Revista Vírus #2

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VÍRUS #2 — ABRIL/MAIO 2008

RITA CALVÁRIO PORQUE NÃO VÃO OS BIOCOMBUSTÍVEIS SALVAR O PLANETA NUNO TELES E GUSTAVO SUGAHARA PRIVATIZAÇÕES: O INSUSTENTÁVEL PESO DO SEU SER JOÃO ROMÃO TRABALHO E CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO: PRECARIEDADE GLOBAL MANUEL DENIZ SILVA AS HERANÇAS DE MAIO RUI BORGES O NOVO SÉCULO AMERICANO FRANCISCO LOUÇÃ HOLLOWAY CONTRA O DIREITO AO EMPREGO + MÚSICA LEITURAS


AS VIAS DE SENTIDO ÚNICO

EDITORIAL | JOÃO TEIXEIRA LOPES

1. UM POUCO POR TODA A EUROPA VÃO GAnhando protagonismo e peso político os partidos da chamada «esquerda alternativa», a «esquerda da esquerda», aproveitando, em boa medida, a desilusão com os arcos rotativos de governabilidade que, ao resolverem com maior ou menor sucesso a «crise orçamental», agravaram, ainda mais, a fractura e a dualização sociais. Na verdade, estes partidos almejam responder à ruptura do contrato social subjacente ao fim do Estado-providência, pelo menos tal como o conhecíamos durante os «trinta gloriosos», no período que medeia entre a Segunda Guerra Mundial e meados dos anos setenta (choques petrolíferos; subida de Thatcher ao poder em 1979 e logo a seguir de Reagan; queda do bloco soviético em 89 e fim da ordem mundial bipolar). Possuem em comum, boa parte destes partidos, uma herança de «extrema-esquerda», tradições libertárias e cosmovisões anticapitalistas. De uma forma ou de outra pretendem uma refundação da esquerda radical.

No entanto, estamos muito longe de uniformidade quer na génese, quer na evolução destes partidos, o que se reflecte, necessariamente, em movimentos tácticos e rumos estratégicos diferenciados. Alguns entre eles convivem ainda mal com a superação de todas as formas de totalitarismo; outros tropeçam, aqui e ali, em atavismos quanto aos costumes e liberdades individuais, outros, ainda, permanecem ligados a uma perspectiva estritamente nacionalista da política. Mesmo no modo como entendem os processos de dominação tende-se a privilegiar uma determinada «centralidade» (a da produção e do trabalho ou a da reprodução e das identidades e estilos de vida) ou, ao invés, a considerá-la multiforme e plena de mediações e sobredeterminações. Pensar que são todos iguais e que constituem uma «espécie» na genealogia da esquerda europeia e mundial é um erro crasso. Aliás, todos os modelos evolucionistas partilham deste pecado original: a terrível tendência de consagrar uma ordem universal unilinear

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de progresso ou movimento, de estados inferiores para estados superiores segundo um padrão pré-definido e imposto de fora. Caem neste erro inúmeros «analistas» políticos, não raro prestando uma homenagem às suas disposições ideológicas mais profundas. Pedro Magalhães, por exemplo, em recente artigo no Público, surpreende-se pelo facto do Bloco de Esquerda não ter feito o seu trabalho de casa em relação ao dito arco da governabilidade, correndo o risco de uma descida ao Inferno consubstanciada na «perspectiva de um futuro de eterno combate na oposição». Antes, o autor caracteriza o ideal-tipo de partido (a «gaveta» ou estereótipo analítico...) em que o Bloco se encaixa: «esquerda libertária» + valores pós-materialistas + horizontalidade no processo de tomada de decisões + ligação aos movimentos sociais + «desconfiança ideológica intrínseca (...) em relação à forma como é conduzida a actividade partidária convencional» + recrutamento de militan-


tes e eleitores nas novas classes médias urbanas. Uma espécie de receita que torna, diz Pedro Magalhães, estes partidos «atraentes». Talvez sem se aperceber, ao traçar a caricatura, o autor «arruma» o Bloco de Esquerda no seu estado original numa espécie de partido sexy, em que a estética se sobrepõe à ética e à política. Um enfeite ou adorno pós-modernos... Entretanto, ao analisar a evolução do partido, o autor traça um balanço negro, colocando no lado bom da balança «as mudanças nos estatutos» que supostamente hierarquizaram e centralizaram o poder interno e a aquisição de experiência parlamentar, juntamente com o acordo autárquico pós-eleitoral em Lisboa. Do lado mau da balança pesa a oposição aos «desvios neoliberais do Governo PS» e um retorno a «temáticas tradicionais». Logo, só resta o dilema e o impasse: «como pode o Bloco conciliar as denúncias da falta de transparência e corrupção com a aproximação ao poder?». O autor parece querer dar um empurrãozinho para o lado certo, não sem trair uma visão unidimensional e conservadora do exercício e da constituição do poder. Que se procure uma aproximação à heterogénea composição das camadas populares portuguesas ou que se abordem novas dimensões de temas imemoriais (como a precariedade e a generalização das formas atípicas de trabalho) parece um desvio no sentido errado. Uma vez mais, lá reaparecem as vias de sentido único. As tais onde Bertinotti se estampou, depois de participar activamente num Governo que apoiou a guerra do Império no Afeganistão, a presença na NATO, as receitas dogmáticas neoliberais e a manutenção do papel de sempre na Itália no mundo capitalista, inclusive nas nefastas políticas de imigração.

2. Em Abril um novo número da Vírus. Depois de mais de sete mil downloads aumenta o desafio. Desta feita, Rita Calvário fala de Biocombustíveis, considerando-os uma falsa alternativa aos combustíveis fósseis. Para além de concorrer para a destruição da biodiversidade e acelerar a desflorestação, este tipo de produção energética é em parte responsável pelo brutal aumento dos preços alimentícios a que temos assistido. João Romão, por seu lado, debate a reorganização do sistema capitalista sob a égide do neoliberalismo, originando uma nova tessitura do sistema internacional baseada na desregulação, liberalização e desregulação, e alicerçando-se numa nova organização do trabalho onde a precariedade é lei, no retrocesso dos direitos sociais e na manutenção das desigualdades norte-sul. Nuno Teles ataca os teóricos da economia ortodoxa desmontando a tese de uma maior eficácia do privado sobre o público, já que a apreciação histórica revela-nos a falibilidade do enunciado. Na verdade, as ondas de privatizações têm servido, fundamentalmente, para a acumulação de capital e para olear «financeiramente» a engrenagem do actual estádio do capitalismo. Sucessivas delapidações dos sectores públicos em nada beneficiam, por conseguinte, a democracia social. Rui Borges aborda o «novo século americano», analisando a estratégia dos candidatos democratas, tanto a de Clinton como a de Obama, descortinando ténues linhas de distinção face aos neocons e à administração Bush uma vez que, apesar de tácticas diferentes, permanecem os fins: garantir o controle da região mediolevantina de forma a retardar o declínio dos EUA como ventre do Império. Enquanto isso, cinco anos depois da invasão e ocupação do Iraque, a destruição e o caos reinam.

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Como já cheira a Maio, Manuel Deniz fala-nos das heranças desse mítico mês, defendendo uma revisitação de Maio de 68 que não seja estética ou nostálgica mas sim concreta e objectiva: a irrupção das vozes e dos rostos dos excluídos do sistema. Quando Sarkozy diz querer enterrar de uma vez por todas o espírito de Maio é a hipótese de democracia plena, a «hipótese comunista», o que o arauto do conservadorismo pretende de facto enterrar. A pretexto, precisamente, de um colóquio sobre o Maio de 68 promovido pela edição portuguesa do Monde Diplomatique, John Holloway criticou severamente um cartaz que o Bloco de Esquerda espalhou pelo país. Neste número da Vírus, Francisco Louçã contra-ataca, desocultando as matrizes ideológicas do pensamento de Holloway, particularmente a sua adesão às teses utópicas de Proudhon. Louçã polemiza ao considerar as propostas do professor de sociologia na Universidade de Puebla, no México, uma fuga cínica ao combate social e político. 3. Abril e Maio de 2008. O tempo e o modo das novas questões. Que não nos faltem a imaginação e a fúria.


NSAIO GERAL

PORQUE NÃO VÃO OS

BIOCOMBUSTÍVEIS RITA CALVÁRIO

SALVAR O PLANETA

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PORQUE NÃO VÃO OS BIOCOMBUSTÍVEIS SALVAR O PLANETA RITA CALVÁRIO | ENGENHEIRA AGRÓNOMA

A QUEIMA DE COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS PARA a produção de energia (electricidade, indústria e transportes) é a principal causa apontada para o aquecimento global e as alterações climáticas. Em média, cerca de 75% das emissões de CO2 nos últimos 20 anos resultaram da combustão de combustíveis fósseis. O último relatório da Agência Internacional de Energia (IEA, 2004) aponta que as emissões globais anuais de CO2 para a atmosfera vão aumentar 60% até 2030 se não houver mudanças significativas nas políticas energéticas. Actualmente, o sector dos transportes é responsável por 21% das emissões globais de gases de efeito de estufa (GEE), e as projecções não são animadoras: a procura internacional de transporte de mercadorias pode triplicar até 2050 e aumentar 131% no transporte de passageiros. Ao mesmo tempo, as emissões no sector aumentarão 125%. O consumo final de energia no sector é de 31% hoje e deverá aumentar 20% na próxima década. A escalada de preço do petróleo e restantes combustíveis fósseis, por esgotamento das reservas mundiais e instabilidade política dos países produtores, a par da problemática das alterações climáticas, tem motivado a procura de alternativas energéticas. Os agrocombustíveis, anunciados como uma energia renovável, surgem como uma solução de primeira linha para substituir o exponencial consumo de combustíveis fósseis e as emis-

sões de gases de efeito de estufa no sector dos transportes. A UE e os EUA lideram este processo, tendo estabelecido metas ambiciosas que têm levado à produção dos biocombustíveis a uma escala industrial. São, no entanto, muitos os estudos, organizações e especialistas que têm vindo a alertar para os riscos e perigos da expansão dos agrocombustíveis. Já hoje se podem observar os impactos negativos (directos e indirectos) desta opção, os quais são tanto ambientais como sociais: desflorestação, perda de biodiversidade, substituição da produção agrícola alimentar, contributo para o aumento dos preços e esgotamento das reservas alimentares, conflitos pela terra, trabalho escravo e sem direitos, perda de segurança e soberania alimentar, aumento da pobreza e exclusão social... Estes impactos colocam em causa os pretensos benefícios dos agrocombustíveis na substituição dos combustíveis fósseis, quer no combate às alterações climáticas, na redução da dependência energética do exterior ou na garantia da segurança do abastecimento de energia. Para além disso, agravam de forma extrema a crise alimentar mundial, afectando os mais pobres e vulneráveis. AGRAVAMENTO DA CRISE ALIMENTAR

«Com ou sem agrocarburantes, o mundo será confrontado com esta penúria [de alimentos]», assegura um especialista da OCDE. Até 2030, os especialistas estimam que um aumento de 50% da produção alimentar será neces-

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sária para responder ao crescimento demográfico. Ou seja, é necessário dedicar mais terra arável, um recurso escasso, à produção alimentar. No encerramento do encontro da Primavera entre o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), a 11 de Abril de 2008, os presidentes destas instituições acusaram os biocombustíveis de ser a principal causa para o aumento do preço de alimentos básicos. De acordo com o relatório do BM «Rising Food Prices: Policy Options and World Bank Responses», publicado a 9 de Abril de 2008, o aumento do preço global do trigo atingiu os 181% nos últimos 3 anos, e o preço global dos alimentos aumentou 83%. No final de Março 2008 o preço do trigo e arroz era o dobro dos níveis do ano passado, enquanto o de milho era 1/3 maior, avisou a FAO no seu último relatório «Crop Prospects and Food Situation», publicado a 11 de Abril de 2008. «O trigo, o leite e a manteiga triplicaram o seu preço desde 2000 e o frango, o arroz e o milho custam o dobro», comenta, no início de 2008, o director do Instituto Internacional para a Investigação das Políticas de Alimentação (IFPRI). O crescimento económico geral, especialmente na Índia e China, supõe um aumento da procura de alimentos, a que se soma a conversão dos cultivos para produzir combustíveis: «O destinado ao consumo humano ou animal aumentou entre 4% a 7% desde 2000, o de biofuel


aumentou 25%, com especuladores financeiros pelo meio que causam maior volatibilidade dos preços». O FMI assegura que os biocombustíveis contribuiram para quase metade do aumento da procura alimentar, o que afectou o preço de um conjunto de matérias-primas. Em Julho de 2007, o relatório «OECD-FAO Agricultural Outlook 2007-2016», divulgado pela FAO (ONU) e pela OCDE, adverte que a procura crescente dos agrocombustíveis está a gerar alterações decisivas nos mercados agrícolas que podem conduzir a uma pressão para o aumento dos preços de muitos produtos agrícolas e dos bens alimentares no longo prazo. De acordo com o relatório, além de algumas tendências já em curso – decréscimo nos excedentes para semente e a redução progressiva dos subsídios à exportação\\, o factor de mudança mais importante decorre da utilização crescente de cereais, oleaginosas e vegetais na produção de agrocombustíveis (etanol e biodiesel), apontando para aumentos de preço entre 20 e 50% em alguns produtos agrícolas nos mercados internacionais ao longo dos próximos 10 anos. Um relatório publicado pelo Fundo Monetário Internacional em Outubro de 2007 refere que «o aumento dos preços dos alimentos reflecte uma combinação de factores. Uma maior procura de agrocombustíveis nos Estados Unidos e na União Europeia não só levou ao aumento dos preços do milho e da soja, como também resultou no aumento dos preços das culturas de substituição e da alimentação animal ao providenciar incentivos» para os agrocombustíveis que substituíram outros cultivos. Afirmou ainda que «até ao desenvolvimento de novas tecnologias, utilizar alimentos para produzir agrocombustíveis pode constranger ainda mais as já escassas reservas de terra arável e água em todo o

mundo, o que vai puxar os preços dos alimentos ainda mais para cima.». O relatório «Sustainable Bioenergy: A Framework for Decision Makers» (Maio 2007), já tinha chegado à mesma conclusão dizendo que a disponibilidade de uma adequada oferta de alimentos pode ser ameaçada pela produção de agrocombustíveis, se os recursos terra, água e outros forem desviados da produção alimentar. Por isso, o acesso aos alimentos pode ficar comprometido por preços mais elevados dos alimentos básicos resultantes do aumento da procura de reservas alimentares para a bioenergia, conduzindo os pobres e os que sofrem de insegurança alimentar para uma pobreza ainda maior. O relator especial da ONU para o direito à alimentação, Jean Ziegler, propôs à Assembleia Geral da ONU, em Dezembro de 2007, a aplicação de uma moratória de 5 anos à produção de agrocombustíveis para combater o aumento do preço dos alimentos, o que está a afectar os países e comunidades mais pobres. Numa entrevista recente (Dezembro de 2007, ao jornal El País), afirmou ser necessário «uma moratória de 5 anos sobre a produção de biocarburantes para se poder controlar a subida de preços. Para obter 50 litros de biocarburante são precisos 200 quilos de milho. Com essa quantidade pode alimentar-se uma criança durante 1 ano. Os biocarburantes devem produzir-se a partir de matéria vegetal não alimentícia, e não a partir de cultivos para o consumo humano. Destinar 26 milhões de hectares à sua produção é um crime contra a humanidade.». Especialistas do IFPRI, por ocasião da apresentação do seu relatório anual (4 de Dezembro de 2007), apelaram para a desaceleração mundial do desenvolvimento de agrocombustíveis, devido ao exponencial

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aumento dos preços dos cereais e oleaginosas, os quais vão afectar os mais pobres e desfavorecidos. «Os preços dos alimentos aumentaram nos últimos meses como nunca em 30 anos, atingindo em cheio os mais desfavorecidos», destacou o director-geral. O Programa Mundial de Alimentos da ONU veio alertar em Fevereiro de 2008 que, para assegurar um mínimo vital a 73 milhões de pessoas que dependem do seu programa de assistência, deverá desembolsar em 2008 pelo menos 30% mais do que no ano passado, ou seja, cerca de 500 milhões de dólares suplementares. Avisa ainda que 33 países na Ásia e África enfrentam uma forte instabilidade devido ao alastramento da fome nas zonas urbanas. Já o jornal britânico Financial Times advertia, em editorial de 25 Fevereiro de 2008, que o progresso alcançado entre 1990 e 2005 no combate à fome, principalmente entre as crianças, está ameaçado pela alta do preço dos alimentos, impulsionada, entre outros factores, pelos subsídios pagos à produção de agrocombustível. Afirma que muitos dos factores que provocaram a alta dos alimentos são temporários, «mas a maior mudança estrutural são os agrocombustíveis. No espaço de alguns anos, os Estados Unidos destinaram cerca de 40 mil toneladas de milho para a produção de bioetanol – cerca de 4% da produção global de grãos. Este rápido crescimento é em grande parte resultado dos subsídios, que têm que ser cortados». Refere ainda que «os benefícios ambientais do bioetanol de milho são ambíguos, na melhor das hipóteses, e não deveriam ser favorecidos em detrimento da plantação de milho para fins alimentares» e que «é nos países pobres, no entanto, que os efeitos são mais graves: o custo da comida pode ser frequentemente contado em vidas humanas.».


