Revista Vírus #1

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VÍRUS #1 — FEVEREIRO/MARÇO 2008

MICHAEL LÖWY “ECOSOCIALISMO E PLANEAMENTO DEMOCRÁTICO” RICARDO PAES MAMEDE “DESCONSTRUIR MITOS PARA CONSTRUIR A ALTERNATIVA: O CONTRIBUTO DE HA-JOON CHANG” ANA BRANDÃO “DISSIDÊNCIA SEXUAL FEMININA E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA” MARIANA AVELÃS “OSCAR WILDE E O PÓS-COLONIALISMO” FRANCISCO LOUÇÃ “O AVESSO DO MUNDO SEGUNDO BARTHES - O MARXISMO CONTRA A CRIAÇÃO DOS MITOS” + MÚSICA LEITURAS TEATRO CINEMA


VÍRUS É MESMO PARA CONTAMINAR

EDITORIAL | JOÃO TEIXEIRA LOPES

DIR-SE-Á, PROVAVELMENTE COM ALGUM FAcilitismo, que uma revista on-line é um indício de moda, uma espécie de cavalgada na espuma dos dias, um caminho fácil para a citação. Poderia objectar dizendo que é apenas o ar que se respira. Na verdade, esta revista fará a transacção constante entre o que se passa «lá fora» (no mundo dito «real») e o cá dentro (o universo apelidado de «virtual»). É impossível ignorar este trânsito, já que ele constitui, no capitalismo tardio, um dos traços da sua estruturação. Aliás, os mais recentes estudos sobre as constelações «virtuais» sublinham a ideia de uma dupla hermenêutica: não só a Web prolonga, em muitos casos, situações, redes e conteúdos da «vida real» como, em acréscimo, lhes fornece matéria-prima que alimenta, por sua vez, os quotidianos e as vivências, numa espiral fecunda. Poderíamos apenas enfatizar este ponto: toda e qualquer experiência é real, material e contextualizada dentro de limites objectivos. Na Web ou fora dela.

De igual modo, não acreditamos nem no determinismo tecnológico, nem na neutralidade dos dispositivos. Dito de outro modo, importa apropriarmo-nos, de acordo com as nossas assumidas orientações ideológico-discursivas, tanto do meio como dos conteúdos, sendo que o meio – o dispositivo tecnológico – é já conteúdo. Além do mais, política é comunicação e interacção – face a face ou desterritorializada. Os combates culturais e ideológicos fazem-se em todos os terrenos onde há investimentos simbólicos e materiais. A luta pela hegemonia requer novas formas de «jogar o jogo», mesmo que, no final, a existir final, consigamos mudar as regras, sem as viciar. Não prescindimos de nenhum combate –onde quer que ele se realize. E não prescindimos, igualmente, de combater com as nossas melhores armas: as ideias. Não esperem, pois, uma revista preguiçosa. Importa ainda referir que esta é uma revista de «actualidades». Não rejeitamos – antes reivindicamos – o desejo de um olhar que veja as partes dentro do todo, contra as tentações de especialização ao infiniVÍRUS FEV/MAR 2008

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to, de atomização ou fragmentação pós-modernas. O todo – esse ar que respiramos e que esta revista respira –fornece-nos as melhores pistas para a interpretação e para a acção. Mesmo as «evidências», tantas vezes carregadas de senso comum, preconceitos e estereótipos, apontam-nos, amiúde, um rastro que importa seguir – ainda que para as desocultar e desmistificar. Há, pois, um novo generalismo a ressurgir, uma procura de sínteses – sempre inacabadas, provisórias, em constante reinvenção. Um enciclopedismo contra-hegemónico. O presente número, como se verá, propõe uma digressão ou vaivém entre a crise dos mercados mundiais, as mitologias de Barthes revisitadas, a centralidade da ecologia na economia política, as identidades masculinas e femininas em transição, os livros, os espectáculos... Esta revista é para contaminar, insinuando-se em todos os trânsitos e interstícios. Criando ocasiões. Não é inócua, nem tão-pouco inofensiva. Resiste a receitas e a breviários. Disseminar-se-á: assim o esperamos.


NSAIO GERAL

ECOSOCIALISMO E PLANEAMENTO DEMOCRÁTICO MICHAEL LÖWY

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ECOSOCIALISMO E PLANEAMENTO DEMOCRÁTICO

MICHAEL LÖWY | SOCIÓLOGO. DIRECTOR DE INVESTIGAÇÃO NO CENTRE NATIONAL DE LA RECHERCHE SCIENTIFIQUE (CNRS) DE PARIS.

Se o capitalismo não pode ser reformado para subordinar o lucro à sobrevivência humana, que alternativa existe senão caminhar para um tipo de economia nacional ou globalmente planificada? Problemas como as alterações climáticas requerem a ‘mão visível’ do planeamento directo. (…) Os nossos empresários capitalistas não se podem ajudar a si próprios. Sobre economia e ambiente, não têm escolha senão tomar sistematicamente decisões erradas, irracionais e, em última análise – dada a tecnologia que comandam –, suicidas. Então, que outra escolha temos além de considerar uma verdadeira alternativa ecosocialista? 1 ROBERT SMITH

ECOSOCIALISMO É A TENTATIVA DE FORNECER uma alternativa civilizacional radical ao que Marx chamou o “processo destrutivo” do capitalismo.2 Ela avança com uma política económica fundada nos critérios nãomonetários e extra-económicos das necessidades sociais e do equilíbrio ecológico. Fundado nos argumentos básicos do movimento ecologista e da crítica marxista da economia política, esta síntese dialéctica - tentada por um vasto espectro de autores, de André Gorz (nos seus primeiros escritos) a Elmar Altvater, James O’Connor, Joel Kovel e John Bellamy Foster – é ao mesmo tempo uma crítica da “ecologia de mercado”, que não desafia o sistema capitalista, e do “socialismo produtivista”, que ignora a questão dos limites naturais. Segundo O’Connor, o objectivo do socialismo ecológico é uma nova sociedade baseada na racionalidade ecológica, no controlo democrático, na igualdade social e no predomínio do valor de uso sobre o valor de troca.3 Eu acrescentaria que estes valores requerem: (a) propriedade colectiva dos meios de produção (‘colectiva’ significa aqui propriedade pública, cooperativa ou comunitária); (b) planeamento democrático, que torna possível a sociedade definir os seus objectivos de investimento e produção; e (c) uma nova estrutura tecnológica das forças produtivas. Por outras palavras, uma transformação revolucionária, económica e social.4 Para os ecosocialistas, o problema das principais correntes da ecologia política, representadas pela maioria

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dos partidos Verdes, é que eles não parecem tomar em conta a contradição intrínseca entre as dinâmicas de expansão ilimitada do capital e de acumulação de lucros, e a preservação do ambiente. Isto conduz a uma crítica do produtivismo, muitas vezes relevante, mas não vai além de uma economia de mercado ecologicamente reformada. O resultado é que muitos partidos Verdes se tornaram no álibi ecológico de governos social-liberais de centro-esquerda.5 Por outro lado, o problema das correntes dominantes na esquerda ao longo do século XX – a social-democracia e o movimento comunista de inspiração soviética – é a sua aceitação do padrão de forças produtivas realmente existente. Enquanto a primeira se limitava a uma versão reformada do sistema capitalista, keyenesiana na melhor das hipóteses, a segunda desenvolveu uma forma autoritária de produtivismo colectivista – ou capitalista de Estado. Os próprios Marx e Engels não ignoravam as consequências de devastação ambiental do modo de produção capitalista; há várias passagens do Capital e de outros textos que indicam esta compreensão.6 Além disso, eles acreditavam que o objectivo do socialismo não é produzir mais e mais bens, mas proporcionar aos seres humanos tempo livre para desenvolverem plenamente as suas potencialidades. Nesta medida, têm pouco em comum com o ‘produtivismo’, i.e., com a ideia de que a expansão ilimitada da produção é um objectivo em si.


Porém, as passagens dos seus escritos sobre o efeito do socialismo no desenvolvimento das forças produtivas para além dos limites impostos pelo sistema capitalista, circunscrevem a transformação socialista às relações de produção capitalistas, que se tornaram um obstáculo (‘amarras’ é o termo frequente) ao livre desenvolvimento das forças produtivas existentes. Socialismo significaria, acima de tudo, apropriação social da capacidade produtiva, colocando-a ao serviço dos trabalhadores. Citando uma passagem do Anti-Dühring, uma obra canónica para muitas gerações de marxistas, sob o socialismo “a sociedade toma posse, abertamente e sem rodeios, das forças produtivas, que se tornaram demasiado grandes” para o presente sistema.7 A experiência da União Soviética ilustra os problemas que resultam da apropriação colectivista dos aparelhos de produção capitalistas. Desde o início, predominou a tese da socialização das forças produtivas existentes. É verdade que, nos primeiros anos após a Revolução de Outubro, desenvolveu-se uma corrente ecologista e foram tomadas pelas autoridades soviéticas algumas medidas limitadas de protecção ambiental. Mas com o processo estalinista de burocratização, os métodos produtivistas na indústria e na agricultura impuseramse por meios totalitários, enquanto os ecologistas foram marginalizados ou eliminados. A catástrofe de Chernobyl foi o exemplo acabado das consequências desastrosas desta imitação das tecnologias produtivas ocidentais. Uma mudança nas formas de propriedade a que não suceda uma gestão democrática e a reorganização do sistema produtivo só pode levar a um beco sem saída. Uma crítica da ideologia produtivista do “progresso” e da ideia de uma exploração “socialista” da natureza,

aparecia já nos escritos de alguns dissidentes marxistas dos anos 30, tais como Walter Benjamin. Mas é sobretudo ao longo das últimas décadas que o ecosocialismo se desenvolve como um desafio à tese da neutralidade das forças produtivas, que continuam a predominar nas principais correntes da esquerda do século XX. Os ecosocialistas deveriam inspirar-se nas observações de Marx sobre a Comuna de Paris: os trabalhadores não podem tomar posse do aparelho de Estado capitalista e colocá-lo ao seu serviço. Eles têm de “quebrá-lo” e substitui-lo por um poder político radicalmente diferente, democrático e não-estatista. O mesmo se aplica, mutatis mutandis, ao aparelho produtivo, que não é “neutro”, antes transporta na sua estrutura a marca do seu desenvolvimento ao serviço da acumulação de capital e da expansão ilimitada do mercado. Isto coloca-o em contradição com as necessidades de protecção ambiental e com a saúde da população. Ele deve portanto ser “revolucionarizado”, num processo de transformação radical. É claro que muitas conquistas científicas e tecnológicas da modernidade são preciosas, mas o conjunto do sistema produtivo deve ser mudado, e isto só pode ser feito por métodos ecosocialistas, i.e, através de um planeamento democrático da economia que tenha em conta a preservação do equilíbrio ecológico. Para alguns sectores da produção, isto pode significar uma descontinuidade. Por exemplo: instalações nucleares, certos métodos de pesca industrial em massa (responsáveis pelo quase-extermínio de numerosas espécies marinhas), o abate destrutivo de florestas tropicais, etc. – a lista é muito longa. No entanto, começa por exigir uma revolução no sistema energético, com a substituição das actuais

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fontes (sobretudo fósseis), responsáveis pelo envenenamento do ambiente, por fontes renováveis de energia: água, vento, sol. Este tema é decisivo porque as energias fósseis (petróleo, carvão) são responsáveis por muita da poluição no planeta, tal como pelas mudanças no clima. A energia nuclear é uma falsa alternativa, não só pelo perigo de novos Chernobyl, mas também porque ninguém sabe o que fazer com milhares de toneladas de resíduos nucleares – tóxicos durante centenas, milhares e por vezes milhões de anos – e com gigantescas instalações obsoletas e contaminadas. A energia solar, que nunca levantou grande interesse nas sociedades capitalistas (não sendo “rentável” ou “competitiva”), deve tornar-se objecto de investigação e desenvolvimento intensivos e ter um papel-chave no desenvolvimento de um sistema energético alternativo. Tudo isto deve ser realizado sob as condições necessárias do pleno emprego e do emprego justo. Estas condições são essenciais, não só para cumprir um desígnio de justiça social, mas também para assegurar o apoio da classe trabalhadora ao processo de transformação estrutural das forças produtivas. Este processo é impossível sem o controlo público dos meios de produção e sem planeamento, i.e. decisões públicas sobre investimento e mudança tecnológica que devem ser tomadas longe dos bancos e das empresas capitalistas, de modo a servirem o bem-comum da sociedade. Mas não basta colocar estas decisões nas mãos dos trabalhadores. No terceiro volume do Capital, Marx definiu o socialismo como a sociedade onde os produtores associados organizam racionalmente as suas trocas (Stoffwechsel) com a natureza”. Mas no primeiro volume do Capital é feita uma abordagem mais ampla: o socialismo


«NO CAPITALISMO, O VALOR DE USO É APENAS UM MEIO – FREQUENTEMENTE, UM TRUQUE – AO SERVIÇO DO VALOR DE TROCA E DO LUCRO (O QUE EXPLICA, ALIÁS, PORQUE TANTOS PRODUTOS NA ACTUAL SOCIEDADE SÃO ESSENCIALMENTE INÚTEIS). NUMA ECONOMIA SOCIALISTA PLANEADA, O VALOR DE USO É O ÚNICO CRITÉRIO PARA A PRODUÇÃO DE BENS E SERVIÇOS, COM CONSEQUÊNCIAS ECONÓMICAS, SOCIAIS E AMBIENTAIS DE LONGO ALCANCE.»


é concebido como “uma associação de seres humanos livres (Menshen) que trabalha com meios de produção comuns (Gemeinschaftlichen)”8. Esta concepção é muito mais apropriada: a organização racional da produção e do consumo tem que ser obra não são só dos “produtores”, mas também dos consumidores; com efeito, de toda a sociedade, com a população produtiva e também “nãoprodutiva”, a qual inclui estudantes, jovens, domésticas (e domésticos), pensionistas, etc. Neste sentido, toda a sociedade poderá escolher, democraticamente, que linhas produtivas devem ser privilegiadas, e que recursos deverão ser investidos em educação, saúde ou cultura.9 Os próprios preços dos bens não serão deixados à leis da oferta e da procura, mas determinados, até onde fôr possível, por critérios sociais, políticos e ambientais. Inicialmente, isto envolveria apenas taxas sobre alguns produtos e preços subsidiados para outros. Mas, idealmente, com o avanço da transição para o socialismo, mais e mais produtos poderiam ser distribuídos sem custos e de acordo com a vontade dos cidadãos. Longe de ser “despótico” em si, o planeamento democrático é o exercício, pelo conjunto da sociedade, da sua liberdade de decisão. É isto que é necessário para a libertação das “leis da economia”, reificadas e alienantes, caixa forte das estruturas capitalistas e burocráticas. O planeamento democrático, combinado com a redução do tempo de trabalho, seria um passo decisivo da humanidade para o que Marx chamou “o reino da liberdade”. Isto porque um aumento significativo do tempo livre é de facto uma condição para a participação da população trabalhadora na discussão democrática e na gestão da economia e da sociedade.

Os partidários do mercado livre apontam o falhanço do planeamento soviético como uma razão para rejeitar qualquer ideia de economia organizada. Sem entrar no debate sobre os feitos e misérias da experiência soviética, era obviamente uma forma de ditadura sobre as necessidades – para usar a expressão de György Markus e dos seus amigos da Escola de Budapeste: um sistema não-democrático e autoritário que deu o monopólio de todas as decisões a um punhado de tecno-burocratas. Não foi o planeamento que levou à ditadura, mas sim as crescentes limitações à democracia no Estado soviético e, após a morte de Lenine, o estabelecimento de um poder burocrático totalitário, que conduziu a um sistema de planeamento cada vez mais autoritário. Se o socialismo significa o controlo pelos trabalhadores e pela população em geral do processo produtivo, a URSS sob Estaline e seus sucessores era um longínquo eco disso. O fracasso da URSS ilustra os limites e contradições do planeamento burocrático, que é inevitavelmente ineficiente e arbitrário, e não pode ser usado como argumento contra o planeamento democrático 10. A concepção socialista de planeamento não é senão a democratização radical da economia: se as decisões políticas não devem ser deixadas a uma elite de governantes, porque não deveria tal princípio aplicar-se às da economia? O equilíbrio a atingir entre planeamento e mecanismos de mercado é uma questão assumidamente difícil: durante os primeiros estágios de uma nova sociedade, os mercados manterão certamente um lugar importante, mas à medida que avançar a transição para o socialismo, o planeamento será cada vez mais predominante, contra as leis do valor de troca.11 Engels insistiu que uma sociedade socialista “terá

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que estabelecer um plano de produção levando em conta os meios de produção, especialmente incluindo a força de trabalho. Serão, em última instância, os efeitos úteis de vários objectos de uso, comparados entre si e em relação à quantidade de trabalho necessária à sua produção, que determinarão o plano”12. No capitalismo, o valor de uso é apenas um meio – frequentemente, um truque – ao serviço do valor de troca e do lucro (que explica, aliás, porque tantos produtos na actual sociedade são essencialmente inúteis). Numa economia socialista planeada, o valor de uso é o único critério para a produção de bens e serviços, com consequências económicas, sociais e ambientais de longo alcance. Como Joel Kovel observou: “a alta do valor de uso e a correspondente reestruturação das necessidades tornam-se o regulador social da tecnologia, em lugar da conversão do tempo em mais-valia e dinheiro, como sucede sob o capital”.13 No tipo de sistema de planeamento democrático aqui enunciado, o plano abrange as principais opções económicas, não a administração de restaurantes, mercearias e padarias, pequenas lojas, empresas artesãs e serviços. É importante enfatizar também que o plano não entra em contradição com a autogestão das unidades produtivas pelos seus trabalhadores. Enquanto a decisão, tomada através do sistema de planeamento, de converter, por exemplo, uma fábrica de automóveis ao fabrico de autocarros e eléctricos seria tomada pela sociedade como um todo, a organização interna e o funcionamento da fábrica deveriam ser democraticamente geridos pelos seus trabalhadores. Houve muita discussão sobre a natureza “centralizada” ou “descentralizada” do planeamento, mas pode argumentar-se que o pomo da questão é o controlo do plano a todos os níveis – local, regional, nacional,


continental e, desejavelmente, internacional, uma vez que as questões ecológicas tais como o aquecimento global são planetárias e devem ser abordadas à escala global. Deveríamos chamar-lhe planeamento democrático global. Mesmo a este nível, seria bastante oposto ao que usualmente se chama “planeamento central”, uma vez que as decisões económicas e sociais não são tomadas por qualquer “centro”, mas sim democraticamente decididas pelas populações envolvidas. Claro que haverá inevitáveis tensões e contradições entre estabelecimentos auto-geridos, administrações locais democráticas, grupos sociais alargados. Mecanismos de negociação podem ajudar a resolver alguns desses conflitos. Mas, em última análise, os maiores grupos envolvidos, se forem maioritários, devem poder impor a sua visão. Para dar um exemplo: uma fábrica autogerida decide evacuar no rio os seus resíduos tóxicos. A população de toda a região está em risco de contaminação: pode, portanto, decidir que a produção nesta unidade deve ser interrompida até ser encontrada uma solução satisfatória para o controlo dos resíduos. Desejavelmente, numa sociedade ecosocialista, os trabalhadores fabris teriam a consciência ecologista necessária para evitar decisões como aquela. Mas instituir meios para assegurar que os interesses sociais mais amplos têm a palavra final, como no exemplo anterior, não significa que assuntos relativos à gestão interna deixem de ser encaminhados ao nível da fábrica, escola, bairro, hospital ou cidade. O planeamento socialista deve assentar no debate democrático e pluralista, a todos os níveis em que as decisões são tomadas. Organizadas sob a forma de partidos, plataformas, ou quaisquer outros movimentos políticos, os delegados para o organismo de planeamento são elei-

