumentos analógicos e facilitando o trabalho dos pilotos. Foi o primeiro avião da empresa a superar a marca das 500 unidades vendidas. Dez anos depois, em 1997, o GV elevou a categoria a um novo patamar de desempenho: 12 mil quilômetros de alcance voando nos céus quase exclusivos dos raros aviões que atingem 51 mil pés, com velocidades que podem chegar a Mach 0,90 (960 km/h).
NO FIM DO SÉCULO 20, OS AVIÕES DA EMPRESA JÁ COBRIAM UMA DISTÂNCIA INTERCONTINENTAL: 8 MIL QUILÔMETROS Os GVs – junto com seus sucessores G500 e G550, lançados em 2003/2004 – tornaram-se não apenas o meio de transporte preferido das grandes celebridades midiáticas, como um dos maiores objetos de desejo dos bilionários. Juntos, venderam cerca de 700 unidades. Entre os clientes, sultões e príncipes árabes, grandes corporações, governos e famílias reais da Europa. Steve Jobs usava um dos GVs nos últimos anos à frente da Apple e, não por acaso, um G550 era o jato mais exuberante da frota de Eike Batista durante seu breve apogeu. No final de 2015, essa também foi a escolha do “rei” Roberto Carlos para atender aos compromissos internacionais. A crise da aviação após os ataques do 11 de setembro e o estouro da bolha especulativa em 2008 lançaram sombras sobre esse mercado. Havia dúvidas sobre como se comportaria o segmento topo de linha da aviação executiva diante de uma eventual contenção de
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VENTO Um escritório de alto luxo no ar: assim é o G650 ER
A NOVA VERSÃO VAI AINDA MAIS LONGE. TEM AUTONOMIA PARA 13.900 QUILÔMETROS. CUSTA US$ 67 MILHÕES gastos por parte de empresas e investidores. Surpreendendo a todos, a Gulfstream dobrou a aposta. Em 2008 anunciou o projeto de um jato ainda mais ambicioso. Pela primeira vez desde a versão G-I, a cabine original com 2,24 metros de largura não era usada. Foi substituída por outra 35 centímetros mais larga e 8 centímetros mais alta. As grandes janelas ovais, uma das marcas dos jatos da empresa, também aumentaram de tamanho. O novo G650 fez o voo inaugural no final de 2009. Em 2012 recebeu a certificação americana e dois anos depois juntou-se a ele a versão G650 ER, capaz de voar 13.900 quilômetros sem escalas, a Mach 0,85. Em termos práticos, é possível decolar de Congonhas, em São Paulo, com oito passageiros a bordo e voar direto a Mumbai, na Índia, em pouco mais de 15 horas. Em trechos um pouco mais curtos, como São Paulo-Moscou, o avião leva até 19 passageiros. Ou pode encurtar a viagem em mais de uma hora voando a Mach 0,90. Os temores do mercado se mostraram infundados. Ainda sem
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concorrentes na mesma categoria, no início de 2017 a Gulfstream havia entregue mais de 220 unidades das duas versões do G650 – e há uma respeitável fila de espera pelos jatos, que não saem por menos de US$ 67 milhões. Para aqueles a quem esse valor parece exagerado, a empresa promete para os próximos meses o lançamento de dois novos aviões um pouco menores e com preços mais razoáveis: o G600 (US$ 55 milhões) e G500 (US$ 43 milhões). Precisar, pouquíssima gente realmente precisa. Sempre haverá algum analista dizendo, com razão, que dá para ter praticamente o mesmo benefício com um avião que custa uma fração desses valores. Mas é esse o preço que se paga para entrar no seu próprio avião e dizer à tripulação: “Honolulu, por favor. E só me acordem quando estivermos chegando lá”. P
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No caminho para o mirante do morro do Carvรฃo, um casal de carcarรก
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CANASTRA REAL A SERRA MINEIRA ONDE NASCE O SÃO FRANCISCO É FORMIDÁVEL EM NATUREZA E PRODUÇÃO ARTESANAL POR MARCOS DIEGO NOGUEIRA
FOTOS RICARDO ROLLO
FOTO ROBERTO TORRUBIA
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FOTOS 2, 4 E 5: ROBERTO TORRUBIA
ão é preciso de muito tempo de estada para perceber prática constante na região. São mais de 185 espécies catalogadas, que a serra da Canastra, em Minas Gerais, reserva muitas em extinção. E o tucano avistado na estrada? Aqui ele apariquezas que vão muito além do seu tão famoso queirece com frequência e quantidade impressionantes, muito acima do jo. E para quem sai de São Paulo a fim de encarar seus que se está acostumado em outros paraísos brasileiros. pouco mais de 500 quilômetros de estrada via rodovia dos Bandei“Você está na caixa d’água do Brasil”, define bem o cafeiculrantes até lá, o aviso vai chegando aos poucos: o pôr do sol por entre tor e morador da região José Henrique Monteiro. A importância os cânions da região de Capitólio, os demais produtos mineiros vendo rio São Francisco na serra da Canastra é explícita. Um dos redidos pelo caminho e a beleza natural representada por um tucano flexos mais evidentes está nas incontáveis cachoeiras e piscinas que sobrevoa a estrada. Chegando à cidade de São Roque de Minas, naturais. A principal delas é a Casca d’Anta, maior queda de todo o prenúncio é comprovado. A região é um Shangri-La natural, uma o Velho Chico, com 186 metros. A cachoeira está localizada no rota turística pouco explorada e o refúgio perfeito de quem busca segundo portão do parque, no município de Vargem Bonita, e faz tranquilidade. Sem esquecer os muitos savaler a caminhada tranquila de 1,5 quilôbores da região, como os dos doces, do café, metro da entrada até ela. “Casca d’Anta é NÃO FALTAM da cerveja artesanal e, claro, dos queijos. uma