A DESFLORESTAÇÃO PARA O CULTIVO DO MILHO OU DA CANA-DE-AÇÚCAR, A PARTIR DOS QUAIS SE PRODUZ ETANOL, OU AINDA DA SOJA PARA BIODIESEL, SÃO RESPONSÁVEIS POR VOLUMES DE EMISSÕES 17 A 420 VEZES MAIORES QUE A REDUÇÃO ANUAL RESULTANTE DA SUBSTITUIÇÃO DE COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS POR AGROCOMBUSTÍVEIS. VÍRUS ABR/MAIO 2008

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No início de Março de 2008, a directora do PAM referiu, numa audição com os eurodeputados, que muitas explorações agrícolas estão a deixar de produzir alimentos para passar a produzir agrocombustíveis, o que está a levar a que os preços dos alimentos atinjam um tal preço que «por exemplo, o óleo de palma em África atingiu o mesmo nível do preço do combustível». Referiu ainda que «isso até pode ser um bom negócio para os agricultores. Mas a curto prazo, os mais pobres do planeta serão gravemente afectados», porque as culturas destinadas aos agrocombustíveis tendem a substituir aquelas destinadas à alimentação humana. «É a nova cara da fome», assinalou, «há comida nos supermercados, mas as pessoas não podem comprá-la. Há vulnerabilidade nas áreas urbanas que não havíamos visto antes e revoltas em países como nunca se havia produzido». Alertou, em 11 de Abril de 2008, o presidente do BM que o aumento dos alimentos em poucos meses fez retroceder em 7 anos a luta contra a pobreza no mundo, ameaçando mergulhar ainda mais na pobreza 100 milhões de pessoas. Desde Janeiro de 2007 que os protestos e marchas da fome sucedem-se nos países perante o desespero. Primeiro foi o México devido ao aumento em 400% do preço do milho, alimento base da população. Mais recentemente, no Egipto devido à duplicação do preço dos alimentos num ano. No Haiti, provocando 4 mortes e a queda do Governo. Nos Camarões, Costa do Marfim, Senegal, Burkina Faso, Etiópia, Madagáscar, Mauritânia, Moçambique, Uzbequistão, Bolívia, Indonésia, Filipinas, Paquistão, Tailândia, Índia, Yemen, são alguns dos países que assistiram a marchas de fome que acabaram em centenas de detenções e dezenas de mortos. Vários países desencadearam mecanismos para tentar conter a crise alimentar e os distúrbios sociais. Por

exemplo, o Egipto incluiu 10 milhões de novas pessoas na sua rede de assistência social; a Rússia congelou os preços do leite, ovos, azeite e pão; o Afeganistão pediu ajuda ao Programa de Alimentos da ONU para incluir mais 2 milhões e meio de pessoas; os cartões de racionamento voltaram a ver-se no Paquistão, onde tinham sido extintos nos anos 80; a Índia proibiu a exportação de arroz. Esta crise tende a agravar-se e vai ter efeitos devastadores no médio e longo prazo. Basta referir que com as alterações do clima o panorama da crise alimentar é devastador: «As inundações e secas supõem uma perda de colheitas, sobretudo na África; em 2020 o produto interno bruto global da agricultura sofrerá perdas até 16%; um aumento de temperaturas de 3ºC corresponde a um aumento de preços dos alimentos até 40%; muitos países em vias de desenvolvimento dependerão mais das importações», referiu o director do IFPRI. A expansão à larga escala de agrocombustíveis neste contexto não é razoável. No entanto, cerca de 50 países já adoptaram dispositivos de incentivo aos agrocombustíveis para cumprir objectivos muito ambiciosos: por exemplo, a UE de 10% até 2020; os EUA de 5% até 2012, a China de 15% até 2010... De acordo com o estudo da OCDE «Agricultural Market Impacts of Future Growth in the Production of Biofuels» (Fevereiro de 2006), só o compromisso europeu suporia a conversão de 72% das suas terras cultivadas, o que significa a sua dependência de importações de agrocombustível e/ou matéria-prima dos países mais pobres. A aposta nos agrocombustíveis está a abrir novas expectativas nos países do Sul, mesmo com o agravamento da crise alimentar e dos distúrbios sociais. O

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Senegal, por exemplo, vai criar um ministério especialmente consagrado aos agrocombustíveis, apesar de o país sofrer de um deficit crónico ao nível alimentar. Os membros do African Biodiversity Network (ABN), que agrupa diferentes organizações de investigação, pediram uma moratória nos novos projectos para a produção de biofuel nos países do continente. Consideram que são mais uma ameaça que um benefício: «Teremos de proteger a segurança alimentar, os bosques, a água, os direitos de propriedade da terra, os pequenos agricultores e os povos indígenas da campanha agressiva dos projectos de biofuel». Esta organização deita por terra a crença de que o biofuel será positivo para o crescimento económico, dará trabalho e prosperidade aos agricultores africanos e ajudará a lutar contra as alterações climáticas. Os seus responsáveis explicam que o aumento do preço dos alimentos que se experimenta globalmente também é, em parte, responsabilidade deste tipo de cultivos. Henk Hobbelink, coordenador de uma associação integrada na ABN, adverte para o que ocorre com muitos projectos: os investidores ocupam grandes extensões de terra que antes haviam sido utilizadas pelos camponeses para os seus gados ou com bosques ou áreas de valor natural. «Além da desflorestação, a abertura de terras não trabalhadas também supõe uma libertação de grandes quantidades de CO2». O secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, apelou em Abril de 2008 a uma revisão da política sobre agrocombustíveis devido à crise global dos preços dos produtos alimentares ameaçar gerar uma instabilidade global. «Nós temos de nos preocupar sobre o facto da possibilidade de se tirar terra ou substituir terra arável devido aos agrocombustíveis», referiu.


MAIS EMISSÕES E IMPACTOS AMBIENTAIS

De acordo com dois estudos publicados na revista Science, a desflorestação para o cultivo do milho ou da cana-de-açúcar, a partir dos quais se produz etanol, ou ainda da soja para biodiesel, é responsável por volumes de emissões 17 a 420 vezes maiores que a redução anual resultante da substituição de combustíveis fósseis por agrocombustíveis. Por exemplo, na Indonésia, onde as turfeiras foram derrubadas para cultivar palmeiras de óleo a fim de produzir biodiesel, seriam necessários 423 anos antes que este agrocombustível tivesse uma contribuição positiva na redução das emissões de CO2. Segundo dados divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) em 23 de Janeiro de 2008, foram desmatados cerca de 7.000 km2 da floresta amazónica brasileira nos últimos cinco meses de 2007. Este número, que representa um aumento vertiginoso no ritmo de desflorestação, foi atribuído pelas autoridades brasileiras, entre outros motivos, ao aumento do cultivo da soja nalgumas regiões. Um estudo publicado em 2008 por cientistas norte-americanos explica a relação com os agrocombustíveis: o forte aumento da procura de etanol de milho nos Estados Unidos leva a que os agricultores dos EUA deixem de alternar os cultivos de milho com os de soja, o que leva à produção de mais soja no Brasil, afectando as florestas virgens da Amazónia, para satisfazer a procura mundial e também para a produção de biodiesel. «Se nós estamos a tentar limitar o aquecimento global, é um absurdo desflorestar para produzir agrocombustíveis», afirmou um dos autores deste estudo. Além disso, têm-se registado graves atentados contra os direitos humanos em plantações de canade-açúcar, óleo de palma e soja no Brasil, Argentina,

Paraguai, Colômbia e Sudoeste Asiático, havendo casos de escravidão, salários de miséria, condições de trabalho degradantes, conflitos violentos pela terra, mortes e graves problemas de saúde devido à utilização de agroquímicos e à desflorestação. Como exemplifica o relatório da Friends of the Earth «Losing Ground», o aumento da produção de óleo de palma para produção de agrocombustíveis está a causar uma catástrofe humanitária em muitas regiões da Indonésia, pois para que seja possível expandir a área de cultivo de óleo de palma, grupos armados invadem florestas, expulsando os habitantes à força. Um artigo publicado a 4 de Janeiro de 2008 na revista Science, a partir de um estudo encomendado pelo governo suíço ao Smithsonian Tropical Research Institute do Panamá, alerta para o facto dos agrocombustíveis feitos de milho, cana-de-açúcar e soja poderem ter um impacto ambiental maior que a queima dos combustíveis fósseis. A pesquisa revela que, apesar dos agrocombustíveis em si emitirem menos gases de efeito de estufa, eles têm custos mais elevados em termos de biodiversidade e destruição de terras agrícolas. O investigador concluiu que a produção de etanol de cana-de-açúcar tem ocupado extensas áreas agrícolas, o que agrava a produção e preço dos cereais, reflectindo-se no preço final da alimentação animal e humana. O documento «Sustainable Bioenergy: A Framework for Decision Makers» (Maio 2007), preparado por todos os grupos da ONU que trabalham na área da energia e patrocinado pela FAO, refere que «os impactos económicos, ambientais e sociais do desenvolvimento da bioenergia devem ser analisados com cuidado antes de se tomarem decisões sobre se e quão rápido se deve desenvolver a indústria

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e quais as tecnologias, políticas e investimentos estratégicos a adoptar». Afirma ainda que «sem que novas políticas sejam activadas para proteger as terras ameaçadas, assegurar o uso socialmente aceitável da terra e promover o desenvolvimento sustentável da bioenergia no seu todo, os prejuízos ambientais e sociais podem nalguns casos ultrapassar os benefícios.». «Em geral, culturas que requerem elevados inputs de energia fóssil (como o fertilizante comum) e terra (agrícola) valiosa, e que têm rendimentos de energia por hectare relativamente baixos, devem ser evitados», refere. Este relatório acrescenta que mesmo as culturas energéticas produzidas sustentadamente podem ter impactos negativos se substituem florestas primárias, «resultando na libertação de muito carbono do solo e biomassa florestal que nega quaisquer benefícios dos agrocombustíveis por décadas». POLÍTICA EUROPEIA

Em 2003 a Comissão Europeia lançou a Directiva 2003/30/CE, de 8 de Maio, para promover o uso de biocombustíveis nos transportes, estabelecendo uma meta de incorporação de 5,75% até 2010 para cada Estado-Membro. Em 23 de Janeiro de 2008 a Comissão Europeia lançou uma proposta de directiva para a promoção do uso de energia proveniente de fontes renováveis, confirmando o objectivo anunciado anteriormente de incorporação de 10% de biocombustíveis até 2020 para cada Estado-Membro. Em virtude de vários estudos e relatórios publicados, as instituições da União Europeia admitiram que o impacto ambiental e social da produção de biocombustíveis poderia ser maior que o inicialmente pensado, o que levou à adopção de critérios de sustentabilidade para o cumprimento desta meta.


RELATIVAMENTE ÀS EMISSÕES DE GASES DE EFEITO DE ESTUFA RELACIONADAS COM O SECTOR DOS TRANSPORTES, PORTUGAL APRESENTA O 5º PIOR RESULTADO DA UNIÃO EUROPEIA A 27, COM UM AUMENTO DE 96% ENTRE 1990 E 2005 VÍRUS ABR/MAIO 2008

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Apesar da introdução de critérios de sustentabilidade mostrar um avanço substancial perante a anterior política europeia sobre os biocombustíveis, ela tem sido alvo de fortes críticas. Em particular, porque: a obrigatoriedade de poupança de 35% de GEE em relação aos combustíveis fósseis é considerada insuficiente e não é assente numa análise de ciclo de vida correcta (as ONGs internacionais propõem uma meta de pelo menos 50 a 60%); mesmo prevenindo a plantação em áreas de elevada biodiversidade (áreas protegidas, áreas florestais sem actividade humana e pastagens permanentes) ou de altas reservas de carbono (zonas húmidas e áreas florestais específicas), esta prevenção é apenas válida para alterações de uso de solo realizadas após Janeiro de 2008, e deixa desprotegidos ecossistemas e recursos importantes (como as savanas e os recursos água e solo); além disso, não inclui critérios sociais, como é o caso das condições laborais ou a forma de acesso à terra para as plantações, nem considera os efeitos indirectos da produção em larga escala, como o aumento do preço dos bens alimentares. Como expressa bem a opinião de George Monbiot, de 12 de Fevereiro de 2008, «para ser justo com a Comissão, foi agora reconhecido que os biocombustíveis não são a panaceia verde. A sua proposta de directiva estabelece regras para que eles não sejam produzidos pela destruição de florestas primárias, pastagens antigas ou zonas húmidas, uma vez que isto poderia aumentar as emissões líquidas de gases de efeito de estufa. Nem nenhum ecossistema rico em biodiversidade pode ser danificado para os fazer crescer. Parece bom, mas há três problemas. Se os agrocombustíveis não podem ser produzidos em habitats virgens, eles devem ser confinados à terra agrícola actualmente existente, o que significa que todas

O PARLAMENTO EUROPEU CONSIDERA QUE A META DE SE ATINGIR UM MÍNIMO DE INCORPORAÇÃO DE 10% DE BIOCOMBUSTÍVEIS ATÉ 2020 DEVERIA SER REMOVIDA, UMA VEZ QUE É SUFICIENTE A META JÁ ESTABELECIDA PELA COMISSÃO DE REDUÇÃO DE 10% DAS EMISSÕES DE GEE ATÉ 2020 POR MELHORIA DA EFICIÊNCIA DOS COMBUSTÍVEIS.

as vezes que abastecemos o carro estamos a tirar comida da boca das pessoas. Isto, por sua vez, aumenta o preço dos alimentos, o que encoraja os agricultores a destruir os habitats – florestas primárias, pastagens antigas, zonas húmidas e o resto – para fazer crescer alimentos. Podemos congratular-nos por permanecermos moralmente puros, mas os impactos são os mesmos. Não há saída disto: num planeta finito com reservas de alimentos apertadas ou se compete com os esfomeados ou se limpa novas terras». A meta comunitária tem sido sujeita a intensas críticas, inclusive dos próprios organismos científicos afectos à UE. O próprio Comissário de Ambiente Stavros Dimas admitiu, no início de Janeiro de 2008, que seria melhor alterar a meta proposta de 10% até 2020 se o seu cumprimento significasse impactos negativos sobre os pobres e o ambiente, referindo a necessidade de critérios de sustentabilidade sociais e ambientais. Em Janeiro de 2008, o Joint Research Council questiona esta meta no relatório «Biofuels in the European Context», indicando que esta política requer enormes necessidades de terra fora da Europa, poderá ter um custo líquido até 65 mil milhões de euros, e coloca ainda

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em dúvida se haverá alguma poupança de gases de efeito de estufa: «mostra-se que a meta de 10% para os biocombustíveis nos transportes pode até minar o objectivo geral da U.E. para as energias renováveis, uma vez que força à utilização da biomassa de uma forma ineficiente». Já em Abril de 2008, o comité científico da Agência Europeia de Ambiente veio recomendar a «suspensão do objectivo de 10% dos biocombustíveis» até 2020. Este conselho, composto por 20 cientistas independentes de 15 Estados Membros, considera que a meta dos dez por cento é demasiado ambiciosa e terá efeitos «difíceis de prever e de controlar». Aconselha a realização de um novo estudo sobre os riscos e benefícios dos biocombustíveis, bem como a «definição de uma meta mais moderada e a longo prazo, se a sustentabilidade não puder ser garantida». Segundo os investigadores, a produção de biocombustíveis ainda liberta gases com efeito de estufa em quantidades significativas, implicando «a combustão de recursos muito valiosos e finitos». Alertam ainda que «o solo arável necessário para a União Europeia conseguir cumprir a meta dos dez por cento excede a área disponível», e que a consequência da intensificação da produção de biocombustíveis é o «aumento das pressões no solo, água e


biodiversidade». O cumprimento da meta irá significar «a importação de grandes quantidades de biocombustíveis» com a ocupação de largos milhões de hectares de solo, e que «a destruição acelerada das florestas tropicais devido ao aumento da produção de biocombustíveis já está a acontecer em alguns países em desenvolvimento. A produção sustentável fora da Europa é difícil de conseguir e de monitorizar». Perante o agravar da polémica, veio o presidente da Comissão Europeia afirmar, no dia 16 de Abril de 2008, que pediu a realização de um amplo estudo sobre o impacto dos biocombustíveis, na agricultura, preços e desenvolvimento, mas parece continuar sem vontade de alterar a meta. O Parlamento Europeu (PE) já em 14 de Janeiro tinha aprovado um relatório sobre especificações de qualidade dos combustíveis (apoiado em 27 de Novembro de 2007 pela Comissão de Ambiente do PE), o qual considera que a meta de se atingir um mínimo de incorporação de 10% de biocombustíveis até 2020 deveria ser removida, uma vez que é suficiente a meta já estabelecida pela Comissão de redução de 10% das emissões de GEE até 2020 por melhoria da eficiência dos combustíveis. Relativamente a este ponto, a decisão da Comissão justifica-se dizendo que sem uma meta mínima para os biocombustíveis estes não seriam desenvolvidos por terem um custo superior a outras formas de energias renováveis. Importa referir que já o relatório da Agência Europeia de Ambiente n.º 4/2004 indicava que a conversão da biomassa em biocombustíveis para os transportes gera menores economias e reduções de GEE do que outras utilizações energéticas da biomassa: a título de comparação, a combustão directa de biomassa numa

central eléctrica para produção de electricidade é significativamente mais eficiente em termos de rendimento energético. Em 14 de Janeiro de 2008, a Royal Society (Reino Unido) lançou o relatório «Sustainable biofuels: prospects and challenges», revelando que os biocombustíveis têm uma capacidade limitada de substituir os combustíveis fósseis e não devem ser encarados como a «salvação» para reduzir as emissões do sector dos transportes, podendo até ser danosos para o ambiente caso as políticas adoptadas não sejam as correctas. Conclui que: «há um número significativo de incertezas sociais, económicas e ambientais em relação aos biocombustíveis e os quadros políticos devem assegurar que estes aspectos estejam contemplados». O relatório de 21 de Janeiro de 2008, «Are Biofuels Sustainable?», realizado a pedido do Comité de Auditoria Ambiental da Casa dos Comuns no Reino Unido, afirma que os «biocombustíveis podem ter um conjunto de impactos ambientais, incluindo poluição da água e perda de biodiversidade. Adicionalmente, a ausência de mecanismos internacionais para protecção das florestas tropicais pode significar que os biocombustíveis vão acentuar as pressões significativas já existentes de desflorestação para a cultura de óleo de palma». Refere ainda que há oportunidades significativas de redução das emissões de uma forma custo-eficiente através da reflorestação e recuperação de habitats, afirmando que «com a tecnologia actual de biocombustíveis, maiores cortes nas emissões de gases de efeito de estufa a menores custos e riscos seriam alcançados com um conjunto de outras políticas». Em resultado deste estudo o Comité pediu uma moratória ao objectivo traçado pelo governo inglês de

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incorporação de 5% dos biocombustíveis até 2010, referindo que o governo deve concentrar-se no uso sustentável de biocombustíveis, como sejam óleos alimentares usados e outras tecnologias mais eficientes que «podem ter um papel no futuro». O Comité também concluiu que é pouco provável que os biocombustíveis melhorem a segurança no abastecimento já que eles dependem muito dos combustíveis fósseis para a sua produção. Além disso, sustenta que as práticas agrícolas são altamente insustentáveis e a indústria dos agrocombustíveis vai possivelmente provocar o aumento do preço dos alimentos e pode prejudicar a segurança alimentar nos países em desenvolvimento. O relatório da Agência Europeia de Ambiente, lançado a 29 de Janeiro de 2008, afirma que a crescente procura de biocombustíveis levanta preocupações sobre a pressão adicional que é colocada no ambiente e biodiversidade agrícola, sendo necessário tomar em conta os riscos ambientais associados com a produção em larga escala e adoptar limites ambientais para evitar impactos danosos. Avisa o relatório que a biodiversidade europeia, águas e solos podem ser ameaçados pelo aumento de produção de biomassa a não ser que significativas medidas de protecção sejam postas em prática. A 4 de Março de 2008, a Agência de Avaliação Ambiental da Holanda apresentou um relatório onde afirma que com os biocombustíveis feitos a partir de plantas como o milho, trigo ou cana-de-açúcar será preciso ocupar entre 20 a 30 milhões de hectares com culturas energéticas, dos quais 16 milhões na Europa, o que é impraticável. Alerta também para o impacto dos biocombustíveis no aumento do preço dos alimentos e sobre a biodiversidade. «Perante todas estas considera-


O GOVERNO PORTUGUÊS IGNORA AS PREOCUPAÇÕES AMBIENTAIS E SOCIAIS SUSCITADAS A NÍVEL INTERNACIONAL PELOS BIOCOMBUSTÍVEIS. NÃO ESTÁ PREVISTO O CUMPRIMENTO DE QUALQUER TIPO DE CRITÉRIO DE SUSTENTABILIDADE, NEM PARA A PRODUÇÃO NACIONAL E MUITO MENOS PARA A MATÉRIA-PRIMA IMPORTADA, NEM SE PONDERARAM OS CUSTOS DESTA POLÍTICA. VÍRUS ABR/MAIO 2008

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ções, a meta obrigatória [10%] para os transportes em 2020 deve ser reconsiderada», aconselha a agência holandesa. Os próprios benefícios são postos em cheque, como a redução de pelo menos 35% nas emissões de carbono, em relação aos combustíveis tradicionais, como quer a Comissão. O estudo conclui que esta meta não está garantida e colide com outros objectivos desejados por Bruxelas: por exemplo, para reduzir a área de cultivo necessária – e com isso preservar a biodiversidade – a produtividade terá de ser aumentada através do uso de mais fertilizantes, aumentando as emissões de óxido nitroso, um poderoso gás de efeito de estufa. O relatório «Climate for a Transport Change» sobre a sustentabilidade dos transportes na Europa, de 4 de Março de 2008, refere que «a dúvida crescente sobre o real contributo da primeira geração de biocombustíveis – agrocombustíveis – para reduzir as emissões de gases de efeito de estufa globais, e o alerta crescente sobre os impactos negativos da produção de biocombustíveis na biodiversidade, água e solo, directa ou indirectamente através das alterações do uso do solo a nível global, apontam para a necessidade de uma maior precaução na promoção dos agrocombustíveis. Utilizando a biomassa disponível para substituir o carvão na produção de electricidade e calor, fornece-se maiores reduções nas emissões de gases de efeito de estufa a um menor custo». Refere ainda que «a segunda geração de biocombustíveis pode conduzir a uma redução mais substancial das emissões de efeito de estufa e dos efeitos adversos acima mencionados. No entanto, são precisas mais análises sobre se estarão disponíveis a tempo para contribuir para a meta de 10% até 2020, e mais análises são necessárias sobre outros aspectos da segunda geração de biocombustíveis e do cultivo em solos pobres e terras degradadas». «Um melhor conhecimento