A NATUREZA DEMOCRÁTICA DO PLANEAMENTO NÃO É INCOMPATÍVEL COM A EXISTÊNCIA DE ESPECIALISTAS: O SEU PAPEL NÃO É DECIDIR, MAS SIM APRESENTAR NO PROCESSO DEMOCRÁTICO AS SUAS PERSPECTIVAS (MUITAS VEZES DIFERENTES, SENÃO OPOSTAS)

tos, e as diferentes propostas são apresentadas às populações abrangidas por elas. A democracia representativa deve ser completada – e corrigida – pela democracia directa, em que as pessoas escolhem directamente sobre as grandes opções. Deve o transporte público ser gratuito? Devem os possuidores de viatura privada pagar impostos especiais para subsidiar os transportes públicos? Deve a energia solar ser subsidiada para competir com as energias fósseis? Deve a semana de trabalho ser reduzida a 30 ou 25 horas, ou menos, mesmo que isso signifique uma redução na produção? A natureza democrática do planeamento não é incompatível com a existência de especialistas: o seu papel não é decidir, mas sim apresentar no processo democrático as suas perspectivas (muitas vezes diferentes, senão opostas). Como Ernest Mandel afirma, “governos, partidos, conselhos de planeamento, cientistas, tecnocratas, ou seja quem for, podem fazer sugestões, avançar propostas, tentar influenciar as pessoas. Mas sob um sistema multi-partidário, tais propostas nunca serão unânimes: as pessoas terão a escolha entre alternativas coerentes. E o direito e o poder para decidir deve estar nas mãos da maioria dos produtores/consumidores/cidadãos e nas

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de mais ninguém. Que há nisto de despótico ou paternalista?”.14 Há garantia de que as pessoas tomarão as decisões ambientais correctas, mesmo à custa dos seus hábitos de consumo? Não existe tal “garantia”, além da razoável expectativa que a racionalidade prevaleça nas decisões democráticas quando o poder do fetichismo da mercadoria estiver quebrado. Claro que serão cometidos erros por vontade popular, mas quem acredita que os especialistas não erram? De resto, ninguém pode imaginar o advento de uma nova sociedade sem que a maioria da população tenha atingido, pela sua luta, pela auto-formação e experiência social, um alto nível de consciência ecológica e socialista.15 Seja como for, não são as alternativas muito mais perigosas – o mercado cego, uma ditadura ecológica de “especialistas” – do que o processo democrático, com todas as suas limitações? É verdade que o planeamento requer a existência de organismos executivos/técnicos, encarregados de pôr em prática o decidido, mas estes não serão necessariamente autoritários desde que colocados sob controlo permanente a partir de baixo e se incluírem autogestão dos trabalhadores num processo de administração


OLÓGICA CEPÇÃO EC R E P E A T IS IA SOCIAL CONSCIÊNC E NCIA D O T N E IA EXPERIÊ LVIM R O P V Ó N E R S P E A D «O CISIVO É FACTOR DE O L AIS A U Q O ONTOS LOC SSO, N R E F C N O O R C P S M O ÉU RTINDO D M LUTA, PA E S A O S S E ADE» DAS P DA SOCIED L A COLECTIVA IC D A R ORMAÇÃO A TRANSF A R PA IS E PARCIA

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democrática. É evidente que ninguém quer imaginar a maioria do povo a gastar todo o seu tempo livre em autogestão ou reuniões de participação. Como assinalou Mandel, “a auto-administração não implica o desaparecimento da delegação, combina a tomada de decisões pelos cidadãos com um controlo mais estrito dos delegados pelo seu respectivo eleitorado”.16 A “economia participativa” (parecon) de Michael Albert foi objecto de algum debate no movimento da alterglobalização. Apesar de alguns atalhos na sua abordagem de conjunto, que parece ignorar a ecologia, e contrapõe a parecon ao socialismo de modelo soviético, o parecon tem elementos comuns com o tipo de planeamento ecosocialista aqui proposto: oposição ao mercado socialista e ao planeamento burocrático, compromisso com a autoorganização dos trabalhadores, anti-autoritarismo. O modelo de planeamento participativo de Albert baseia-se numa complexa construção institucional: Os participantes no planeamento participativo são os conselhos e federações de trabalhadores, os conselhos e federações de consumidores e vários Conselhos de Facilitação (CFI). Conceptualmente, o planeamento é bastante simples. Um CFI anuncia o que chamaremos “preços indicativos” para todos os bens, recursos, categorias de trabalho, e capital. Os conselhos e federações de consumidores respondem com propostas de consumo, tomando os preços indicativos dos bens e serviços como estimativas do custo social do seu fornecimento. Os conselhos e federações de trabalhadores respondem com propostas de produção, listando os outputs que poderão disponibilizar e os inputs de que precisarão para isso; tomando os preços indicativos como estimativas dos benefícios sociais trazidos pelos outputs e dos verdadeiros custos de oportunidade dos inputs. Um CFI calcula então o excesso de

procura ou oferta para cada bem e ajusta o respectivo preço, de acordo com algoritmos socialmente aceites. Usando os novos preços indicativos, os conselhos e federações de consumidores e trabalhadores revêem e reformulam as suas propostas (…) Em vez do domínio dos capitalistas ou dos coordenadores sobre os trabalhadores, a parecon é uma economia na qual trabalhadores e consumidores, juntos, determinam cooperativamente as suas opções económicas e beneficiam delas de forma a promover a igualdade, a solidariedade, a diversidade e a autogestão.17 O principal problema desta concepção – a qual não é simples mas extremamente elaborada e por vezes mesmo obscura – é que parece reduzir o ´planeamento´ a uma espécie de negociação entre produtores e consumidores em relação aos preços, inputs e outputs, oferta e procura. Por exemplo, o conselho dos trabalhadores da indústria automóvel poderia reunir-se com o conselho de consumidores para discutir os preços e adaptar a oferta à procura. O que isto deixa de fora é precisamente o que constitui a questão principal no planeamento ecossocialista: a reorganização do sistema de transportes, reduzindo radicalmente o lugar para o automóvel privado. Uma vez que o ecossocialismo requer que sectores inteiros da indústria desapareçam – centrais nucleares, por exemplo – e investimentos massivos em sectores pequenos e praticamente inexistentes (e.g. energia solar), como pode isto ser resolvido por “negociações cooperativas” entre as unidades de produção existentes e os conselhos de consumidores em relação a “inputs” e “preços indicativos”? O modelo de Albert olha para a estrutura produtiva e tecnológica existente e é demasiado “economicista” para tomar em conta os interesses gerais, socio-políti-

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cos e socio-ecológicos da população – os interesses dos indivíduos, como cidadã/os e seres humanos, os quais não podem ser reduzidos aos seus interesses económicos como produtores e consumidores. Ele deixa de fora não apenas o Estado como instituição – uma opinião respeitável – mas também a política como o confronto entre as diferentes opções económicas, sociais, políticas, ecológicas, culturais e civilizacionais, a nível local, nacional e global. Isto é muito importante porque a transição do “progresso destrutivo” capitalista para o socialismo é um processo histórico, uma transformação revolucionária permanente da sociedade, cultura e mentalidades – e a política no sentido atrás definido não pode deixar de ser central. É importante enfatizar que tal processo não pode começar sem a transformação revolucionária das estruturas sociais e políticas, e o apoio activo, pela grande maioria da população, de um programa ecossocialista. O desenvolvimento de consciência socialista e percepção ecológica é um processo, no qual o factor decisivo é a própria experiência colectiva das pessoas em luta, partindo dos confrontos locais e parciais para a transformação radical da sociedade. Esta transição pode levar não apenas a um novo modo de produção e a uma sociedade igualitária e democrática, mas também a um modo de vida alternativo, a uma nova civilização ecossocialista, para além do reino do dinheiro, dos hábitos artificiais de consumo produzidos pela publicidade e da produção ilimitada de bens que são inúteis e/ou danosos para o ambiente. Alguns ecologistas acreditam que a única alternativa ao produtivismo é travar o crescimento, ou substitui-lo por crescimento negativo – o que os franceses chamam de décroissance


– e reduzir drasticamente o nível excessivamente elevado de consumo da população cortando pela metade a utilização de energia, através da renúncia às habitações individuais, aquecimento central, máquinas de lavar, etc. Uma vez que estas e outras medidas similares de autoridade draconiana se arriscam a ser bastante impopulares, alguns dos defensores do décroissance jogam com a ideia de uma espécie de “ditadura ecológica”.18 Contra estas perspectivas pessimistas, os socialistas optimistas acreditam que o progresso técnico e o uso de fontes de energia renovável vão permitir um crescimento ilimitado e abundância e que cada um/a receba “de acordo com as suas necessidades”. Julgo que ambas as escolas partilham uma concepção meramente quantitativa de “crescimento” - positivo ou negativo – e do desenvolvimento das forças produtivas. Há, no entanto, uma terceira posição, a qual me parece mais apropriada: a transformação qualitativa do desenvolvimento. Isto significa colocar um fim ao monstruoso desperdício de recursos pelo capitalismo, baseado na produção, em larga escala, de produtos inúteis ou danosos: a indústria de armamento é um bom exemplo, mas uma boa parte dos “bens produzidos no capitalismo – com a sua obsolescência própria – não têm outra utilidade que a de gerar lucro para as grandes empresas. A questão não é o “consumo excessivo” em abstracto, mas o tipo de consumo prevalecente, baseado na apropriação conspícua, desperdício massivo, alienação mercantil, acumulação obsessiva de bens e a aquisição compulsiva de pseudo-novidades impostas pela ´moda´. Uma nova sociedade iria orientar a produção para a satisfação das necessidades autênticas, começando por aquelas que podem ser descritas como ´bíblicas´- água, alimentos,

«A QUESTÃO NÃO É O “CONSUMO EXCESSIVO“ EM ABSTRACTO, MAS O TIPO DE CONSUMO PREVALECENTE, BASEADO NA APROPRIAÇÃO CONSPÍCUA, DESPERDÍCIO MASSIVO, ALIENAÇÃO MERCANTIL, ACUMULAÇÃO OBSESSIVA DE BENS E A AQUISIÇÃO COMPULSIVA DE PSEUDO-NOVIDADES IMPOSTAS PELA “MODA“ »

vestuário, habitação – mas incluindo também os serviços básicos: saúde, educação, transporte, cultura. Obviamente, os países do Sul, onde estas necessidade estão muito longe de estarem satisfeitas, vão precisar de um nível muito mais elevado de “desenvolvimento” construindo estradas, hospitais, sistemas de saneamento e outras infra-estruturas – do que os industrialmente avançados. Mas não há razão para isto não ser atingido com um sistema produtivo amigo do ambiente e baseado em energias renováveis. Estes países vão precisar de produzir grandes quantidades de alimentos para alimentar as suas populações esfomeadas, mas isto pode ser muito melhor conseguido – como os movimentos camponeses da Via Campesina têm vindo a argumentar – através da agricultura biológica baseada em unidades familiares, cooperativas ou explorações colectivizadas, do que pelos métodos destrutivos e anti-sociais do agro-negócio industrializado, assente no uso de pesticidas, químicos e transgénicos. Em vez do presente sistema monstruoso de dívida, e da exploração imperialista dos recursos do Sul pelos países capitalistas industrializados, haveria uma corrente de apoio técnico e económico do Norte para o Sul, sem a necessidade – como alguns puritanos

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e ascéticos ecologistas parecem acreditar – da população da Europa ou América do Norte reduzir os seus padrões de vida em termos absolutos. Em vez disso, eles apenas se livrariam do consumo obsessivo e de mercadorias inúteis que não correspondem a nenhuma necessidade real, enquanto se redefiniria o significado de padrão de vida no sentido de modo de vida. Como distinguir as necessidades autênticas das artificiais, falsas e criadas? A indústria da publicidade – induzindo necessidades através da manipulação mental – invadiu todas as esferas da vida humana nas sociedades modernas capitalistas: não apenas alimentação e vestuário, mas também desporto, cultura, religião e política são moldadas de acordo com as suas regras. Invadiu as ruas, caixas de correio, ecrãs de televisão, jornais, paisagens, numa forma permanente, agressiva e insidiosa, e contribui decisivamente para os hábitos de consumo compulsivo e conspícuo. Além disso, gasta uma quantidade astronómica de petróleo, electricidade, tempo de trabalho, papel, químicos e outras matériasprimas – todas pagas pelos consumidores – para um tipo de “produção” que não só é inútil, de um ponto de vista humano, mas directamente em contradição com


OLAR, MUNISMO S O C M U , M GUNS DIZE LISMO , COMO AL U O , E D UM “CAPITA R E E R V B O O M S IS S L E EM ILUSÕ UM SOCIA RGENTES. S UTAR POR U L E S» E S R A A T H E N R «SO EMENTARE ONC L C E S S A E Õ M Ç R A O AS ALTER E POR REF ES ALGUM ÃO SE LUT R N E E D U O Q P S A O IC E IMPOR A NÃO SIGNIF AR TEMPO H N A G E -S VE TENTAR LIMPO”, DE

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as reais necessidades sociais. Enquanto a publicidade é uma dimensão indispensável no mercado da economia capitalista, não teria lugar numa sociedade em transição para o socialismo, onde seria substituída por informação sobre bens e serviços providenciados pelas associações de consumidores. O critério para distinguir uma necessidade autêntica de uma artificial, seria pela sua persistência após a supressão da publicidade. Claro que durante algum tempo os velhos hábitos de consumo iriam persistir e ninguém tem o direito de dizer às pessoas o que são as suas necessidades. Alterar os padrões de consumo é um processo histórico, bem como um desafio educacional. Algumas mercadorias, como o carro individual, levantam problemas mais complexos. Os carros privados são uma agressão pública, matando e mutilando centenas de milhares de pessoas todos os anos à escala mundial, poluindo o ar das cidades grandes – com consequências nefastas para a saúde de crianças e idosos – e contribuindo significativamente para as alterações do clima. No entanto, eles correspondem a necessidades reais nas presentes condições diárias do capitalismo. Experiências locais em cidades europeias com administrações com preocupações ambientais mostram que é possível – e aceites pela maioria da população – limitar progressivamente o papel do automóvel individual a favor de autocarros e eléctricos. Num processo de transição para o ecossocialismo, onde o transporte público seria amplamente expandido e libertado de tarifas, e onde os peões e ciclistas teriam faixas de protecção, o carro privado irá ter um papel muito menor que na sociedade burguesa, onde se tornou um fetiche promovido pela publicidade insistente e agressiva, um símbolo de prestígio, um sinal de identidade (nos EUA a carta de

condução é o cartão de identificação reconhecido) e um foco da vida pessoal, social e erótica.19 Na transição para uma nova sociedade, será muito mais fácil reduzir drasticamente o transporte de mercadorias por camiões – responsáveis por terríveis acidentes e elevados níveis de poluição –, substituindo-o pelo transporte ferroviário ou pelo que os franceses chamam de ferroutage (camiões transportados nos comboios de uma cidade para outra). Só a lógica absurda da “competitividade” capitalista explica o perigoso crescimento do sistema de transporte rodoviário pesado. Sim, responderão os pessimistas, mas os indivíduos são movidos por aspirações e desejos infinitos que têm de ser controlados, vigiados, contidos e se necessário reprimidos, e isto pode apelar a algumas limitações na democracia. Mas o ecossocialismo é baseado na expectativa razoável, já tratada por Marx: a predominância, numa sociedade sem classes e liberta da alienação capitalista, do “ser” sobre o “ter”, i.e. do tempo livre para a realização pessoal através de actividades culturais, desportivas, científicas, eróticas, artísticas e políticas, em vez do desejo infinito de posse de produtos. A aquisição compulsiva é induzida pelo fetichismo das mercadorias inerente ao sistema capitalista, pela ideologia dominante e a publicidade: nada prova que é parte da “eterna natureza humana”. Como Ernest Mandel enfatizou, “a acumulação contínua de mais e mais bens (com uma “utilidade marginal” em declínio) não significa de forma alguma uma condição universal ou sequer predominante do comportamento humano. O desenvolvimento de talentos e inclinações para benefício próprio; a protecção da vida e saúde; o cuidado pelas crianças; o desenvolvimento de relações sociais ricas (…) tudo isto se torna

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motivação maior assim que as necessidades materiais tenham sido satisfeitas”.20 Como temos insistido, isto não significa que não vão surgir conflitos, particularmente durante o processo de transição, entre os requisitos de protecção do ambiente e as necessidades sociais, entre os imperativos ecológicos e a necessidade de desenvolver infra-estruturas básicas, particularmente nos países pobres, entre os hábitos populares de consumo e a escassez de recursos. Uma sociedade sem classes não é uma sociedade sem contradições e conflitos. Estes são inevitáveis: resolvê-los será uma tarefa do planeamento democrático, numa perspectiva ecossocialista, liberto dos imperativos do capital e do lucro, através de discussões plurais e abertas, com decisões tomadas pela própria sociedade. Tal democracia de base e participativa é a única forma, não de evitar erros, mas de permitir a correcção, pelo colectivo social, dos seus próprios erros. É isto Utopia? No seu sentido etimológico – “algo que não existe em lado nenhum” – certamente. Mas não serão as utopias, i.e. visões de um futuro alternativo, de imagens desejosas de uma sociedade diferente, condição necessária de qualquer movimento que queira desafiar a ordem estabelecida? Como explicou Daniel Singer no seu testamento literário e político, Whose Millenium?, num poderoso capítulo intitulado “Utopia Realista”: …Se a ordem estabelecida agora parece tão sólida, apesar das circunstâncias, e se o movimento dos trabalhadores ou a maioria da esquerda está tão deficiente, tão paralizada, é por causa da falha em oferecer alternativas radicais (…) O princípio básico do jogo é que tu não questionas nem os fundamentos dos argumentos nem as fundações da sociedade. Apenas uma alternativa global, rompendo com essas regras de


resignação e desistência, podem dar ao movimento de emancipação uma perspectiva genuína. 21 A utopia socialista e ecológica é apenas uma possibilidade objectiva, não o resultado inevitável das contradições do capitalismo, ou das “leis de ferro da história”. Não é possível predizer o futuro, excepto nos termos tradicionais: o que é predizível é que na ausência de uma transformação ecossocialista, de uma alteração radical do paradigma civilizacional, a lógica do capitalismo vai levar a desastres ecológicos dramáticos, ameaçando a saúde e a vida de milhões de seres humanos, e talvez até a sobrevivência da espécie. Sonhar e lutar por um socialismo verde, ou, como alguns dizem, um comunismo solar, não significa que não se lute por reformas concretas e urgentes. Sem ilusões sobre um “capitalismo limpo”, deve tentar-se ganhar tempo e impor aos poderes algumas alterações elementares: banir os CFCs que estão a destruir a camada de ozono, moratória geral aos organismos geneticamente modificados, redução drástica das emissões de gases de efeito de estufa, regulações estritas na indústria pesqueira, taxação dos carros poluentes, maior desenvolvimento dos transportes públicos, progressiva substituição de camiões por comboios. Estas, e outras similares, estão no coração da agenda do movimento de Justiça Global e dos Fóruns Sociais Mundiais. Este é um novo desenvolvimento político que permitiu, desde Seattle em 1999, a convergência de movimentos sociais e ambientais na luta comum contra o sistema. Estas exigências urgentes ecossociais podem levar a um processo de radicalização, se essas exigências não forem adaptadas para encaixar nos requerimentos da “competitividade”. De acordo com a lógica do que os