árvore com poder medicinal”, conta CACHOEIRAS NEM Sete municípios rodeiam o Parque Nao nosso guia Patric. “Antigamente, as anPISCINAS NATURAIS. cional da Serra da Canastra, este santuário tas que viviam ali roçavam nela e assim a E O MELHOR: oficializado em 1972 e que hoje soma cerca O TURISMO DE MASSA planta ganhou esse nome”, explica. Hoje de 80 mil hectares. São Roque de Minas, em dia, o animal não está mais lá e é preAINDA NÃO CHEGOU com 7 mil habitantes, é o seu portão princiso se esforçar para encontrar um dos cipal e concentra as atrações mais relevantes. Começamos a visita poucos exemplares da árvore camuflados no matagal. por essa cidade e o motivo é um só: nossa parada inicial é a nascente A piscina natural da Casca d’Anta faz sucesso, sobretudo no vedo rio São Francisco, e daqui o curso d’água parte para atravessar rão. Por isso, muitas vezes é melhor optar pelas inúmeras alternaticinco estados e 521 municípios Brasil afora. vas de cachoeiras escondidas que a Canastra oferece. A do Sileno é O acesso custa R$ 10 por pessoa e deve ser feito em veículos de uma delas. Menor, mas não menos estonteante, ela também fica em tração 4 x 4. No meio do ano as estradas de terra do parque – e isso Vargem Bonita. No caminho alucinante com vista para o chapadão vale também para suas adjacências – estão secas e fáceis de transida Babilônia, você passa pelo rio e, por algumas vezes, precisa dar tar. Já entre dezembro e março, época de calor e chuvas, o caminho caminho às inúmeras vacas das fazendas de queijo e leite. se torna mais complicado. A chegada é de fácil acesso, como acontece com grande parte A contemplação começa na vegetação, que muda de mata das cachoeiras, uma vantagem para quem quer evitar longas camiatlântica para mata de cerrado de acordo com a altitude, que varia entre 900 metros e 1.400 metros. Quanto mais alto, mais seco, e as plantas vão se mostrando em diversas formas. “São diferentes tipos de cerrado, como o de campo sujo, campo limpo, rupestre, capão de mata”, conta Patric Oliveira, guia turístico há 11 anos e nativo da região. “Tenho 27 anos e não conheço nem um terço dessa imensidão”, comenta, bem-humorado. A companhia de um guia agiliza o transporte entre os lugares, já que falta sinalização em determinados momentos da estrada. Ajuda também a chegar a pontos estratégicos mais prováveis de ver lobo-guará, tamanduá, ema, veado-campeiro e jaguatiricas, parte dessa fauna que vira e mexe dá o ar da graça aos visitantes. Já a voar, se espalha uma variedade incrível de aves que faz do birdwatching
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1. A estátua de São Francisco na nascente nada franciscana do rio; 2. Panorama do chapadão da Babilônia; 3. O comecinho dos 186 metros da Casca d’Anta; 4. Personagem corriqueiro: o tucano; 5. Vista do chapadão da Babilônia; 6. José Henrique trocou o mercado financeiro pelos mercadinhos da Canastra; 7. Uma constante: parada para deixar o gado passar
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1. A Casca d’Anta: majestosa; 2. Outra ave nada rara no parque, a saí-andorinha; 3. Guilherme Ferreira produz queijos que fazem sucesso entre os gourmets do Sudeste; 4. O chuveirinho é típico da flora da região; 5. Cervejas artesanais produzidas pela Canastra Puro Malte, na cachoeira do Sileno; 6. Zilomar e a mulher, Maria Marta, também fazem queijos de primeiríssima
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CHAPADÕES E CACHOEIRAS
MAPA ROBERTO TORRUBIA
Os acidentes, por aqui, felizmente, são quase todos geográficos. E belíssimos
nhadas. Nesta, você para o carro a 20 metros e o resultado é uma praia de água doce com direito a gruta para quando quiser fugir do sol. A queda-d’água não é alta, mas grandes são os bons momentos de privacidade – prepare a cesta de piquenique e relaxe, tranquilo. “Amanhã, bem de manhã, vou sair caminhando ao léu. Só vou seguir na direção de uma estrela que eu vi no céu”, canta Almir Sater em sua canção “Caminhos me Levem”, de 1997. As palavras do compositor se referem à sua terra, o Mato Grosso do Sul, mas a calmaria da sua viola funciona muito bem como trilha sonora dos cenários da serra da Canastra. O clima da letra também. Se deixar levar pelas estradas é uma boa alternativa, já que o destino será alguma formidável opção de paisagem. “Dar uma acalmada na
existência”, como define José Henrique, que largou a vida no mercado financeiro paulistano para criar o seu café Flor da Canastra. “Aqui tem essa linha da tranquilidade, de sair do ritmo da cidade grande e ter um tempo para avaliar como está a vida, o coração, o espírito e o corpo”, diz. Nesses caminhos de encontros e desencontros estão também as paradas para matar a sede e almoçar. O forte dos restaurantes não é a variedade de opções – não vá esperando o melhor da gastronomia mundial –, mas o carinho com que se trata a culinária regional. É servida, em esquema self service, a clássica comida mineira, simples e bem-feita: arroz, feijão, tutu, carne de panela, galinha com quiabo, couve, salada da horta. “Esse ovo eu acabei de pegar ali no
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ROTEIRO 4x 4
Mirante do morro do Carvão: para chegar, é preciso um 4x4