A UTILIZAÇÃO DOS BIOCOMBUSTÍVEIS NÃO DEVE SER RECUSADA COMO UM TODO. O QUE DEVE SER RECUSADO É A UTILIZAÇÃO DE BIOCOMBUSTÍVEIS A UMA LARGA ESCALA INDUSTRIAL E NUM MODO DE PRODUÇÃO E CONSUMO ORIENTADO PELO MERCADO.

do ciclo de vida das emissões de gases de efeito de estufa de todos os usos energéticos da biomassa, e fortes critérios de sustentabilidade (na Europa e em países terceiros) para a produção de biomassa, capazes também de travar os efeitos indirectos devido à alteração do uso do solo, são necessários para avaliar completamente os benefícios e limitações do uso de biomassa». Perante os alertas dos cientistas e instituições internacionais, vários Estados membros têm vindo a reformular os incentivos públicos que dão aos biocombustíveis: é o caso do Reino Unido, França, Alemanha e Holanda. O Reino Unido e a França têm mesmo ido mais longe e manifestado publicamente que pensam opor-se à meta proposta pela Comissão Europeia, avançando com estudos próprios para avaliar os riscos dos biocombustíveis. Em Março de 2008 o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, declarou que pensa opor-se ao actual plano da União Europeia em elevar em 10% até 2020 a quota obrigatória de biocombustível, considerando ser um erro fixar metas obrigatórias antes de conhecer os seus efeitos. Por isso, o Governo britânico ordenou, em Fevereiro de 2008, o estudo dos danos económicos

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e ambientais causados pelos biocombustíveis para se as metas do Reino Unido e da Europa não vão causar mais problemas do que os que pretendem resolver. No dia 29 de Janeiro de 2008, a Secretária de Estado do Ambiente em França anunciou que está a ponderar rever a sua política de biocombustíveis após dúvidas terem sido colocadas sobre os seus impactos ambientais, nomeadamente sobre o contributo para a redução de GEE. O governo francês solicitou à sua agência de ambiente para rever esta tecnologia, colocando a ênfase nos biocombustíveis de 2ª geração. CONTEXTO PORTUGUÊS

Relativamente às emissões de gases de efeito de estufa relacionadas com o sector dos transportes, Portugal apresenta o 5º pior resultado da União Europeia a 27, com um aumento de 96% entre 1990 e 2005 (Relatório da Agência Europeia do Ambiente «Climate for a Transport Change», de 4 Março de 2008). De acordo com o Plano Nacional para as Alterações Climáticas (PNAC 2006), o sector dos transportes continua a ser o maior emissor de gases de efeito de estufa, prevendo-se que entre 1990 e 2010 registe um aumento de 110% das


emissões. A percentagem de emissões do sector rodoviário merece destaque (em 1990 era de 91.3% e em 2010 será de 96%), sendo que o transporte individual representa já quase 60% do total de emissões do sector. O Governo aprovou, dia 17 de Janeiro, em Resolução de Conselho de Ministros, o aumento da incorporação de biocombustíveis de 5,75% para 10% em 2010. Esta meta antecipa em 10 anos o objectivo apontado pela Comissão Europeia, ou seja de 10% em 2020. Considerando a mais recente discussão internacional sobre esta matéria, esta atitude é altamente irresponsável. Em Portugal encontram-se em desenvolvimento vários projectos de fábricas de biocombustíveis, recorrendo sobretudo à importação de matéria-prima para a produção de biodiesel (por exemplo, a Galp Energia pretende promover a produção de matéria-prima a partir de um milhão de hectares de terrenos no Brasil, Angola e Moçambique, por forma a abastecer o mercado português em 300 mil toneladas), e existindo o estímulo à produção nacional de milho para a produção de bioetanol (por exemplo, o projecto da Fomentinvest pretende produzir entre 100 a 120 mil toneladas de bioetanol por ano a partir de milho de origem nacional, estimandose o cultivo de 47 mil hectares de milho de regadio na área de influência do Alqueva). Aliás, Portugal não tem condições climatéricas excepcionais para oleaginosas, mas para o milho tem potencialidades. No entanto, a opção de produzir milho para bioetanol tem riscos. É de referir o estudo «Análise Energética e Ambiental da Produção de Bioetanol a partir do Milho em Portugal», realizado por investigadores do Instituto Superior Técnico (IST) e tornado público em Dezembro de 2007, o qual conclui que a substituição de gasolina

por bioetanol produzido a partir do milho é uma solução cara (dependente de benefícios estatais) e pode ter impactos ambientais significativos, nomeadamente pela substituição de pastagens (por exemplo, a mobilização do solo e criação em estábulo resulta em mais emissões de gases de efeito de estufa, como o metano). Por outro lado, não se pode ignorar o efeito da produção e consumo mundial no aumento do preço dos cereais e, por arrastamento, dos restantes bens alimentares. E não ignorar esta realidade significa, por um lado, refrear a produção e consumo de biocombustíveis a nível internacional, e por outro, estabelecer alguns critérios de sustentabilidade para que as terras hoje destinadas às culturas alimentares não sejam substituídas por culturas destinadas à indústria dos biocombustíveis. Por isso, o governo português, ao estabelecer uma meta tão ambiciosa, está a dar o sinal errado em termos internacionais e a contribuir (mesmo que indirectamente) para a pressão inflacionista sobre os bens alimentares essenciais. E bem sabemos que este aumento expectável dos preços irá afectar os agregados mais pobres, uma vez que estes produtos têm um peso mais significativo sobre os seus orçamentos familiares. Igualmente importante é o facto do governo português estar a ignorar as preocupações ambientais e sociais suscitadas a nível internacional pelos biocombustíveis. Não está previsto o cumprimento de qualquer tipo de critério de sustentabilidade, nem para a produção nacional e muito menos para a matéria-prima importada, nem se ponderaram os custos desta política. Considerando o regime de isenção do imposto sobre produtos petrolíferos (ISP) para o período de 20082010, verifica-se que as quantidades máximas passíveis de isenção correspondem a 1.020 milhões de litros para

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biodiesel e 330 milhões de litros de bioetanol: aplicando o limite mínimo de isenção fiscal verifica-se uma subsidiação indirecta (ou perda de receitas fiscais) na ordem dos 417,6 milhões de euros. Uma vez que a maioria deste benefício fiscal irá para os biocombustíveis menos sustentáveis, ou seja, provenientes de culturas agrícolas, o seu custo económico, social e ambiental é enorme. PORQUÊ A INSISTÊNCIA NOS AGROCOMBUSTÍVEIS?

Até ao momento temos falado dos riscos da aposta nos agrocombustíveis, devido a uma orientação de mercado que torna a sua produção insustentável por necessitar de extensas áreas de terra, competindo com a produção de alimentos e os ecossistemas naturais; pelos métodos de produção que para serem rentáveis têm de ser intensivos e esgotantes dos recursos naturais (solo, água, etc). Estes dois factores em conjunto tornam a produção de agrocombustíveis danosa para o ambiente, em particular porque agrava as emissões de gases de efeito de estufa, mas também para a sociedade, nomeadamente porque prejudica directa e indirectamente os mais pobres e vulneráveis: por exemplo, afecta directamente as comunidades locais que são expulsas das suas terras para as grandes plantações, e afecta indirectamente aqueles e aquelas que têm menos capacidade de fazer face à escassez e/ou aumento do preço dos alimentos. A adopção de critérios de sustentabilidade na produção de agrocombustíveis é importante, mas fundamental é ter a noção de que o seu contributo para o actual consumo energético só pode ser reduzido, não representando nenhuma panaceia para a crise energé-


tica. E este é, antes de mais, um problema de escala: ciclos produtivos sustentáveis a pequena escala e local podem converter-se em insustentáveis a grande escala e num mundo globalizado. Além disso, sem reduzir de modo significativo o consumo energético é impossível substituir o uso de combustíveis fósseis por fontes renováveis numa proporção interessante, muito menos por agrocombustíveis e ainda menos se produzidos de forma sustentável. Estas considerações aplicam-se à utilização geral da biomassa como recurso energético. A utilização dos biocombustíveis não deve ser recusada como um todo. Podem existir utilizações que são interessantes e benéficas, como é o caso, por exemplo, da regeneração dos óleos alimentares usados. O que deve ser recusado é a utilização de biocombustíveis a uma larga escala industrial e num modo de produção e consumo orientado pelo mercado. Perante isto importa perceber o porquê da insistência neste tipo de utilização dos biocombustíveis. A resposta é simples: evitar reduzir o consumo de combustível no sector dos transportes, ou seja, evitar alterar o paradigma actual de mobilidade e transporte de pessoas e mercadorias. A solução para a redução das emissões de GEE no sector dos transportes passa necessariamente pela aposta nos transportes públicos e na ferrovia, contra o primado da rodovia e do automóvel privado. Passa também, e aqui é o âmago do processo de globalização neoliberal que é atingido, por reduzir significativamente as distâncias de transporte das mercadorias, ou seja, alterar o sistema de trocas comerciais actualmente existente. Isto significa consumir bens produzidos o mais

localmente possível, mas também reduzir a produção do que é supérfluo e não corresponde a necessidades sociais. No fundo é a lógica do mercado que está em causa, sendo necessário que seja o poder público e político a tomar as escolhas certas e alterar o actual paradigma de mobilidade e transporte. Esta alteração não significa apenas reduzir. Significa antes de mais dar mais qualidade de vida e justiça social às pessoas, através do planeamento público democrático e participado. Mas significa também começar desde já com a denúncia do engodo dos biocombustíveis e com um programa de reivindicações de alternativas concretas e realizáveis, aproveitando muito da experiência de outras cidades e países em prol da mobilidade sustentável.

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MÃO VISÍVEL

PRIVATIZAÇÕES

O INSUSTENTÁVEL PESO DO SEU SER NUNO TELES E GUSTAVO SUGAHARA

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PRIVATIZAÇÕES: O INSUSTENTÁVEL PESO DO SEU SER NUNO TELES E GUSTAVO SUGAHARA | ECONOMISTAS

As privatizações de empresas públicas são uma das tendências fortes da política económica contemporânea. O seu início recua de tal forma no tempo que hoje este processo parece ser o destino inelutável de todas as empresas públicas. Este entendimento amplamente partilhado, que hoje contamina a quase totalidade do espectro político, apoia-se na ideia simples de um superior desempenho económico do sector privado face ao sector público. Será assim? Este artigo procura discutir alguns dos argumentos e implicações deste processo de transferência de propriedade pública para o sector privado. Na primeira parte analisamos os argumentos da teoria económica, na sua versão dominante, para percebermos a racionalidade, ou a falta dela, subjacente a estes processos. Na segunda parte, tentamos perceber o papel das privatizações na reconfiguração neoliberal da economia mundial. Finalmente, tentaremos mapear estes processos em Portugal.

EMPRESAS PÚBLICAS VS PRIVADAS

A teoria económica, na sua versão dominante, coloca a discussão entre empresas públicas e privadas sobretudo no domínio de qual o arranjo institucional mais eficiente. Ora, partindo de um enquadramento teórico que tem aprioristicamente o mercado e a boa definição dos direitos de propriedade como a fonte de progresso económico, é natural que esta discussão estivesse viciada à partida. No entanto, a discussão feita em torno das chamadas «falhas de mercado» – situações em que o mercado não funciona em concorrência perfeita – legitima a existência de empresas públicas. São quatro os argumentos invocados: (1) a existência de monopólios naturais: certas actividades económicas permitem economias de escala (custos marginais decrescentes) de tal ordem que uma só empresa pode dominar o mercado, beneficiando de um enorme poder na fixação de preços e condições de provisão (ex. electricidade, água); (2) as externalidades: o sector privado pode ter incentivos reduzidos para investir em sectores que produzem bens essenciais para outras indústrias nacionais; (3) falha dos mercados de capitais: o sector privado pode recusar-se a investir em sectores considerados de alto risco ou com horizontes temporais muito alargados de retorno do investimento, mas cruciais para o desenvolvimento (ex. indústria aeronáutica); (4) a provisão de serviços básicos: empresas do sector privado, guiadas pelo lucro, podem recusar (pelo preço ou pelo racionamento) a provisão de bens considerados essenciais aos mais pobres

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ou àqueles que vivem em zonas remotas (ex. transportes colectivos, serviços postais) (Chang, 2007). No entanto, são apontados problemas ao eventual bom funcionamento destas empresas devido ao carácter público da sua propriedade: (1) por não serem seus proprietários, os gestores das empresas públicas não teriam incentivos suficientes para darem o «seu melhor», já que não existiria qualquer mecanismo de controlo e vigilância eficaz sobre o seu trabalho; (2) ao serem detidas pela comunidade política como um todo, não existiria qualquer incentivo individual dos seus «proprietários» para o controlo sobre o seu funcionamento; (3) estando protegidas pelos governos, estas empresas teriam acesso ilimitado a financiamento, não correndo o risco de falência. REGULAÇÃO: O MELHOR DE DOIS MUNDOS?

Se bem que os motivos acima apontados para a ineficiência das empresas públicas possam ser facilmente transpostos para as empresas privadas – basta observar a oposição gestor/accionista ou a forma como fundos públicos são usados para «salvar» empresas privadas em dificuldade – a teoria económica apresenta uma terceira via que resolveria, quer os problemas das «falhas de mercado», quer a suposta ineficiência das empresas públicas: a regulação. Através da regulação pública do comportamento dos actores privados os problemas acima expostos seriam resolvidos com empresas totalmente privadas. O melhor de dois mundos seria então possí-


vel: promover-se-ia a eficiência dos mercados ao mesmo tempo que o interesse público seria preservado. Esta é a base teórica dos processos de privatização contemporâneos que assim ocorrem paralelamente à criação de um conjunto de agências de regulação, responsáveis por colocar um conjunto de constrangimentos à actuação das empresas privatizadas e por fiscalizar o seu comportamento. O objectivo final destes organismos será o de tentar recriar a concorrência perfeita em mercados em que ela não pode existir. A forma como a regulação se processa é diversa. Por exemplo, nos pioneiros deste arranjo institucional, os EUA, existem limites explícitos sobre os lucros das empresas em situação de monopólio natural. No entanto, esta abordagem foi genericamente recusada na Europa, já que se traduziria numa perversão dos incentivos dos gestores destas empresas. Os custos e activos seriam inflacionados de forma a conseguirem uma taxa de lucro contabilisticamente mais baixa. Assim, na Europa adoptou-se uma abordagem que privilegia a regulação dos preços, normalmente tendo em conta os custos da empresa, a taxa de inflação, o potencial crescimento da produtividade e a rentabilidade da empresa (Sawyer, 1996). Contudo, este tipo de abordagem está longe de resolver os problemas apontados às empresas públicas. Assim, numa situação de regulação, a empresa regulada terá sempre melhor informação sobre a sua actividade do que o regulador, podendo facilmente influenciar os seus juízos, quer dos seus custos e produtividade, quer da qualidade dos produtos e serviços. Ademais, sendo estes mercados caracterizados pela existência de poucas empresas, mas muitos consumidores, será mais fácil para os primeiros o exercício de pressão sobre o regu-

lador em seu benefício. Não são raros os casos de altos dirigentes destes organismos que mais tarde se «transferem» para as empresas que antes regulavam. Não é pois possível ao regulador especificar as obrigações contratuais de forma eficiente. O resultado é o contrário do desejado. E, no entanto, a existência de empresas públicas, sobretudo em sectores onde preços de mercado são inexistentes (monopólio natural) ou pouco fiáveis (externalidades), evita este tipo de contingências, pois coloca as empresas sob a alçada directa do governo. A discussão teórica, mesmo quando circunscrita à arena da Economia Pública, em torno da suposta maior eficiência das empresas privadas é por isso, no mínimo, inconclusiva. Isto é aliás confirmado pela avaliação histórica destes processos (ver próxima secção). AS PRIVATIZAÇÕES NO CENTRO DA REGRESSÃO NEOLIBERAL

Com a memória ainda fresca da Grande Depressão dos anos 30, o período que se seguiu à Segunda Guerra Mundial foi marcado por um forte reforço da intervenção pública nas principais economias mundiais. A nacionalização de empresas, em sectores considerados estratégicos para a economia, foi um dos instrumentos desta intervenção. As razões invocadas neste processo foram múltiplas: o controlo democrático sobre os grandes meios de produção, a garantia de estabilidade dos níveis de emprego, a garantia da provisão universal de um conjunto de serviços considerados essenciais à restante economia ou a experimentação de novas formas de envolvimento dos trabalhadores na gestão das empresas. A estas nacionalizações foi-se somando, nas décadas seguintes, a situação de quase falência de um conjunto de empresas consideradas importantes. Os

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resultados destes processos pareciam positivos. Nunca a economia mundial cresceu tanto e de forma tão sustentada, ficando este período conhecido como os «gloriosos trinta anos». No entanto, o período de prosperidade acabou nos anos setenta. Crescimento económico medíocre, estagnação da produtividade, tendência para a queda das taxas de lucro e elevadas taxas de inflação indicavam o esgotamento do modelo fordista de produção industrial e da intervenção pública contra-cíclica de inspiração keynesiana que tinham dominado os anos anteriores. As elevadas taxas de desemprego, aliadas a uma profunda crise fiscal da maioria dos estados, abriu assim o caminho para uma brutal ofensiva do capital sobre o trabalho, que procurava recuperar as suas taxas de rentabilidade. Esta ofensiva, ideologicamente dominada pelo neoliberalismo – nascido da aliança teórica entre a economia neoclássica, que lhe confere os instrumentos analíticos, e a tradição austríaca, fornecedora dos argumentos filosóficos e políticos – e politicamente traduzida pelos emblemáticos governos Thatcher e Reagan, originou todo um novo regime de crescimento económico, caracterizado pela desresgulamentação e liberalização económica e por políticas fiscais e monetárias muito restritivas (Chang, 2007). O Estado passou a ser entendido como uma organização controlada por burocratas, guiados pelo seu interesse próprio, que conduzem a intervenção deste de forma ineficiente. Pelo contrário, a concorrência de mercado foi elevada a panaceia para a saída da crise, já que só ela era fonte de inovação e de incremento de produtividade. O objectivo era claro: uma profunda reconfiguração institucional nas relações entre trabalho e capital, favorável ao último.


EVOLUÇÃO DOS PREÇOS PARA UM CONJUNTO DE SECTORES PRIVATIZADOS UE/15

GÁS | 141

NOS QUINZE PAÍSES DA UNIÃO EUROPEIA, OBSERVAMOS UM AUMENTO DOS PREÇOS

SERVIÇOS | 126,1 FERROVIA | 121,1 AÉREO | 117,8 ÍNDICE GERAL | 117,5 ELECTRICIDADE | 110,1

BASTANTE ACIMA DA TAXA DE INFLAÇÃO. AS NOVAS EMPRESAS PRIVADAS FAZEM USO DO PODER DE MERCADO QUE DETÊM EM SECTORES ONDE A CONCORRÊNCIA É DIFÍCIL.