«AO PERMITIR QUE ASSEMBLEIAS LOCAIS DECIDAM AS PRIORIDADES DO ORÇAMENTO, PORTO ALEGRE FOI – ATÉ À ESQUERDA PERDER AS ELEIÇÕES MUNICIPAIS EM 2002 – TALVEZ O EXEMPLO MAIS ATRAENTE DE “PLANEAMENTO A PARTIR DE BAIXO”, APESAR DAS SUAS LIMITAÇÕES »

marxistas chamam “um programa de transição”, cada pequena vitória, cada avanço parcial, conduz imediatamente a uma exigência maior, para uma vontade de maior radicalidade. Tais lutas em torno de questões concretas são importantes, não apenas porque as vitórias parciais são elas próprias bem-vindas, mas também porque elas contribuem para aumentar a consciência ecologista e socialista, e porque promovem o activismo e auto-organização a partir da base: ambos serão pré-condições necessárias e mesmo decisivas para uma transformação radical, i.e. revolucionária, do mundo. Experiências locais como as áreas livre de carros em várias cidades europeias, cooperativas de agricultura orgânica, cooperativas agrícolas lançadas pelo movimento camponês brasileiro do (MST), ou o orçamento participativo em Porto Alegre e, há poucos anos, no estado de Rio Grande do Sul (sob o Governador do PT Olívio Dutra), são exemplos limitados mas interessantes de alteração social/ecológica. Ao permitir que assembleias locais decidam as prioridades do orçamento, Porto Alegre foi – até à esquerda perder as eleições municipais em 2002 – talvez o exemplo mais atraente de “planeamento a partir de baixo”, apesar das suas limitações.22 Deve ser admitido, no entanto, que mesmo

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existindo algumas medidas progressivas tomadas por alguns governos nacionais, no todo a experiência do Centro-Esquerda ou coligações “Esquerda/Verdes” na Europa ou América Latina foi uma desilusão, ficando firmemente dentro dos limites da política social-liberal de adaptação à globalização capitalista. Não haverá transformação radical sem que as forças comprometidas com um programa socialista e ecológico radical se tornem hegemónicas, no sentido de Gramsci. Neste sentido, o tempo está do nosso lado, à medida que trabalhamos para a mudança, porque a situação global do ambiente está progressivamente a ficar pior, e as ameaças estão a aproximar-se cada vez mais. Por outro lado, o tempo está a esgotar-se, porque dentro de alguns anos – ninguém pode dizer quantos – o estrago pode ser irreversível. Não há qualquer razão para optimismo: as elites dominantes entrincheiradas no sistema são incrivelmente poderosas, e a força da oposição radical é ainda pequena. Mas ela é a única esperança de travar o “progresso destrutivo” do capitalismo. Walter Benjamin definiu revolução como sendo não a locomotiva da história, mas a capacidade humana de travar o comboio, antes que caia no abismo…23 TRADUÇÃO DE RITA CALVÁRIO E JORGE COSTA


NOTAS: 1 — Richard Smith, ‘The Engine of Eco Collapse’, Capitalism, Nature and Socialism, 16(4), 2005, p. 35. 2 — K. Marx, Das Kapital, Volume 1, Berlin: Dietz Verlag, 1960, pp. 52930. For a remarkable analysis of the destructive logic of capital, see Joel Kovel, The Enemy of Nature. The End of Capitalism or the End of the World?, New York: Zed Books, 2002. 3 — James O’Connor, Natural Causes. Essays in Ecological Marxism, New York: The Guilford Press, 1998, pp. 278, 331. 4 — John Bellamy Foster usa o conceito de “revolução ecológica”, mas argumenta que a “revolução ecológica global merecedora do nome apenas pode ocorrer como parte de uma revolução – e insisto, socialista – de maioria social. Tal revolução (…) teria de exigir, como Marx insistiu, que as associações de produtores racionalmente regulassem a relação metabólica humana com a natureza (…) Deve tomar a sua inspiração em William Morris, um dos seguidores mais originais e ecologistas de Karl Marx, em Gandhi, e noutras figuras radicais, revolucionárias e materialistas, incluindo o próprio Marx, indo tão atrás como Epicuro”. Foster, ‘Organizing Ecological Revolution’, Monthly Review, 57(5), 2005, pp. 9-10. 5 — Para uma crítica ecossocialista da “ecopolítica actualmente existente” – economia verde, ecologia profunda, bioregionalismo, etc – ver Kovel, Enemy of Nature, capítulo 7.

6 — Ver John Bellamy Foster, Marx’s Ecology. Materialism and Nature, New York: Monthly Review Press, 2000. 7 — F. Engels, Anti-Dühring, Paris: Ed. Sociales, 1950, p. 318. 8 — K. Marx, Das Kapital, Volume 3, Berlin: Dietz Verlag, 1968, p. 828 and Volume 1, p. 92. Pode-se encotrar problemas similares no marxismo contemporâneo; por exemplo, Ernest Mandel argumentou por um “planeamento democraticamente centralista sob um congresso nacional de conselhos de trabalhadores desde que a sua larga maioria seja de trabalhadores reais” (Mandel, ‘Economics of Transition Period’, in E. Mandel, ed., 50 Years of World Revolution, New York: Pathfinder Press, 1971, p. 286). Nos seus últimos escritos, ele referiu-se antes a “produtores/consumidores”. Vamos frequentemente citar os escritos de Ernest Mandel, porque ele é o teórico socialista mais articulado sobre o planeamento democrático. Mas deve ser dito que até ao final dos anos de 1980, ele não incluiu a questão ecológica como um aspecto central dos seus argumentos económicos. 9 — Ernest Mandel definiu planeamento nos seguintes termos: “Uma economia governada por um plano implica (…) que os recursos relativamente raros da sociedade não são apropriados cegamente (“nas costas do produtor-consumidor”) pelo jogo da lei do valor mas que eles são conscientemente alocados de acordo com prioridades previamente estabelecidas. Numa economia de transição

onde a economia socialista prevalece, a massa dos trabalhadores determina democraticamente esta escolha de prioridades”. Mandel, ‘Economics of Transition Period’, p. 282. 10 — “Do ponto de vista da massa dos trabalhadores, os sacrifícios impostos pelas arbitrariedades burocráticas não são mais nem menos “aceitáveis” que os sacrifícios impostos pelos mecanismos cegos do mercado. Representam apenas duas formas diferentes da mesma alienação”. Ibid., p. 285. 11 — No seu impressionante recente livro sobre socialismo, o economista marxista Argentino Claudio Katz enfatizou que o planeamento democrático, supervisionado de baixo pela maioria da população, “não equivale à centralização absoluta, estatização total, comunismo de guerra ou economia de comando. A transição requer a primado do planeamento sobre o mercado, mas não a supressão das variáveis do mercado. A combinação entre ambas as instâncias deve ser adaptada a cada situação em cada país”. No entanto, “a vontade do processo socialista não é manter um equilíbrio inalterável entre o plano e o mercado, mas promover uma perda progressiva das posições de mercado”. C. Katz, El porvenir del Socialismo, Buenos Aires: Herramienta/Imago Mundi, 2004, pp. 47-8. 12 — Anti-Dühring, p. 349. 13 — Kovel, Enemy of Nature, p. 215. 14 — Mandel, Power and Money, London: Verso, 1991, p. 209.

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15 — Mandel observou: “Nós não acreditamos que a “maioria tem sempre razão” (…) Todos cometem erros. Isto será certamente verdade para a maioria dos cidadãos, a maioria dos produtores e também a maioria dos consumidores. Mas haverá uma diferença básica entre eles e os seus predecessores. Em qualquer sistema de poder desigual (…) os que fazem as más decisões sobre alocação de recursos raramente são os que sofrem as consequências desses erros (…) Desde que exista uma democracia política real, escolha cultural real e informação, é difícil de acreditar que a maioria prefere ver os seus bosques morrer (…) ou os seus hospitais com falta de pessoal, do que corrigir rapidamente os seus erros de alocação”. Mandel, ‘In Defense of Socialist Planning’, New Left Review, 1/159, 1986, p. 31. 16 — Mandel, Power and Money, p. 204. 17 Michael Albert, Participatory Economics. Life After Capitalism, London, Verso, 2003, p. 154. 18 Para uma selecção do “crescimento negativo” ver Majid Rahnema (com Victoria Bawtree), eds., The Post-Development Reader, Atlantic Highlands, N.J.: Zed Books, 1997, e Michel Bernard et al., eds., Objectif Décroissance: vers une société harmonieuse, Lyon: Éditions Parangon, 2004. O principal teórico francês do ‘décroissance’ é Serge Latour, autor de La planète des naufragés, essai sur l’après-dévéloppement, Paris: La Decouverte, 1991. 19 Ernest Mandel era céptico em re-

lação às rápidas alterações dos hábitos de consumo, como o carro privado: “Se, em vez de todos os argumentos ambientais e outros, os produtores e consumidores quiserem manter o domínio do automóvel privado e continuar a poluir as suas cidades, eles estariam no seu direito. Alterações nas orientações de longo prazo dos consumidores são geralmente lentas – poucos acreditam que os trabalhadores nos EUA abandonariam a sua ligação ao automóvel no dia seguinte à revolução”. Mandel, ‘In Defense of Socialist Planning’, p. 30. Mandel está certo em insistir que as alterações nos padrões de consumo não podem ser impostas, mas subestima seriamente o impacto que teria um sistema extensivo e livre de encargos de transportes públicos, bem como a aceitação da maioria dos cidadãos – já hoje, em várias grandes cidades europeias – de medidas restritivas à circulação automóvel. 20 Mandel, Power and Money, London: Verso, 1991, p. 206. 21 D. Singer, Whose Millenium? Theirs or Ours? New York: Monthly Review Press, 1999, pp. 259-60. 22 See S. Baierle, ‘The Porto Alegre Thermidor’, in Socialist Register 2003. 23 Walter Benjamin, Gesammelte Schriften, Volume I/3, Frankfurt: Suhrkamp, 1980, p. 1232.


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DESCONSTRUIR MITOS PARA CONSTRUIR A ALTERNATIVA: O CONTRIBUTO DE

HA-JOON CHANG RICARDO PAES MAMEDE

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DESCONSTRUIR MITOS PARA CONSTRUIR A ALTERNATIVA: O CONTRIBUTO DE HA-JOON CHANG1 RICARDO PAES MAMEDE | ECONOMISTA

Ha-Joon Chang é um dos mais notáveis e eficazes economistas de combate da actualidade. Especialista em questões de desenvolvimento, Chang é autor/editor de várias obras de referência – como Financial Liberalisation and the Asian Crisis (2001), Kicking Away the Ladder (2002), Globalization, Economic Development and The Role of the State (2003), Reclaiming Development (2004), The East Asian Development Experience (2005), entre muitas outras – através das quais contribuiu para questionar algumas ideias feitas sobre problemas económicos contemporâneos. ESTE TEXTO É BASEADO NUMA SEQUÊNCIA DE ‘POSTS’ PUBLICADOS NO BLOG LADRÕES DE BICICLETAS , DEZEMBRO DE 2007. 1

NO SEU ÚLTIMO LIVRO, BAD SAMARITANS (2006), Ha-Joon Chang sintetiza alguns dos principais resultados das suas investigações e reflexões, dando origem a uma obra que está condenada a tornar-se referência nos debates sobre a globalização, o neoliberalismo e a estratégias de desenvolvimento económico. O seu método é eficaz: começa por recorrer à história para desconstruir os mitos dominantes sobre as origens da globalização contemporânea e sobre os processos que conduziram ao desenvolvimento das economias que hoje são as mais ricas do planeta – mitos esses que têm sido fundamentais para difundir a ideia de que não há alternativa à globalização neoliberal; de seguida discute em termos teóricos (sempre suportado com exemplos elucidativos) cada um dos elementos da receita neoliberal para o desenvolvimento dos países; por fim, depois de desfeitos os mitos e de desmascarada a fragilidade dos argumentos teóricos, Chang mostra como o desenvolvimento económico a nível global exige uma alteração profunda das regras que dominam o sistema económico internacional. Este texto revisita alguns dos principais argumentos de Chang, explanados de forma clara e sintética em Bad Samaritans. O MITO DA RECEITA NEOLIBERAL COMO VIA ÚNICA PARA O DESENVOLVIMENTO

A ortodoxia económica neoliberal promove a ideia de que o desenvolvimento só é possível adoptando um

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conjunto de medidas que incluem: a privatização de empresas públicas, a manutenção de baixos níveis de inflação, a redução da administração pública, o equilíbrio orçamental, a liberalização do comércio, a desregulamentação do investimento estrangeiro, a desregulamentação dos mercados de capitais, a convertibilidade total das moedas, a privatização do sistema de pensões, entre outras. Por outras palavras, defende-se que a integração completa na economia internacional, sem interferências por parte do Estado, é o caminho que melhor garante o sucesso económico das nações. Para sustentar as suas teses, os teóricos do neoliberalismo recorrem sistematicamente à história, argumentando que (i) as nações mais ricas são aquelas que mais cedo abraçaram as ideias liberais, (ii) as tentativas de promover o desenvolvimento económico através do proteccionismo e do intervencionismo estatal falharam redondamente e (iii) a adesão da generalidade dos países do mundo ao processo de globalização contemporâneo resulta do reconhecimento generalizado da validade dos primeiros dois argumentos. Acontece que tais ideias são essencialmente falsas. Praticamente todos os actuais países ricos, de uma forma ou de outra, recorreram a diferentes formas de proteccionismo e intervencionismo para desenvolver as suas economias – e só aderiram aos princípios liberais (os que o fizeram) depois de a sua supremacia industrial estar assegurada. Os períodos de maior crescimento econó-


mico a nível nacional e internacional estão sistematicamente associados a períodos em que as políticas públicas de apoio ao desenvolvimento foram mais intensas. E, na maioria dos casos, os países que abandonaram as estratégias intervencionistas de desenvolvimento fizeram-no principalmente por imposição externa do que por opção própria. O MITO DO GLORIOSO ‘LAISSEZ-FAIRE’ VITORIANO

No imaginário neoliberal, a Inglaterra teria adoptado desde o século XVII uma política de comércio livre, sendo essa decisão a fonte da sua ascensão a grande potência económica mundial. A superioridade da opção inglesa ter-se-ia tornado tão óbvia que outros países teriam seguido as suas pegadas no século XIX, dando origem a um período de grande prosperidade baseado no laissez-faire, que perdurou até à 1a Guerra Mundial. Depois da guerra, muitos países caíram na tentação do proteccionismo, conduzindo à contracção e à instabilidade da economia mundial, as quais estão na origem do desastre que foi a 2a Guerra Mundial. Assim reza a história neoliberal da globalização. Na verdade, o livre comércio só foi adoptado em Inglaterra em meados do século XIX (quando esta era já a nação mais industrializada do mundo) e a hegemonia britânica entre 1870 e 1913 foi conseguida mais à custa da força militar do que das forças de mercado (exemplo máximo disto são as Guerras do Ópio, a forma encontrada pela potência imperial para combater o deficit comercial com a China). Quando a dinastia Tudor, que governou a Inglaterra ao longo do século XVI, chegou ao poder, a Inglaterra não era ainda a potência imperial que viria a ser. Os prin-

cipais focos de industrialização encontravam-se então nos Países Baixos, que dominavam a produção têxtil na Europa. No entanto, no final da era Tudor (em inícios do século XVII) a Inglaterra encontrava-se já a caminho de uma industrialização acelerada. Tal transformação é indissociável da estratégia de promoção da indústria nacional prosseguida pelos Tudor. Uma estratégia baseada na atribuição de subsídios à produção, na distribuição de direitos de monopólio, no apoio à espionagem industrial, em impostos alfandegários e noutras políticas do reino. Estas e outras formas de intervencionismo (taxas reduzidas para a importação de matérias-primas, estímulo à produção primária nas colónias, etc.) seriam uma constante ao longo dos séculos seguintes, contribuindo de forma determinante para o advento da 1ª Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII. O comércio livre só veio a ser uma realidade em Inglaterra oito décadas após a publicação em 1776 de A Riqueza das Nações, de Adam Smith – respectivamente, a bíblia e o profeta do liberalismo económico. Ou seja, tal como noutros casos posteriores, a adesão ao livrecâmbio só se deu quando a superioridade industrial inglesa era já indiscutível. Para mais, a abolição das Corn Laws m 1846 (que marca adesão da potência imperial aos princípios do comércio livre) não foi apenas uma forma de reduzir o preço dos alimentos em Inglaterra – foi também um modo de incentivar os países do continente europeu a empregarem os seus recursos na produção de matérias-primas (procurando assim adiar a aposta destes países na indústria). Neste período, tirando a Grã-Bretanha, a generalidade dos países que aderiram ao comércio livre eram

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países mais fracos (as únicas excepções são a Holanda e a Suiça), os quais foram forçados a prosseguir tais políticas através de regras coloniais ou de tratados desiguais. E o desempenho económico destes países no período em causa foi tudo menos brilhante. Ao mesmo tempo que impunham o comércio livre às nações mais fracas, os países ricos mantinham elevadas taxas aduaneiras. À custa disto, países como os EUA e a Alemanha conseguiram desenvolver as suas indústrias, acabando por ultrapassar a Grã-Bretanha em poder económico. O que leva este último país a abandonar o comércio livre em 1932 é precisamente a constatação do sucesso do recurso ao proteccionismo por outros países industrializados. Em suma, não foi a adesão ao liberalismo que tornou a Inglaterra próspera, mas precisamente o contrário. E para se tornar uma potência industrial, a Inglaterra, tal como muitos países depois dela, não dispensou a intervenção do Estado. EUA, CAMPEÕES DA VIA INTERVENCIONISTA E PROTECCIONISTA PARA O DESENVOLVIMENTO

Em 1791, Alexander Hamilton, o primeiro Secretário do Tesouro dos EUA, apresentou ao Congresso o Report on the Subject of Manufactures, onde apresentava o seu programa para o desenvolvimento da indústria americana. Esta foi a primeira vez que a expressão ‘indústria nascente’ foi utilizada, para defender a necessidade de recorrer a medidas proteccionistas com vista à promoção da indústria nacional (opondo-se assim às posições do recentemente falecido Adam Smith, à época o mais famoso economista do mundo). No seu relatório, Hamilton defendia medidas como:


«NÃO FOI O MAU DESEMPENHO DAS ESTRATÉGIAS NACIONALISTAS DE DESENVOLVIMENTO QUE CONDUZIU À ADESÃO DOS PAÍSES DO 3O MUNDO À GLOBALIZAÇÃO NEOLIBERAL. A LIBERALIZAÇÃO FOI (E AINDA É) IMPOSTA A PARTIR DE FORA»