galinheiro”, avisa Sol, a proprietária do resde semana. “A pessoa fica hospedada aqui e PROGRAMAS taurante que leva o seu nome. O lugar fica NOTURNOS? ESQUEÇA. vira fazendeiro mesmo, de acordar às 7 da em plena roça, mas, como na maioria dos manhã para tirar o leite da vaca”, detalha. A CANASTRA pontos comerciais na Canastra, aceita carNo momento, cerca de 50 dos 800 queijeiros FOI FEITA PARA tão de crédito ou débito e tem wi fi – “sem da região são associados. “Aqui, se você for ESQUECER precisar de senha, já que não tem ninguém em dez fazendas, vai provar dez queijos diA CIDADE GRANDE para roubar o sinal”, brinca Patric. O clima ferentes, cada um com sua peculiaridade na de boa prosa e natureza viva é completo com a vista para o estupenregião, mas com esses elementos da Canastra”, diz. E comprovamos, do paredão da Canastra. Dali, a dica é seguir em frente até o morro em visitas à Fazenda do Zilomar, onde a produção do queijo é famido Carvão, mirante com pôr do sol indescritível, e uma pausa para liar, e a do Ivair, que ao lado da mulher, Lúcia, trabalha com o envelheuma caipirinha de limão-cravo no restaurante do Edmar. cimento de queijos em métodos que lembram os franceses. Concentre sua estada na região nos momentos diurnos. Quem Este último fica no distrito próximo de sugestivo nome Leites. gosta da noite pode se decepcionar, pois a cidade é pouco agitada, Seguir sua estrada é também chegar a paisagens inéditas de plansobretudo em dia de semana. Existem alguns locais no município tações de mogno e café – entre elas a de propriedade de José Henpróximo de Piumhi, mas, em cidades como Vargem Bonita e São rique, a quem uma visita rende boas conversas e doses do seu café Roque de Minas, os esforços noturnos se resumem a muita prosa gourmet, provando que a produção artesanal de qualidade e em peacompanhada de bebida e porções ao pé da torre da igreja. Nada quena escala não se limita apenas ao famoso queijo. Ainda duvida? mau para uma região com petiscos tão aprazíveis. Experimente então a cerveja Canastra Puro Malte, produzida pelo mestre cervejeiro Ney Martins Ernandes na baixíssima tiragem de Saboroso artesanato 800 garrafas por mês, nos estilos witbier, belgian blond ale e stout, e que Visitar fazendas de queijo não é só um programa prazeroso, mas não deixam a desejar a nenhum rótulo conhecido do Brasil. quase uma obrigação. Muita gente atribui o sucesso da Canastra ao Para fomentar ainda mais o turismo, alguns desses pequenos trabalho de queijeiros como Guilherme Ferreira, da Fazenda Capim produtores vêm promovendo passeios de balão com direito a queiCanastra. Seus produtos integram a carta de restaurantes paulistajo e café a bordo e vinho na chegada. Mas isso fica para a próxima. nos finos como os dos chefs Henrique Fogaça e Alex Atala. Membro da Com tantas opções de lazer e territórios gastronômicos a serem exAssociação de Produtores de Queijo da Canastra (Aprocan), ele agoplorados, existem duas certezas: a de que apenas uma visita à serra ra faz a adequação de sua fazenda para promover vivências nos finais da Canastra não é suficiente, e a de que a volta será em breve. P serradacanastra.com.br
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VELOCIDADE POR LUIZ GUERRERO
O
PILOTO SUMIU CARROS QUE DISPENSAM MOTORISTAS JÁ SÃO UMA REALIDADE. MAS SÓ DAQUI A CINCO ANOS VOCÊ PODERÁ COMPRAR O SEU
O Waymo, da Google, é autônomo. Já o eX Concept, da Mitsubishi, deverá receber um sistema de mapeamento inédito
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O
número mágico que a indústria persegue é 2022. Daqui a cinco anos, portanto, os primeiros carros autônomos começarão a ser vendidos. Estarão circulando em algumas cidades dos Estados Unidos, Europa e Japão, com seus motoristas se dedicando a outros afazeres menos estressantes do que o foco no trânsito. Carros autônomos, como o nome adianta, conduzem a si mesmos, sem a intervenção do motorista. Fazem isso por meio de sensores instalados na parte externa da carroceria e orientados por satélite e sinalização específica nas ruas. O prazo é uma previsão de comum acordo entre os grandes fabricantes que há pelo menos dez anos investem nessa tecnologia – antes de maneira tímida e agora com tal intensidade que dá a impressão de que esse será o futuro da humanidade sobre rodas. O inusitado na história: há grande probabilidade de que o pioneiro da condução autônoma não seja um veículo de fabricantes tradicionais. Mas de uma empresa de tecnologia. Aposte em nomes como Google, Apple ou Tesla; e não em Ford, Toyota ou Volkswagen. Também considere o Uber como forte azarão. Para além do motor
Carlos Ghosn é CEO da aliança Renault-Mitsubishi e presidente do conselho administrativo da Nissan – e grande entusiasta dos carros autônomos. Diz ele que a participação das empresas de tecnologia no programa de autonomia era esperada. “Hoje, essas companhias ocupam lugar de destaque como fornecedoras da indústria automotiva. Temos de saber lidar com essa realidade”, afirmou durante o último Salão de Tóquio, em 2015, uma vitrine do que os fabricantes locais estão preparando para o futuro. Na exposição, as maiores indústrias japonesas do setor mostraram sua visão de como será o carro que nossos netos irão, por assim dizer, dirigir. Os modelos expostos no salão, como o Nissan IDS Concept, têm volantes retráteis que podem ficar ocultos. Quando isso ocorre, o painel vira uma gigantesca tela com acesso à internet. Os bancos são individuais e giram 360 graus, já que o carro se transformará em sala de estar ou de reunião, enquanto se movimenta. Se o motorista quiser saber como é a sensação de conduzir seu próprio veículo, pode trazer o volante de volta.