TELECOMUNICAÇÕES | 76,7

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As privatizações das empresas têm um lugar ímpar nesta modernização conservadora, já que permitiram a construção de novos mercados para a acumulação privada de capital. Os motivos invocados para estes processos, embora se possam reduzir à proclamada maior eficiência do mercado, foram vários: redução do papel do Estado na economia; saneamento das contas públicas; redução do poder dos sindicatos nas negociações salariais do sector público; melhoria da eficiência das empresas agora privatizadas; criação de um capitalismo popular de pequenos accionistas, etc. O ritmo destes processos esteve longe de estar sincronizado a nível mundial. Ao mesmo tempo que, no início dos anos oitenta, Thatcher aplicava a sua terapia de choque liberal, a França de Miterrand empreendia um ambicioso programa de nacionalizações, sobretudo do sector financeiro (onde o Estado passou a deter 90% do sector) e de alguns grandes grupos industriais. No entanto, o que começou como apanágio dos governos mais à direita, acabou por se tornar o senso comum da generalidade dos governos, da Ásia à América Latina, da direita à esquerda. Na Europa, o papel da União Europeia como «cavalo de Tróia neoliberal» é inegável. A viragem política que representou a aprovação do Acto Único Europeu em 1986 trancou as opções políticas dos diferentes estados (Rodrigues e Paes Mamede, 2007). Com o argumento da necessidade de unificar os diferentes mercados nacionais num único mercado europeu, os Estados foram forçados à liberalização e privatização de mercados até então protegidos, em nome do livre acesso.

Assim, todos os países da UE caíram numa marcha forçada no sentido das privatizações, recuperando o tempo perdido face ao Reino Unido. Um processo que, longe de finalizado, continua até aos nossos dias1. A proporção de empresas públicas passou assim de 10% em 1979 para 6% em 2004, permitindo a arrecadação de 1,25 biliões de dólares ao nível mundial (Glyn, 2006). Estas privatizações não permitiram só a arrecadação de importantes receitas financeiras a Estados sedentos de novas fontes de financiamento. Elas foram um dos principais motores da financeirização da economia, resultado estruturante deste novo regime de crescimento neoliberal. As privatizações das empresas públicas permitiram não só elevados rendimentos aos intermediários financeiros destes processos, como se constituíram como a espinha dorsal do crescimento explosivo das transacções bolsistas. As empresas privatizadas representam hoje à volta de 30% das empresas cotadas em bolsa fora dos EUA (Glyn, 2006). Finalmente, importa vincar a oportunidade que a privatização das empresas forneceu no combate por uma maior flexibilização das relações laborais. Eram as empresas públicas que tinham os maiores e mais fortes sindicatos. A sua privatização, aliada às elevadas taxas de desemprego, traduziu-se num forte golpe no poder de negociação sindical – agora fragmentado nas diversas empresas contra a negociação mais ou menos centralizada que antes tinham com os governos – contribuindo decisivamente para a crescente precariedade do trabalho e para a estagnação salarial.

EFICIÊNCIA?

Se o efeito das privatizações na emergência de um novo regime de crescimento dominado pela finança é inegável, qual foi o impacto destes processos nas empresas em causa? O exercício comparativo revela-se difícil. É complicado comparar o desempenho de empresas com objectivos que são explicitamente diferentes. As empresas públicas podem ser obrigadas a manter serviços não lucrativos, manter níveis de emprego ou estar limitadas nas actividades que podem empreender. Ainda assim, estudos comparativos de empresas públicas com congéneres privadas mostram que as empresas públicas são mais eficientes em sectores onde bens e serviços são homogéneos (ex. electricidade, água, ferrovias, etc) (Sawyer, 1999). Este resultado é bastante coerente com um outro: a evolução dos preços dos produtos praticados pelas empresas recém-privatizadas. Assim, para os quinze países da União Europeia, observamos um aumento dos preços bastante acima da taxa de inflação (no gráfico da página anterior). As novas empresas privadas fazem uso do poder de mercado que detêm em sectores onde a concorrência é difícil. A excepção parece ser o sector das telecomunicações que, graças a progressos tecnológicos impressionantes, beneficia hoje de uma concorrência de mercado ao nível do produto muito elevada. Todavia, um estudo da OCDE (organização que mais tem promovido os processos de privatização em curso) não encontrou nenhuma evidência empírica clara do impacto da privatização em si mesma na modernização destas empresas, sendo a nova competição de mercado, causada

1. É significativa a recente decisão da Comissão Europeia em forçar os Lander alemães a venderem as suas participações em empresas tão importantes como a Volkswagen em nome da livre concorrência.

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pela entrada de novas empresas e diversificação de produtos, que a evolução tecnológica permitiu, o principal factor assinalado para a descida dos preços.

CONDICIONADO POLITICAMENTE PELA PRECARIEDADE E FRAQUEZA

AS PRIVATIZAÇÕES EM PORTUGAL: PASSADO, PRESENTE E… FUTURO!?

DAS PRIVATIZAÇÕES PROCUROU AVANÇAR SOBRE OS RECURSOS NATURAIS,

Foram duzentas e quarenta e quatro as empresas nacionalizadas no seguimento da revolução de Abril em Portugal. Estas nacionalizações dividiram-se entre o propósito político da socialização dos grandes meios de produção e o salvamento de empresas que enfrentavam sérias dificuldades de sobrevivência. Na comparação com o resto da Europa, Portugal aparece assim atrasado. A «nova ordem económica» mundial evidenciada no final dos anos 1980 e a «aproximação com a Europa» representaram um forte impulso na propagação do projecto de privatizações em Portugal. Recuperamos aqui alguns marcos deste processo e sugerimos uma observação crítica, através de uma ordenação por ciclos, de forma a compreender o percurso e antever os próximos passos. A segunda revisão constitucional de 1989 é o marco legal mais significativo para o avanço dos processos de privatização. Foi o culminar de um processo de alterações legais iniciado em 1982, com a primeira revisão constitucional. Em 1988, a aprovação do Regime de alienação das participações do sector público, do decreto-lei que alterou a lei de delimitação dos sectores e a aprovação da lei quadro das privatizações, anunciavam profundas transformações. Neste contexto, o sector financeiro surge como a primeira fronteira a ser desbravada. A consolidação do mercado de capitais e a estruturação de uma rede que permeasse os mercados nacionais ao investimento

DA ORGANIZAÇÃO DOS TRABALHADORES DE CADA SECTOR, A EXPANSÃO

SOBRE AS EMPRESAS PÚBLICAS INDUSTRIAIS DE SECTORES FORTEMENTE CONCENTRADOS E SOBRE ALGUNS DOS SERVIÇOS PÚBLICOS.

estrangeiro era uma ferramenta fundamental para os passos subsequentes de privatização. Por outro lado, os altos custos de entrada, a debilidade na legislação e a dificuldade na regulação e fiscalização representavam a garantia de que os bancos agora privatizados iriam prosperar. Respeitando as especificidades de cada um dos contextos regionais, o sector de eleição para a fase seguinte dos planos de privatização foi o dos serviços básicos (energia, telecomunicações, rede viária, etc). Um processo que teve início durante os anos do governo Guterres e que ainda está em curso no nosso país. Caso emblemático foi o das telecomunicações, em particular a expansão e implementação das redes de telemóvel. A polémica envolvendo a privatização da Portugal Telecom teve como principal garantia da defesa do interesse público a introdução das chamadas golden shares – a existência de um conjunto de acções que conferem poderes especiais ao Estado português na empresa em causa. No entanto, esta garantia parece ter um prazo de validade limitado, já que desde Dezembro de 2005 estas acções são motivo de disputa entre as autoridades europeias e o governo português. Condicionada politicamente pela

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precariedade e fraqueza da organização dos trabalhadores de cada sector, a expansão das privatizações procurou avançar sobre os recursos naturais (principalmente energéticos), sobre as empresas públicas industriais de sectores fortemente concentrados (cimenteiras) e sobre alguns dos serviços públicos. A conclusão deste ciclo em Portugal ainda depende do avanço sobre sectores como os do saneamento e dos transportes aéreos. Após uma série de alterações legais, das quais se destaca a «Lei da Água» e as opções tomadas pelo governo português na transposição das Directivas Europeias para o sector, expressas no Plano Estratégico da Abastecimento de Água e Saneamento de Águas Residuais (o PEAASAR, já em segunda versão, referente ao período 2007-2013), observamos uma forte afluência de candidatos à compra da Aquapor, que serve cerca de 13% da população nacional. Também já se prenuncia a privatização da Aeroportos de Portugal (ANA), apenas protelada pela estratégia de vincular este processo à construção do Novo Aeroporto de Lisboa (NAL). Dadas as características de cada um dos sectores, o primeiro, recurso natural estratégico e indispensável,


OS DESPEDIMENTOS E O AUMENTO DA PRECARIEDADE DO TRABALHO SÃO A PRIMEIRA FACE VISÍVEL DOS PLANOS DE REESTRUTURAÇÃO. NA PROCURA DA RÁPIDA REDUÇÃO DE CUSTOS REDUZ-SE O NÚMERO DE TRABALHADORES E RECORRE-SE FREQUENTEMENTE À SUBCONTRATAÇÃO DE UMA SÉRIE DE SERVIÇOS, EXECUTADOS POR UMA MÃO-DE-OBRA PRECÁRIA, SEM QUALQUER TIPO DE DIREITOS.

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com um papel fundamental no combate às desigualdades, e o segundo, igualmente estratégico do ponto de vista da promoção do país e da sua competitividade, já podemos antever alguns resultados destas privatizações. Os despedimentos e o aumento da precariedade do trabalho são a primeira face visível dos chamados planos de reestruturação. Na procura da rápida redução de custos dentro das empresas, reduz-se o número de trabalhadores e recorre-se frequentemente à subcontratação de uma série de serviços, executados por uma mão-de-obra precária, sem qualquer tipo de direitos. Outra implicação é a deterioração da transparência na gestão, devido ao elevado grau de opacidade da contabilidade dos sistemas de gestão privada. A deslocação no foco dos investimentos também é outra grave consequência esperada, a busca pelos mercados mais rentáveis combinada com sistemas de regulação frágeis resulta em opções de investimento pouco alinhadas com o interesse público, aprofundando assim as desigualdades e aumentando a vulnerabilidade do ponto de vista da coesão territorial. Outro aspecto frequentemente negligenciado diz respeito ao mecanismo de desorçamentação implícito nos projectos de privatização, que na prática resultam em custos acrescidos no longo prazo. Ao optar pelo financiamento privado o Estado consegue reduzir o impacto destes investimentos no orçamento público corrente, mas o impacto acrescido sobre o orçamento global, devido à opção pelo financiamento privado (que pressupõe o pagamento de prémios de risco de mercado), é com frequência ignorado. Noutra vertente, ainda menos explícita, devemos observar efeitos perversos advindos do domínio de grupos estrangeiros sobre os sectores privatizados. No caso da

NO CASO DA ÁGUA, JÁ É PATENTE QUE A MULTINACIONAL QUE DOMINA O SECTOR PRATICA A CHAMADA VERTICALIZAÇÃO, QUE CONSISTE NA INTEGRAÇÃO DOS DIVERSOS PROJECTOS E ACTIVIDADES CONEXAS AO SECTOR, ABSORVENDO E ESVAZIANDO AS EMPRESAS NACIONAIS DE PROJECTOS NESTAS ÁREAS.

água, por exemplo, já é patente que a multinacional que domina o sector pratica a chamada verticalização, que consiste na integração dos diversos projectos e actividades conexas ao sector, absorvendo e esvaziando as empresas nacionais de projectos nestas áreas. O gráfico da próxima página apresenta o número de privatizações e os valores destas operações e destaca algumas das empresas privatizadas desde 1989. Observa-se a intensa privatização do sector bancário e de seguros no início dos anos 1990 e a presença marcante das telecomunicações e energia no período seguinte. A quebra na série de privatizações, tanto em valores quanto em quantidade, reflecte o esgotamento de um ciclo e a preparação de uma nova investida. O forte ataque a sectores como o da saúde e o da educação dos últimos tempos, principalmente através da forte restrição orçamental e da promoção do ideal da mercantilização destes serviços é um forte indício do que se avizinha. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O economista David Harvey refere a «acumulação capitalista por expropriação», como o processo através do

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qual o Estado promove a abertura de novas fronteiras para a acumulação privada de capital à custa dos activos que eram de todos com a contribuição do esforço fiscal de todos. É neste sentido que em Portugal observamos, à imagem do resto da Europa, um processo em curso, já num estádio avançado, mas ainda com muitas possibilidades de se expandir. Na base desta estratégia continuamos a constatar a delapidação dos serviços públicos e a promoção da mercantilização como valor fundamental, sempre sob o argumento do controlo orçamental. As fortes restrições financeiras impostas às diversas empresas e serviços públicos, bem como a desvalorização da função pública, pela redução salarial e pela não requalificação, são acompanhadas de uma constante campanha pela alienação dos cidadãos das decisões e do sentido de colectividade. No discurso corrente fica claro que cabe ao servidor público a mácula da ineficiência, acomodação, preguiça, etc. Travestidas no discurso de defesa do interesse público, as transferências de parte das prestações para o sector privado, nas chamadas parcerias público-privadas e outras formas de terceirização, configuram a mão pe-


sada que promove a lógica do mercado no seio dos serviços públicos. Como vimos, os fundamentos do discurso própromoção indiscriminada de privatizações têm bases pouco sólidas e reflectem interesses de grupos específicos em detrimento do bem-estar colectivo. Desmontar esta lógica e lutar pela valorização da coisa pública é por isso fundamental no combate desta tendência. Como foi bem vísivel na recente mobiliza-

PRIVPrivatizações�em�Portugal�(1989�� ATIZAÇÕES EM PORTUGAL (1989-2007) E VALORES DAS TRANSACÇÕES 2007�)��- Nº Nº�e�Valores�das�Transações 5

4400 4000

PT Soporcel

3

3

1 REN

1

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2 Cimpor Brisa

3

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11

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PT

8

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Tabaqueira

2800

0

PT

7

3200

REFERÊNCIAS:

CHANG, H-J. (2007) State-Owned Enterprise Reform, United Nation, Department for Economic and Social Affairs (UNDESA). GLYN, A. (2006) Capitalism Unleashed – Finance, globalization, and welfare. Oxford University Press RODRIGUES, J., PAES MAMEDE, R. (2007) Neoliberalismo e crise do projecto europeu, Le Monde Diplomatique – edição portuguesa. SAWYER, M., (1996) Privatization and regulation, in UK Economy SAWYER, M., (org.) (2007) Theoretical approaches to the explanation of liberalisation and privatisation, report for Work Package 2 of the PRESOM project.

5

3600

400

7

Tabaqueira

4800

Química

US$� milhões

ção popular em defesa do Serviço Nacional de Saúde e na consequente, ainda que tímida, inversão da política governamental nesta área (fim dos projectos de concessão das gestão hospitalar aos privados), estes processos não são irreversíveis. A reaproximação dos cidadãos às decisões, com a consciência de seus direitos e deveres, valoriza a democracia e a defesa do interesse público.

Fonte:�Privatization�Barometer

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TRABALHO E CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO

PRECARIEDADE GLOBAL

JOÃO ROMÃO J

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TRABALHO E CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO: PRECARIEDADE GLOBAL JOÃO ROMÃO | ECONOMISTA

SUCESSIVOS PROCESSOS DE DESREGULAMENtação e liberalização da circulação de pessoas, mercadorias e capitais, alargaram, nos últimos anos, o mercado de trabalho do capitalismo global: milhões de trabalhadores da China, Índia e Europa Oriental passaram a participar activamente no mercado planetário de mercadorias e serviços, juntando-se à Europa Ocidental, à Oceânia e à América. A «força de trabalho global» terá multiplicado por quatro nas últimas duas décadas, através do grande aumento das exportações a partir de países que, até há poucos anos, não estavam integrados nos circuitos capitalistas globais. É o insuspeito FMI – uma das instituições que mais promoveu a globalização liberal em curso – a apresentar estes cálculos, para justificar a quebra do peso dos salários no rendimento total da população dos países mais desenvolvidos. De facto, nesses países, os salários estão a perder terreno em relação aos rendimentos do capital desde os anos 80, invertendo a tendência de crescimento dos anos 70. Alguns traços dominantes marcam o capitalismo global contemporâneo: a emergência de um mercado financeiro global (que funciona em tempo real graças às novas tecnologias da informação, facilitando a especulação financeira), a intensificação das relações sociais internacionais, o desenvolvimento de burocracias internacionais, o aparecimento de cidades globais estratégicas (como Bruxelas), o declínio da importância de instrumentos nacionais de política económica, a

redução das distâncias físicas e temporais e o aumento de importância dos rendimentos do capital em relação ao trabalho. O comércio mundial cresceu como nunca: em 1973 movimentavam-se 20 biliões de dólares por dia e em 2003 esse valor atingia 1,5 triliões de dólares. Nos últimos anos, o aumento das exportações a partir dos países menos desenvolvidos, em particular da China, resulta de novas capacidades produtivas mas também reflecte processos de relocalização de empresas e da produção à escala planetária: as fábricas que fecham para reabrir em países com mão-de-obra barata criam desemprego nos países mais desenvolvidos e pressionam os seus salários a descer. Naturalmente, os trabalhadores menos qualificados são os mais afectados. Assim, as migrações de pessoas têm sobre a concorrência entre trabalhadores um efeito muito menor do que o que têm as importações, apesar da tendência recente para um crescimento significativo desses movimentos populacionais, que tem prejudicado os países menos desenvolvidos através da «fuga de cérebros», ou seja, da saída dos trabalhadores mais qualificados em direcção aos países mais desenvolvidos. Actualmente, os Estados Unidos são sobretudo um país «receptor» de mão-de-obra qualificada, não registando fluxos de emigração relevantes e recebendo pessoas da Ásia Oriental e Central, da Índia, da Europa de Leste e da Europa Ocidental. Aos EUA chegam ainda fluxos relevantes de mão-de-obra pouco qualificada com

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origem na América do Sul. A Europa ocidental é outro centro relevante de recepção de mão-de-obra, ainda que neste caso o peso dos trabalhadores pouco qualificados seja mais significativo, sobretudo com origem em África. De qualquer forma, da Europa de Leste, da Índia e da Ásia Central também se registam movimentos relevantes de trabalhadores qualificados em direcção à Europa Ocidental. A região do Golfo Pérsico e a África do Sul são outros dois pontos de atracção para os trabalhadores africanos, atraindo sobretudo pessoas com poucas qualificações. Por seu lado, o Japão recebe fluxos de trabalhadores, qualificados ou não, com origem no continente asiático. A nível planetário, a taxa de desemprego aumentou entre 1993 e 2006, atingindo nesse ano os 6,3%. A América Latina e o Caribe (com desemprego de 8,6%), a África (11,5%), o Médio Oriente (12,1%) e as economias em transição do Leste Europeu (com quase 9%) são as zonas do planeta com taxas de desemprego mais elevadas (e sem sinais de apresentarem descidas relevantes). A Ásia Oriental (3,6%) e a Ásia Meridional (5,1%) são as zonas do mundo com menores níveis de desemprego, apesar de apresentarem taxas de crescimento da população activa superiores às das outras regiões do planeta. As zonas da Ásia onde o desemprego é menor são também aquelas onde se registaram maiores acréscimos na produtividade do trabalho (seguidas de perto pelos países do Leste Europeu), gerando os níveis mais altos de crescimento da riqueza a nível global.