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taxas aduaneiras proteccionistas, proibição de importações, subsídios, proibição de exportação de matériasprimas cruciais, liberalização da importação e redução de taxas alfandegárias sobre bens intermédios, prémios e patentes para as invenções, regulação de standards, desenvolvimento de infraestruturas de transportes. O relatório de Hamilton constituiu a principal referência da política económica americana até ao fim da 2a Guerra Mundial. Só no pós-guerra, quando a sua supremacia industrial estava estabelecida, é que os EUA liberalizaram o comércio e se tornaram grandes defensores do comércio livre. Mesmo assim, os EUA nunca praticaram o comércio livre ao nível da Inglaterra de finais do século XIX (e.g., 50 a 70% das despesas com I&D realizadas nos EUA entre meados da década de 1950 e meados da década de 1990 foram subsidiadas pelo governo federal – o que se revelou crucial para a liderança americana em sectores como os computadores, os semi-condutores, as biotecnologias, a internet e a indústria aeroespacial). Como é que o neoliberalismo pode argumentar que o comércio livre está na origem do sucesso dos países ricos, quando a adesão destes aos princípios do livrecâmbio só aconteceu depois de eles serem ricos? O MITO DO FALHANÇO DAS ESTRATÉGIAS DESENVOLVIMENTISTAS NO 3º MUNDO

Na retórica habitual das organizações internacionais que assumem o papel de guardiãs da globalização neoliberal – FMI, Banco Mundial e OMC – e de muitos manuais de Economia, a adesão dos países em desenvolvimento ao processo de globalização contemporâneo é uma consequência do insucesso das estratégias de desenvolvimen-

to nacionalistas adoptadas durante as décadas de 1960 e 1970 em vários países (principalmente da América Latina e de África). No entanto, esta ideia é dificilmente suportada pela história. Mais do que uma opção nacional, a adesão às receitas neoliberais pelos países em desenvolvimento resultou da imposição do FMI e do Banco Mundial, cuja interferência na condução das políticas públicas se intensificou após a Crise da Dívida de 1982. Confrontados com a necessidade de financiar as suas dívidas (num contexto de crise económica mundial e de subida das taxas de juro), os países em desenvolvimento tiveram de aceitar as várias condições impostas pelo FMI e pelo BM para a concessão de empréstimos – condições essas que foram muito além do que seria estritamente necessário para a gestão da balança de pagamentos. Tais condições incluíam: fortes restrições aos deficits orçamentais, privatização de empresas públicas, redução da administração pública, liberalização do comércio, desregulamentação do investimento estrangeiro, desregulamentação dos mercados de capitais, convertibilidade total das moedas, etc. A adopção de tais políticas de cariz neoliberal teve como consequência um aumento da desigualdade e da instabilidade, mas o crescimento económico reduziu-se significativamente. Nas décadas de 1960 e 1970, quando as estratégias proteccionistas e intervencionistas foram largamente prosseguidas nos países em desenvolvimento, o crescimento destas economias foi em média de 3% por ano, muito superior aos 1-1,5% verificados desde então. Contrariamente ao que é sugerido, não foi o mau desempenho das estratégias nacionalistas de desenvol-

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vimento que conduziu à adesão dos países do 3o Mundo à globalização neoliberal. A liberalização foi (e ainda é) imposta a partir de fora – e os bons resultados estão longe de estar garantidos. Pelo contrário, segundo Chang, as regras impostas aos países do Sul são a receita para a persistência do sub-desenvolvimento em vastas regiões do mundo. O MITO DA ADESÃO DOS PAÍSES ASIÁTICOS À GLOBALIZAÇÃO NEOLIBERAL

O sucesso do crescimento económico em vários países asiáticos – numa primeira fase, a Coreia do Sul, Taiwan, Singapura e Hong Kong; numa segunda fase, a Malásia, a Indonésia, a Tailândia e Filipinas; mais recentemente a China e a Índia – constitui uma das maiores esperanças para aqueles países que vivem desde há décadas presos em círculos viciosos de pobreza e sub-desenvolvimento. Durante vários anos, os defensores da globalização neoliberal procuraram apresentar estes casos de sucesso como demonstrações da superioridade da abertura ao comércio e ao investimento internacionais enquanto estratégias de desenvolvimento – em contraste com a tentativa de promover o desenvolvimento com base na substituição de importações e na tentativa de criação ‘artificial’ de uma indústria nacional (seguida em vários países da América Latina e de África). Nascido e crescido na Coreia do Sul, Ha-Joon Chang sabe como poucos que o sucesso económico do seu país não se explica por uma suposta adesão a estratégias neoliberais de desenvolvimento. Pelo contrário, o crescimento da Coreia do Sul é indissociável de um conjunto de medidas de natureza intervencionista, que incluem: o apoio ao desenvolvimento de certos sectores (seleccionados pelo


governo, com ou sem a colaboração do sector privado) através da protecção aduaneira, de subsídios e de outros apoios estatais às empresas nacionais (e.g., informação sobre mercados externos), até que estas estivessem em condições de competir no mercado internacional; o controlo total do sistema bancário (e, através dele, do sistema de crédito) pelo Estado; a condução de grandes projectos por empresas públicas; a nacionalização de empresas privadas sempre que estas se revelavam incapazes de boa gestão (tipicamente seguida de reprivatização, mas nem sempre); o controlo cambial (com vista a gerir as divisas necessárias à importação de bens intermédios); forte controlo do investimento estrangeiro, com grande selectividade dos investimentos aprovados; uma atitude laxista face à propriedade intelectual; o investimento público generalizado em educação. Esta mistura de incentivos de mercado e de direcção estatal está longe de ser uma excepção coreana. Com maior ênfase nuns elementos e menor noutros, todos os países asiáticos acima referidos (com a excepção de Hong Kong – a ex-colónia inglesa manteve-se impecavelmente liberal até ao fim) adoptaram o tipo de estratégias listadas para o caso coreano. Em suma, a tentativa de apresentar o desenvolvimento asiático como exemplo da superioridade da via neoliberal para o desenvolvimento simplesmente não pega. PORQUE É QUE O COMÉRCIO LIVRE SÓ É BOM PARA ALGUNS ?

Os economistas neoliberais afirmam que todos os países ganham com a especialização internacional associada à liberalização do comércio. Segundo a linha habitual de argumentação, a liberalização leva as economias a empregar os recursos produtivos disponíveis nas activi-

dades em que podem ser mais eficientemente utilizados. Para além disso, defende-se que a maior exposição à concorrência cria um incentivo a aumentos de produtividade. Como resultado da maior eficiência assim obtida e da redução das taxas alfandegárias, os consumidores têm acesso a produtos a preços mais baixos. Esta linha de argumentação padece de três problemas fundamentais. Primeiro, exclui a hipótese de quaisquer dificuldades que possam existir no ajustamento das economias às novas condições. Uma vez que, na prática, não é possível reafectar trabalhadores, máquinas e equipamentos de umas actividades (aquelas que não resistem à concorrência internacional) a outras, o resultado da liberalização é muitas vezes o desemprego prolongado e a inutilização da capacidade produtiva existente. Segundo, subvalorizam-se os efeitos da liberalização do comércio internacional na distribuição dos rendimentos. Mesmo que o resultado global fosse positivo, nada garante que os benefícios seriam repartidos por toda a população – o que é ainda menos provável em países onde não existem mecanismos de repartição do rendimento, como é o caso de muitos países em desenvolvimento. Isto ajuda a explicar o motivo pelo qual a globalização neoliberal tem um dos seus traços característicos no aumento das desigualdades sociais e, muito frequentemente, no aumento da pobreza. Finalmente, ignoram-se os efeitos de longo prazo resultantes da liberalização. Mesmo que no curto prazo os seus resultados sejam positivos, a liberalização total condena muitos países a uma especialização em sectores de actividade caracterizados por reduzidos aumentos de produtividade e, logo, a um crescimento lento das condições de vida das populações.

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O comércio internacional é fonte de vários tipos de benefícios, a começar pela difusão de conhecimentos e de tecnologias. Mas existe uma diferença entre aceitar que o comércio internacional é importante para o desenvolvimento económico e dizer que o comércio livre de qualquer restrição ou interferência pública é o melhor remédio para o desenvolvimento. A história dos países que são hoje desenvolvidos – como a da Inglaterra e a dos EUA, atrás descritas – mostra que estes sabiam bem a lição. PORQUE É QUE A LIVRE DE CIRCULAÇÃO DE CAPITAIS NÃO SERVE OS PROPÓSITOS DO DESENVOLVIMENTO ?

No discurso neoliberal, a livre circulação de capitais a nível internacional seria uma bênção para os países menos desenvolvidos. O afluxo de investimentos a estes países iria não apenas colmatar a escassez de capitais domésticos, como trazer consigo novas técnicas, novas formas de gestão e organização, e a exigência de novas prática nas políticas públicas. Mas olhemos para as formas que o fluxo internacional de capitais assume e para as suas consequências. Para além da ajuda pública ao desenvolvimento (uma parcela ínfima dos fluxos), os capitais estrangeiros chegam aos países menos desenvolvidos sob a forma de: empréstimos, aquisição de dívida (pública e privada), investimento de portofólio (por exemplo, compra de acções de empresas domésticas) e de investimento directo (aquisição/instalação de capacidade produtiva). Os três primeiros tipos de investimento foram aqueles que mais depressa se desenvolveram nos últimos anos e os seus resultados sobre os países em desenvolvi-


NTE PARA É IMPORTA L A N IO C A INTERN COMÉRCIO O E U TRIÇÃO Q R A ACEIT LQUER RES E A R U T Q N E E D A E Ç RCIO LIVR A DIFEREN UE O COMÉ «EXISTE UM Q R E IZ D E IMENTO.» O DESENVOLV ECONÓMIC O O T A N R E PA IM V R REMÉDIO DESENVOL É O MELHO A IC L B Ú P ERÊNCIA OU INTERF

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O


mento são conhecidos. Caracterizados por uma enorme volatilidade, eles tendem a desestabilizar os mercados financeiros locais, exacerbando quaisquer tendências de evolução – afluem aos molhos quando as perspectivas são boas (favorecendo leituras excessivamente optimistas do crescimento económico) e são os primeiros a fugir quando as coisas ameaçam correr mal. Dado o peso desmesurado que têm nos mercados financeiros dos países em desenvolvimento – e.g., o mercado de capitais da Nigéria, o maior da África sub-sahariana é 5000 vezes mais pequeno que o americano – a fuga dos capitais estrangeiros torna tais ameaças em realidade (como demonstram as sucessiva crises financeiras da última década e meia – México, Sudeste asiático, Rússia, Brasil, Turquia, ...). Em contraste, o investimento directo estrangeiro (IDE) é mais estável, acarretando consigo mais capacidades produtivas e conhecimentos. Mas o IDE também tem as suas limitações e problemas: os vários estudos realizados sobre o contributo do IDE para a melhoria das competências técnicas e organizacionais dos países de destino são inconclusivos; em muitas situações, também o IDE pode ser relocalizado rapidamente; a filial pode ser usada pela empresa-mãe para obter empréstimos bancários no mercado doméstico, diminuindo os capitais disponíveis a nível nacional; grande parte das vezes o IDE não é mais do que a aquisição de empresas já existentes, com objectivos que podem passar inclusive pela sua destruição (para limitar a concorrência internacional). Talvez por isso, o controlo do investimento externo tem sido um elemento fundamental nas estratégias de desenvolvimento bem sucedidas.

«A PETROBRÁS (PETRÓLEO) E A EMBRAER (AERONÁUTICA) AINDA HOJE NOS MOSTRAM COMO EMPRESAS PÚBLICAS PODEM APOIAR AS ESTRATÉGIAS NACIONAIS DE DESENVOLVIMENTO E, SIMULTANEAMENTE, AFIRMAR-SE COMO REFERÊNCIAS INTERNACIONAIS»

O ATAQUE ÀS EMPRESAS PÚBLICAS FAZ MENOS SENTIDO DO QUE MUITOS JULGAM

«O Estado é ineficiente por natureza» é uma das frases-chave da lenga-lenga habitual dos neoliberais. E as empresas públicas, como extensões do Estado, ineficientes são. A certeza com que a afirmação é proferida é tão grande que nos leva a suspeitar que quem a faz nunca pensou na fragilidade dos argumentos que a sustentam. São três os argumentos teóricos habitualmente esgrimidos para atacar as empresas públicas. O primeiro diz que os gestores públicos, por não serem os proprietários, não se preocupam o suficiente com o destino das empresas que gerem. O segundo argumento diz-nos que os verdadeiros proprietários – ou seja, cada um dos cidadãos do país em causa – têm pouco a ganhar do ponto de vista individual com o bom funcionamento das ‘suas’ empresas, pelo que nunca se darão ao trabalho de exigir um bom desempenho por parte dos respectivos gestores. Por último, diz-se que o facto de terem o Estado sempre pronto a socorrê-las, caso as coisas corram mal, constitui um incentivo adicional para que as empresas

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públicas seja mal geridas. Na gíria dos economistas, estes três argumentos dão pelos nomes de problema do agente-principal, problema do ‘free-rider’ e problema do ‘soft-budget’. O que os neoliberais parecem querer ignorar é que qualquer um destes argumentos se aplica, sem grandes transformações, à gestão de empresas privadas. Desde inícios do século XX que se generalizou o modelo de separação da propriedade e da gestão de empresas nas economias capitalistas – e, por muitas voltas que se dê, também no caso das empresas privadas o problema do agente-principal permanece essencialmente por resolver (o famoso caso da Enron – a fraude monumental que inaugurou o novo milénio americano – foi só o mais visível dos inúmeros exemplos de gestão fraudulenta no sector privado). O problema da dispersão do capital das empresas também se coloca no sector privado, convidando os accionistas individuais (por vezes dispersos por todo o mundo) a deixarem para os outros a monitorização próxima das ‘suas’ empresas. Quanto ao problema do ‘soft-budget’, também as empresas privadas, quando são suficientemente grandes e importantes para as econo-


mias nacionais, sabem que podem contar com o Estado para as socorrer quando as coisas correm mal (que o diga o banco Northern Rock, nos últimos meses). Em suma, problemas de eficiência associadas ao (des)alinhamento de incentivos não são um exclusivo do sector público. E, muitas vezes, as soluções encontradas são aplicáveis tanto no público como no privado. Tão ou mais importante do que os argumentos teóricos são os exemplos históricos. Olhemos para alguns casos de economias de crescimento rápido nos últimos anos. O governo de Singapura através da sua agência de participações públicas, é accionista maioritário de empresas de sectores como: a aviação comercial (Singapore Airlines, provavelmente a empresa mais bem sucedida do sector a nível mundial), os semicondutores (onde são líderes mundiais), as telecomunicações, o imobiliário (a quase totalidade dos terrenos do país e 85% da habitação são propriedade do Estado) e a engenharia (e.g., a multinacional SembCorp). Até 1996, o governo do Taiwan controlou directamente 1/6 do produto nacional do país. Nas privatizações realizadas a partir desse ano (que afectaram apenas uma parte das empresas públicas), o Estado manteve participações que atingem em média 35.5% do capital dessas empresas e nomeia directamente cerca de 60% dos administradores. O caso paradigmático da importância do sector público empresarial na Coreia do Sul é a empresa metalúrgica POSCO – fundamental para o desenvolvimento do país desde a década de 1950, tornou-se a 3a maior empresa mundial do sector. Só foi privatizada no final da década de 1990, como resultado da crise asiática e da

«UM ESTADO QUE NÃO CONSEGUE PÔR AS EMPRESAS PÚBLICAS A FUNCIONAR, DIFICILMENTE CONSEGUIRÁ REGULAR DEVIDAMENTE A ACTIVIDADE DAS EMPRESAS PRIVADAS»

subsequente pressão do FMI (e não por ser considerada ineficiente enquanto empresa pública). Na China, o processo de desenvolvimento iniciado no final dos anos 70 foi todo ele baseado na actividade das empresas públicas; ainda hoje, 40% da produção industrial é controlada pelo Estado – e se o seu peso relativo diminuiu, tal tem mais a ver com o crescimento do sector privado do que com a contracção do público. No Brasil, a Petrobrás (petróleo) e a Embraer (aeronáutica) ainda hoje nos mostram como empresas públicas podem apoiar as estratégias nacionais de desenvolvimento e, simultaneamente, afirmar-se como referências internacionais. Renault (automóveis), Alcatel (equipamento de telecomunicações), St. Gobain (materiais de construção), Usinor (Aço), Thomson (electrónica), Thales (defesa), Elf (petróleo e gás), Rhone-Poulenc (farmacêutica) e Volkswagen (automóveis) são nomes que nos lembram que também na Europa as empresas públicas têm sido fundamentais para o desenvolvimento económico, tendo em muitos casos a capacidade de tornar-se líderes mundiais nos respectivos mercados. Na maioria dos casos, a privatização (total ou parcial) de algumas destas (e ou-

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tras) empresas teve mais a ver com convicções ideológicas, com a pressão da Comissão Europeia e com apertos orçamentais dos Estados, do que com a demonstração empírica da sua irrelevância ou ineficiência. EM MUITAS SITUAÇÕES, AS EMPRESAS PÚBLICAS SÃO MESMO A MELHOR SOLUÇÃO

Há três argumentos principais que fundamentam a interferência directa do Estado na produção de bens e serviços. O primeiro tem a ver com actividades cruciais para o desenvolvimento económico que envolvem investimentos avultados, riscos elevados e períodos de gestação longos – características que afastam os investidores privados, tipicamente motivados por lucros seguros e de curto prazo. De facto, na generalidade dos países que são hoje desenvolvidos, as empresas públicas não surgiram para substituir o capitalismo mas para lançá-lo – com o Estado a assegurar os investimentos necessários à industrialização, quando o seu sucesso era ainda incerto. O segundo argumento consiste na existência de ‘monopólios naturais’ – situações em que as condições tecnológicas fazem com que seja mais eficiente ter uma


única empresa a produzir (é o caso, por exemplo, das redes de distribuição de electricidade, água, gás e caminhos-de-ferro). Nestes casos, o monopolista tem o poder de estabelecer unilateralmente os preços e outras condições de troca, o que torna recomendável que alguém controle o monopolista. Finalmente, o Estado intervém directamente na produção quando tal é necessário para garantir a coesão social e territorial (por exemplo, se a localização de serviços postais fosse determinada por meras considerações de custo-benefício, muitas zonas periféricas tenderiam a ser excluídas). Muitos liberais aceitam estes argumentos, mas replicam afirmando que qualquer um dos problemas referidos pode ser resolvido através de uma mistura instrumentos que envolvem a regulação, os impostos e os subsídios sobre a actividade privada – sem necessidade, portanto, da existência de empresas públicas. O problema desta alternativa é que ela assume que é mais fácil levar a cabo uma regulação eficaz da actividade privada do que controlar directamente a produção. Na verdade, a regulação indirecta exige a presença de um Estado forte, capaz de organizar um esquema de incentivos sofisticado, métodos e instrumentos de monitorização robustos, um sistema jurídico que efectivamente penalize as infracções, bem como a força política suficiente para confrontar os interesses privados sempre que surjam divergências quanto aos termos da regulação. Ou seja, um Estado que não consegue pôr as empresas públicas a funcionar, dificilmente conseguirá regular devidamente a actividade das empresas privadas. Noutros termos, menos Estado na produção directa implica mais (e melhor) Estado no controlo indirecto da

produção. Quando as coisas correm mal, pouco há a fazer – como demonstram os casos dos ‘apagões’ na Califórnia em 2001 e a desorganização total dos caminhos-de-ferro ingleses em 2002, na sequência das respectivas privatizações. E quando o aparelho administrativo do Estado é rudimentar (como em muitos países em desenvolvimento) ou o seu poder relativo diminuto (como no caso de Portugal) aumentam os riscos de o interesse público ficar refém dos interesses particulares. AS LIÇÕES DE CHANG

Nas últimas três décadas a tese de que a privatização, a desregulamentação e a liberalização são o caminho único para o desenvolvimento económico e social foi ganhando espaço no debate público e nas decisões políticas. De tantas vezes repetido, o mito foi ganhando contornos de verdade imposta. Os trabalhos de Ha-Joon Chang têm contribuído para desmontar estes mitos, tornando claro o que muitos ainda se recusam a ver: que as ‘forças de mercado’ nunca dispensaram um Estado forte para funcionarem; que o comércio livre raramente foi receita para o desenvolvimento; que a circulação de capitais sem restrições causa mais problemas do que resolve; em suma, que as receitas que instituições como a OMC, o FMI e o Banco Mundial insistem em impor aos países menos desenvolvidos podem servir muitos interesses – mas raramente os da construção de um mundo menos injusto e menos instável. Desconstruir os mitos reinantes é muitas vezes o primeiro passo para construir a alternativa.