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A corrida para chegar na frente da disputa autônoma tem sido frenética. Mas ainda restrita aos campos de provas e em vias públicas de poucas cidades, como Los Angeles e Tóquio, e no estado americano de Michigan, berço da indústria automotiva – e, ainda assim, sob vigilância dos departamentos de trânsito. Veículos semiautônomos, por sua vez, já circulam livremente – no Brasil, inclusive. Semiautônomos são aqueles que oferecem automação parcial e exigem intervenção constante do motorista. O fato é que a tecnologia, por mais avançada que se encontre, ainda está sujeita a falhas. Isso não deixa de ser irônico, pois o programa de veículos autônomos foi criado justamente para eliminar qualquer possibilidade de falha humana no trânsito, responsável pela maior parte dos acidentes fatais em todo o mundo. (Abramos um parêntese. Falhas humanas são responsáveis por 90% dos acidentes de trânsito no Brasil, segundo o Observatório Nacional de Segurança Viária. Na Europa, a proporção é a mesma, conforme ATÉ AGORA, estudo da Volvo. E, nos EUA, o índice é de CARROS 94%, de acordo com o departamento de DO GÊNERO trânsito americano.) SÓ RODAM Para o próximo Salão de Tóquio, em EM TÓQUIO, outubro deste ano, e cujo tema é “Beyond LOS ANGELES the Motor” (“Para Além do Motor”), são E POUCAS esperados novos avanços na área. A MitOUTRAS subishi, por exemplo, deve mostrar um CIDADES inédito sistema de mapeamento automatizado, ou Sistema de Mapeamento Mó-
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VELOCIDADE vel, capaz de atualizar as informações com velocidade dez vezes mais rápida que os sistemas tradicionais. O mapa dinâmico usa inteligência artificial e tecnologia balística para varrer o entorno do carro e detectar objetos móveis – que tanto podem ser veículos quanto pedestres – que possam causar algum risco à condução autônoma. As informações são transmitidas em mapas 3D na tela do computador de bordo. O programa está sendo desenvolvido pela divisão eletrônica da marca, a Mitsubishi Eletric Corp. (a principal fornecedora de mísseis ar-ar para as forças armadas japonesas), e utiliza os mesmos princípios adotados na navegação desses mísseis, como radares, sonares e sensores de alta precisão. Além da extrema precisão, o sistema, segundo a empresa, custa menos que os navegadores convencionais. Em maio do ano passado, o primeiro acidente fatal com um carro semiautônomo, um Tesla Model S, em uma rodovia de Williston, na Flórida, fez indústria e governos rediscutirem o tema. Até que o departamento de trânsito americano, o NHTSA, concluiu em janeiro deste ano que a falha foi do motorista, CALCULA-SE Joshua Brown, de 45 anos, e não do veículo. QUE Regulado para rodar no modo autônomo, A QUEDA batizado de Autopilot pelo fabricante, o DAS RECEITAS Tesla de Joshua colidiu contra um camiDAS EMPRESAS nhão a 120 km/h. A NHTSA considerou DE SEGURO o motorista, que teve morte instantânea, SERÁ DE 40%. responsável pela tragédia por não intervir UM GRANDE prontamente e, assim, não ter evitado o BAQUE acidente. A Tesla, no entanto, admitiu que NO SETOR as câmaras do Model S não conseguiram identificar a lateral branca do caminhão contra o sol. Até então, acidentes com autônomos haviam produzido no máximo feridos. Os veículos desenvolvidos pela Google estiveram envolvidos em pelo menos 15 acidentes desde 2009, quando a empresa iniciou os testes em vias públicas. A maioria
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O audaz Tesla Model S, semiautomático, virou pomo da discórdia por causa de um acidente
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O Nissan IDS Concept, com sua direção retrátil, se transforma em sala de estar
dos casos foi de colisão traseira provocada por motoristas de carros, digamos, normais. Sem backup
Mas a grande questão não é técnica, e sim jurídica: quem responderá pelos danos causados por um veículo autônomo? Os fabricantes não querem assumir a responsabilidade. Mas a Mercedes-Benz sugeriu que a função dos carros do gênero projetados pela companhia é proteger seus ocupantes. Christoph Von Hugo, um dos responsáveis pelo programa de direção assistida da empresa, fez afirmação polêmica ao responder a uma pergunta da revista Car and Driver no ano passado. No caso de o veículo identificar um grupo de crianças na estrada e concluir que não terá tempo de frear, e desviar colocaria os passageiros em risco, qual seria a reação do carro? – foi a pergunta. “Se você sabe que pode salvar ao menos uma vida, salve a pessoa dentro do carro”, disse Von Hugo.