O zeloso Banco de Portugal dedicou um relatório recente a analisar os impactos da globalização sobre o mercado de trabalho, no caso português, observando que «ao longo dos últimos anos, os salários reais revelaram uma reduzida sensibilidade à evolução do ciclo económico. Em particular, o contínuo aumento da taxa de desemprego e da proporção de desempregados de longa duração não conduziu a um ajustamento significativo dos salários reais». Além de lamentar que o aumento do desemprego não tenha penalizado suficientemente os salários, o relatório do Banco de Portugal conclui que os contratos com termo «têm vindo a aumentar o seu peso na estrutura do emprego desde 1995, o que pode ser visto como uma consequência da relativa rigidez da contratação permanente em Portugal». A autoridade monetária nacional é esclarecedora a explicitar as suas preferências sobre legislação laboral, seguindo as doutrinas liberais monetaristas. PRIVATIZAÇÃO, LIBERALIZAÇÃO, DESREGULAÇÃO

Organizações como o FMI, a Organização Mundial do Comércio ou mesmo a União Europeia têm promovido intensos processos de desregulação, liberalização e privatização de serviços. Esta «contra-revolução liberal» inverte um longo período de conquistas sociais que, de alguma forma, tinham ajudado a regular as condições de vida e de trabalho, mesmo nas sociedades capitalistas. Não é apenas a livre circulação de pessoas; a livre circulação de mercadorias é a principal responsável pela competição global entre trabalhadores em defesa dos seus postos de trabalho. A ideia de que o Estado deve promover o bem-estar social e segurança dos trabalhadores, combater a pobreza extrema ou garantir a equidade no acesso a serviços

públicos e bens essenciais prevaleceu até aos anos 80. A relação entre trabalho e segurança sócio-económica tinha sido uma conquista da modernidade industrial europeia, controlada através de representações colectivas de interesses (como os sindicatos) e assente em algumas garantias: de ocupação, de qualificação, de trabalho, de rendimento, ou de representação, socialmente enquadradas e defendidas. A informalidade pós-fordista, a desregulamentação, a privatização e a liberalização ameaçam estas conquistas. O crescente trabalho informal, e até o crescente trabalho precário na economia formal, desarticulam os direitos e até a representatividade dos trabalhadores – o processo de privatização e desregulação das economias aprofunda a crise da social-democracia e dos seus mecanismos de representação social. Se os últimos 20 anos de União Europeia foram marcados por sucessivas liberalizações, enquadradas numa tendência global de desregulamentação, o próximo passo é o da «flexigurança», instrumento para desarticular o mercado de trabalho. A «flexigurança» disfarça o essencial: que os direitos laborais são uma questão de luta de classes e não um modelo teórico de justiça social. O modelo dinamarquês que inspira o Livro Verde para o Emprego na UE resultou de um século de lutas entre associações representativas de classe e assenta em estruturas de representação consolidadas na sociedade dinamarquesa. Noutros países, a implementação da agenda «flexigurança» pode ajudar a desarticular ainda mais as formas de organização laboral e de participação cívica, promovendo mais flexibilidade que segurança. Na União Europeia, o Pacto de Estabilidade e Crescimento limitou a intervenção dos Estados na econo-

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mia, impulsionou um vasto processo de privatização dos serviços públicos e foi o álibi para a imposição de uma agenda liberal (expressa na chamada «Estratégia de Lisboa»). A estabilização das finanças públicas obrigou à contenção do investimento público (para reduzir o défice orçamental) e a uma contenção salarial generalizada nos países da UE. Controlou-se a inflação mas agravou-se muito o desemprego. Os direitos dos trabalhadores têm sido sucessivamente reduzidos no continente europeu. Por exemplo, a redução do investimento público que o governo português apresentou como indispensável para essa estabilização económica ocorreu num momento que devia ser de acelerada transformação da economia nacional, num contexto de integração no espaço europeu e de livre competição nesse novo território. A quebra dos investimentos públicos teve importantes consequências macro-económicas, no mercado de trabalho, nos salários e nos serviços que cabe ao Estado assegurar – a perda de qualidade em áreas essenciais, como a saúde ou a educação, prejudica ainda mais a sua já debilitada credibilidade e abre caminho para a legitimidade social da sua privatização. Entretanto, Portugal assistiu à decadência da generalidade da sua actividade industrial, sem encontrar soluções inovadoras que acompanhassem a evolução tecnológica e a globalização dos mercados, enquanto a agricultura e as pescas definhavam à medida da desertificação no interior e da especulação imobiliária no litoral. O desemprego tem vindo a aumentar (em particular o de longa duração), aproximando-se dos padrões europeus, e os salários com termo assumem cada vez maior importância. As exportações portuguesas apenas revelam vantagens comparativas em indústrias de


and other differences in the measurement and estimation of unemployment that can occur around the world serve as a reminder that great care should be taken in any attempt to draw exacting comparisons.

������ Unemployment rates for most economies fell in the range of 5 to 20 per cent. Figure 8a shows countries with total unemployment rates (excluding registered unemployment) in descending range of rates. Seven economies had relatively high rates – that is, in excess of 30 per cent: Armenia, The former Yugoslav Republic of Macedonia and the sub-Saharan

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African countries of Djibouti, Lesotho, Namibia and Seychelles. At the other end of the spectrum, relatively low unemployment rates – of less than 2 per cent – were found in Cuba, Kuwait, the Isle of Man, the South-East Asian countries of Cambodia, the Lao People’s Democratic Republic and Thailand, and the sub-Saharan African countries of Chad, Rwanda and Malawi. It is interesting to note that while some countries in sub-Saharan Africa had the highest unemployment rates, others in the same region had some of the lowest rates in the world. The regional estimate for sub-Saharan Africa, seen in box 8b, reveals a comparatively high average of 9.8 per cent in 2006, making it the region with the third highest rate behind the Middle East and North Africa. .

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O DESEMPREGO NO MUNDO, VISTO PELA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO

TAXA DE DESEMPREGO MAIS DE 30% 20 A 29,9% 10 A 19,9% 2 A 9,9% MENOS DE 2% DADOS NÃO DISPONÍVEIS VÍRUS ABR/MAIO 2008

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baixa tecnologia, insustentavelmente suportadas pela vantagem do custo do trabalho, e poucos serviços são de significativo valor acrescentado. Ganham importância a banca e a distribuição, que agora assumem o controle das empresas públicas em processo de privatização (nomeadamente nas telecomunicações e energia). Até agora, a adesão de Portugal à União Europeia pouco contribuiu para a renovação e modernização do tecido empresarial nacional ou para uma subida significativa dos níveis de qualificação e de produtividade dos trabalhadores portugueses. O PAPEL DOS ACORDOS INTERNACIONAIS DE COMÉRCIO

Os acordos de livre comércio assumidos pela Organização Mundial do Comércio têm sido o principal instrumento para a livre concorrência planetária, facilitando importações e exportações mas sem grandes preocupações sobre os impactos sobre os trabalhadores em cada país. No entanto, desde a criação do GATT, esta tem sido a principal arma para impor a competição capitalista a nível do mercado de trabalho planetário. No último Acordo conseguido na OMC, a Europa comprometeu-se a eliminar os subsídios à exportação de produtos agrícolas até 2013. Em compensação, serão reduzidas as tarifas à importação de bens industriais e iniciaram-se processos de liberalização de mercados de serviços nos países menos desenvolvidos. Apesar de terem ficado longe das pretensões liberalizadoras das maiores potências económicas, os acordos facilitam a liberalização dos serviços nos países do Sul e a sua abertura às multinacionais com origem no Norte, onde grande parte dos mercados atingiu já a saturação.

A chamada Ronda de Doha da OMC, iniciada em 2001, reuniu 149 países e pretendeu lançar um processo global de liberalização de mercados, com a eliminação de barreiras comerciais na agricultura, serviços e indústria. As principais questões em discussão prendiam-se com a eliminação dos subsídios à agricultura nos países europeus e com a redução das tarifas praticadas pelos países em vias de desenvolvimento sobre os produtos industriais e serviços dos países desenvolvidos. Ambos os pontos continuarão a marcar a agenda do processo de liberalização global nos próximos anos. A Ronda de Doha foi a primeira a realizar-se desde a fundação em 1995 da Organização Mundial do Comércio, que sucedeu ao GATT (General Agreement on Tarfiffs and Trade), assinado por 23 países em 1947 e que pretendia complementar, no sector do comércio, a actividade das outras duas instituições de regulação económica internacional criadas no pós-II Guerra: o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Hoje, os acordos discutidos na Organização Mundial do Comércio ultrapassam em muito o estrito âmbito comercial, incluindo todos os sectores económicos. A história destes acordos é reveladora da onda liberal das últimas décadas: as cinco primeiras rondas negociais envolveram menos de 30 países e decorreram entre 1947 e 1961, discutindo-se apenas a questão da redução das tarifas alfandegárias. Outros temas vieram a ser introduzidos a partir da 6ª Ronda (a Ronda Kennedy, realizada entre 1964 e 1967, com a participação de 62 países), como medidas «anti-dumping», para evitar que, com a liberalização dos mercados, os países com maiores níveis de protecção social não fossem prejudicados pela concorrência de outros. A seguir veio a Ronda

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de Tóquio, entre 1973 e 1979, em que 102 países discutiram pela primeira vez as questões «não-tarifárias» de obstáculo ao comércio: subsídios, barreiras técnicas, procedimentos de licenciamento de importações, etc. Uma vez que, na OMC, os acordos têm que ser aceites por unanimidade, foram criadas estruturas para o desenvolvimento de acordos multilaterais, alguns dos quais a ser concretizados na seguinte Ronda. A Ronda do Uruguai foi a mais longa (de 1986 a 1994) e a que assinalou o fim do GATT, para dar origem à Organização Mundial do Comércio, criada em 1 de Janeiro de 1995. O leque de temas abordados seria significativamente alargado, pois além da redução de tarifas e barreiras ao livre comércio e da prevenção das práticas de «dumping», passou a discutir-se a regulamentação da prestação de serviços a nível internacional, os direitos de propriedade intelectual ou as questões específicas da agricultura e dos têxteis, tendo sido criado, no seio da OMC, um organismo para resolução de conflitos. A grande expansão do comércio internacional – com uma taxa média de crescimento anual de 5% ao ano durante os primeiros 25 anos e de 8% ao ano nos restantes 25 anos (bem acima das taxas de crescimento globais do PIB) – permite observar que os países em vias de desenvolvimento não tiraram dessa abertura global grandes benefícios, nem se aproximaram dos níveis de desenvolvimento dos países do Norte.


ALTERFILIA

AS HERANÇAS DE MAIO

MANUEL DENIZ SILVA

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AS HERANÇAS DE MAIO

MANUEL DENIZ SILVA | MUSICÓLOGO

MAIO DE 68 FOI HÁ QUARENTA ANOS. E A EVIdência da efeméride, como não podia deixar de ser, tem trazido a sua habitual profusão de eventos: emissões televisivas, debates, livros, colóquios, álbuns, DVDs. E ainda imagens inéditas, o «onde estava em Maio de 68?», as sondagens de opinião, «o que sempre quis saber»... Mas a previsível e cíclica proliferação de discursos e objectos ganhou, neste aniversário, uma importância particular. Como pano de fundo de todos os debates têm estado quase sempre as acusações anti-68 lançadas pelo actual presidente francês no ano passado, em plena da campanha eleitoral. No último meeting antes da primeira volta, Nicolas Sarkozy anunciou aos milhares de apoiantes reunidos no recinto desportivo de Bercy, em Paris, a sua intenção de «liquidar a herança de Maio de 68». Segundo ele, os continuadores da rebelião parisiense tinham «imposto a ideia [de] que não havia nenhuma diferença entre o bem e o mal, nenhuma diferença entre o verdadeiro e o falso, entre o belo e o feio». Teriam mesmo procurado fazer crer «que o aluno era equivalente ao professor (...), que a vítima contava menos que o delinquente», impuseram «o culto do dinheiro rei, do lucro a curto prazo, da especulação». Mais, abriram o caminho «ao capitalismo sem escrúpulos e sem ética». E Sarkozy concluía: «A ideologia de Maio de 68 estará morta no dia em que a sociedade ousar chamar cada um aos seus deveres. A ideologia de Maio de 68 estará morta no dia em que a politica francesa ousar proclamar que na República os deveres são a contrapartida dos direitos. Nesse dia estará, enfim, terminada a grande reforma intelectual e

moral de que a França mais uma vez necessita». Afirmações de uma violência surpreendente, que galvanizaram alguns e deram calafrios a muitos outros. Mas ao que vinha, neste início de século XXI, a evocação pelo candidato da direita de um episódio tão distante, o ressurgir de um passado que parecia esbatido, território reservado aos nostálgicos e ao merchandising? E porque seria Maio de 68, de repente, a origem de todos os males, da ausência de valores, do relativismo cultural e até, pasme-se, das derivas do capitalismo financeiro?! Excessos de retórica para animar um comício? Ou estratégia amadurecida, preparando uma viragem ideológica da direita francesa? Várias interpretações circularam. Para uns, a máscara caíra definitivamente, revelando o autoritarismo do projecto sarkozysta. Para outros, mais cínicos, tudo não passara de uma manobra para ganhar votos. Em eleições que se ganham ao centro, diz a ciência política, as candidaturas de «poder» necessitam, apesar de tudo, de afirmar diferenças. E como os programas económicos e sociais não dão margem para grandes distinções, Sarkozy quis colocar-se, pelo menos ao nível dos símbolos, no campo conservador. A evocação do momento mítico da «desordem» vinha assim assegurar-lhe o voto da extrema-direita. Outros ainda, mais subtis, viram no anátema lançado contra tudo o que veio depois de 68 uma radicalização do seu projecto de «ruptura», a palavra de ordem essencial da sua campanha. Ruptu-

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ra não contra o anterior governo, no qual participara como ministro, mas contra as últimas quatro décadas da política nacional no seu conjunto, coincidentes com o declínio da França enquanto grande potência. O candidato Sarkozy encontrava assim uma outra grandeza histórica, a do regenerador da nação, aproveitando ao mesmo tempo para cortar o nó górdio da sua contradição fundamental: apresentar-se como renovador sem ter de fazer o balanço dos cinco anos em que participara na governação. Seja como for, um ano depois, ao aproximar-se o momento comemorativo, a comunicação social voltou a levantar o assunto. O machado de guerra brandido por Sarkozy, agora presidente, vinha dar outro picante a um evento de potencialidades mediáticas extraordinárias, mas que se arriscava a afogar-se no morno consenso das coisas definitivamente enterradas. Grandes títulos nas revistas, dossiers, entrevistas, debates: liquidar Maio de 68, sim ou não? Que fazer das memórias divergentes e contraditórias? Virar a página definitivamente? Reabilitar, refazer Maio de 68? E como reagiam os ex-soixante-huitards às acusações do presidente? Surpreendentemente, o assunto não tem interessado a opinião pública como se esperava. Antes pelo contrário. Mesmo as utilizações populistas da imagem dos ex-revolucionários confortavelmente instalados na vida, como tentou relatar a revista Paris Match, não conseguiram comover muita gente. Con-


testado politicamente em todas as frentes, Sarkozy não voltou a falar no assunto e os seus porta-vozes têm tentado atenuar o vigor das afirmações passadas. Num livro saído para a ocasião, Cohn-Bendit, o ícone da rebelião estudantil agora deputado europeu, tentou ele próprio fazer um número de equilibrista em que não renega nada sem assumir coisa nenhuma, para concluir que é tempo de passar a outra coisa. Livro que, não por acaso, se intitula Forget 68 (La Tour d’Aigues: Editions de L’Aube, 2008). O tema parece pacífico, as crispações apaziguadas. Uma sondagem publicada pelo Nouvel Observateur mostra até que 77% dos franceses consideram que a razão estava do lado dos estudantes e 74% que Maio de 68 teve um impacto positivo (nomeadamente 65% dos que declaram ter votado Sarkozy). Ter-se-á então o novo presidente enganado de estratégia? Não será assim tão simples. Primeiro, porque a mesma sondagem mostra que a visão positiva de Maio de 68 aparentemente generalizada é antes de mais o resultado de uma memória selectiva e anestesiada. À pergunta «o que lhe evoca Maio de 68», 40% responderam «uma revolta estudantil», 30% uma «modernização dos costumes», e apenas 25% uma «greve geral operária». Entre as imagens marcantes de 68, a maioria escolheu as barricadas no Quartier Latin e a ocupação da Sorbonne, deixando para os últimos lugares a manifestação de apoio a De Gaulle nos Campos Elísios e a ocupação das fábricas da Renault em Boulogne-Billancourt. A «consequência mais positiva» da revolta, para os inquiridos, teria sido a evolução da relação entre homens e mulheres e os slogans considerados mais marcantes são os que se

relacionam com as liberdades («é proibido proibir»), muito mais dos que os políticos ou utópicos (como «a imaginação ao poder»). Consenso mole e difuso, despolitizado. Visão benevolente de um evento esteticamente apelativo que aparece antes de mais como a cristalização de um processo de modernização da sociedade, que provavelmente até se teria realizado sem ele. Aliás, apenas 18% dos inquiridos acham que o balanço de Maio de 68 foi «muito positivo». Qualquer que seja o crédito que se possa atribuir a este tipo de sondagem, os resultados dão que pensar. Primeiro, mostram que as posições hiperbólicas de Sarkozy em campanha não foram de facto muito mais do que gesticulações de propaganda. O voto maioritário jogou-se noutros terrenos. O «espantalho» de Maio de 68 serviu sobretudo de argumento suplementar, que se veio juntar ao discurso securitário e xenófobo do candidato, para roubar votos à extrema-direita e reforçar o eleitorado com mais de 50 anos (na sondagem mais de metade dos inquiridos dessa faixa etária consideraram Maio de 68 como um «acontecimento negativo»). Lógica aliás confirmada pelo resultado das urnas. Depois, mostram que a referência a 68 por parte da direita liberal (em França como em Portugal, diga-se de passagem) é sobretudo operativa no campo do discurso sobre o estado laico e a autoridade, e em particular no debate sobre a educação: 40% dos inquiridos consideram que Maio de 68 teve uma «influência negativa» na relação professor-aluno e no lugar da religião na sociedade. E é sobretudo nesse terreno que se concentra a ofensiva da ideologia conservadora, apoiada na vaga culpabilidade social de um lado obscuro e ameaçador das

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rupturas que foram individualmente vividas como positivas, na generalização da ideia de que as liberdades conquistadas para si próprio, e egoistamente defendidas, não são correctamente utilizadas pelos «outros» (e em particular as classes desfavorecidas e os imigrantes), pondo mesmo em risco a estabilidade do corpo social (aqui marcado pela suposta deriva da escola e pela diminuição do peso da religião). Os resultados da sondagem do Nouvel Observateur podem ser vistos assim como sintoma de dois processos convergentes. Por um lado a transformação progressiva de Maio de 68 em mito icónico, de imagens telegénicas de barricadas e de simpática confusão intelectual e social. Os operários saíram a pouco e pouco do enquadramento das fotografias. Por outro, a redução progressiva de Maio de 68 a uma transformação inelutável dos costumes, que simultaneamente legitima o processo de individualização consumista e dá um nome à sua má consciência. Nicolas Sarkozy é aliás, de certa forma, a encarnação desse processo. Como sugere ironicamente Daniel Cohn-Bendit no seu livro, o actual chefe de Estado francês é o primeiro a ser verdadeiramente fiel ao espírito do Maio de 68, ou pelo menos a um dos seus slogans mais conhecidos: «Viver sem tempos mortos, gozar a vida sem entraves». A primeira coisa que fez o recém-eleito presidente, aquele mesmo que dias antes verberava o «culto do dinheirorei», foi comemorar a vitória num dos restaurantes mais caros dos Campos Elíseos e passear-se pelo Mediterrâneo no iate de um dos homens mais ricos de França. As atribulações amorosas que se seguiram e o gosto imoderado pelos sinais de luxo que lhe


A VERTIGINOSA QUEBRA DE POPULARIDADE DE SARKOZY, ENTRE DEZEMBRO E JANEIRO PASSADOS, TEVE MUITO QUE VER COM ESSA DESPUDORADA AFIRMAÇÃO DO BEM-ESTAR INDIVIDUAL DO PRESIDENTE, FEITA DE RELÓGIOS ROLEX, ÓCULOS RAY-BAN E AVIÕES A JACTO.