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CIDADES INVISÍVEIS

DISSIDÊNCIA SEXUAL FEMININA E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA NOTAS DE UMA PESQUISA EMPÍRICA | ANA BRANDÃO


DISSIDÊNCIA SEXUAL FEMININA E CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA - NOTAS DE UMA PESQUISA EMPÍRICA ANA BRANDÃO | SOCIÓLOGA - DOCENTE NA UNIVERSIDADE DO MINHO

A INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA EM TORNO DA temática da dissidência sexual em Portugal, a despeito da sua importância para a compreensão das próprias condutas sexuais normativamente aceites, é, ainda, extremamente incipiente. A este estado de coisas não é, certamente, alheio o desenvolvimento relativamente tardio do associativismo lésbico, gay, bissexual e transgénero (LGBT), mas também do feminismo, intimamente ligado ao processo de desenvolvimento da sociedade portuguesa e, em especial, ao carácter semiperiférico desta. A despeito de algumas tímidas manifestações anteriores, é apenas a partir da década de noventa do século XX que o associativismo LGBT adquire, entre nós, projecção pública, começando a sua acção a pautar-se por uma certa continuidade e sistematização. Nas sociedades economicamente desenvolvidas – com destaque para os Estados Unidos, Grã-Bretanha e Alemanha –, cedo surgiram condições para a formação de comunidades e subculturas LGBT fortemente enraizadas e ligadas a uma apropriação do espaço urbano que contribuiu para a sua visibilidade e que funcionou como mecanismo de protecção daqueles que as procuravam. Nestes países, transformações estruturais nas condições e estilos de vida das populações, a que se juntou a acção do movimento de reforma sexual de finais do século XIX, permitiram a formação de enclaves urbanos que sustentaram a formação de uma identidade de grupo e a mobilização política daqueles que não se identificavam com o modelo normativo.

Em Portugal, uma industrialização tardia, o desinvestimento na escolarização da população (em geral, e da feminina, em particular) e condições de vida muitas vezes roçando o limiar de sobrevivência, a que se juntou um regime ditatorial duradouro com os seus mecanismos propagandísticos, de censura e repressivos contribuíram para a preservação de estilos de vida e visões tradicionais do género e da família com impactos consideráveis ao nível da vivência da sexualidade e da sua relação com os fenómenos identitários. A despeito da forte presença de uma matriz ideológica judaicocristã e do peso considerável da Igreja Católica entre nós, estas não são, por si sós, suficientes para explicar por que razão, mais do que noutras realidades, o Estado português continua a insistir em associar o valor pessoal e moral dos seus cidadãos às suas preferências e/ ou práticas sexuais, e em consentir na – quando não promover a – sua discriminação se não formal, pelo menos de facto. No caso particular da dissidência sexual feminina, aqui entendida em termos de experiências e vivências não conformes à heterossexualidade exclusiva, há uma segunda dimensão de análise fulcral: a persistência da dominação masculina. É sobejamente reconhecida a situação de subalternidade a que as mulheres, em geral, e as mulheres portuguesas, em particular, têm sido remetidas, consagrada durante séculos nos discursos religiosos, jurídico-legais e, mesmo, médicos e nas práticas individuais de homens e mulheres. E se as mudanças

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recentes têm vindo a proporcionar, uma (certa) independência, nomeadamente económica, a estas, a verdade é que as alterações no que diz respeito ao reconhecimento e à aceitação de uma agência sexual feminina ainda estão muito longe de lhes permitir usufruir, de forma efectivamente autónoma e livre, da sua sexualidade. Esta dimensão da vida das mulheres parece continuar a articular-se privilegiadamente em torno de um conjunto de preceitos, dentro dos quais é aceite o seu direito ao prazer e à autodeterminação sexuais: ser exercida no âmbito de uma relação “séria” (assuma esta a forma do casamento, ou não) ligada ao cuidado com os outros (máxime, marido/ companheiro e filhos); e dotada de um carácter instrumental em que o prazer sexual não é valorizado em e por si só, mas subordinado a outros (o homem, a família, o amor). Estes são os traços essenciais do arquétipo da mulher “séria”, ao qual se contrapõem as imagens da mulher “poluída” – de entre as quais, a mulher com interesses homo-eróticos, mormente a lésbica –, todas elas definidas, justamente, pela saturação sexual. Se a dominação masculina é um dos factores que contribuem para explicar por que razão têm sido sobretudo os homens a estar na linha da frente de formas diversas de mobilização política voltadas para a defesa pública do direito a uma sexualidade não confinada à heterossexualidade exclusiva – recordemos, de resto, que um dos elementos definidores do “prestígio” masculino tem sido, justamente, a sua agência sexual –, é


«A ANÁLISE DOS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE UM GRUPO DE MULHERES RESIDENTES NO NORTE DO PAÍS REVELA, JUSTAMENTE, QUE O ESTIGMA CONTINUA A SER UM ASPECTO CENTRAL DA DIFICULDADE EM LIDAR COM A EXPERIÊNCIA HOMO-ERÓTICA NA PRIMEIRA PESSOA»

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necessário acrescentar a este quadro um movimento de mulheres que, em Portugal, se caracterizou sempre por uma fraca implantação, pela submissão ao poder masculino, pela intermitência das suas acções e pela efemeridade das suas organizações. Ao passo que noutras realidades sociais e históricas o feminismo constituiu um contexto favorável à afirmação de uma agência sexual feminina e, muito frequentemente, ao desenvolvimento da dissidência sexual feminina – note-se que o lesbianismo chegou a ser considerado a sua quintessência por alguns sectores do feminismo –, em Portugal, estas questões parecem ter sido sempre rodeadas de inúmeros “cuidados” e silenciamentos, entre outras razões para que se não pusesse em causa a “respeitabilidade” das mulheres nele envolvidas – o que, é claro, não impediu que isso acontecesse com uma certa frequência… É, portanto, no quadro deste jogo complexo de influências mútuas que é possível compreender por que razão, para muitas mulheres, continua a ser problemática a constatação de que, num certo momento das suas vidas, se sentem eroticamente atraídas por alguém do mesmo sexo. No caso específico do homo-erotismo feminino, a ausência do falo contribui, adicionalmente, para a sua raridade na designada “cultura popular” (mas também erudita), que oscila entre a sua negação (pela invisibilidade) e a sua menorização (pela redução a elemento de titilação masculina, máxime via pornografia), ou, embora mais raramente, pela sua consagração na imagem da depredadora sexual lésbica – figura que, sendo claramente mais aterradora, não deixa, todavia, de cumprir os mesmos propósitos de regulação social.

Assim, num contexto sociocultural de onde estão ausentes modelos alternativos ao casal heterossexual tradicional e onde se crê, ao contrário de toda a evidência empírica, que o desejo sexual é linear e se encontra permanentemente fixado num objecto de determinado sexo – geralmente, do “outro” sexo –, o homo-erotismo surge, antes de mais, como uma contravenção à ordem social. Mas assume, igualmente, a forma de uma infracção das fronteiras definidoras do género, visto que se presume que uma mulher “normal” se sentirá atraída por um homem, e vice-versa. Num certo sentido, aliás, a ideologia dominante e a ideologia que subjaz ao movimento LGBT dominante são algo similares: porque assentam em idêntica crença na invariabilidade e predeterminação do desejo sexual; e porque confundem com frequência identidade de género com preferência sexual. Em ambos os casos, estas crenças sustentam, portanto, mecanismos que operam no sentido de garantir a conformidade às classificações e às normas definidoras do grupo. Isto é visível, no caso da subcultura LGBT, e apenas para referir alguns exemplos, na visão do desenvolvimento de uma identidade gay ou lésbica que procede por etapas mais ou menos lineares e com um desfecho previsível, consagrado, nomeadamente, nas histórias de “saída do armário”, um dos seus guiões fundamentais; na consequente dificuldade de aceitação de sexualidades e identidades não exclusivamente homo ou heterossexuais, no mais das vezes entendidas como transitórias, quando não como atitudes interessadas – e interesseiras – de ocultação; ou, ainda, na definição de modos de apresentação do Eu (vestuário, gestualidade, conduta) que passam pela recusa dos padrões convencionais do género a este nível.

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Estes três exemplos actuam, aliás, no sentido de uma certa confirmação mútua e subjazem a um mecanismo idêntico de reificação de categorias social e culturalmente construídas e, portanto, relativas. Este parece ser, de resto, um dos dramas fundamentais do activismo gay e lésbico – é que, pretendendo combater as categorias pelas quais é socialmente (des)classificado, parece ter que partir da afirmação da sua “realidade” para garantir a mobilização política, reforçando, assim, de modo circular, os próprios sistemas de classificação que pretende combater… Mas é, também, um drama presente ao nível da experiência pessoal e privada porquanto os indivíduos são, muitas vezes, compelidos a ajustar-se a uma categoria – qualquer que ela seja – que sentem não corresponder nunca exactamente à totalidade do que são. A tensão entre a identificação com o Outro, i.e., a procura da similaridade e da assimilação, e a necessidade de afirmação da originalidade individual, é um traço basilar dos fenómenos identitários. Mas, no caso particular da relação entre identidade e homo-erotismo, essa tensão torna-se particularmente presente pela estigmatização de que este ainda é alvo. A análise dos processos de construção identitária de um grupo de mulheres residentes no Norte do país revela, justamente, que o estigma continua a ser um aspecto central da dificuldade em lidar com a experiência homo-erótica na primeira pessoa. Daqui decorrem questões várias. A cautela extrema na eventual revelação do interesse homo-erótico a terceiros; a resistência/recusa em associar-se à exibição pública do atributo estigmatizado ou àqueles(as) que o fazem; e a não identificação face aos discursos, modelos e estilos de vida propostos pelas comunidades,


MA OTISMO É U R -E O M O H EO ÇÃO DE QU «A PERCEP ADA ESTÁ TE CONDEN N E M L IA C IA SO EXPERIÊNC PRIA , PELA PRÓ O D A L M U R ESENTE, PO TE SEMPRE PR LARAMEN C E D O T C RO, PELO FA E, POR OUT , O Ã S IS M O E VIDA ECTÓRIA D J A R T A M PARTE DE U NÃO FAZER A». ANTECIPAD


subculturas e/ ou organizações LGBT inserem-se na tensão entre aquelas duas lógicas, agravada pela ameaça de descrédito pessoal, moral e social decorrente da ostentação do estigma. E é a consciência deste risco que está na base de um conjunto de acções destinadas a manipular os aspectos mais ínfimos da vida quotidiana e da relação com os outros, frequentemente com elevados custos psicológicos e sociais. Porém, deve notar-se que antes mesmo de este tipo de considerações ser conscientemente equacionado, aquilo que surge como aspecto problemático para estas mulheres é a infracção das expectativas ligadas ao género. Isto torna-se particularmente evidente quando comparamos diferentes gerações. Se as mulheres mais jovens gozam já da possibilidade de aceder a modelos alternativos à heterossexualidade – ainda que escassos e exigindo um investimento na sua procura –, as mais velhas não a possuíam, sequer. Todavia, a percepção de que o homo-erotismo é uma experiência socialmente condenada está sempre presente, por um lado, pela própria omissão, e, por outro, pelo facto de claramente não fazer parte de uma trajectória de vida antecipada. Precisamente por estas razões, ele levanta uma série de questões que interferem directamente com o género, ligadas, nomeadamente, ao casamento e aos filhos, e ferindo sempre, de algum modo, o valor pessoal e social destas mulheres enquanto mulheres. Embora entre as gerações mais jovens haja alguns indícios de uma certa redução do sofrimento provocado, sobretudo, pelo isolamento e pela solidão, ou por sentimentos de raridade, quando não de “anormalidade”, dois outros factores parecem ser cruciais para explicar o modo como a dissidência sexual é, por um

«TAMBÉM ENTRE AS MULHERES MAIS VELHAS E ENTRE AQUELAS QUE VIVEM AFASTADAS DOS GRANDES CENTROS URBANOS QUANDO RECONHECEM, PELA PRIMEIRA VEZ, O SEU HOMO-EROTISMO, A PRESENÇA DE UMA COMUNIDADE GAY E LÉSBICA TENDE A SURGIR COMO FONTE DE APOIO E PRINCÍPIO DE IDENTIFICAÇÃO FUNDAMENTAIS»

lado, vivida, e, por outro, integrada na identidade pessoal: a classe e a presença/ ausência de redes sociais de apoio. A primeira parece estar presente, desde logo, ao nível dos padrões de socialização do género que, apresentando-se mais ou menos dicotómicos, dificultam ou, inversamente, facilitam a inclusão do desejo e da experiência homo-eróticos no sentido do que se é, em geral, e do ser mulher, em particular. Por outro lado, está também ligada aos capitais económico, cultural e social que garantem o acesso aos recursos necessários quer à sua inclusão na identidade pessoal, quer a redes de sociabilidade onde a sua vivência pode ser mais ou menos aberta. Genericamente, as mulheres de origem social mais favorecida gozam, em suma, de condições que tornam comparativamente menos problemático o desejo homoerótico e a sua expressão. Aqueles dois factores conjuntamente explicam, provavelmente, por que razão são as outras mulheres a apresentar uma vivência mais centrada na comunidade LGBT, onde encontram, justamente, o apoio de que não gozam nos seus contextos de origem e quotidianos. Não se trata, todavia, de uma relação linear. Nela interferem outras variáveis, como sejam a

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pertença geracional ou a área de residência. Assim, também entre as mulheres mais velhas e entre aquelas que vivem afastadas dos grandes centros urbanos quando reconhecem, pela primeira vez, o seu homo-erotismo, a presença de uma comunidade gay e lésbica – muitas vezes resumida ao circuito de uns quantos espaços de encontro – tende a surgir como fonte de apoio e princípio de identificação fundamentais. As mudanças sofridas pela sociedade portuguesa nas últimas décadas, e as experiências de vida do conjunto de mulheres que entrevistámos apontam no sentido de uma diminuição das desigualdades de género, nomeadamente no que respeita à autonomia pessoal e sexual das mulheres, e de uma tendência para uma maior aceitação do homo-erotismo como forma de expressão dos afectos e da sexualidade. Isto significa que é hoje comparativamente mais fácil – em grande parte, diga-se, graças à acção do activismo LGBT nacional e internacional – usufruir de uma sexualidade e de uma vida afectiva que não se confinem à heterossexualidade exclusiva. Mas, apesar disso, o facto de não ser um homem o alvo do desejo de uma mulher continua a ser pessoal e socialmente problemático…


CONTRATEMPO

OSCAR WILDE

EO

PÓS-COLONIALISMO

MARIANA AVELÃS

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OSCAR WILDE E O PÓS-COLONIALISMO

MARIANA AVELÃS | MESTRE EM LITERATURA IRLANDESA

The one duty we owe to history is to rewrite it.1 O PÓS-COLONIALISMO É, DESDE OS ANOS NOventa, a coqueluche da teoria literária. De mansinho, a aversão doentia a tudo o que fosse «político», «ideológico» ou «engagé», típica do apogeu do pós-modernismo, foi sendo substituída por um fascínio por termos como «identidade», «hibridismo», «margens» ou «representação de minorias», que ecoam actualmente pelos corredores da academia (não necessariamente da portuguesa, mas até isso está a mudar), e não só nos departamentos de línguas e literaturas, mas também em outras áreas das ciências sociais: história, filosofia, ciência política, antropologia... e até em terrenos mais obscuros como os do marketing, da informática ou do turismo. Para um leitor comum, a complexidade das teorias pós-colonialistas, e sobretudo o tom muitas vezes excessivamente vago e críptico dos textos, levantam sérios problemas de compreensibilidade. E embora o pós-colonialismo resista militantemente a qualquer tentativa de definição e seja um fenómeno em constante (e saudável) mutação, pode-se dizer que a sua génese resulta sobretudo do acesso a estudos superiores na segunda metade do século XX de largas camadas da classe média em países sob jugo colonial, sobretudo no vasto império britânico. Educados na língua e no sistema do colonizador, e capazes de se impor nas suas estruturas administrativas, académicas e culturais, autores como

Edward Said encontram-se numa posição privilegiada para reflectir sobre e denunciar o que entretanto se tornou num lugar-comum: que a história é escrita pelos vencedores, e que a desumanização e a estereotipação dos nativos são necessárias para que o colonizador legitime a ocupação e afirme, através do processo básico da oposição, a sua própria auto-estima. Por outro lado, os escombros da opressão colonial criam as bases para uma história não oficial, sob a forma de tradição, cuja dinâmica nada tem a ver com o conceito de «derrotado». As culturas de resistência são, aliás, muitas vezes mais produtivas e imaginativas que a hegemonia do statu quo, e uma das características dos povos colonizados é precisamente a capacidade (necessidade?) de se imaginarem em permanência, e de o fazerem sem perder de vista que a resistência à ocupação não pode ser feita sem o domínio das armas culturais do inimigo. Um dos casos mais emblemáticos é Satanic Verses, de Salman Rushdie (de origem indiana), que retrata uma metrópole inglesa cinzenta, estéril e culturalmente pobre, à mercê de gerações de imigrantes de várias cores que, entre bairros sociais, lealdades em reconstrução e a necessidade quase doentia de manterem laços culturais com uma realidade nativa que não conhecem ou já esqueceram, lançam um grito que tanto pode ser entendido como ameaça ou promessa: «I am going to tropicalize you.». Muito se tem discutido se o pós-colonialismo é uma corrente crítica ou criativa. No mínimo, a questão faz pouco sentido, porque o quer que seja o pós-colonialis-