Além dos departamentos jurídicos, o programa de veículos autônomos também envolve as seguradoras, que temem queda de receita e de empregos. Em artigo publicado no site Insurance Business, Mike Baukes, CEO da UpGuard, um dos maiores grupos de seguradoras americanos, estima que 3,5 milhões de caminhoneiros, além de outros 5,2 milhões de pessoas que trabalham direta ou indiretamente com transporte nos EUA, perderão o emprego. “As seguradoras só ganham dinheiro ao prever com exatidão quantas vezes coisas ruins irão acontecer e, no caso dos autônomos, será impossível fazer esse cálculo”, disse. Citando a auditoria KPMG, Baukes prevê que a queda de receita das seguradoras com a circulação dos veículos autônomos será de 40%, ou US$ 75 bilhões. É uma discussão que parece estar apenas começando. A Mercedes está entre as empresas que mais investem no programa de autônomos. No ano passado, apresentou seu projeto de veículos comerciais leves teleguiados por satélite para entregas em centros urbanos, sem interferência de humanos. Caminhões pesados e extrapesados da empresa já contam com elevado índice de automação, do mesmo modo que os veículos de passeio. O novo Classe E, que começou a ser vendido no Brasil, e Classe S, recentemente apresentado, são os modelos equipados com a maioria dos recursos. Sensores detectam as faixas de rolamento no asfalto e mantêm o carro dentro desses limi-
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VELOCIDADE
O Honda Clarity Fuel Cell: elétrico e autônomo
tes. Caso o motorista movimente o volante para fora das faixas sem sinalizar a manobra, encontrará resistência. Uma câmara instalada na dianteira mede a distância para o carro da frente e fará com que o automóvel fique a distância segura e predeterminada. Se os sensores detectarem a presença de pedestres, o sistema reduzirá a velocidade, fará o desvio e freará o carro em caso extremo. Mas, como em todo semiautônomo, o motorista é obriCÂMERAS, gado de tempos em tempos a assumir o SATÉLITES volante. No caso do Classe E, se isso não E SENSORES acontecer em 10 segundos, sinais sonoCONTROLAM ros e luminosos no painel avisam que as TUDO. mãos devem segurar o volante. Se ainda MAS TIRAM assim o alerta não for atendido, o carro UM GRANDE reduzirá progressivamente a velocidade, PRAZER: acionará o pisca-alerta e irá parar. O DE DIRIGIR Não é preciso investir muito dinheiro para ter um semiautônomo no Brasil.
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Modelos como o Volkswagen Golf contam com sensores capazes de manter o veículo a uma distância segura de quem vai à frente – uma evolução do controle automático de velocidade, popularmente conhecido como “piloto automático”. O Chevrolet Cruze, outro exemplo, pode ter o sistema que evita que o automóvel saia dos limites da faixa de rolamento de maneira involuntária. Mas para quem começou a dirigir e está habituado a carros mais orgânicos, como deve ser o caso do caro leitor, a experiência de ser passageiro no banco do motorista não é das mais agradáveis. É como não fazer backup, confiando que o computador não irá falhar, mesmo sabendo que ele falha. É assim dirigindo um Classe E ou um novo BMW Série 5 – outro carro com dispositivos semiautônomos avançados Por mais que você tente se manter relaxado como os motoristas de autônomos que aparecem nos comerciais de TV, a intuição de manter as mãos no volante e os pés no freio e no acelerador é mais forte. “É preciso algum tempo de adaptação e talvez muitos motoristas das gerações mais velhas nem se adaptem”, disse um técnico da Honda no banco do passageiro no protótipo de um Clarity Fuel Cell durante uma demonstração em pista fechada da Honda no Japão, em 2015. Sim, o carro freia quando deve frear, desvia de obstáculos artificiais quando deve desviar e contorna perfeitamente curvas, como um brinquedo de parque de diversões. Mas não é divertido. Talvez, quem sabe, nossos netos se adaptem melhor. P
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GARAGEM
POR MARIO CICCONE
SÓ OS FORTES TÊM VEZ COM TECNOLOGIA E RESISTÊNCIA, OS SUVS DE LEXUS, HYUNDAI, VOLVO E VW ENCARAM QUALQUER TERRENO E MANTÊM O LUXO NOS DETALHES
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LEXUS RX 350 ivisão premium da Toyota, a Lexus reivindica para o RX 350 o título de primeiro SUV de luxo do mundo. Ainda que essa distinção tenha pouca importância
diante de tantas opções no segmento, a marca faz questão de levantar, com orgulho, a sua bandeira de excelência, especialmente dos chamados takumis, mestres artesãos da Lexus. O novo modelo é a quarta geração do utilitário, com um motor V6 de 33,5 litros, que desenvolve 305 cv de potência. A experiência com o veículo traduz uma síntese entre a esportividade de um cupê e o conforto de um sedã. O RX 350 revela-se elegante e imponente para o uso urbano, mas é na estrada que mostra todo o seu potencial, com motor nervoso e respostas rápidas. O modelo vem em duas versões: RX 350 e RX 350 F-Sport. O motor é o mesmo, mas o F-Sport ganha um guarda-roupa de detalhes que transformam a alma do SUV. Trata-se de um veículo para clientes com DNA esportivo. Apresenta teto solar panorâmico e retrátil, paddle shift, pedais de alumínio e volante esportivo de três raios. Essa versão ainda tem head up display, que projeta informações (como velocidade) no para-brisa. A nova geração traz o Controle de Torque Dinâmico AWD. Esse recurso aumenta a tração do carro, unindo informações dos sensores com velocidade das rodas e ângulo de esterção das rodas dianteiras. Isso transfere a força para o lugar certo. Resultado: um carro dos mais elegantes que não tem medo de terra, lama e pedra. Passa por cima de tudo. lexus.com.br
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Elegante, imponente e luxuoso: o novo SUV da Lexus é tudo isso
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HYUNDAI CRETA
E
ste é um coreano made in Brasil. Até com certo sotaque
O modelo com nome de ilha grega é fabricado no Brasil
caipira. Fabricado na unidade da montadora em Piracicaba (SP), o Hyundai Creta é um daqueles modelos
globais que facilmente caíram no gosto do público brasileiro. A versão top de linha é a Prestige, que conta com propulsor 2.0 e câmbio automático. A marca coreana coloca o seu SUV para disputar as atenções dos clientes no mercado de luxo. Não é para menos. Ao tomar emprestado o nome da ilha grega do Minotauro, o Creta traz muito estilo, mas com motor competente e preço competitivo. Hyundai Creta Prestige 2.0 Automático chega por pou-
co mais de R$ 99 mil. O motor gera 166 cv e permite uma direção suave, com muita regularidade e com total conforto. Muito disso se deve ao câmbio automático de seis marchas, com trocas sequenciais. hyundai.com.br
A
VOLVO XC 60 nova propaganda global da Volvo traz muito da visão
XC 60 trava ao perceber a proximidade com um pedestre.
