VÍRUS #3 — JUNHO/JULHO 2008
MÁRIO TOMÉ PSD: UMA EVOLUÇÃO NA CONTINUIDADE MARIA BENEDITA PORTUGAL E MELO REPRESENTAÇÕES DOS PROFESSORES DO ENSINO SECUNDÁRIO A PROPÓSITO DOS RANKINGS ESCOLARES ROBERT BRENNER O PRINCÍPIO DE UMA CRISE DEVASTADORA INÊS PEREIRA “POLÍTICA TECNO”: REDES, CÓDIGOS E MOVIMENTOS
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DANIEL OLIVEIRA QUERER OU NÃO QUERER CONTAR JORGE COSTA A DERROTA ITALIANA, A ESQUERDA E O PODER
LUÍS FAZENDA, CARLOS SANTOS E VICTOR FRANCO BERTINOTTI PERDEU O COPYRIGHT RICARDO PAES MAMEDE A ESQUERDA ITALIANA EM ESTADO DE CHOQUE + MÚSICA LEITURAS POESIA CONTO
O VENENO DAS PALAVRAS EDITORIAL | JOÃO TEIXEIRA LOPES
1. SABEMOS QUE CERTAS PALAVRAS VICIAM e reproduzem. Que outras inventam e descobrem. Que umas e outras circulam em universos de sentido, expressando visões do mundo difusas ou mesmo ideologias mais ou menos cristalizadas. As ideologias, enquanto elemento constituinte do conhecimento prático, organizam grelhas de percepção, leitura, organização, classificação e simplificação do real. Não são apenas falsa consciência – são também orientação. Por isso, jamais as palavras foram puras porque falam, reproduzem e actualizam performativamente (na e pela comunicação, nos e pelos usos dos falantes) tais mundividências. As nossas e as dos outros. Estas que agora mesmo se estão escrevendo (e de certa forma me estão escrevendo e denunciando).a. A criatividade, por exemplo, está na moda. Que o digam os urbanistas do pensamento único. Se há algo que parece vender, sobretudo no plano das representações, é a ideia de criatividade: são as cidades criativas,
as classes criativas, as indústrias criativas... Nos três casos, exemplos de intersecção entre o campo cultural e intelectual, o campo económico e o campo político, com um contexto preciso: os territórios urbanos. Sabemos já o que a gentrificação significa: do inglês «gentry» (pequena nobreza», traduz uma série de políticas de impulso público que pretenderam, com a parceria dos privados, «regenerar» as velhas cidades esvaziadas e decadentes da era pós-industrial. Cidades em perda demográfica, com centros históricos moribundos, centralidades em perda, casas devolutas e socialmente fracturadas. O resultado é conhecido: com raras excepções, as promessas de criação de valor acrescentado, de emprego, de revitalização económica e cultural deram lugar ao pesadelo da higienização social, da filtragem e purificação que afasta das cidades e das suas zonas «nobilitadas» o pobre, a prostituta, o cigano, o imigrante e que, não raras vezes, oferece paraísos artificiais aos intelectuais, artistas e intermediários culturais que se
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deixaram seduzir pelo novo sense of place. Na verdade, a ideologia da criatividade (Richard Florida inventou mesmo um ranking de cidades baseado em tão ambivalente conceito e assente na ideia central da competências – que umas cidades desenvolveram e outras não – de atrair as tais classes criativas, do terciário superior, ligadas à intermediação cultural em sentido amplo, situadas no coração da actual configuração imaterial do capitalismo avançado) valoriza a produção de signos detonadores de dinâmicas económicas. A economia tornou-se sexy e necessita de afrodisíacos. As palavras excitam e criam efeitos propriamente materiais. Mas as grandes cidades, na sua maioria, permanecem genéricas (e mais desiguais): estandardizadas, de receituário conhecido. Ora, o que torna uma cidade competitiva, como os economistas sabem, é um efeito de especificidade. Mas esse efeito tem de encontrar âncoras que sejam mais do que a encenação ou o simulacro para atrair populações flutuantes de