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mo aplica-se certamente tanto à teoria literária como aos textos que ela se propõe estudar. A verdade é que, como qualquer quadro teórico, a grande virtude do póscolonialismo é oferecer uma estrutura que permite novas leituras dos textos, concebidos muitos deles antes de o pós-colonialismo fazer sequer sentido de um ponto de vista histórico. E novas leituras inseridas numa perspectiva de intervenção cultural e política terão certamente impacto na geração de novos textos... que levantarão, por sua vez, desafios sempre novos à crítica. A dialéctica no seu melhor, portanto. Quer seja na luta no terreno, na produção cultural ou na reflexão crítica, numa fase inicial o pós-colonialismo é um movimento de resistência. O objectivo principal é instaurar os «colonizados» como agentes da história. E porque a violência e a destruição fazem inevitavelmente parte do processo de colonização, não apenas no domínio dos meios de coerção, mas também nos mecanismos de geração de significado, uma das primeiras missões pós-coloniais é a celebração de um passado livre de contaminação colonial. No entanto este processo traduz-se geralmente numa pura invenção (e não no retomar) de tradições, porque é supérfluo tentar apagar a memória do colonialismo, mais não seja porque a própria aspiração a uma identidade pós-colonial pode ser considerada um legado colonial. Por outro lado, o corte abrupto com o passado provocado pela colonização investe a memória colectiva de importância política, sobretudo quando as colónias conquistam a independência e urge construir,


mais do que passado simbólico, um presente próprio. Não são raros os casos em que as identidades pós-coloniais excluem o direito à diferença e à auto-crítica e acabam por gerar culturas tão artificiais, intolerantes e monolíticas como as impostas pelo colonizador. Um dos grandes desafios dos movimentos de libertação pós-colonial é precisamente a necessidade de, em algum momento, substituir a simbologia, mais ou menos opressiva, da nação liberada pela nação de facto, com as suas realidades contingentes. O que passa inevitavelmente por incorporar na memória colectiva o legado colonial e as muitas nações que qualquer nação alberga. Não faltam críticas ao projecto do pós-colonialismo: que paradoxalmente representa sobretudo uma visão ocidental, e algo paternalista, do mundo; que é um movimento elitista (pouco extravasa o meio universitário, é um facto); que equipara realidades coloniais muito díspares; que esquece que grande parte do mundo outrora colonizado é-o ainda, mas de outras formas — se é que é possível distinguir claramente as esferas da colonização política das da colonização económica; que por vezes dá a entender que o que marca as diferenças entre o Norte e o Sul são questões de valor, significado, história, identidade e práticas culturais, em vez de armas, acordos de comércio, alianças militares, exploração de recursos e afins; que corre o risco de se instituir como fetiche inócuo e pura e simplesmente puxar as periferias para o centro e vice-versa. Terry Eagleton, um dos expoentes da crítica literária assumidamente marxista, lembra2 que convém não deixar que a histeria com a identidade cultural e o direito à diferença faça esquecer que nem todas as exclusões sociais são patológicas (devemos celebrar a identidade de nazis, racistas, homófobos e

quejandos?), e que nem todos os estrangeiros são bemvindos — as forças de ocupação imperialistas, por exemplo. Sobretudo, preocupa-o que o reconhecimento da diferença, hibridismo e multiplicidade suplante valores mais genéricos como a solidariedade ou a igualdade. O pós-colonialismo, no entanto, tem uma grande virtude: é suficientemente amplo e mutante para encaixar as críticas e transformá-las em virtudes. Uma das principais publicações científicas sobre o assunto tem o nome sugestivo de Interventions, porque o objectivo é teorizar para intervir também para lá da realidade crítica e textual, e cada vez mais são publicados textos que abordam temas como a globalização, a exploração económica, as migrações e o mercado de trabalho. Continua-se sem perceber, porém, como é que as periferias do mundo académico (que não lêem nem os manifestos sobre as suas interessantes identidades híbridas e dialécticas, nem os textos que vociferam contra a sua exclusão) vão poder passar de objectos de divagação libertária a agentes da sua própria libertação. Mas é inegável que o pós-colonialismo instiga literatura e política a saírem do armário e andarem de mãos dadas sem que ninguém as acuse de promiscuidade ou degeneração. Se não há quem dê por isso fora do meio decadente das universidades, isso é um problema da literatura, da política, e sobretudo das universidades. O pós-colonialismo não tem culpa nenhuma.

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«I am Irish by race, but the English have condemned me to speak the language of Shakespeare. The Saxon took our lands from us and made them destitute... but we took their language and added new beauty to it.»3 A Irlanda foi a primeira nação pós-colonial do século XX. A ocupação inglesa iniciou-se no século XII, mas só se estendeu à totalidade do território no início do século XVII, com o colapso da sociedade gaélica e a posterior chegada de grandes contingentes de colonos de origem escocesa (e portanto protestantes, enquanto a maioria da população nativa continuava a ser católica). Após sucessivas rebeliões, a Irlanda passou a fazer formalmente parte do Reino Unido em 1800, e foi preciso um século inteiro de resistência, uma sublevação suicida em 1916 e uma guerra civil (1922-23), para que ingleses e irlandês assinassem (ou aceitassem) o acordo que instituiu o «Estado Livre Irlandês». Em 1949 a Republica da Irlanda auto-proclamou-se, mas entretanto o território fora dividido, e 6 dos condados mais a norte continuam, ainda hoje, a fazer parte do Reino Unido — e as consequências são conhecidas. Sendo a Irlanda um país do primeiro mundo, a sua memória colectiva partilha traços com as dos países do terceiro, porque foi durante 8 séculos uma colónia dentro da Europa. A conquista não se limitou a efeitos territoriais, militares e políticos, e passou também pelos modelos coloniais clássicos de confiscação de terras


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e ataque continuado às leis, língua, religião e culturas nativas. O momento mais traumático foi a Grande Fome de meados do século XIX — uma praga na colheita de batatas, o alimento fulcral da maioria da população, levou à morte de um milhão de pessoas e arrastou outro milhão para a emigração (principalmente rumo aos EUA, em barcos cujas condições lhes valeram o nome de «navios-caixão»), enquanto saíam dos portos irlandeses rumo à metrópole outros barcos, carregados de alimentos, aplicando o princípio do laissez-faire, laissez-passer mercantil. A Irlanda pós-famina ficou reduzida a um terço da sua população e em consequência a língua irlandesa foi praticamente erradicada do território. No século XIX, a resistência irlandesa, embora não abandonando a tradição, já longa, da rebelião armada, enveredou por um caminho paralelo: o do nacionalismo cultural. O nome mais sonante do período é sem dúvida o de W.B. Yeats, e o projecto que ajudou a construir tinha todas as marcas de um pós-colonialismo prematuro: reclamar e mitificar os tempos de glória da Irlanda dos celtas e transformar o estereótipo literário do irlandês estúpido, bêbedo e bobo da corte (em vigor desde os tempos de Shakespeare) num ideal de homem irlandês rural, robusto, honrado e dotado de uma infinita sapiência tradicional, expressa nas formas poéticas sublimes e milenares do folclore – em língua irlandesa (que Yeats não falava ou compreendia de todo). A virtude política do revivalismo celta não deve porém ser posta em causa por causa do seu carácter artificial, porque no fundo corresponde a mais uma ficção útil (e muito) para a resistência ao domínio colonial. Mas os distúrbios em Dublin aquando da primeira encenação da peça The Playboy of the Western World de J.M. Synge são um exemplo típico

do que acontece quando tais ficções descambam no que os esforços pós-coloniais têm de pior: enraivecida com a representação negativa de um irlandês (Chris Mahon é, para além de gabarola, um suposto parricida), tão contrária ao novo estereótipo positivo, a audiência sentiu-se traída no orgulho nacional e reagiu violentamente. Ao longo do século XX, o século da afirmação póscolonial da Irlanda, mas também da partição da ilha, assistiu-se a uma cristalização bastante estéril das identidades «verde» (católica) e «laranja» (protestante), tanto a Norte como a Sul. A Irlanda independente tornou-se um Estado assumidamente católico e conservador, enquanto a Norte o conflito instituía duas comunidades acossadas, que se afirmavam pela negativa ou por alianças quer com Dublin quer com Londres que em tudo se assemelhavam às que Rushdie descreve em Satanic Verses. Sobretudo a Sul, coube aos escritores abrir algumas frechas neste ambiente claustrofóbico, mas é sintomático que muitos (James Joyce e Samuel Beckett, por exemplo) tenham acabado por cumprir o desígnio estatisticamente mais relevante dos irlandeses: emigrar. E no entanto, mesmo com as questões da identidade (o que é ser-se um escritor irlandês? É ser-se um não-inglês numa Irlanda retrógrada? É possível que os ventos da modernização venham de outro sítio que não o continente, flanqueado pela Inglaterra?) e da linguagem (o que é ser-se irlandês e falar inglês? Qual o papel da língua irlandesa quando corresponde mais a um símbolo que a um sistema comunicacional vivo?) no epicentro da riquíssima literatura produzida na Irlanda no século XX, a aplicação do pós-colonialismo à Irlanda foi tardia.

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Em 1996 Declan Kiberd edita Inventing Ireland – The Literature of a Modern Nation, que, apesar da ritual negação na introdução de quaisquer propósitos ligados a essa coisa esquisita, totalitária e pretensiosa que é o póscolonialismo, assinala a inauguração oficial da corrente na crítica literária Irlandesa. Desde então, nomes como Seamus Deane, Luke Gibbons ou David Lloyd têm-se multiplicado em análises e propostas deveras interessantes, e assumem sem pejo que são crentes praticantes do credo pós-colonialista. A Field Day Review, editada anualmente desde 2005, é possivelmente a publicação crítica mais interessante dos últimos anos, por motivos que explorarei mais adiante. Numa primeira fase, a produção teórica desta gente passou por demonstrar como a introdução do factor irlandês em autores tão insuspeitos como Edmund Burke, Bram Stoker ou Jonathan Swift (todos protestantes anglo-irlandeses) gera novas leituras estimulantes: o conservadorismo de Burke seria sobretudo uma preocupação com o facto de os mais oprimidos (nomeadamente os católicos irlandeses) serem as principais vítimas de sérias disrupções no funcionamento do Estado, hipótese corroborada pela posição anti-colonial de Burke em relação aos E.U.A.; e Dracula seria sobretudo um tratado gótico acerca de uma classe (a ascendência agrária anglo-irlandesa) que, em nome da terra (sem a qual o Drácula não viajava dentro do caixão), sugava cruelmente o sangue... dos católicos irlandeses. Cedo, porém, o pós-colonialismo irlandês debruçouse sobre o verdadeiro cerne da questão colonial irlandesa: a relação com a Inglaterra no contexto da pós-independência. Mais do que reafirmar as diferenças que pelo menos 100 anos de nacionalismo cultural haviam


consagrado no limite simplista do eu-sou-eu-porque-não-sou-tu, a maioria dos textos mais recentes realçam a dialéctica realista de qualquer relação colonial — não existiria a Irlanda como a conhecemos hoje se não houvesse uma Inglaterra na sua história. E vice-versa. Assim, por exemplo, o facto de, como qualquer colónia, a Irlanda ter sido utilizada como laboratório para experimentação política, económica e social, sobretudo ao longo do século XIX, em aspectos tão fundamentais como a relação entre o Estado e a religião, a posse e o usufruto das terras, a educação ou o sistema policial, passaram a ser considerados sintomas de uma relação de dependência mútua. A própria noção do estereótipo foi recolocada, realçando-se o facto de ele sido de tal forma absorvido por ingleses e irlandeses que acabou por constituir uma verdadeira âncora identitária e ponte de comunicação, fundamental para a integração dos muitos imigrantes irlandeses em Inglaterra. É óbvio que outras pontes bem mais positivas têm de ser constantemente construídas, mas não terá o ideal romântico do século XIX, em que se baseia ainda hoje muita da simbologia nacionalista, um verdadeiro legado colonial? Ao adaptar o binómio victoriano do inglês mercantilmente viril vs celta esteticamente efeminado, criando símbolos nacionais como o espadaúdo guerreiro celta, Cúchulainn, e concedendo aos desportos tradicionais irlandeses (hurling e futebol gaélico) um enorme estatuto político, traduz-se, em vez de eliminar, o preconceito. Mais uma vez, não faltam vozes a denunciar as muitas falhas no pensamento crítico pós-colonialista irlandês. Internamente, as críticas centram-se em dois aspectos: a tendência para homogeneizar o Norte e o Sul da Irlanda, apesar das diferenças ancestrais e de

«A LITERATURA, CRÍTICA OU CRIATIVA, TEM UM PAPEL FUNDAMENTAL NA CONSTRUÇÃO DE UMA IRLANDA EM PAZ, UNIDA, MAS CAPAZ DE INTEGRAR NÃO SÓ O PASSADO COLONIAL COMO AS CAMADAS DA POPULAÇÃO QUE NÃO SE IDENTIFICAM COM O ETHOS CATÓLICO E NACIONALISTA»

praticamente um século de existência política distinta; e a quase ausência de autores e temas da comunidade protestante/unionista do Norte no seio da produção crítica. Mais a Sul, os poucos e recentes críticos que escrevem em língua irlandesa queixam-se da paradoxal anglofonia do fenómeno. A resposta a estes anseios tem sido, apesar da legitimidade das críticas, positiva. E tem vindo sobretudo da fúria editorial da Field Day que, através de panfletos, edições críticas, antologias, e, sobretudo, da Field Day Review, tem lançado lufadas de ar provocador e lúcido sobre os estudos irlandeses. A Field Day começou por ser uma companhia teatral, fundada em Derry em 1980 por Brian Friel e Stephen Rea, com o objectivo de criar uma identidade cultural capaz de suplantar as divisões tradicionais da Irlanda do Norte. Teve como expoente nos anos 80 a peça Translations de Brian Friel, mas acabou por se afirmar sobretudo como projecto editorial de índole assumidamente pós-colonialista. No entanto as preocupações são, no fundo, hoje as mesmas de então: assumir que a literatura, crítica ou criativa, tem um papel fundamental na construção de uma Irlanda em paz, unida, mas capaz de integrar não só o passado colonial como as camadas da população que não se identificam com o ethos católico e nacionalista. Mais ainda quando a Irlanda,

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ao fim de séculos a exportar emigrantes, é agora terra de acolhimento de gente de várias partes do mundo, fazendo explodir em muitas cores o mosaico verde e laranja tradicional (e também mitos urbanos como a inexistência de racismo). Têm passado pelas páginas da Field Day Review, por exemplo, artigos de e sobre artistas da comunidade lealista, sobre a necessidade de trocar o bilinguismo pelo multilinguismo, ou chamando a atenção para o facto de muitos dos textos do apogeu do período gaélico (ie, até finais do século XVI) expressarem já em termos literários a capacidade de adaptação da sociedade irlandesa ao longo dos tempos, realçando que a identidade é sobretudo uma questão de negociação e partilha. Em suma, espera-se que a maturação do processo de paz e de toda uma Irlanda verdadeiramente multicultural permita uma atitude deveras saudável para com o legado colonial; e há muito quem diga que a verdadeira homenagem ao chorrilho de espoliados, exilados e mártires criado pela ocupação é precisamente celebrar a herança inevitável de uma ilha (pelo menos...) bilingue, capaz de se expressar simultaneamente num irlandês cada vez mais ressuscitado e numa língua inglesa infinitamente mais rica com o contributo daqueles a quem outrora chamou vítimas...


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«England will never be civilized until she has added Utopia to her dominions. There is more than one of her colonies that she might with advantage surrender for so fair a land.» 4 E o que tem, afinal, o Oscar Wilde a ver com isto tudo? Muito. Porque em todos os momentos em que se pode falar de pós-colonialismo na Irlanda ele é incontornável, quer seja enquanto personagem histórica, quer através das suas obras literárias. Aliás, a relação entre Wilde e a teoria pós-colonial é um dos exemplos da simbiose entre literatura e crítica, porque o seu estatuto de irlandês que conquista de modo fulminante a língua inglesa (e a jogar ao ataque em casa do inimigo) é um dos argumentos de base de Inventing Ireland, e obras como The Picture Of Dorian Gray, The Importance of Being Earnest ou The Happy Prince & Other Tales foram granjeadas com novas interpretações à luz das teorias que o livro de Declan Kiberd tanto ajudou a cimentar na crítica irlandesa. Sobretudo, a capacidade de se manterem actuais dos textos de Wilde e a simbologia de que o autor se foi investindo a partir dos anos oitenta permitem que ele seja constantemente citado como um dos modelos a ter em conta na construção de uma Irlanda moderna, progressista e inclusiva. Nascido em Dublin uns anos antes e filho de fervorosos nacionalistas, o protestante e republicano Wilde chegou a Oxford em 1874. E desde cedo se empenhou em construir para si uma identidade cosmopolita e urbana, aparentemente ultra-britânica — que utilizou, pelo

menos no auge da sua popularidade, para subverter por dentro os postulados mais puros da sociedade victoriana, incluindo a noção de uma identidade nacional rígida. Seria ridículo reduzir toda a produção literária de Wilde a um ataque muito subtil mas tremendo ao colonialismo britânico na Irlanda — a subversão dos seus escritos vai muito mais além. Mas é difícil ignorar, por um lado, que Oscar Wilde sempre se assumiu como irlandês, republicano e socialista e que existem nos seus textos detalhes de influência nitidamente irlandesa (por exemplo, envelhecimento súbito de Dorian Gray ao destruir o espelho é semelhante ao que acontece quando Oisín, personagem da mitologia celta, volta a pisar o solo após 300 anos em Tir na nÓg, a terra da juventude); e por outro, que o facto de possuir uma visão do outro lado do império sempre o transformou num outsider e terá porventura moldado o seu pensamento adverso aos binómios fáceis e totalitários tão do agrado da Inglaterra victoriana. Não deixa de ser significativo que Wilde se tenha empenhado em dar voz à Irlanda, em trabalhar em edições pela emancipação das mulheres, e em escrever contos infantis com grandes influências da tradição oral. A implicação política é clara quando se têm em conta que para a moral vigente no império britânico na altura mulheres, crianças e irlandeses não possuíam as capacidades necessárias para se auto-governarem. É comum, porém, acusar Wilde de defender um estatuto absolutamente independente da arte, que o impossibilitaria de ser adoptado para a claque do pós-colonialismo. Mas, mais uma vez, a crítica pós-colonialista tem demonstrado que o que Wilde defendia era um estatuto independente da arte... face ao totalitarismo do sistema político (imperial). Se a arte é a expressão máxima do

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indivíduo, defender a sua independência implica necessariamente defender um sistema em que nenhum indivíduo é mais individuo que outro. E se se diz aos quatro ventos que «life imitates art far more than art imitates art»5, é inevitável acreditar-se que a arte tem o potencial de transformar o mundo... Para um escritor, a arma natural nessa transformação é a linguagem. E Oscar Wilde tornou-se exímio num dos modelos mais devastadores: o paradoxo. Todos os seus livros estão pejados de afirmações como «I can resist everything except temptation»6, em que o significado transcende a relação entre as premissas e depende da subjectividade e raciocínio do leitor/espectador enquanto ser interpretativo. Ao pôr em causa as crenças convencionais, tanto no significado como nos mecanismos que o tornam possível, e ao neutralizar a semântica fácil dos binómios, o paradoxo é um dos recursos póscolonialistas preferidos de Oscar Wilde. Em termos concretos, é nas peças, e sobretudo em The Importance of Being Earnest, que Oscar Wilde melhor é lido à luz do pós-colonialismo. Temas tão familiares como a necessidade de inventar um passado (Lady Bracknell afirma que se a natureza não nos dota de um pai decente, então há que inventá-lo), de criar um duplo para expressar a identidade (Bunbury e Ernest), de ancorar a realidade na ficção (Cecily e Gwendolen apaixonam-se pela ficção de Ernest, não por Jack ou Algy), ou de subverter os papéis tradicionais (Gwendolen congratula o pai por se ter apercebido que o verdadeiro lugar do homem é em casa, deixando das lides públicas às mulheres) são a substância da peça. E embora já poucos contestem que as peças de Wilde levaram as audiências inglesas a rirem-se às gargalhadas


de si próprias, não deixa de ser claro que não é apenas a imbecilidade inglesa que é parodiada. Pode-se ler nestas peças uma espécie de manifesto para o que a Irlanda deveria aspirar a ser — uma terra que se vai imaginando, e não um mero armazém de ideias feitas. No fundo, a literatura inglesa deu a Wilde a máscara de que ele necessitava para representar a Irlanda da qual queria fazer parte. Ao não optar por representar uma Irlanda degradada, mas por a inventar com contornos utópicos, Wilde mata dois coelhos numa só cajadada. Porque para Wilde a empresa imperialista não se limitou a espalhar sofrimento pelo mundo, mas corrompeu igualmente a sociedade britânica no seu âmago. Nada disto teria qualquer relevância, política ou literária, se o espólio artístico de Wilde fosse um mero mausoléu de subversão centenária, circunscrita a uma realidade colonial específica. Mas se nos anos 80 Morrissey se encarregou de elevar Wilde ao estatuto de ícone pop e contribuiu para a sua transformação em símbolo da causa LGBT, os anos 90 assistiram a um boom de merchandising à volta de Oscar Wilde: t-shirts, canecas, pins e mil e um artefactos foram produzidos ostentado as frases mais emblemáticas do autor. Embora tenham chovido críticas contra a aparente «domesticação» da carga satírica de alguns dos aforismos mais badalados, a verdade é que é no mínimo questionável que a divulgação reduza de forma significativa o carácter subversivo da linguagem wildeana. Até porque muitas das suas peças foram então repostas, em encenações contemporâneas que optaram com sucesso pela actualização do cenário sem desvirtuar a discurso. Em 1997, por exemplo, a companhia KAOS reconstruiu The Importance of Being Earnest à luz da Inglaterra pós-tatcheriana.