de mundo da marca sueca. Na peça publicitária, mãe e
O comercial mostrou na prática o City Safety, que atua entre 50
filha fazem planos para o futuro. Enquanto isso, o novo
e 100 km/h e auxilia em evitar as colisões. Outro dos recursos desse
Volvo XC 60, que chega ao Brasil no segundo semestre, trafega
novo modelo é o Sistema de Informação de Ponto Cego (opcional).
por uma cidade. Ao atravessar a rua, todos os sonhos da menina
Ele alerta o motorista sobre veículos no seu ponto cego. A versão
são colocados em risco pela distração do motorista, mas o novo
mais potente do XC 60 terá um motor híbrido T8 Twin Engine, com 407 cv e aceleração de 0 a 100 km/h em apenas 5,3 segundos. A marca não esconde seu gosto pela potência, mas quando se trata de Volvo a segurança está sempre em primeiro lugar. É o que está por trás da assinatura Made in Sweden. volvocars.com.br
O SUV sueco, como seria de supor, é, antes de tudo, seguro
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U
VW TOUAREG ma visita à fábrica da Volkswagen em São Bernar-
ela estar na rodovia Anchieta. De lá, parte-se para o litoral
do é sempre uma viagem na história. Aquela cidade
paulista e se pode perceber o nível de desempenho desse
industrial é a pedra fundamental da indústria auto-
carro. No Brasil, o Touareg chega nas versões V6 e V8 R-Line.
mobilística no Brasil. Mas, para não viver de passado, a marca
A primeira tem motor FSI 3,6 litros com 280 cv. Já o R-Line
alemã lança mão do Touareg, justamente para ser competi-
conta com motor V8 FSI 4,2 litros, com 360 cv. Pode chegar
tiva entres os SUVs premium. O veículo foi todo reestilizado.
aos 228 km/h de velocidade. A transmissão automática de
Dianteira e traseira ganharam um visual mais elegante. No
oito marcha é o que consegue fazer essa relação carro-mo-
quesito tecnologia, vale destacar o sistema Pro Active, que
torista ser muito prazerosa. A velocidade do veículo aumenta
evita colisões, com o travamento das rodas.
de maneira fluida, inclusive no modo manual. Além disso, tem
Outra coisa boa de visitar a fábrica da VW é o fato de
tração integral e muita força. vw.com.br
Produzido em São Bernardo (SP), com todo o capricho
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POR ANGELO PASTORELLO
NA PO NTA DO PÉ Renata Bardazzi é bailarina do Balé da Cidade de São Paulo. A dança é a sua praia
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Maquiagem: Aline Franhan
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LUXO
POR WILLIANS BARROS
APENAS RITZ Y Recordações do Ritz de Paris, um ano depois de sua grande pequena reforma
H
otel e hospital têm a mesma origem – a palavra latina hospes, “aquele que é recebido”. Daí hospital, casa ampla, hospitaleira, na qual se abrigava gente de fora. A partir do século 16, a coisa mudou: hospital passou a ser lugar de enfermos, idosos e órfãos. O fato é que, se hoje o Ritz de Paris fosse um hospital, seríamos todos hipocondríacos. Ainda mais depois de sua reinauguração em 2016, resultado de uma reforma caprichadíssima que restituiu o viço a seus 142 quartos e suítes. Inaugurado em junho de 1898, na elegante Place Vendôme, o Ritz já começou revolucionando. Foi o primeiro a equipar cada quarto com banheiro completo e telefone. As minúcias chegavam à iluminação interior dos guarda-roupas. Sem contar que o hotel criou a profissão de sommelier. O dono era César Ritz, um suíço já então calejado no ramo. “Os maridos pagam as contas, mas são as mulheres
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que decidem em que hotel ficar”, dizia naqueles idos pré-feministas. César começou engraxando sapatos no Hôtel de la Fidelité, em Paris. Tinha 17 anos. Deu duro por duas décadas, sempre subindo de patamar. Foi garçom, maître e gerente de hotéis diversos. Chegou a diretor do histórico Savoy de Londres, onde trabalhou por oito anos até ser demitido, junto com o lendário chef Auguste Escoffier, sob a suspeita – jamais confirmada – de desvio de bebidas. De volta a Paris, concebeu o Ritz “com todos os refinamentos que um príncipe poderia desejar na sua própria casa”. Sabia se cercar. Confiou o projeto ao arquiteto Hardouin-Mansart, que tem um dedinho em Versalhes. O sucesso foi tamanho que, oito anos depois, César abriu o Ritz de Londres. Outros quatro anos e inaugu-
rou o de Madri, a pedido do rei Alfonso 13, que não tinha onde hospedar a aristocracia europeia por ocasião das grandes festas. César morreu em 1918. Sua viúva, Marie, franqueou a marca para o americano Albert Keller, que, em 1927, inaugurou o primeiro Ritz-Carlton. No mesmo ano, Irving Berlin – outro ex-garçom – compôs “Puttin’ on the Ritz”, em honra ao hotel, que frequentava. Um clássico. Todos os Ritz são luxuosos, claro. Mas coube ao de Paris o adjetivo ritzy, o que vai além do chique. O livro de registro dos habitués corresponde a uma espécie de Who’s Who do século 20. Reúne desde um antigo príncipe de Gales (o futuro rei Eduardo 7) até a princesa Diana. Vale lembrar: ela e o namorado, Dodi Al-Fayed, saíram de lá para o acidente fatal. Não só a aristocracia de sangue foi assídua no Ritz, mas também a do espírito, em geral César Ritz, o criador, e um cômodo da suíte Windsor