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deram a alcunha de «presidente bling-bling» vieram confirmar o hedonismo do líder da direita francesa. Não é apenas um paradoxo. É antes de mais a confirmação de que a pulsão narcísica e a angústia face aos «outros» (sejam eles os «pobres» ou os «estrangeiros»), são as duas faces de uma mesma política. A vertiginosa quebra de popularidade de Sarkozy, entre Dezembro e Janeiro passados, teve muito que ver com essa despudorada afirmação do bem-estar individual do presidente, feita de relógios Rolex, óculos Ray-ban e aviões a jacto. Muitos comentadores assinalaram o contraste entre esse Sarkozy people e o presidente que reconheceu que os cofres do Estado estão vazios, e que não há nada a fazer contra a diminuição do poder de compra da população em geral. Mas este impacto não é apenas conjuntural, como muitos parecem pensar. A frustração profunda provocada por Sarkozy vem da violência com que este afirma o primado liberal do prazer, de uma certa forma de «gozar a vida» que não tem muito que ver com o hedonismo utópico de 68. É a arrogância da ética do sucesso que invade a própria representação política, estalando com o anterior verniz da seriedade do poder sacralizado, respeitada de formas diferentes por De Gaulle, Pompidou, Giscard, Mitterrand e até, a seu modo, por Chirac. Sarkozy pensou que já não precisava dos antiquados rituais e que podia afirmar a sua satisfação pessoal na própria encenação do poder, mostrando assim a forma como subjectivamente divide a sociedade entre os que podem e os que não podem (ou não conseguem) «gozar a vida». E o inesgotável anedotário que foi surgindo nos últimos meses em torno dos complexos de um presidente

SARKOZY PENSOU QUE JÁ NÃO PRECISAVA DOS ANTIQUADOS RITUAIS E QUE PODIA AFIRMAR A SUA SATISFAÇÃO PESSOAL NA PRÓPRIA ENCENAÇÃO DO PODER, MOSTRANDO ASSIM A FORMA COMO SUBJECTIVAMENTE DIVIDE A SOCIEDADE ENTRE OS QUE PODEM E OS QUE NÃO PODEM (OU NÃO CONSEGUEM) “GOZAR A VIDA”.

baixinho obcecado em seduzir top-models, não deixa de ser um espelho da popularização das figuras dessa frustração. Se nos referirmos às leituras em voga por alturas de Maio de 68, não podemos deixar de pensar em Wilhelm Reich, que sabia bem que este tipo de frustrações não anuncia necessariamente viragens à esquerda, como apressadamente concluíram os líderes socialistas franceses. Como o prova a subida surpreendente da popularidade do primeiro-ministro François Fillon, até aí praticamente inexistente, imperceptível na sombra do agitado hiper-presidente. Personagem cinzenta e apagada, mas calma e rigorosa, uma espécie de antídoto conservador à agitação presidencial. Nesse aspecto, Alain Badiou enuncia no seu livro De quoi Sarkozy est-il le nom (Paris: Lignes, 2007) um aspecto essencial para a compreensão da desorientação actual da esquerda. Se o candidato da direita representa um certo tipo de medo que atravessa a sociedade francesa (medo do estrangeiro, das classes populares, do declínio do país), o Partido Socialista apenas conseguiu incarnar o medo inspirado por Sarkozy, ou seja o «medo do medo». O medo e a de-

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sorientação a que Sarkozy dá um «nome» têm, para Badiou, uma história e um momento de fixação: o petainismo. Não se trata de pôr em pé de igualdade a França de 1940 e a de 2007, como não deixaram de o acusar os seus detractores, mas de encontrar, para lá da superfície das diferenças, uma mesma forma estatizada e catastrófica da «desorientação» nacional, aquilo a que Badiou chama um «transcendental» da política francesa: a capacidade de esconder sobre o manto da regeneração nacional a capitulação mais ignóbil, seja ao ocupante, seja ao capitalismo mundializado. Face à desorientação, Badiou propõe como antídoto a coragem. A coragem de afirmar uma posição fundamental, um ponto definido (por exemplo que «todo o trabalhador deve ser considerado de forma igualitária independentemente da sua origem»), e de o manter custe o que custar. Um ponto que seja exterior à temporalidade proposta pelo Estado. Foi o que fez a Resistência, e foi o se que fez em Maio de 68, com a proposta de uma aliança de tipo novo entre os jovens intelectuais e os trabalhadores. E é exactamente por isso que Sarkozy quer liquidar a sua «herança», não porque ela exista em alguma for-


ma definida hoje, mas porque 68 é o espectro que o assombra. O que pretende Sarkozy, diz-nos Badiou, é «extirpar a própria possibilidade de pensar que esse género de obstinação a manter um ponto real seja possível», que «seja publicamente e unanimemente reconhecida a desaparição do espectro». Porque Maio de 68, em toda a sua diversidade, foi a manifestação mais recente em França do que Badiou nomeia de «hipótese comunista», a possibilidade de pensar a passagem «para lá do capitalismo, da propriedade privada, da circulação financeira, do Estado despótico e por aí diante». Não satisfeitos com a vitória sobre o «comunismo real», é a sua própria existência enquanto «hipótese» que os reaccionários modernos pretendem suprimir. A questão fundamental para Sarkozy, portanto, não está tanto na necessidade de uma condenação dos acontecimentos de Maio, em saber quem tinha ou não tinha razão. Está em retirar ao acontecimento a sua própria substância subversiva. E é o que a transformação icónica e a redução apolítica de Maio de 68 têm vindo a fazer. A herança de que precisamos hoje, não nostálgica, dispensa por isso o aparato mediático. Porque é bem mais frágil e escondida. Está viva em transmissões diversas e pouco espectaculares, como as que Jean Birnbaum identificou no seu livro Leur jeunesse et la nôtre, l’espérance révolutionnaire au fil des générations (Paris: Stock, 2005). Para lá dos mitos e dos dilemas de uma geração militante que teve muitas dificuldades em digerir as suas derrotas, foi a «hipótese» de que fala Badiou que foi passando de forma irregular e difusa em fragmentos de afectos, de memórias, de leituras, de experiências. Legado empírico, mais do

que teórico, de maneiras de fazer política, de construir colectivamente os tempos e os espaços em que se concretizam as lutas. Uma ideia de Michel de Certeau, enunciada pouco depois dos acontecimentos de Maio, ficou célebre: os franceses tinham tomado a palavra em 68 como dois séculos antes tinham tomado a Bastilha. Como no pós-25 de Abril, foi a descoberta de uma liberdade intensa no uso da palavra por parte daqueles que se encontravam normalmente privados de discurso, não só pelo poder mas também pelas burocracias partidárias e sindicais. Se alguma herança existe, será antes de mais essa. A da possibilidade efectiva de uma inversão súbita e radical das hierarquias dos discursos e da ruidosa erupção da voz daqueles que não é suposto participarem na discussão da coisa pública. Essa herança não é do tipo das que pedem uma comemoração, mas uma verificação. Ela ainda anda por aí, subterrânea, em mobilizações alter-mundialistas, em lutas de desempregados e precários, em colectivos que lutam contra a expulsão dos sem-papéis, em revoltas estudantis como a do CPE. E em todas as dobras da sociedade onde se vai refugiando o espectro que continua a assombrar as nossas democracias consensuais.


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O NOVO SÉCULO AMERICANO RUI BORGES

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O NOVO SÉCULO AMERICANO

RUI BORGES | FÍSICO, INVESTIGADOR NA FACULDADE DE CIÊNCIAS DE LISBOA

NO DIA 24 DE MARÇO DE 2008, DURANTE UMA patrulha na zona sul de Bagdade, uma mina explodiu à passagem de um carro blindado matando quatro soldados. Com este incidente o número de soldados americanos mortos no Iraque chegou aos quatro mil. Mais quatro nomes adicionados a uma longa lista actualizada diariamente por um sem número de jornais e sites na Internet. Já os mortos iraquianos são tão anónimos, e em número tão elevado que apenas pode ser estimado com base em inquéritos e estatísticas. «Não contamos cadáveres» foi a política anunciada pelo general Tommy Franks quando a ocupação ainda estava na sua fase preparatória. Cinco anos mais tarde, José Pacheco Pereira insiste na tónica e alerta contra essa nefasta prática de contagem de cadáveres que obscurece os sucessos da ocupação. Em ambos os casos as vítimas da invasão são relegadas para um plano secundário: um preço necessário a pagar pela segurança do nosso modo de vida. No entanto, são as estatísticas sobre o número de vítimas que revelam a verdadeira natureza da ocupação e o seu brutal desinteresse pela vida do povo iraquiano. São várias as estimativas que têm sido feitas ao longo dos anos. Pelo menos 82 mil mortos foram contados pelo Iraq Body Count com base em relatos da comunicação social e documentos oficiais (como certidões de óbito). Um estudo do prestigiado jornal médico The Lancet dava conta de mais de 600 mil mortos em Julho de 2006. Uma das mais recentes estimativas aponta para um número superior a um milhão de mortos em Setembro de 2007.

Para além das mortes, a violência quotidiana criou uma enorme massa de refugiados, cerca de 5 milhões de pessoas, que procuram abrigo dentro do Iraque (mais de 2.2 milhões) ou em países vizinhos como a Jordânia e a Síria (mais de 2.2 milhões). Entre os que abandonaram o país encontra-se quase metade dos quadros técnicos e profissionais especializados iraquianos, como médicos, engenheiros e professores. A infraestrutura do país está arrasada e bens essenciais como a água potável são para a maioria dos iraquianos uma memória distante. Uma notícia recente da AFP dá conta da formação de um lago de esgoto, em Bagdade, tão grande que pode ser visto no Google Earth. A taxa de desemprego chega provavelmente aos 40% da população activa e a pobreza extrema atinge também cerca de 40% dos Iraquianos. As exportações de petróleo, o mais importante produto iraquiano e uma das grandes apostas dos Estados Unidos, permanecem abaixo dos níveis pré-invasão. Mas também do lado do ocupante os custos são elevados. Para além dos 4 mil mortos, os feridos contam-se às dezenas de milhar, muitos deles com membros amputados ou graves problemas psiquiátricos. O custo da guerra já ultrapassa os 500 mil milhões de dólares (mais do dobro do PIB português em 2007). O economista Joseph Stiglitz estima que o custo total da guerra possa vir a ultrapassar a espantosa soma de 3 triliões de dólares (3 milhões de milhões ou 3000000000000 dólares). Estes números foram convenientemente afastados dos discursos oficiais que assinalaram os cinco anos da

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ocupação. «O mundo está melhor e os Estados Unidos da América mais seguros» foi a mensagem de Bush. A ideia não é nova, ao longo destes cinco anos têm sido vários os marcos que iriam abrir uma nova era de estabilidade no Iraque: a captura de Saddam, a entrega do poder ao governo provisório, as eleições parlamentares e, mais recentemente, uma mudança de estratégia que fez aumentar em 30 mil o número de soldados americanos no Iraque. De todos estes só o último representa uma viragem de facto na condução da guerra. A OCUPAÇÃO RUMO AO DESASTRE

A violência no Iraque atingira já, durante os anos de 2004 e 2005, um nível elevado e constante, desgastando seriamente o exército americano. Desde o fim de 2005 que um senador democrata, John Murtha, um falcão com contactos estreitos com as altas patentes do exército, defendia uma retirada do Iraque avisando que não havia solução militar para o conflito. John Murtha não fazia mais do que dizer aquilo que os militares não podiam dizer em público, ou seja, a convicção das altas patentes de que não era possível ganhar a guerra. A situação agravou-se com o bombardeamento em Fevereiro de 2006 da mesquita da Cúpula Dourada de Samarra (um dos mais importantes lugares santos para os xiitas). Não se sabe a autoria do atentado – a Al-Qaeda negou qualquer envolvimento e os Estados Unidos e Israel foram acusados da autoria por Ahmadinejad. Muqtada Al-Sadr aproveitou a ocasião para exigir a


retirada das tropas americanas, enquanto os partidos xiitas no governo aproveitaram para consolidar o seu poder. Certo é que, após o atentado, houve uma escalada da violência no país que em parte assumiu a forma de um confronto sectário. Isto porque o grosso dos ataques violentos nos meses seguintes se concentrou em Bagdade e foi dirigido contra o exército americano e as forças armadas iraquianas. O resultado foi um número crescente de baixas americanas e o desgaste político de Bush, que se afundou em níveis de popularidade só comparáveis aos de Nixon após o escândalo Watergate. Nas eleições de Novembro de 2006, os republicanos perderam a maioria parlamentar e Bush passou a coabitar com uma maioria democrata que, de acordo com a líder Nancy Pelosi, assumia o fim da guerra como a sua mais alta prioridade. Entretanto, em Março de 2006, o Grupo de Estudo sobre o Iraque foi criado por iniciativa do Congresso para fazer uma avaliação dos progressos da ocupação. Presidido por dois homens prestigiados nos meios da política institucional americana, o democrata Lee Hamilton e o republicano James Baker, o grupo elaborou as suas conclusões durante o período de maior violência e antecipava-se mais um contributo para o desgaste da estratégia de Bush. Assim foi. O relatório, publicado em Dezembro de 2006, tinha como principais recomendações o regresso ao multilateralismo e ao esforço diplomático, nomeadamente o estabelecimento de relações com a Síria e o Irão, com o objectivo de envolver estes países na estabilização do Iraque, a transferência de competências para o governo iraquiano que permitissem uma retirada faseada das tropas americanas e a transferência de pelo menos uma parte delas para o Afeganistão, onde deveriam reforçar o combate contra a Al-Qaeda. O relatório foi educadamente ignorado por

Bush mas como veremos mais à frente deixou uma marca importante na política americana. A nova situação obrigava a Casa Branca a fazer mudanças numa guerra que parecia encaminhar-se cada vez mais rapidamente para o desastre. Bush preferiu esperar pelo relatório publicado pelo neoconservador American Enterprise Institute em Janeiro de 2007, que rejeitava qualquer concessão diplomática aos países do Eixo do Mal e defendia um aumento significativo dos efectivos militares, sobretudo em Bagdade, para combater a insurreição e diminuir a violência. Foi esta a recomendação seguida por Bush e, um mês após a publicação do relatório neoconservador, começavam a chegar ao Iraque os primeiros reforços de um contingente de mais de 30 mil soldados. Mas o que explica esta obstinação de Bush em continuar a guerra? Com uma maioria da opinião pública e sectores importantes das chefias militares favoráveis à retirada, Bush podia aproveitar o momento para pôr fim à guerra e terminar o seu mandato com um aparente legado de paz. OS NEOCONSERVADORES

George Bush é dotado de alguns traços de personalidade que o transformaram num alvo fácil de chacota, mas as suas gaffes permanentes e as suas aparentes limitações intelectuais não nos devem fazer tirar conclusões precipitadas sobre a sua política. Na execução da estratégia da «guerra infinita» pode haver a sua dose de irresponsabilidade e obstinação. No entanto, a estratégia assenta numa corrente de pensamento que tenta encontrar uma solução para um dos grandes problemas do capitalismo americano: como podem os Estados Unidos da América manter a sua condição de única super-potência imperia-

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lista num mundo de crescente competição económica? O problema não é novo e desde a queda da União Soviética que ocupa as mentes dos estrategos americanos. Nas palavras de John Hamre no prefácio a um dos livros de Zbignew Brezezinski, «Como podemos explicar a ironia de os Estados Unidos, num momento de preponderância geoestratégica incontestada, não terem uma base detalhada de relação com o resto do mundo?…Apesar de tentativas hercúleas para identificar paradigmas para o envolvimento dos EUA no âmbito de um amplo quadro estratégico, nenhuma teoria geral emergiu, nenhuma estratégia detalhada teve o sucesso de formar um consenso político, e nenhuma aproximação permitiu sistematizar as prioridades dos interesses e objectivos americanos». É aqui que surgem os neoconservadores. Não trazem consigo uma solução de consenso, mas têm já há muito uma teoria geral e uma estratégia detalhada para a política externa americana. Reunidos em torno da organização Projecto para um Novo Século Americano (PNAC na sigla inglesa), a sua declaração fundadora é clara sobre o caminho a seguir: aumentar significativamente as verbas para as forças armadas e, assim, tirar partido de uma superioridade militar esmagadora para impor ao resto do mundo a vontade de Washington na economia, nos negócios e na diplomacia. Ficaria assim garantido o domínio americano durante mais um século. Neste jogo o petróleo é a mais importante e estratégica das mercadorias do século XXI e deve ser controlado a qualquer custo. Esta opção não se prende, no entanto, com o lucro imediato das empresas petrolíferas americanas (embora elas acabem por beneficiar directamente). O verdadeiro interesse dos neocons é, por um lado, controlar os fluxos e o preço do petróleo, para criar condições favoráveis ao desenvolvimento do capitalismo americano e, por outro,


O DECRÉSCIMO DA VIOLÊNCIA DEVE-SE EM PARTE AO FIM DO CONFRONTO SECTÁRIO PELO CONTROLO DE BAGDADE E À VITÓRIA XIITA, QUE SOB A VIGILÂNCIA NORTE-AMERICANA ACANTONOU AS VÁRIAS COMUNIDADES RELIGIOSAS EM ZONAS SEPARADAS DA CIDADE. VÍRUS ABR/MAIO 2008

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ter a alavanca do poder sobre as economias dos seus principais competidores: a União Europeia e a China. Fiéis a estes princípios os neocons propangadeavam a invasão do Iraque muito antes do 11 de Setembro. Em Janeiro de 1998 assinaram uma carta enviada ao presidente Bill Clinton exigindo acção imediata para remover Saddam Hussein do poder. A desculpa era o perigo das armas de destruição em massa que poderiam pôr em causa os «interesses vitais da América no Golfo». Quando Bush ganhou as eleições uma parte importante dos signatários, incluindo Donald Rumsfeld, Paul Wolfowitz, John Bolton ou Zalmay Khalilzad, assumiram alguns dos mais altos cargos no aparelho de Estado. A sua obsessão com a ocupação do Iraque (e com o controlo militar do Médio Oriente) foi declarada em inúmeros documentos, briefings e colunas de opinião bem antes dos atentados do 11 de Setembro que acabaram por ser parte da justificação para a aventura iraquiana. A outra parte era a das armas de destruição massiva que, como se sabe, nunca foram encontradas. E assim chegamos a 2008, um milhão de mortos depois da célebre «missão cumprida» anunciada por George Bush. E se, como já vimos, o balanço do ponto de vista humanitário é catastrófico, o cenário do ponto de vista dos interesses americanos não é animador. A invasão do Iraque inflamou as tensões no Médio Oriente. O Irão conseguiu obter uma influência no interior do Iraque e em toda a região com que não ousaria sonhar há cinco anos atrás. No Líbano, a influência do Hezbollah cresceu ao ponto de infligir a Israel a primeira derrota militar da sua história. No Afeganistão, a situação degrada-se dia a dia e os talibans controlam cada vez mais território. Mas a sua influência não pára de crescer também no Paquistão onde se tornaram uma séria ameaça ao

regime. A Turquia faz incursões militares no norte do Iraque em perseguição dos guerrilheiros do PKK que ameaçam desestabilizar a região curda. A democracia iraquiana é sustentada por milícias religiosas e esquadrões da morte, um regime que só consegue sobreviver pela força das armas americanas. O sonho neoconservador de uma onda democrática que varresse o Médio Oriente e o transformasse numa zona de regimes fiéis aos interesses americanos transformou-se num pesadelo que, ao semear a instabilidade por toda a região, pode minar seriamente a influência de Washington. O sucesso da estratégia neoconservadora dependeria também da sua capacidade para desencadear um período de crescimento económico que sustentasse a ofensiva militar e trouxesse prosperidade ao capitalismo americano. Mas, com a crise económica que se adivinha e a escalada imparável do preço do petróleo toda a estratégia fica posta em causa. A política externa americana encontra-se por isso numa encruzilhada e a discussão sobre o rumo a seguir é o centro do debate eleitoral que se está a travar em preparação para as eleições presidenciais de Novembro. OS NEOCONS ACAUTELAM O FUTURO

Estamos a menos de um ano do final do mandato de Bush. Por esta altura o presidente preocupa-se em organizar a imagem que a história guardará da sua presidência. A sua corte começa já a dar forma a essa visão e a preparar o terreno para que a ideologia neoconservadora sobreviva na arena política muito para além do fim do mandato de Bush. Para William Krystol, um dos grandes divulgadores do neoconservadorismo, a presidência de Bush foi um sucesso e a receita para que essa percepção se solidifique passa por uma atitude mais conciliadora na política interna e por evitar vacilações

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no Iraque e no Afeganistão – o reforço de tropas deve continuar durante tanto tempo quanto o necessário e no pouco tempo que resta deve considerar-se a hipótese de atacar o Irão ou a Coreia do Norte. O principal argumento dos neocons para defender o sucesso de Bush é a redução da violência no Iraque e a consequente perspectiva da guerra estar a ser ganha. Obviamente qualquer observador mais atento percebe que a possibilidade de vitória é ilusória. O decréscimo da violência deve-se em parte ao fim do confronto sectário pelo controlo de Bagdade (do qual os xiitas saíram vitoriosos), que, sob a vigilância do exército americano, acantonou as várias comunidades religiosas em zonas separadas da cidade. Um dos resultados deste conflito foi a trégua estabelecida com os grupos sunitas que formaram os Sahwas ou Conselhos Despertar. Muitos destes homens faziam parte das forças da Al-Qaeda, o que prova que, em caso de necessidade, Bush sabe fazer a paz com os seus inimigos irreconciliáveis. Na província de Anbar, parte do mortífero triângulo sunita, os soldados americanos abstêm-se de aparecer no centro das cidades e entregaram a segurança aos Conselhos que, em princípio, combatem o que resta dos insurgentes. Em troca, cada ex-membro da resistência recebe 300 euros por mês do exército americano. Observadores mais próximos da realidade iraquiana, como o jornalista irlandês Patrick Cockburn, afirmam, no entanto, que a situação está longe de ser estável. Os assassinatos e ataques às tropas americanas ocorrem a um ritmo diário. A violência pode ter diminuído se comparada com os dias sangrentos da batalha pelo controlo da capital em 2006, mas permanece tão intensa como em 2004 e 2005. De resto, o levantamento da milícia de Muqtada Al-Sadr, em finais de Março, deita por terra qualquer ideia de estabilidade no país.