Diálogos como:

NOTAS:

LADY BRACKNELL [sternly]: ... What are your politics? JACK: Well, I’m afraid I really have none. I am a Liberal Unionist. LADY BRACKNELL: Oh, they count as Tories (...). passaram a: LADY BRACKNELL [sternly]: ... What are your politics? JACK: Well, I’m afraid I really have none. I am New Labour. LADY BRACKNELL: Oh, they count as Tories (...). Vemos assim que é possível subverter o que é subversivo, sem no entanto perder de vista a carga subversiva original — exercício a que nem todos os textos se prestam. Em suma, só faz sentido divagar sobre Oscar Wilde numa perspectiva pós-colonialista porque ele continua a ser lido com prazer e significado (e não só nos meios académicos). E o significado é, felizmente, como o póscolonialismo: há-o para todos os gostos. Fica aqui uma leitura possível, apenas isso. Uma que acredita que se a utopia e a imaginação derrotam impérios, também têm de ter utilidade a construir liberdades (numa Irlanda unificada ou noutro sítio qualquer): «A map of the world that does not include Utopia is not worth even glancing at, for it leaves out the one country at which Humanity is always landing. And when humanity lands there, it looks out, and, seeing a better country, sets sail. Progress is the realization of Utopias.»7

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1 — Wilde, Oscar, The Critic as Artist (1891) 2 — Eagleton (1998:25) 3 — Wilde, Oscar, citado por (Kiberd: 1996:35) 4 — Wilde, Oscar, The Critic as Artist (1891) 5 — Wilde, Oscar, The Decay of Lying (1889) 6 — Wilde, Oscar, Lady Windermere’s Fan (1893) 7 — Wilde, Oscat, The Soul of Man Under Socialism (1895)


BIBLIOGRAFIA (CRÍTICA):

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ONTRATEMPOS

O AVESSO DO MUNDO SEGUNDO BARTHES O MARXISMO CONTRA A CRIAÇÃO DOS MITOS

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O AVESSO DO MUNDO SEGUNDO BARTHES - O MARXISMO CONTRA A CRIAÇÃO DOS MITOS FRANCISCO LOUÇÃ | ECONOMISTA

OS CINQUENTA ANOS DA PUBLICAÇÃO DE “Mitologias”, o livro que chamou a atenção para Roland Barthes, foram escassamente evocados entre nós. A febre comemorialista, por saturação, por fastio ou simplesmente porque Simone de Beauvoir ocupou o espaço reduzido a que as ideias francesas têm direito, deixou escapar o acontecimento, que ficou sepultado em páginas interiores de suplementos culturais nalguma imprensa internacional e, salvo qualquer excepção que não conheço, foi olimpicamente ignorado pela imprensa portuguesa, mais preocupada com impantes banalidades. Faltou Eduardo Prado Coelho para o lembrar. É uma injustiça e isso ainda é o menos. É sobretudo a perda de uma oportunidade de reflexão que é hoje tão actual – ou mais – do que há meio século. ESTRUTURALISMO SEM SINAIS?

Essa reflexão, como não podia deixar de ser, arriscar-seia sempre a seguir por caminhos esconsos: por exemplo o balanço do estruturalismo, tão em voga nesses anos sessenta e setenta, o tempo dos herdeiros de Barthes e de tantos outros. O estruturalismo criou a sua disciplina na filosofia, nas ciências sociais, na economia (as teorias desenvolvimentistas na América Latina), na ciência política que estava então a ser descoberta (Poulantzas) e brilhou sob a imperiosa arquitectura teórica de Louis Althusser e dos seus discípulos. Esse estruturalismo deu origem a um marxismo frio, a um edifício sem emoções, a uma política sem subjectividade e a uma certeza

que alcançou o seu destino, entrar em colapso. Estava escrito. Mas Barthes é outra conversa. Foi estruturalista, mas suficientemente heterodoxo para falar por si. Foi um estruturalista aplicado, como podia ser alguém que se preocupava com o que não se conhecia em tudo o que é evidente na sociedade: os sinais, os ícones, as modas, as trivialidades. Foi, por isso, um tradutor, um decifrador e também um polemista em território imprevisível: se “Mitologias” o tornou famoso, o “Grau Zero da Escrita” tornou-o apaixonante. Um estruturalista a discutir o romantismo, o de Goethe, o de histórias de amores perdidos e sofridos, o de paixões insanas! O paradoxo não passou despercebido, e quem o folheou descobriu assim uma leitura da literatura que escapava aos simplismos estruturalistas. Roland Barthes (1915-1980, morreu atropelado ao chegar ao trabalho) deixou outra obra, mais especializada, mas foi com estes dois livros que se faz lembrar. O livro, “Mitologias”, foi publicado em 1957, um ano em que a França estava em parte nenhuma: Estaline morrera e a reconstrução sepultava o passado, a França saía da guerra da Indochina com o orgulho ferido, a Argélia estava a explodir, a metrópole aborrecia-se. É dessa mudança que o aborrecimento representa que trata o livro, que foi compilado a partir de artigos regulares publicados nos dois anos anteriores em Les Lettres Nouvelles, uma revista animada por Maurice Nadeau. A partir desta técnica de folhetim sobre os objectos

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da vida quotidiana, Barthes escreveu sempre sobre a cultura de massas. Eles são os brinquedos, o strip tease, o automóvel e a catedral gótica, a cultura pop, os plásticos, o bife com batatas fritas, o modelo popular da Citroën, a imagem de Greta Garbo, o vinho, o cinema de Mankiewicz ou de Kazan, os detergentes, os marcianos, o cérebro de Einstein, o Tour de France como epopeia heróica, a literatura leve (hoje seria a literatura new age, Paulo Coelho ou Margarida Rebelo Pinto, para não falar de Dan Brown ou José Rodrigues dos Santos). Barthes era um coleccionador e acho que assim se fazem grandes livros (“A Vida, Modo de Usar”, de Pérec, é o grande romance em contraparte do coleccionismo: não demonstra que assim se escrevem livros de referência?). O livro pretendia juntar obsessivamente as evidências deste mundo em que se multiplicam os símbolos e em que, significativamente, os mais significativos são os mais vazios. Esse processo de esvaziamento é a construção de mitos. E a construção de mitos é uma forma de subjugação, pois é “uma das nossas servidões maiores: o divórcio assustador entre a mitologia e o conhecimento. A ciência vai depressa e direita ao seu caminho; mas as representações colectivas não seguem, elas têm séculos de atraso, e são mantidas estagnadas nos erros pelo poder, a grande imprensa e os valores da ordem” (de “Mitologias”). O mito é uma linguagem, e por isso é uma gramática, um símbolo do mundo dos símbolos.


ANTECEDENTES

No mesmo ano de 1957, Adorno escrevia sobre astrologia. A partir da interpretação da coluna regular do New York Times; Barthes escolhia a coluna da Elle, certamente menos popular mas também mais balizada pelo seu público. Para um e para outro, a astrologia era tomada como um espelho da vida social, uma descrição dos desejos e pulsões, uma “superstição em segunda mão” (Adorno). A astrologia podia fazer um jogo tolerado: prometer uma outra vida, justificar um determinismo frágil e cúmplice, estimulando um conformismo narcísico ou mesmo angustiado. Um mito partilhado e construído pelas interpretações ou pelo grau de fé que cada leitor queria emprestar a um sinal reconhecidamente artificial. A astrologia era por isso analisada por Adorno como por Barthes como uma forma de hedonismo, consentido e partilhado: afinal, todos os habitantes do mesmo signo teriam a mesma oportunidade do destino. Mas o destino limita-se, nesta história, a três esquinas da vida social: amor, dinheiro e saúde. Amor, mas talvez não sexo; dinheiro, mas talvez sem fortuna; saúde, mas talvez sem riscos - são portanto mitos débeis, sem imaginação. A astrologia é portanto uma fantasia consentida, sem fôlego. A questão das questões, então, é saber como é que mitos débeis como estes podem organizar a ideologia de uma sociedade, e em particular de uma sociedade de comunicação intensa, em que precisamente os mitos são a linguagem. A resposta é essa, porque são débeis, podem organizar uma simbologia, construir adesões e portanto criar uma cultura. Esse tinha sido o tema da terceira geração do marxismo, a do virar da metade do século XX, com os trabalhos da Escola de Frankfurt

«O QUE ADORNO COMO BARTHES PROCURAVAM ERA UMA NOVA INTERPRETAÇÃO PARA ESSE PARADOXO: COMO É QUE MITOS DÉBEIS PODEM ORGANIZAR UMA OPRESSÃO FORTE NUMA SOCIEDADE COMPLEXA»

(Adorno, Horkheimer e outros). O que Adorno como Barthes procuravam era uma nova interpretação para esse paradoxo: como é que mitos débeis podem organizar uma opressão forte numa sociedade complexa. IDEOLOGIA E UNIVERSALIDADE

Os estudos de Karl Marx sobre a alienação e a ideologia podem trazer algum esclarecimento a este percurso da teoria e do debate. Foi num texto de 1844, os Manuscritos EconómicoFilosóficos (ou Manuscritos de Paris), que Marx discutiu pela primeira vez de uma forma sistemática o seu conceito de alienação. Quis no entanto o destino que este livro só viesse a ser conhecido muito mais tarde, dezenas de anos depois da morte do autor e, na verdade, quando um “marxismo ortodoxo” se desenvolvia sob a batuta da Academia de Ciências da URSS, em contradição aberta com a potencialidade revolucionária dos textos dos fundadores do marxismo. Deste modo, no início do século, só se conhecia, no que diz respeito ao que aqui nos interessa, o primeiro capítulo do Capital (1867), escrito porém mais de vinte anos depois dos Manuscritos, e que se limitava a apresentar o conceito de “fetichismo da mercadoria” – a transferência imagiVÍRUS FEV/MAR 2008

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nária de características e qualidades humanas e sociais para a objectivação da coisa, da mercadoria. Com esta transferência, as relações sociais expressas na produção apresentam-se como relações entre coisas. Ora, esse conceito era inseparável da sua explicação, a alienação do trabalho, que constitui a essência da crítica da exploração e do capitalismo como sistema económico e social. Os Manuscritos explicavam a alienação como uma característica socialmente generalizada pelo capitalismo, ao condicionar o processo produtivo à acumulação de capital, levando à perda de controlo do trabalhador sobre o processo e sobre o produto do seu trabalho. Nesse sentido, a perda de autonomia no processo produtivo corresponde a uma socialização intensa, mas ao mesmo tempo a uma apropriação dessa socialização pelo capital. Nos Manuscritos, escrevia Marx: “Em que consiste, então, a alienação do trabalho? Primeiro, no facto de que o trabalho é exterior ao trabalhador, isto é, não pertence à sua natureza, que não se realiza no seu trabalho, que se nega nele, que não se sente à vontade, antes se sente infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física ou mental que seja livre, mas antes que se mortifica e arruína o seu espírito. O trabalhador, assim, só é ele próprio quando não trabalha, e no seu trabalho sente-se fora de


«PARA MARX, HAVERIA ENTÃO TRÊS FORMAS DE ALIENAÇÃO, ISTO É, DE ESTRANHAMENTO: DO TRABALHADOR EM RELAÇÃO À SUA “ESSÊNCIA” OU NATUREZA, QUE O DIFERENCIA DE UMA MÁQUINA; A QUE DISTANCIA O TRABALHADOR DO SEU PRODUTO E DO PRÓPRIO PROCESSO DE PRODUÇÃO; FINALMENTE, A QUE IMPÕE UMA RELAÇÃO ALHEADA ENTRE TRABALHADORES»

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si próprio. O seu trabalho, por isso, não é voluntário, mas forçado. Não é a satisfação de uma necessidade, mas somente uma forma de gratificar a necessidade de outrem.” A alienação é o resultado da produção mercantil sob o capitalismo. Na sua análise da alienação, Marx inspirava-se no livro de Feuerbach sobre a “Essência do Cristianismo” (1841), que defendia a ideia de que Deus tinha alienado as características dos seres humanos. Essa transposição e apropriação era portanto a essência da perda que a alienação representa. No capitalismo, a alienação exprime a contradição entre a produção socialmente organizada e a apropriação privada, raiz da exploração e também da ideologia conformista que submete o trabalho. A alienação decorre assim da produção mercantil. Por outro lado, a alienação é a negação da individualidade: “Suponhamos que produzimos como seres humanos [não alienados]. Cada um de nós ter-se-ia afirmado de duas formas: (1) na minha produção teria objectivado a minha individualidade, o seu carácter específico, e portanto apreciado não somente a manifestação individual da minha vida na actividade, mas também ao contemplar o objecto teria o prazer individual de reconhecer que a minha personalidade é objectiva, visível para os sentidos e portanto um poder acima de dúvida, (2) no seu uso do meu produto teria um prazer directo pelo facto de estar consciente de ter satisfeito uma necessidade humana com o meu trabalho, ou seja, de ter objectivado a natureza essencial do ser humano (…). Os nossos produtos seriam outros tantos espelhos em que se reflectiria a nossa natureza essencial” – precisamente o que a produção capitalista recusa, ao submeter o trabalho à necessidade de valorização do capital.

«NUM LIVRO RECENTE, GILLES LIPOVETSKY E JEAN SERROY (“L’ECRAN GLOBAL”) DESCREVEM A SOCIEDADE DE COMUNICAÇÃO COMO UM ÉCRAN GLOBAL, COMO NOVA FASE DA TELOSFERA, A QUE CHAMAM DE HIPERCINEMA: UM MODO DE NARRAÇÃO DOMINADO PELA FICÇÃO QUE EXAGERA EXCESSIVAMENTE EM TUDO, NA ACÇÃO, NO SEXO, NA VIOLÊNCIA – COMO TARANTINO NAVEGANDO ENTRE KILL BILL E DEATH PROOF, EM BUSCA DA CRIAÇÃO DE UMA NOVA SÉRIE B»

Para Marx, haveria então três formas de alienação, isto é, de estranhamento: do trabalhador em relação à sua “essência” ou natureza, que o diferencia de uma máquina; a que distancia o trabalhador do seu produto e do próprio processo de produção; finalmente, a que impõe uma relação alheada entre trabalhadores. A alienação suportaria assim, no domínio da produção de valor, a ideologia que no conjunto das relações sociais afirmaria esta ordem de dominação. Segundo Marx, a ideologia seria então uma forma de representação da falsa consciência, e desse modo uma forma de legitimação de poder, tomando o interesse particular pelo geral e impondo a afirmação universalista e eternizada de um modo de apropriação do valor do trabalho. Althusser, o papa do estruturalismo, rejeitava o conceito de alienação como sendo idealista, uma contaminação hegeliana que perturbava o pensamento marxista. Abandonava assim a reflexão sobre a essência do capitalismo, o que explica simultaneamente a sua capacidade organizadora das relações sociais e a vertigem mitificatória que o sustenta.

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Barthes, em contraste, retoma a teoria da alienação e da ideologia nas suas Mitologias, para concluir que o universal burguês é a expressão deste movimento: “o estatuto da burguesia é particular, histórico: o homem que ela representa será universal, eterno (…). Enfim, a ideia primordial de um mundo perfectível, móvel, produzirá a imagem invertida de uma humanidade imóvel, definida por uma identidade infinitamente recomeçada.” O mundo burguês é a fantasia da eternidade – é um mundo que cria uma indústria de comunicação baseada na mitificação. A CRIAÇÃO DE MITOS

Barthes chega assim à conclusão fiel ao seu estruturalismo heterodoxo que explora a semiologia, o sentido dos signos, de que o mundo seria composto por sinais decifráveis, e esses sinais são precisamente os mitos. Onde a ideologia se quer disfarçar, é precisamente onde pode ser revelada. A colecção de ensaios compilados em Mitologias dedica-se a essa desconstrução do sentido das imagens e mensagens, e do seu sistema de comunicação.


Cinquenta anos depois, Alain Badiou inspira-se neste livro para desenvolver o conceito provocador de doxologia - doxa é o sistema de mitos, o conjunto de opiniões confusas e preconceitos que fazem um sistema de autoridade e os doxólogos são os seus sacerdotes. E, cinquenta anos depois, quando a sociedade moderna (Boaventura Sousa Santos diria pós-moderna) se afirma como um sistema de produção contínua de mitos, a análise da alienação deve combinar o que Marx conhecia – o fetichismo da mercadoria e a submissão do trabalho alienado – e o que se tornou o modelo de comunicação do fetichismo. Esse fetichismo intensivo subverte os modelos de comunicação social. Foucault, por exemplo, adivinha essa transformação ao estudar a sexualidade como expressão da subjectividade, mas também como referencial de comportamento e de julgamento: a comunicação é um campo de fantasia, é um mito. O investimento massivo da publicidade na representação da sexualidade vem dar-lhe razão. Num livro recente, Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (“L’Ecran Global”) descrevem a sociedade de comunicação como um écran global, como nova fase da telosfera, a que chamam de hipercinema: um modo de narração dominado pela ficção que exagera excessivamente em tudo, na acção, no sexo, na violência – como Tarantino navegando entre Kill Bill e Death Proof, em busca da criação de uma nova Série B. Neste contexto, as próprias pessoas viveriam como sendo parte de um jogo de vídeo – quanto mais se comunica menos se conhece e menos se reconhece. Por isso, a tese tem sentido: de facto, o gore torna-se uma forma de narração predominante, porque é a que estabelece o contraste num mundo banalizado,

mas o seu exagero anestesia. O fetichismo da mercadoria faz emergir a fetichização das relações sociais como expressão da mercadoria. Esta socialização anacrónica e individualizada, que não deixa de ser socialização, manifesta o triunfo do mercado e dos seus mitos. Mitos com pés de barro, porque são decifráveis e porque são portanto descontruíveis e destrutíveis. O simples facto de Barthes os ter já enunciado há cinquenta anos atrás, coleccionando os mitos banais que alimentam a comunicação alienada, é a prova de que a crítica das armas é a razão da arma da crítica.