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LUXO mais interessante. Desde as primeiras décadas, inúmeros grandes artistas moraram num quarto do hotel. Ou estavam sempre por lá. O escritor francês Marcel Proust, por exemplo. No ano de 1917, ele jantava no Ritz quase todos os dias. Por volta das 21h30, quando as luzes do restaurante se apagavam – de acordo com o regulamento dos tempos de guerra –, subia para o quarto da princesa Soutzo. O hotel virou seu segundo lar. Certo, Proust escrevia fora dali, no seu quarto forrado com cortiça, mas ia ao Ritz para viver. Não admira: acabara de doar para um bordel de rapazes todo o recheio da casa da sua mãe, recentemente falecida. A excelente senhora deve contorcer-se na cova até hoje. O romancista americano F. Scott Fitzgerald era outro que, volta e meia, ali acampava, acompanhado da mulher, Zelda, que morreu doida varrida – não por causa do room service do Ritz, ressalve-se. Os Fitzgerald moraram na França mas tinham pouco contato real com o país. Os únicos franceses que conheceram melhor foram os criados. E olhe lá. Apesar das aulas em Princeton, o francês de Scott era tétrico. Ele tinha consciência do fato: “O meu francês é uma miséria. Toda vez que peço fogo a uma pessoa, peço-lhe para me incendiar”. Nos três bares do Ritz, Fitzgerald apanhou algumas das suas mais copiosas bebedeiras. Foi no Vendôme Bar que certa noite confessou: “Basta um copo para me derrubar. O problema é que nunca sei se é o 13º ou o 14º”. Coco Chanel, a estilista, morou no Ritz por quase 30 anos. Foi também no seu quarto do hotel, decorado por ela mesma, que morreu em 1971, aos 87 anos. No funeral, o escritor André Malraux, então ministro francês da Cultura, prognosticou: “Deste século, na França, ficarão três nomes: De Gaulle,
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Picasso e Chanel”. E Picasso era espanhol. Desde o princípio da carreira na moda, Chanel substituiu a ostentação reinante pelo luxo discreto. E foi logo associada ao movimento modernista, ao lado do maestro Igor Stravinsky e do escritor Jean Cocteau. Simplificando os luxuriantes chapéus da Belle Époque, resmungou: “Como é que um cérebro pode funcionar debaixo daqueles trambolhos?”. Nos anos 1920, foi assediada por Hollywood, que visitou sem se fixar, preferindo regressar ao Ritz. E foi no hotel que quase desposou outro hóspede assíduo (e um dos homens mais ricos da Europa), o duque de Westminster. Quando o namoro
Marcel Proust e F. Scott Fitzgerald foram hóspedes frequentes. Mas nem tanto quanto Coco Chanel, que morou quase 30 anos no hotel
descarrilhou, a estilista encolheu os ombros: “Duquesas de Westminster há muitas, mas Chanel há só uma”. Foi também num salão do Ritz que ela lançou, em 1923, o seu ouro líquido: o perfume Chanel nº5, também conhecido como o pijama de Marilyn Monroe. Num geométrico frasco art déco, era o primeiro perfume com o nome de uma estilista. Nos anos 1940, Chanel entrou em baixa, ao aflorarem o seu antissemitismo e a sua homofobia (embora se proclamasse bissexual). Durante a ocupação de Paris, ligou-se a um oficial nazista, cujos favores incluíram uma autorização para que continuasse a residir no Ritz. Depois da Segunda Guerra, conheceu o ostracismo, que só acabou no final dos anos
1950. Mary Quant, a criadora da minissaia, foi visitá-la no Ritz. “Qual a sua opinião sobre a minissaia?”, perguntaram os repórteres a Chanel. A resposta foi um brilhante paradoxo: “Mostrar as coxas, sim. Os joelhos, jamais!”. Em 1969, Katharine Hepburn interpretou Chanel na Broadway. Naquela altura, ela já conquistara o reconhecimento do primeiro nome e era apenas Coco. Por falar em nomes, um dos bares do Ritz leva o de um dos seus mais lendários clientes: Ernest Hemingway. Aberto a partir das 18h, todas as quartas-feiras o estabelecimento tem uma prova de charutos. Em 1998, durante o centésimo aniversário do hotel, o bar criou um novo coquetel com o nome de Hemingway. O autor de Paris É uma Festa merecia essa homenagem e muito mais. Primeiro, porque era um notório bom-copo. Segundo, por causa de uma façanha memorável. Em agosto de 1945, uma coluna francesa que vinha na vanguarda das forças aliadas entrou em Paris, até então ocupada pelos alemães. No calor dos combates, um jipe atravessou as barricadas e parou em frente ao prédio da livreira Sylvia Beach, que desceu para a rua correndo. Diante dela, num uniforme sujo e manchado de sangue, saído do jipe, estava Hemingway. O escritor ergueu-a e rodopiou com ela nos braços, enquanto as pessoas aplaudiam. Depois, reuniu outra vez os seus homens e saltou de novo para o jipe. “Ernest, aonde é que você vai agora?”, perguntou a amiga. Hemingway não se fez de rogado: “Vou libertar a adega do Ritz!”. Simplesmente, um luxo
Em julho de 2012, mais de um século após sua abertura, o Ritz foi fechado para sua primeira reforma. Comandadas pelo arquiteto Didier Beautemps e pelo designer