Como vimos, a estratégia de longo prazo dos neocons está bem definida e passa pelo controlo directo dos fluxos de petróleo do Médio Oriente. Para esse fim, a continuação da guerra é essencial e, por isso, a sua prioridade imediata é condicionar de tal forma as decisões do futuro presidente que a ocupação tenha que ser mantida. O processo de consolidação da presença americana vai sendo feito pela calada, longe das páginas dos jornais ou do debate eleitoral. Bush procura uma forma de chegar a um acordo para o estabelecimento de bases permanentes no país que nem sequer tenha que ser ratificado pelo Senado americano. Se Bush entregar ao seu sucessor um Iraque inundado de soldados americanos, com acordos para o estabelecimento de bases militares e, sobretudo, uma aparência de calma no terreno, poderá reclamar uma situação em que a vitória estaria ao alcance dos Estados Unidos. O preço político de alterar o rumo imposto por Bush poderá ser considerável. Afinal nenhum dos futuros inquilinos da Casa Branca quererá ficar para a história como o (ou a) presidente que perdeu o Iraque, algo que os republicanos não se inibirão de usar como arma política. É este o legado que Bush pretende deixar ao seu sucessor: uma guerra impossível de ganhar, mas também impossível de terminar. Durante os próximos meses a Casa Branca tudo fará para promover a retórica do sucesso no Iraque e acusará os seus adversários de fraqueza e vacilação face ao terrorismo islâmico. Os neocons arriscam assim a sobrevivência da sua política para além do mandato de Bush. Claro que se John McCain ganhar as eleições a continuidade está naturalmente assegurada. Para o republicano, os Estados Unidos poderão permanecer no Iraque por mais 100 anos.

É ESTE O LEGADO QUE BUSH PRETENDE DEIXAR AO SEU SUCESSOR: UMA GUERRA IMPOSSÍVEL DE GANHAR, MAS TAMBÉM IMPOSSÍVEL DE TERMINAR. DURANTE OS PRÓXIMOS MESES A CASA BRANCA TUDO FARÁ PARA PROMOVER A RETÓRICA DO SUCESSO NO IRAQUE E ACUSARÁ OS SEUS ADVERSÁRIOS DE FRAQUEZA E VACILAÇÃO FACE AO TERRORISMO ISLÂMICO.

A ALTERNATIVA DEMOCRÁTICA

Se, pelo contrário, um dos candidatos democratas ganhar, a Casa Branca será ocupada por alguém com uma visão da política externa com diferenças em relação aos neocons. Tanto Clinton como Obama defendem publicamente uma retirada do Iraque, o que está obviamente a alimentar algumas das expectativas em torno desta eleição. Convém, no entanto, ir um pouco além dos discursos eleitorais e examinar o que propõem os dois candidatos para a nova política externa americana. Os dois candidatos a candidato foram convidados pela revista Foreign Affairs a pôr no papel as suas ideias sobre política externa. Quer Barack Obama quer Hillary Clinton escreveram extensos artigos que têm servido de fonte para os resumos expostos nos seus programas eleitorais. As semelhanças entre as propostas são espantosas: uma retirada responsável do Iraque acompanhada de exigências ao governo de reconciliação entre as seitas do país, um regresso a uma postura multilateralista com o estabelecimento de relações diplomáticas com o Irão, a manutenção na região de tropas que permitam atacar a Al-Qaeda quando necessário, aumentar a pressão sobre o Paquistão para combater o terrorismo, e o reforço das tro-

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pas no Afeganistão para derrotar os talibans. As propostas dos candidatos democratas são claramente tributárias das conclusões do Grupo de Estudo do Iraque acima referido. O Washington Post publicou uma lista completa dos assessores para as relações externas de cada um dos candidatos. A lista é reveladora dessa divisão inicial (entretanto esbatida) que se estabeleceu no Partido Democrata: com Hillary Clinton um conjunto de assessores que inicialmente apoiaram a guerra e que agora a ela se opõem, com Obama alguns que desde o início se opuseram à invasão. Mas também é reveladora do domínio dos ideólogos da supremacia americana nas três principais candidaturas: Henry Kissinger e os neocons apoiam John McCain, Zbigniew Brzezinski está com Obama, enquanto Madeleine Albright e Richard Holbrook (ambos discípulos de Brzezinski) apoiam Hillary Clinton. Numa fase em que Obama capta apoios importantes por parte de superdelegados e personalidades de destaque do partido democrata, começa a crescer fortemente a probabilidade de ser ele o nomeado para a disputa presidencial. Obama tem em relação a Clinton a enorme vantagem de sempre ter afirmado a sua oposição à guerra do Iraque, o que torna a sua prestação muito mais credível aos olhos


HÁ UM CONSENSO PARA RECENTRAR A POLÍTICA EXTERNA AMERICANA, RETIRANDO DO IRAQUE PARA NÃO PÔR EM CAUSA A FORTÍSSIMA PRESENÇA AMERICANA NO GOLFO PÉRSICO E DIRIGIR OS ESFORÇOS MILITARES PARA O CONTROLO DA ÁSIA CENTRAL O QUE PERMITE POR UM LADO CONTER A RÚSSIA E A CHINA E POR OUTRO O ACESSO A UMA DAS MAIS FORMIDÁVEIS RESERVAS DE COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS DO MUNDO. VÍRUS ABR/MAIO 2008

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de um eleitorado ansioso por uma mudança de política. Importa, pois, observar mais atentamente o pensamento do seu principal conselheiro para a política externa, que é também o grande ideólogo da política externa do Partido Democrata. Brzezinski foi conselheiro para as questões da defesa do presidente Jimmy Carter. Nessa qualidade foi o principal arquitecto da política americana para o Afeganistão, o que incluiu, entre outras coisas, a criação e o financiamento dos taliban. Interrogado em 1998 sobre a questão, Brzezinski replicou ser mais importante a queda da União Soviética do que alguns «islamitas excitados». Três anos mais tarde os «islamistas excitados» matariam 3 mil pessoas em Nova Iorque. Mas isso são águas passadas. É através de Brzezinski que compreendemos melhor uma importante corrente de opinião dentro da classe dominante americana. Brzezinski tem publicado o seu pensamento sobre questões geoestratégicas e tem colocado o problema nos seguintes termos: a região da Eurásia (a vasta região continental entre o Atlântico e o Pacífico) tem sido o centro do poder durante os últimos séculos e hoje o controlo dessa região é essencial para a potência que tiver aspirações de domínio global. Aqui sobressai com especial importância a zona da Ásia Central, constituída grosso modo pelas antigas repúblicas do sul da URSS (como o Cazaquistão e o Tadjiquistão), o Afeganistão e o Paquistão. O controlo da Ásia Central permitiria à potência dominante controlar as ambições de crescimento da China e da Rússia, mas sobretudo garantiria o acesso ao principal prémio da região: as suas gigantescas reservas de petróleo e gás natural. Ou seja, quem dominar o petróleo e o gás natural do Golfo Pérsico e das repúblicas da Ásia Central tem a chave para a dominação do mundo.

A estratégia tem alguns problemas, sendo o principal o do escoamento dos recursos energéticos das ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central, contornando as pipelines russas e evitando o Irão. Uma velha aspiração das petrolíferas seria ligar o Turquemenistão aos portos paquistaneses passando pelo Afeganistão. No auge do optimismo pós-invasão chegou a ser assinado em Dezembro de 2002 um acordo entre o Turquemenistão, o Afeganistão e o Paquistão para transportar gás natural para o Oceano Índico. As ideias de Brzezinski não deixam de ter semelhanças com a política neoconservadora. Tem, no entanto, uma diferença importante na rejeição do unilateralismo e voluntarismo militarista dos neocons. Segundo Brzezinski, a presença americana no Iraque está a criar um sentimento de revolta em massa que poderá culminar na expulsão dos americanos da região e ter como consequência o fim do Estado de Israel. Esta possibilidade representa um cenário de pura catástrofe para os interesses geoestratégicos americanos, e uma parte da burguesia começa assim a preparar o caminho para uma alteração na política externa que acautele os interesses de longo prazo do capitalismo americano. As semelhanças entre as propostas do relatório do Grupo de Estudo do Iraque, os programas eleitorais de Obama e Clinton e as ideias de Brzezinski não são assim uma mera coincidência. Este relatório começou a cimentar um consenso de alternativa ao projecto neoconservador a que os democratas aderiram, mesmo aqueles que, como Hillary Clinton, inicialmente apoiaram a guerra, mas face ao visível desastre da ocupação tiveram que adoptar uma alternativa. Esse consenso consiste em recentrar a política externa americana, retirando do Iraque para não pôr em causa a fortíssima presença americana no Golfo Pérsico, e dirigir os esforços militares para o controlo da

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Ásia Central, o que permite conter a Rússia e a China e ter acesso a uma das mais formidáveis reservas de combustíveis fósseis do mundo. Obama faz parte deste consenso e não revela qualquer ambiguidade na propaganda dessa política. Mas mesmo a questão da retirada do Iraque não será fácil e os candidatos democratas tentam sempre manter a margem de manobra mais ampla possível. Os democratas tentarão sair do Iraque mas de forma «responsável», o que é para todos os efeitos uma forma de assumir uma eventual continuidade da ocupação. Samantha Power, uma das estrelas da campanha de Obama (até se demitir no início de Março por chamar «monstro» a Hillary Clinton), deu uma entrevista à BBC em que explica o conceito de responsabilidade: a prometida retirada do Iraque em 16 meses é apenas previsível num cenário optimista. Tal retirada terá sempre que ser planeada em conjunto com as chefias militares num terreno onde, em 5 anos, nunca se viu nada que se assemelhe a um cenário optimista. As eleições representam um debate real no seio da classe dominante americana sobre como assegurar o futuro dos seus interesses. As diferenças entre republicanos e democratas não significam, portanto, uma ruptura. Elas situam-se no plano de um consenso sobre a necessidade de manter a supremacia do imperialismo americano salvando-o de uma derrota calamitosa no Iraque. Ou, de outra forma, o debate em curso não é sobre os fins (a dominação global) mas sobre os meios (a melhor forma de a atingir). Um dos mais importantes danos colaterais desta discussão é a esquerda americana que, periodicamente, embarca no apoio aos candidatos do Partido Democrata e continua a adiar um problema velho de gerações: a criação de uma força política alternativa que represente o movimento popular do país.


FOTOJORNALISTA HÁ MAIS DE 20 ANOS, O RUSSO YURI KOZYREV JÁ COBRIU OS CONFLITOS MAIS IMPORTANTES NO TERRITÓRIO DA ANTIGA URSS, INCLUINDO AS DUAS GUERRAS DA CHECHÉNIA. LOGO APÓS O 11 DE SETEMBRO, PARTIU PARA O AFEGANISTÃO , ONDE FEZ A COBERTURA DA QUEDA DO REGIME TALIBÃ. VIVE HÁ SEIS ANOS EM BAGDADE, ONDE FOTOGRAFA PARA A REVISTA TIME FRAGMENTOS DA VIDA DOS VÁRIOS LADOS DO CONFLITO, VIAJANDO POR TODO O IRAQUE. É UM DOS FOTÓGRAFOS MAIS PREMIADOS DO MUNDO, MAS ESTEVE EM PORTUGAL DESTA VEZ PARA SER JÚRI DUM PRÉMIO DE FOTOGRAFIA E FOI ENTREVISTADO POR SANDY GAGEIRO

FAZEMOS A MÍNIMA IDEIA DO QUE SE PASSA NO IRAQUE? Do meu ponto de vista, que é o de um fotógrafo que está há mais de seis anos no Iraque, não chega cá a informação correcta do que lá se passa. É um grande desastre, uma grande tragédia e é incrível porque ainda no passado mês, que foi muito importante para os americanos (cinco anos sobre o início da guerra), estavam a tentar provar que tudo está controlado, tentam encontrar o caminho... mas eu estou lá... e do que se trata afinal? Constroem oitocentos quilómetros de muros dentro da cidade dividindo famílias, tribos, amigos, vizinhos e dizem que têm a situação resolvida! É estranho e nada familiar com a democracia. E quando olhas com atenção depreendes que os rebeldes controlam o terreno e isso não encontras nos discursos que fazem nos Estados Unidos. Eles (americanos) marcam o território e afirmam o seu espaço. Infelizmente, não recebemos essa realidade... comprometi-me com esta história e vou fazê-la. Às vezes quando estou em Nova Iorque apercebo-me que é uma vergonha falar sobre o Iraque. Perguntam-me: «ainda estás no Iraque, és doido ou quê?» Ao que respondo – «não, não sou, esta é a história do século, como as duas grandes guerras foram no século passado. Isto não diz respeito apenas à América e ao Iraque, isto envolve todos os países do mundo. Por isso, é a história em que eu trabalharei». E O MEDO? É difícil avaliar... por exemplo, a Chechénia foi um enorme desafio por causa dos rebeldes e das autoridades russas... mas o Iraque é completamente diferente. Os iraquianos não viam estrangeiros há muitos anos e, portanto, são desconfiados. Os rebeldes, por exemplo, não querem nada com os media. Por isso é que a maior parte dos jornalistas opta por estar embedded com os militares, mas isso revela apenas um lado do conflito, não é a história completa, mesmo que vejas e penses nos iraquianos... estás ao lado de militares. É um local perigo-

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síssimo, mas como jornalista profissional encontras sempre uma forma de cobrir o assunto: encontras amigos, fontes, ligações e pessoas que te respeitam e que vêem que estás comprometido com uma história. Eu tenho sorte porque as pessoas ajudam-me a chegar à verdade. Pode ser incrivelmente perigoso só pensar em ir a Bagdade mas se estás com amigos encontras uma saída. A experiência, o compromisso e os amigos movem-me. E QUE VIDA ACONTECE NO IRAQUE? É incrível, eles tentam levar uma vida normal... casar, nascer, pequenas celebrações. Eles tentam. É incrível... não pensas em água e luz em sítios como Londres, Moscovo ou Lisboa, mas lá...eu vivo numa casa na zona vermelha, considerada perigosa, e é uma festa quando temos luz, água ou pão quente. Quando um bebé de amigos meus nasce é fantástico, celebramos. São pequenas coisas que são tão importantes que acho que de fora ninguém entende. São estas experiências que mais valorizo. A FALTA DE IMPRENSA INDEPENDENTE E FORTE BOICOTA JORNALISTAS QUE APOSTAM EM TRABALHOS PERSISTENTES DE LONGA DURAÇÃO NO TERRENO? É um grande problema. Infelizmente são poucas as publicações comprometidas com trabalhos executados a longo prazo. Eu tenho sorte porque a revista Time está mais dedicada à fotografia do que as outras. Respeitam os autores... também é verdade que uma fotografia pode contar muito mais que um texto. Pessoalmente, quando era free-lancer e aconteceu a segunda guerra na Chechénia, liguei a algumas publicações a propor trabalho e eles responderam que não porque «era muito perigoso». Mas como para mim era importante viajei para lá e instalei-me. Às vezes é preciso dinheiro, mas noutras contornas a situação e consegue-se muita informação.


CONTRATEMPO

HOLLOWAY

NOTA SOBRE O PODER E A POLÍTICA

FRANCISCO LOUÇÃ VÍRUS ABR/MAIO 2008

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CONTRA O DIREITO AO EMPREGO


NOTA SOBRE O PODER E A POLÍTICA: HOLLOWAY CONTRA O DIREITO AO EMPREGO FRANCISCO LOUÇÃ | ECONOMISTA

John Holloway é professor de sociologia na Universidade de Puebla, no México, e o seu livro mais conhecido é Mudar o Mundo sem Tomar o Poder (2002). No fim de semana de 1112 de Abril esteve em Lisboa para um colóquio sobre Maio de 68, co-organizado pelo Le Monde Diplomatique (ed. portuguesa) e pelo Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Para surpresa de quem menos conhece a sua obra, sublinhou a sua intervenção com um ataque ao Bloco de Esquerda, condenando um outdoor que defende o direito ao emprego. Este episódio serve de pretexto para as notas que se seguem sobre a questão da luta pelo emprego na sociedade capitalista.