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RAPS Ó DI

CRAMOL «VOZES DE NÓS» | NAOMI KLEIN «SHOCK DOCTRINE» | TNSJ «TURISMO INFINITO» | BRUNO CABRAL «METAMORFOSES»

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«VOZES DE NÓS» OU AS NOSSAS VOZES SANDY GAGEIRO

PRAGUEJAVA NO OUTRO DIA AO MEU LADO um colega de trabalho e reconhecido melómano: “Grande seca! Isso esgatanha os ouvidos, isso é demasiado cru para mim, não gosto”. Reparem, o CD estava a tocar há 5 minutos. Contudo, registei a reclamação. Fica desvendado o mistério se vos disser que o disco em questão era o mais novo das Cramol que se chama «Vozes de Nós».Trata-se de uma colecção de 46 canções oriundas de várias regiões do país, maioritariamente do norte e, em muitos casos, registadas pela primeira vez em CD. Canções populares e tradicionais de trabalho, de amor, de embalar, de perda, enfim, de um quotidiano profundamente feminino, no qual a mulher é omnipresente. As Cramol, dezasseis mulheres que já foram vinte e duas, cantam sobretudo temas polifónicos das regiões da Beira Alta, Minho e Trás-os-Montes e do cancioneiro regional de Lafões e de Arouca. Alguns temas deste duplo álbum foram retirados das conhecidas recolhas efectuadas por José Alberto Sardinha, Michel Giacometti ou Fernando Lopes Graça. A procura do som mais próximo do original não deixa lugar para dúvidas: aqui o único instrumento presente é a voz, nos seus mais variados registos – impertinente e arisca, solene e sombria, estridente e ardilosa, só e acompanhada. O primeiro disco conta 33 temas, ao qual juntaram um disco bónus com temas religiosos e de embalar em que o solo é mais privilegiado do que o coro. Este é o segundo registo discográfico do grupo coral feminino amador criado em 1979, no âmbito da Biblio-

teca Operária de Oeiras. O mais interessante neste coro, em que a idade média dos elementos ronda os 50 anos e integra professoras, médicas e bancárias, é a vontade de continuar a cantar em grupo após quase trinta anos em conjunto, com profissões para exercer, filhos para criar, problemas para resolver num dia a dia raramente propício a actividades extra-laborais. É um exemplo de associativismo e solidariedade, notável no compromisso com o sentimento presente nesta música. Estas canções foram forjadas no campo, ao passo que estas intérpretes são filhas da cultura e da rotina urbanas. Espanta-nos a forma como estas mulheres conseguem projectar a voz como se fossem camponesas a laborar. Prova disso são os concertos que desde já recomendo vivamente. Muitas vezes em círculo ou distribuídas por vários lugares de uma sala, as vozes atingem formas inesperados recriando um viver que muitos de nós esquecemos ou nunca conhecemos. Concertos têm sido muitos, assim como colaborações em peças de teatro de companhias como a Comuna, o Bando e o Teatro Ibérico; no cinema, em «Morte Macaca» de Jeanne Waltz ou partilhando o palco com outros músicos e agrupamentos como Uxia (Galiza), José Mário Branco, Donald Kachamba (Malawi), Duplex Longa, Danças Ocultas, Camané e Gaiteiros de Lisboa, só para citar alguns. Feliz este regresso das “cramolesas” em disco e a boa notícia de um próximo registo para breve. «Vozes de Nós» foi gravado em 2007 no Lagar de Azeite, em Oeiras, com produção e direcção musical de Eduardo Paes Mamede.

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«VOZES DE NÓS», CRAMOL 2007, EDITORA OCARINA


BEM-VINDOS AO CAPITALISMO DO DESASTRE LUÍS BRANCO

“HEY, GANHÁMOS O ESTADO! E O PODER ONDE está?”, ouvia-se nos corredores do governo sul-africano nos primeiros anos após a vitória do ANC. Lembrada neste livro por um assessor económico de Nelson Mandela, a pergunta serve para mostrar a força das redes que dominam o poder económico, militar e político sobre a vontade democrática de um povo, neste caso ao fim de décadas de luta contra o apartheid. Mas como cumprir a promessa de criar emprego se o próprio ANC assinara os acordos GATT, que abriram caminho à Organização Mundial do Comércio, e que proibia os subsídios para apoiar, por exemplo, a indústria automóvel e têxtil? Como aumentar salários e proporcionar água gratuita, electricidade, habitação decente, se os acordos assinados com o FMI e o Banco Mundial pelo anterior governo impediam essas despesas e incentivavam as privatizações? Como redistribuir a terra e a riqueza acumulada pela minoria branca durante o apartheid, se as negociações para a transição de regime foram, na parte económica, a melhor garantia de que o poder não iria mudar de mãos? Sete anos depois de No Logo, o livro publicado logo a seguir ao bloqueio de Seattle que se tornou no primeiro best-seller antiglobalização. a jornalista canadiana Naomi Klein está de volta com mais de 600 páginas em que se sucedem os episódios de escolhas políticas determinantes na história recente de vários países, todas totalmente fora do alcance do escrutínio democrático. The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism recua até ao pós-guerra, altura em que a política desenvolvi-

mentista dava cartas nos países do sul da América Latina e criava embaraços aos Estados Unidos. Na Universidade de Chicago, com o apoio das maiores empresas privadas dos EUA, Milton Friedman formava um departamento de economia com o objectivo de fazer a disputa ideológica em nome da liberdade absoluta dos mercados. O Chile foi o alvo escolhido para servir de balão de ensaio, e para isso passou anos a doutrinar as fornadas de futuros Chicago Boys, recém-chegados de Santiago com bolsas de estudo pagas. Regressariam à Universidade Católica de Santiago, cujo departamento de economia passou a ser uma extensão da escola de Friedman. Os doadores do programa - do governo federal às companhias com interesses a defender na zona - estavam apostados em formar os futuros líderes intelectuais dos assuntos económicos no Chile. Mas as suas propostas não resistiam à prova das urnas: nas eleições de 1970 os três maiores partidos chlenos defendiam a nacionalização das minas detidas por capital norte-americano, a maior riqueza do país. O resto da história é conhecida: os EUA não quiseram abrir a porta à mudança na América Latina, financiaram e apoiaram a extremadireita, o golpe militar que derrubou Allende e a ditadura de Pinochet. E os Chicago Boys escreveram o programa económico dos golpistas. Aqui se aplicava a doutrina de choque que dá o nome ao livro e à tese que defende: as privatizações em massa, a desregulação dos mercados e abertura total às exportações, os cortes na despesa pública e o fim de tudo o que possa obstaculizar o interesse económico privado,

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«THE SHOCK DOCTRINE: THE RISE OF DISASTER CAPITALISM» NAOMI KLEIN 2007, METROPOLITAN BOOKS 560 PÁGINAS, 12,50 EUROS NA AMAZON.COM


nada disto pode ser feito se não for acompanhado do choque físico que deixe a população aterrorizada e sem capacidade de reacção. Para Naomi Klein, “o segredo sujo da era neoliberal é que estas ideias [a democracia económica a par da política] nunca foram derrotadas numa grande batalha de ideias, nem sequer rejeitadas eleitoralmente. Elas foram afastadas do caminho através do choque em momentos políticos chave. Quando a resistência foi feroz, foi derrotada pela violência aberta – esmagada pelos tanques de Pinochet, Ieltsin e Deng Xiaoping”. Ao longo do livro acompanhamos sempre com grande detalhe outros exemplos, quase sempre colando excertos de declarações de intervenientes directos em cada processo, como o da resposta à crise da hiper-inflacção na Bolívia em 1985. Neste caso, foi um governo eleito, mas sem qualquer mandato para mudar a economia do país, que instaurou o estado de sítio durante três meses, literalmente raptando centenas de líderes políticos e sindicais, postos em prisões na selva enquanto as reformas eram implementadas. O protagonista da terapia de choque na Bolívia, Jeffrey Sachs, volta a aparecer na Polónia, apoiando a terapia de choque do Solidariedade em 1989, e na Rússia, pela mão de Ieltsin, dois anos mais tarde. Outras formas de impor a doutrina de choque são as guerras como a do Iraque, que é aqui analisada também do ponto de vista da sua “privatização”. Mas desastres naturais, como o tsunami no Sri Lanka ou o furacão Katrina que varreu Nova Orleães, são também momentos que o neoliberalismo aproveitou para levar adiante a sua política. No primeiro caso, as populações de muitas zonas à beira-mar ficaram à espera de apoios à reconstrução que nunca chegaram, e os seus terrenos em zonas paradisíacas foram ocupados por quem pagou mais. O

mesmo não se passou na Tailândia, onde as “reinvasões” das comunidades piscatórias, em vez de esperarem nos campos de refugiados por uma solução do governo, impediram que os tubarões do turismo se apropriassem dos terrenos onde viviam. No caso de Nova Orleães, duas semanas após os diques terem cedido e de todo o apoio federal ter falhado, já a Heritage Foundation apresentava um relatório com ideias “pró-mercado livre” para responder à situação. Como Friedman havia dito, o furacão tinha sido uma tragédia, “mas também uma oportunidade”. As ideias convergiam no discurso de tornar a cidade um centro de competitividade, afastando muitas das regras laborais, legais e fiscais então vigentes, e foram aprovadas na semana seguinte pelo presidente Bush. O que se passou neste regime de excepção com os contratos, desde o da remoção de cadáveres ao da reconstrução da cidade, passando pelo do apoio aos refugiados, tem alguns paralelos com o que se passa em Bagdade, a começar pela Halliburton a reconstruir as bases militares, a Blackwater a defender os funcionários da agência federal de gestão de emergências, e pela contratação por parte das grandes empresas de pessoas tão qualificadas como o antigo chefe do Gabinete de reconstrução do Iraque do exército americano. Naomi Klein utiliza também a metáfora da tortura para explicar a lógica da aplicação desta doutrina de choque. Ela recorre às experiências de electrochoques feitas pela CIA nos anos 50, com o objectivo de levar o prisioneiro a um estado de aceitação de tudo o que lhe é imposto. O livro defende a tese de que é isso mesmo que está a acontecer no mundo, o que lhe valeu imediatamente colagem da etiqueta de “teórica da conspiração”.

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Conspirações à parte, The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism é um livro indispensável para fazer a história da aplicação das políticas neoliberais e dos seus autores e executantes, que navegam entre as administrações do poder político e empresarial há mais de quarenta anos.

VEJA AQUI A CURTA-METRAGEM DE ALFONSO CUARÓN E NAOMI KLEIN SOBRE ESTE LIVRO


TURISMO INFINITO – PESSOA REVISITADO JOÃO TEIXEIRA LOPES

“SOU A CENA VIVA ONDE PASSAM VÁRIOS ACtores representando várias peças.”, escreveu Bernardo Soares. Eis um excelente mote para «lermos» a encenação de Turismo Infinito, a partir da construção dramatúrgica de António M. Feijó, num elenco que conta com João Reis, Emília Silvestre, Pedro Almendra, José Eduardo Silva e Luís Araújo. A peça desenrola-se segundo a lógica do hipertexto – cada poema ou naco de prosa sugere e suscita novo trecho, num vaivém constante entre os heterónimos e o próprio Fernando Pessoa, sem dispensar o olhar e a voz de Ofélia Queirós e do «ridículo» das cartas de amor. No final, a digressão parece incompleta, a obra em aberto. Talvez por isso o turismo seja sempre infinito; a digressão um eterno retorno; a deambulação uma fuga dentro do labirinto autopoiético do universo pessoano. O dispositivo cénico de Manuel Aires Mateus é propositadamente ambíguo. Uma primeira impressão poderá conduzir-nos à ideia de desmesura. Mas, no momento seguinte, não sem perplexidade, percebemos que há, simultaneamente, claustrofobia e fuga; um tentáculo que se fecha e um horizonte em expansão; uma teia e um voo. Será assim a vida? Será assim Lisboa, omnipresente na peça? A peça revela ainda o único heterónimo feminino de Fernando Pessoa. A pobre corcunda Maria José que escreve esta epístola: “Senhor António: O senhor nunca há de ver esta carta, nem eu a hei de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo

abafo (…) Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais. Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida. Aí tem e estou a chorar.” Ténues, pois, as fronteiras entre a arte e a vida. E esse é, talvez, um dos efeitos deste espectáculo de subtil, embora voraz, visualidade cénica: Fernando Pessoa, tal como Óscar Wilde ou Flaubert, ensaiou a proeza, de antemão condenada ao fracasso, de fazer da vida uma obra de arte. A peça traz-nos a beleza toda dessa incompletude.

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«TURISMO INFINITO», ENCENADO POR RICARDO PAIS, DISPOSITIVO CÉNICO DE MANUEL AIRES MATEUS COM JOÃO REIS, EMÍLIA SILVESTRE, PEDRO ALMENDRA, JOSÉ EDUARDO SILVA E LUÍS ARAÚJO


RISOS, LÁGRIMAS E KAFKA SARA ROCHA

“METAMORFOSES” MOSTRA-NOS A ENCENAção do perturbante texto de Kafka pela companhia Crinabel, cujo elenco é composto integralmente por pessoas portadoras de deficiência. Desde a exploração do texto à festa depois da estreia, o filme abandona-nos à observação, espectadores das relações do grupo e da forma como se desafiam os limites individuais, enquanto se cria uma peça em conjunto. Esta simplicidade de abordagem, deixa em aberto a multiplicidade de questões que o filme coloca, de acordo com a sensibilidade de quem vê. Num primeiro olhar são evidentes as questões de relacionamento entre os membros da companhia e as questões sociais associadas a um grupo deste tipo. Mas a presença de Kafka e a música embriagante que acompanha os momentos mais intensos do trabalho individual de alguns actores, levam-nos além do que é explícito. Por entre situações de trabalho e os momentos de quotidiano o filme levanos ao indivíduo, ainda que nada saibamos de cada actor ou actriz. A contradição entre as imagens que construímos e o que a realidade nos revela de nós próprios, está presente na maioria das pessoas. Estas revelações têm também um espelho social: a diferença entre o que supomos ser a sociedade, ou o nosso papel dentro dela, e o todo incompreensível que ela por vezes se revela. Kafka é exímio na exposição destes choques entre o indivíduo e as construções da sociedade. Os seus surrealismos são de base real, não onírica. O seu confronto entre a lógica do raciocínio e a lógica material prova

que o que é tangente nem sempre faz sentido, que as contradições do indivíduo são frequentemente mais sábias e válidas do que a aparente coerência de uma sociedade consolidada em processos pré-definidos e preconceitos. Na Metamorfose, o esforço do indivíduo para se adaptar à sua realidade e à relação com outros que o não compreendem é particularmente evidente. Por isso, a opção por esta peça é uma escolha audaz da companhia Crinabel. Não seria mesmo difícil esta encenação ser considerada “politicamente incorrecta” por quem tenha receio desta mistura entre os dilemas das personagens e a realidade dos actores e actrizes envolvidos, os quais são, obviamente, latentes. Mas é precisamente este realismo, que torna o trabalho da companhia tão interessante. Os encenadores não se limitam pelas características da companhia, pelo contrário: têm a consciência de podem retratar a visão kafkiana do mundo de uma forma muito expressiva e ousam fazê-lo. Também o trabalho com o elenco não é polido como se poderia esperar. É de uma frontalidade por vezes surpreendente. Independentemente do tipo de relação que a Crinabel tenha com os seus actores, é notório que a peça não é encarada por nenhuma das pessoas envolvidas como uma actividade para ocupar tempos livres. Desde o rigor com a interpretação, ao trabalho de cenografia e luzes, passando pelo expressivo desdobramento de Gregor Sampsa em duas personagens, nada é deixado ao acaso.

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«METAMORFOSES», BRUNO CABRAL

Por outro lado, é inevitável considerar o papel das instituições neste contexto. A Crinabel não surge no filme propriamente como um espaço de apoio. Surge como um local de trabalho. O trabalho é determinante no desenvolvimento de qualquer pessoa. É nele que encontramos o nosso espaço, é ele que nos proporciona os meios para sermos independentes, tomarmos decisões e fazermos planos para o futuro. É um dos contextos em que mais nos confrontamos com os ditos dilemas entre as nossas limitações e as relações rotineiras com companheiros que não escolhemos. A importância do trabalho e de trabalhar é cada vez mais negligenciada na sociedade actual e


tem sido praticamente esquecida, provavelmente desde sempre, no caso das pessoas com deficiência. Criar as condições para proporcionar às pessoas com deficiência a possibilidade de explorar a sua capacidade de trabalho é porventura a melhor forma de inclusão e de geração de alguma autonomia. Isto para não falar da auto-confiança que é visível sobretudo nos membros mais “veteranos” da companhia Crinabel. É por isso que Metamorfoses nos mostra estas pessoas de um modo descomplexado: não como centros de redes de apoio, institucionais ou pessoais, mas como pessoas adultas, autónomas nas suas relações e conscientes na forma como trabalham as suas circunstâncias, da mesma forma que o faz qualquer pessoa que não tenha uma deficiência. Mostra-nos as pessoas além dos corpos. Metamorfoses é um filme comovente mas não paternalista, com alguns momentos difíceis de esquecer. A visita da velha amiga... A actriz que teve uma vida profissional independente durante um período de tempo e que conhece o seu destino na gravação do último episódio... A alegria contagiante da festa depois da estreia... O violino que acompanha o movimento quebrado de corpo que exprime melhor os constrangimentos do senhor Sampsa do que qualquer palavra...

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IMAGENS ENSAIO GERAL

IMAGENS CONTRATEMPOS

ZACH STERN

LA MARGA OSCAR WILDE MONUMENT IN DUBLIN

(DON’T RUN DEEP) STILL WATERS. REFLECT TREES

JUSTIN HALL HAPPY EASTER FROM THE SUPERMARKET

RUTH “HISTORY IS WRITTEN BY THE WINNER”

BAS DE REUVER WORK, BUY, CONSUME, DIE

MORRISEY (FOTO ORIGINAL NA REVISTA SMASH HITS, JULHO 1984)

MARIANO GRUEIRO CABECEIRA ENTRANDO NO OBRADOIRO #1

MARK MEINEMA OBJETDECULTE005 (50 ANOS DO CITROËN DS/ID, ORGANIZADO PELO DUTCH CITROENDS/ID-CLUB)

(BOOMERANG CARD)

(MANIFESTAÇÃO DE 1/12/2002 EM SANTIAGO DE COMPOSTELA, SEMANAS DEPOIS DO DESASTRE ECOLÓGICO COM O PETROLEIRO PRESTIGE, CONVOCADA PELA PLATAFORMA NUNCA MAIS)

SILVIU CHE

ANDREW BECRAFT KARL MARX IMAGENS RAPSÓDIA JWGREEN TURNTABLE

IMAGENS A MÃO VISÍVEL SHORTIE66 AID? EL B COMÉRCIO LIVRE

IMAGEM CAPA

IMAGENS CIDADES INVISÍVEIS

FRED WALK SIGN

ARI MOORE WOMAN LOOKING UP AND DOWN JOE RUSSO WHAT YOU LOOKIN’ AT? MUSHI LESBIAN ROMANCE

WWW.ESQUERDA.NET/VIRUS REVISTA VÍRUS FEV/MAR 2008 #1 DIRECÇÃO JOÃO TEIXEIRA LOPES EDIÇÃO GRÁFICA LUÍS BRANCO CONSELHO EDITORIAL ANA DRAGO | ANDREA PENICHE | JORGE COSTA | JOSÉ SOEIRO | MANUEL DENIZ MARIANA AVELÃS | NUNO TELES | PEDRO SALES | RITA SILVA | RUI BORGES COLABORARAM NESTE NÚMERO ANA BRANDÃO | FRANCISCO LOUÇÃ | MICHAEL LÖWY RICARDO PAES MAMEDE | RITA CALVÁRIO | SANDY GAGEIRO | SARA ROCHA VÍRUS FEV/MAR 2008

[55] FICHA TÉCNICA


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