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FOTOS REPRODUÇÃO
1. O Bar Vendôme tem o nome da praça onde o hotel está instalado; 2. Marcel Proust, o escritor, jantou no Ritz quase todos os dias de 1917; 3. O mesmo Bar Vendôme, em sua área com teto retrátil; 4. Scott Fitzgerald e a mulher, Zelda, também foram hóspedes assíduos; 5. Coco Chanel lançou seu perfume mais famoso no Ritz – e ali viveu até morrer; 6. A imponente escadaria do hotel; 7. Lady Di saiu do Ritz para o acidente fatal; 8. Um ambiente da suíte Impériale
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O restaurante La Table de L’Espadon e o bar Hemingway
de interiores Thierry Despont, as obras se estenderam por quatro anos e custaram € 450 milhões. Engana-se quem pensa que a ideia era transformar o hotel em algo moderninho. Seu proprietário, o egípcio Mohamed Al-Fayed – pai do Dodi –, determinou que nenhuma mobília ou item de decoração fosse vendido. Todo o mobiliário foi restaurado e reintegrado. Eis o desafio: fazer tudo mudar – mantendo, no entanto, as referências que fizeram do Ritz a crème de la crème. Reaberto em junho do ano passado, o hotel ganhou novos atrativos, sem perder a aura mítica. Dizem até que seus habitués são capazes de sentir o cheiro de âmbar de antes da remodelação. Uma das novidades é o Chanel au Ritz Paris, fruto de uma parceria com a mais famosa maison francesa. Trata-se do primeiro spa da Chanel. Outro luxo do novo Ritz é o serviço que busca o hóspede na saída do avião, acelera os procedimentos aduaneiros e leva o felizardo o mais rápido possível para o conforto do quarto, a qualquer hora do dia ou da noite. Quem preferir pode optar por uma entrada discreta no hotel, por um túnel de 8 metros aberto dentro de um estacionamento. Com a reforma, o número de “apar-
tamentos” do hotel diminuiu, de 159 para 142. São 71 quartos “comuns” (a partir de 35 metros quadrados) e 71 suítes (com ao menos 65 metros quadrados). Entre as suítes, a mais famosa é a Coco Chanel, com 188 metros quadrados. Sim, aquela decorada pela própria. Sem esquecer a Impériale, com 218 metros quadrados, uma obra-prima. Um de seus cômodos é uma réplica do
O Ritz vai buscar o hóspede na porta do avião, resolve as questões aduaneiras e leva o felizardo até a porta do quarto. Basta requisitar
quarto de Maria Antonieta em Versalhes. A diária sai por € 25 mil. Na área gastronômica, a grande estrela é o L’Espadon, agora sob a batuta de Nicolas Sale, chef étoilé que trabalhava na estação de esqui Courchevel. Conta-se que César Ritz batizou o restaurante com esse nome (em português, espadon significa espadarte,
criatura parecida com o peixe-espada), em homenagem à paixão que ele e seu amigo Hemingway tinham pela pesca. Por falar no homem, o Bar Hemingway, no estilo gentlemen’s club inglês, manteve suas paredes revestidas de madeira, os confortáveis sofás de couro e objetos pessoais do escritor americano. Em seu auge, o bar foi o epicentro da vida boêmia de Paris, comandada por Hemingway e Gary Cooper. Diz a lenda que Cole Porter passava até nove horas por ali. Já o Vendôme, no estilo brasserie, ganhou uma extensão com teto de vidro retrátil, que possibilita uma experiência ao ar livre, tanto no verão quanto no inverno. Essa varanda abre-se para o magnífico Grand Jardin, de 1.600 metros quadrados. Para os apreciadores do clássico chá da tarde, a novidade é o Salão Proust, com lareira e biblioteca de livros raros. De porcelana branca de Limoges, o serviço foi concebido pela Maison Haviland. O mote: “Um chá à francesa em que os doces e a memória fazem cerimônia”. A rigor, depois da reforma, pouca coisa mudou. A propósito, monsieur Michel Battino, o concierge, continua firme no posto, recolhendo delicadamente os casacos dos hóspedes na entrada. Como faz há 41 anos. P
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FOTOS WIKIMEDIA
© REPRODUÇÃO
Mahatma Gandhi (1869-1948)
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O líder pacifista indiano media pouco mais de 1,50 metros. Pesava 50 quilos. Jamais ergueu a mão contra alguém. Só palavras duras contra o colonialismo inglês, em prol da desobediência civil. Por causa delas, foi preso 13 vezes. Na foto, em 1931, recém-libertado, viu-se recepcionado em Marselha, na França, a caminho de Londres, onde participaria de uma conferência com os britânicos. Depois disso, seria detido outras três vezes. A última em agosto de 1942, quando lançou seu jornal de duas páginas, o Harijan – há 75 anos, portanto. De novo, pregava a independência. Libertado dois anos mais tarde, continuou sua luta desarmada. Graças, sobretudo, às pressões de Gandhi, que insuflou a população, o Reino Unido aceitou, em 1947, a independência, pondo fim a um domínio de 89 anos. Ainda que, no processo, fosse criado um segundo país, o Paquistão. Um rebelde hindu, que discordava da divisão, matou a tiros no ano seguinte, em Nova Délhi, o líder franzino que conseguira o impossível: mudar o país sem um único gesto de violência.
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