HOLLOWAY PARTILHA COM TONY NEGRI ALgumas referências fundamentais, tanto no plano filosófico (Deleuze e Foucault),1 como na rejeição das visões tradicionalmente opostas na esquerda, seja a da socialdemocracia, do estalinismo e de outras correntes, e ainda na rejeição das propostas revolucionárias derivadas das oposições de esquerda ao longo do século XX. Mas critica em Negri a apresentação de uma mundivisão estratégica, como a que este defendeu com Michael Hardt em Império, pelo facto de ser uma estratégia e pelo facto de ser global. De facto, Holloway destacou-se pelo facto de ter proposto uma leitura do zapatismo que o apresentava como uma alternativa ao modo de pensar de todas as esquerdas – embora o zapatismo oficial tenha recentemente feito todo o possível para deixar claro que Holloway não é o seu ideólogo nem representante. Essas questões de estratégia não são tratadas aqui. O que me interessa, em contrapartida, é a justificação política da recusa da luta pelo direito ao emprego. E, como Holloway se refere ao marxismo e pretende mesmo representar uma nova geração do pensamento marxista, é legítimo situar esta discussão nesse contexto ideológico. A primeira razão de Holloway mergulha na sua visão da luta emancipatória. Segundo ele, «O problema não é destruir esta sociedade, mas parar de a criar». Se assim fizermos, a sociedade capitalista «deixa de existir».2 Por isso mesmo, é preciso fugir: «Evadir-se do capital é vital. Escapar-lhe é ‘fácil’, o verdadeiro problema é conseguir a fuga

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e evitar ser apanhado».3 A explicação está feita: devemos fugir do capitalismo, deixando de o produzir e desagregando-o assim através desse antipoder que desarticula o poder. Como Holloway explicou na sessão referida, o emprego é o direito a ser explorado, e por isso é parte da produção do capitalismo. O nosso poder seria fugir. A segunda razão para a recusa do direito ao emprego decorre directamente desta. Como a propriedade é o «processo diariamente repetido de apropriação do produto da nossa acção», assenta na reificação do produto. A forma de combater o capitalismo é por isso «possivelmente, a desfetichização da propriedade».4 Assim, a fuga ganha uma direcção: a desalienação é a chave da política, porque é possível criar «nichos de recusa, de desobediência, de insubordinação», «opondo o valor de uso ao valor de troca.»5 A terceira razão é o enunciado da forma de actuação: «Queremos fazer um mundo novo, não queremos tomar o poder». O nosso poder é diferente do do capitalismo, porque «está por todo o lado».6 É um «antipoder».7 A prática emancipatória desenvolve-se a partir dos interstícios da resistência à alienação, ligando experiências «dentro-contra-para além do capital».8 Nem toda a gente partilhará o mesmo optimismo que define uma acção dentro-contra-para-além, mas nada disso parará o ímpeto de Holloway. A recusa do direito ao emprego fica então clara. A luta emancipatória não enfrenta nem sequer procura vencer o capitalismo, procura fugir dele, e o seu poder é


não querer o poder. Mas esse não-poder é irrigado pelos «interstícios» da sociedade, criando «nichos». O que acontece nesses nichos? Perguntar é responder: criam-se valores de uso, opostos aos valores de troca. Com essa ambição, temos simultaneamente uma política e uma fuga. Todas as consequências desta visão estão expressas na celebrada rejeição do direito ao emprego. Mas, antes de discutir razões e consequências, permita a leitora ou o leitor que deitemos uma vista de olhos aos argumentos de Marx. Holloway não levará a mal; de facto, considerando-se ele próprio um renovador do marxismo, não pode deixar de se medir contra os seus temas originais. Não passa a ter nem perde razão pelo facto de ser distinto de Marx, nem lhe falta legitimidade para o questionar; afinal, esse é o sentido da teoria crítica e do marxismo aplicado a si próprio. Não é portanto um exercício de hermenêutica que pode decidir da validade dos argumentos em liça, mas não deixa de ser relevante pensar se as questões actuais não foram já afrontadas no passado. E é que foram. Na sua Miséria da Filosofia, Marx lança-se contra as doutrinas de Proudhon. Para o que nos interessa, Proudhon defendia a ideia da dupla natureza do valor, distinto entre valor de uso (a utilidade para a pessoa) e o valor de troca (o valor socialmente reconhecido na troca mercantil). Marx escarnece desta ideia: «No momento em que [Proudhon] ignora a procura, identifica troca com escassez e valor de uso com abundância». Para Marx, pelo contrário, o valor de uso é parte da determinação da procura social, mas a realização da mercadoria ocorre no mercado e não antes dele, e é por isso esse processo de socialização privada que constitui o valor de troca

TROQUEMOS ISTO POR MIÚDOS. ESSA PRODUÇÃO DE VALORES DE USO, O LUGAR DA FUGA DO CAPITALISMO (NEGRI DIRIA DO EXÍLIO OU, MAIS BÍBLICO, DO ÊXODO), PODERIA ENTÃO FAZER-SE SEM TRABALHO ASSALARIADO, SEM EMPREGO NESSE SENTIDO, E SEM TROCA MERCANTIL, ISTO É COM TROCA DIRECTA ENTRE PRODUTORES.

como valor e só assim tem valor de uso, sendo acessível. A produção de mercadorias é por isso concomitante da função da moeda, que organiza a troca. No Trabalho Assalariado e Capital, Marx vai um pouco mais longe e analisa o «capital como uma relação social de produção. É a relação burguesa de produção». O capital «consiste não somente em meios de subsistência, instrumentos de trabalho e matérias primas e não somente em produtos materiais; consiste em valores de troca». Finalmente, no segundo capítulo do Capital, a sua obra fundamental, Marx volta a discutir a distinção entre valores de uso e valores de troca: «Todas as mercadorias são não-valores-de-uso para os seus proprietários e valores de uso para os seus não-proprietários. (…) Assim as mercadorias devem ser realizadas como valores antes de serem realizadas como valores de uso. Por outro lado, devem provar ser valores de uso antes de serem realizadas como valores». Nesse sentido, afirma, «O progresso histórico e a extensão das trocas desenvolve o contraste, latente nas mercadorias, entre o valor de uso e o valor». O contraste é permanente, e a sociedade burguesa resolve-o com a troca mercantil e com a formação do capital: o valor torna-se valor de troca.

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Para Holloway, esta análise deve ser abandonada. De facto, volta a Proudhon, rejeitando a ideia marxista da coerência da sociedade e da produção capitalista, isto é do seu modo de produção que estabelece o capital como uma relação social. E, nessa senda, recupera a ideia de que ainda sobreviveria, não um contraste, mas uma contradição entre valor de uso e valor de troca. Assim sendo, o próximo passo é simplesmente afirmar que os «nichos», os «interstícios» da sociedade são os espaços em que seja possível a produção de valores de uso sem valor de troca. Troquemos isto por miúdos. Essa produção de valores de uso, o lugar da fuga do capitalismo (Negri diria do exílio ou, mais bíblico, do êxodo), poderia então fazer-se sem trabalho assalariado, sem emprego nesse sentido, e sem troca mercantil, isto é com troca directa entre produtores. Seria necessariamente um «nicho» onde não existiria moeda, porque qualquer troca monetarizada pressupõe a medida de valores de troca. Ora, este «interstício» não poderia existir em nenhuma sociedade capitalista; porventura poderia ser criado numa comuna retirada do mundo, sem consumos que não correspondessem à produção local.


A IDEIA DE QUE SE PODE COMBATER O DESPOTISMO DO MERCADO OU A SACRALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE ATRAVÉS DESTAS FUGAS É PROFUNDAMENTE PERNICIOSA, NÃO SÓ PORQUE ARRASTARIA A VONTADE EMANCIPATÓRIA PARA UM PURGATÓRIO INCOMUNICÁVEL, COMO SOBRETUDO PORQUE DESISTIRIA DE INTERVIR NA DISPUTA CONCRETA DOS DIREITOS SOCIAIS.

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É uma utopia, mas é uma utopia reaccionária. Só um regime concentracionário poderia imaginar este idílio, em que os consumos são determinados sem escolha individual, em que o gosto é dirigido, em que não há acesso a formas de comunicação ou de acção global. A ideia de que se pode combater o despotismo do mercado ou a sacralização da propriedade através destas fugas é profundamente perniciosa, não só porque arrastaria a vontade emancipatória para um purgatório incomunicável, como sobretudo porque desistiria de intervir na disputa concreta dos direitos sociais. Haveria ainda uma alternativa, a que Negri defende: os desempregados reivindicariam um rendimento universal. Assim, poderiam viver sem estar sujeitos às grilhetas do trabalho. Mas esta alternativa não é alternativa. De facto, o acesso a subsídio de desemprego ou a rendimento social é fundamental para proteger da exclusão e da marginalização, mas não garante o direito fundamental da autonomia do trabalhador, em primeiro lugar porque fica dependente do Estado. Deve ser defendido como o que é: uma resposta transitória a uma situação inaceitável. Mas seria pelo menos estranho que os defensores do «exílio» e da «fuga» fizessem desembocar essa fuga... nos braços da dependência do Estado. O contrapoder viveria assim do poder, o que não deixaria de ser absurdo. Esta questão, aliás, remete de novo para o problema da estratégia política. Ao pedir aos desempregados que fujam e que não aceitem o trabalho assalariado, Holloway não lhes está a pedir que deixem de ser explorados, com a ambição benevolente de que, se fossem muitos os que deixassem de trabalhar, o capitalismo ruiria (ignorando aliás que as pessoas deixariam entretanto de

consumir aquilo de que dependem para viver). Está a afirmar que a alienação é tão poderosa, porque inscrita no trabalho, que pode ser vencida pela desistência. Bastaria então que fosse apregoada a necessidade de eliminar a alienação das nossas mentes, como se a alienação fosse uma visão deturpada que pudesse ser limpa das consciências sofredoras, num «regresso ao paraíso perdido», para que as Muralhas de Jericó do capitalismo tombassem clamorosamente. Com qualquer modo de fuga, que Holloway sugira que o caminho para dia tão glorioso seja o desistir de combater, não deixa de ser uma demonstração de cinismo. Se quiserem seguir o meu conselho e certamente o que lhes diz a sua experiência, os e as desempregadas continuarão a lutar pelo direito ao emprego e pela margem de autonomia que um salário permite, para que essa acção e organização social marque o presente e o futuro.

NOTAS 1

Discuti as posições de Negri em capítulos de dois livros escritos com Jorge Costa, «A Guerra Infinita» e «A Globalização Armada» (2002, Edições Afrontamento). Tanto na análise da guerra do Iraque e do papel de Washington como centro do império, como em algumas questões políticas como o apoio de Negri ao projecto de Constituição Europeia, as nossas divergências são fundamentais. Assinalo em todo o caso que, ao rejeitar o lugar da história e da estratégia, Holloway se coloca à direita de Negri. 2

«Stop Making Capitalism», in Werner Bonefeld e Kosmas Psychopedis (eds.), Human Dignity, Ashgate, Londres, 2005. 3

Revolt and Revolution, or «Get out the Way, Capital», in Werner Bonefeld e Sergio Tischler (eds.), What is to be Done, Ashgate, Londres 2002. 4

«Zapatismo Urbano», in Humboldt Journal of Social Relations, Arcata, California, 2005. 5

«Revolt and Revolution», ibid.

6

«Where is Power», in P. Chandra, A. Gosh, et R. Kumar (eds.), The Politics of Imperialism and Counterstrategies, Aakar Books, Dehli, 2004.

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7

Ibid.

8

«Stop Making Capitalism», ibid.


RAPS Ó DI

COMICOPERA DE ROBERT WYATT | A BALADA DO NÍGER DE AMÍLCAR CORREIA

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LONGE DAS FADAS SANDY GAGEIRO

ROBERT WYATT FUNCIONA AO CONTRÁRIO daquilo a que nos habituámos nos músicos ligados ao universo pop/rock. Com a idade tornou-se mais politizado (membro resistente do quimérico partido comunista inglês), cada vez mais lúcido em relação ao mundo circundante, musicalmente mais genial e, para além do mais, convictamente recolhido das modas e atenções mediáticas. No entanto é impossível, mesmo para a imprensa generalista, passar ao lado de um novo disco seu. Quando Comicopera saiu no fim do ano passado, a editora independente Domino (domicílio também para os Artic Monkeys, Animal Collective, Stephen Malkmus e Bonde do Role) convidou Alexis Taylor dos insuspeitos Hot Chip (banda de música electrónica dancável) para escrever o texto de apresentação do novo disco de Wyatt para a imprensa. A primeira reacção para muitos foi de surpresa, depois de diversão e finalmente de reconhecimento. Só um músico irrepreensível e autor de álbuns de género tão próprio e irrepetível pode convocar tantos e opostos tipos de ouvintes, como o próprio Alexis Taylor, que afirmou, numa entrevista, ter roubado o álbum Ruth is Stranger than Richard numa biblioteca acabando mais tarde por usá-lo em sets de DJ. E mais uma vez Comicopera é uma experiência. Apesar da voz (de timbre único) aparentemente calma, ele parece mais inquieto que nunca. Wyatt – que quis ser músico de jazz – está angustiado com o rumo que a civilização ocidental está a tomar e, por isso, decidiu cantar os últimos temas do álbum em espanhol e italiano como forma de protesto contra «a alienação total que a cultura anglo-americana representa».

O novo disco está edificado em três actos. Começa com Lost in Noise, uma mão cheia de canções escritas com a poeta e companheira de longa data Alfreda Benge (que também ilustra as capas dos seus álbuns) em tom íntimo e confessional. A segunda parte, The Here and the Now, passa para um campo político (que vai tocar na religião e no belicismo) e na terceira, Away from Fairies, Wyatt embarca numa jornada de protesto poliglota que inclui o estafado, mas comovente, Hasta siempre Comandante e Canción de Julieta, feliz adaptação de um poema de Garcia Lorca. Foi na sua casa que arquitectou e concretizou o plano Comicopera, beneficiando da ajuda preciosa de amigos e co-conspiradores habituais como Brian Eno, Paul Weller e Phil Manzanera, dos Roxy Music, que, segundo disse Wyatt a um jornal, «apareciam tranquilamente nas suas bicicletas para tomar chá». Com a sua ajuda gravou pela primeira vez um álbum totalmente ao vivo, ou seja, com os músicos reunidos tocando em simultâneo. As segundas vozes, inspiratórias de Just as you are, são de Mónica Vasconcellos, uma cantora brasileira a residir em Londres que surpreende pela naturalidade, revelando porventura uma das melhores colaborações vocais até agora em trabalhos do cantor. Num tempo em que o myspace deposita música em quantidades industriais diariamente, o que terá democratizado o consumo e execução da música, este trouxe, contudo, ainda mais ciclos, modas e repetições. No caso de Wyatt, mais ninguém faz música assim, razão pela qual devemos celebrar.

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Ouvir ainda: Schleep, 1998, Hannibal/Thirsty Ear Ruth is Stranger than Richard, 1975, Virgin Rock Bottom, 1974, Hannibal/Thirsty Ear

COMICOPERA ROBERT WYATT DOMINO, 2007

«PODERÃO ENCONTRAR ALGUMAS INADEQUAÇÕES TÉCNICAS EM ALGUMAS DAS MINHAS ACTUAÇÕES: UMA BATIDA HESITANTE AQUI, UMA NOTA FORA DE TOM ACOLÁ... SÃO, CLARO, COMPLETAMENTE DELIBERADAS E REPRODUZIDAS COMO PROVA DA MINHA DOLOROSA SINCERIDADE» ROBERT WYATT


ÁFRICA CARDÍACA – A PROPÓSITO DE A BALADA DO NÍGER DE AMÍLCAR CORREIA JOÃO TEIXEIRA LOPES

UM LIVRO DE VIAGENS NO TEMPO EM QUE A literatura de viagens vai perdendo algum do seu fulgor, eis um dos motes para lermos Balada do Níger, de Amílcar Correia (Civilização Editora), que inicia com um belíssimo prefácio de Pedro Rosa Mendes onde somos avisados que «Africa é tão cardíaca como a nossa atracação a ela». Quem procurar o exotismo, desiluda-se. Quem desejar descrições exuberantes e efervescentes, lerá em vão. É preciso entender que a obra parte de um enunciado de Bruce Chatwin, só que trocando a Patagónia pelo Continente Africano: «sempre quis ir a África», confessa-nos o autor. E não duvidamos que lá tenha estado embora sejam múltiplas as chaves de entrada neste livro (como as decifrações de África afinal o são). Encontraremos a viagem antropológica, o olhar, o ouvido e o passo atentos aos rituais, às ora profundas, ora ténues barreiras entre o sagrado e o profano; os sentidos excitados pelos odores, pelo caminhar dos corpos, pelas falas. Mas também a viagem política e histórica, sem panfletismos e em busca do contexto onde emergem as estórias, as polifonias, os rumores. Há ainda o intuito de uma metaviagem: o que significa ir e voltar; ir e voltar transformado, transtornado; ir e voltar aos poucos; ir e não voltar de todo. Prisioneiros da viagem tornamo-nos, também, prisioneiros de uma eterna passagem, um limbo onde somos e não somos, algures entre o próximo e o estranho. Num livro bem escrito, esta é também uma viagem literária. O autor reivindica como seu o propósito inspirador de Javier Reverte: «a escrita é um belo pretexto para viajar sempre».

Finalmente, a viagem ao fundo de si mesmo, a autobiografia como o osso do osso, alguém que se revela pelo que nos conta e que, afinal, possui um nome (Amílcar) que vale em África. Ryszard Kapuscinski, polaco que longamente conheceu África, é citado no livro a propósito dos «estereótipos que a Europa alimenta sobre África», numa conversa com crianças de Varsóvia: «Uma das crianças levantou-se e perguntou: – viu lá muitos canibais? Kapuscinski explicou que, quando alguém chega da Europa ao bairro de KarioKoo, em Dar es Salam, e fala de Londres ou de Paris, ou então de outras cidades habitadas por mzungus, há uma pergunta que é inevitável: – E viste lá muitos canibais?». A BALADA DO NÍGER AMÍLCAR CORREIA 2007, CIVILIZAÇÃO 222 PÁGINAS, 13,49 EUROS

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IMAGENS ENSAIO GERAL

IMAGENS ALTERFILIA

JURVETSON

DANIEL MEYER RIOT IN PARIS AFTER SARKOZY’S ELECTION

BIOFUELS

AARON MICHAEL BROWN LET’S MOVE FORWARD

BWILLIS SARKOZY POSTER ANÚNCIO NO METRO DE PARIS

LEONARDO F. FREITAS LFF 0060223ED0107

SOLDIERSMEDIACENTER IRAQ

PAULETE MATOS WISE WOLF

SOLDIERSMEDIACENTER IRAQ

DIREITOS RESERVADOS

SOLDIERSMEDIACENTER 060702-F-5964B-111 IMAGENS A MÃO VISÍVEL DR JOHN2005 IRREGULAR GREENHOUSE WORKERS, LAS NORIAS, ALMERÍA, SPAIN, 2003

LE HARICOT QUEUE FOR JOB ESCULTURA NO MEMORIAL

DE FRANKLIN D. ROOSEVELT, NATIONAL MALL, WASHINGTON DC

SMN CEO BANANA

IMAGENS CONTRATEMPOS SHOOTHEAD MAKE WAY FOR DUCKLINGS POPPALINA BALACLAVA - WOMAN IMAGENS RAPSÓDIA

MARK STROZIER 8 LAURA MARY RUNNING MEN DOWN THE BIG BLACK SQUARE

DISTINGUISH WITHIN THE PAGES OF POSTSECRET

REVISTA VÍRUS ABRIL/MAIO 2008 # 2 WWW.ESQUERDA.NET/VIRUS DIRECÇÃO JOÃO TEIXEIRA LOPES EDIÇÃO GRÁFICA LUÍS BRANCO CONSELHO EDITORIAL ANA DRAGO | ANDREA PENICHE | JORGE COSTA | JOSÉ SOEIRO | MANUEL DENIZ SILVA MARIANA AVELÃS | NUNO TELES | PEDRO SALES | RITA SILVA | RUI BORGES COLABORARAM NESTE NÚMERO FRANCISCO LOUÇÃ | GUSTAVO SUGAHARA | JOÃO ROMÃO | RITA CALVÁRIO | SANDY GAGEIRO TODOS OS TEXTOS NESTA EDIÇÃO ESTÃO ABRANGIDOS POR UMA LICENÇA CREATIVE COMMONS VÍRUS ABR/MAIO 2008 [54] FICHA TÉCNICA


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