amplos recursos. Hoje a cultura urbana arrisca-se a ser, nas palavras da urbanista brasileira Otília Arantes, um nicho para as políticas e os políticos hegemónicos encenarem a própria ideologia que os anima. A população deixa de pertencer ao lugar. É expropriada e cabe-lhe o papel de figurante colectivo. As imagens da pancriatividade colonizam-nos. E nós? 2. Não há duas sem três. Aqui encontrarão, nos textos de Daniel Oliveira, Jorge Costa, Luís Fazenda, Carlos Santos, Victor Franco e Ricardo Pães Mamede, uma viva polémica sobre a esquerda da esquerda. Sinal de contradições e tensões, mas também de ausência de pensamento único. Esquerdas que pensam e se pensam a partir da interpelação das últimas eleições italianas e dos modos de relação com o poder. Em última análise, é o próprio conceito de poder que se encontra em discussão. Numa altura em que o PSD anda nas bocas do mundo, Mário Tomé traz-nos a reflexão da diacronia. Olhar para a génese do sistema político português e perceber o lugar que o PSD foi ocupando desde a instauração do regime democrático acrescenta memória e complexidade a muitas das análises do pronto a comer intelectual. No campo educativo e numa altura em que a direita neoconservadora encontra no ataque à escola pública uma das linhas preferenciais de sabotagem da democracia, Maria Benedita Melo, em ensaio que resulta de recente pesquisa sociológica, fala-nos das representações dos professores sobre os rankings das escolas, indicador supremo da adopção, no início da década de noventa, dos princípios ideológicos neo-liberais característicos de uma nova filosofia de gestão do sector público e da «cultura de excelência» que a ela se encontra associa-
da e que levou o Estado a assumir progressivamente políticas de “recentralização, de “meta-regulação” e de “controlo remoto”. Inês Pereira, por seu lado, reflecte sobre a metáfora da rede nos movimentos sociais que utilizam a interacção e a comunicação como utensílios de emancipação, através de opções que mostram que «uma outra tecnologia é possível» através de usos cooperativos, colectivos e comunitários. Um texto traduzido de Robert Brenner, autor de filiação marxista que faz a síntese entre a história e a economia (num tempo de estéreis especializações que têm amiúde por efeito a perda de sentido da totalidade), analisa-se a actual crise económico considerando-a potencialmente como a mais devastadora desde a Grande Depressão dos anos trinta do século passado, reveladora de uma inusitada fragilidade da economia real do mundo capitalista, particularmente quando a contrastamos com a retórica belicista e autoritária. Na verdade, a desaceleração das taxas de lucro tornou o capital ainda mais agressivo, factor particularmente visível na repressão salarial por parte das empresas e nos cortes nas despesas sociais por parte dos governos que, visando restaurar as taxas de lucro, redundou numa quebra do crescimento do investimento, da procura dos consumidores e da despesa pública, e assim num decréscimo da procura como um todo. Finalmente, na rapsódia, publicamos, pela primeira vez, alguns textos literários inéditos. 3. Se nada temos para dizer, convivamos com o silêncio. Mas não reduzamos os sentidos ao curto inventário das palavras fetiche.
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ENSAIO GERAL
DE MARCELLO CAETANO A FERREIRA LEITE
PSD UMA EVOLUÇÃO NA CONTINUIDADE VÍRUS JUNHO/JULHO 2008
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MÁRIO TOMÉ
PSD: UMA EVOLUÇÃO NA CONTINUIDADE MÁRIO TOMÉ | CORONEL NA REFORMA
AS RECENTES ELEIÇÕES NO PSD PROVOCARAM uma avalanche de interpretações e comentários sobre o estado a que teria chegado o partido e de previsões mais ou menos preocupadas sobre o seu futuro. Ponderou-se mesmo a hipótese de, sem bússula nem rédea, poder vir a desaparecer por evidente desnecessidade face ao papel que o PS representa hoje na prática da política reservada pelo neoliberalismo aos Estados modernos; a saber, a privatização de tudo o que possa ser mercadejado e a organização sistemática e democrática da repressão até à integração na estratégia global da guerra infinita contra os povos. A mais favorável das previsões terá sido a de Paulo Rangel que considera a actual situação não um sinal de desastre para o PSD mas, pelo contrário, uma premonição de que algo de novo vem aí: a recomposição do sistema político partidário. Rangel deu voz ao secreto desejo “social democrata” de que o bloco central de interesses encontre uma plataforma comum que, explorando a fundo as virtualidaes do neoliberalismo, permita aos negócios livrarem-se de contradições secundárias. Por mais que se reafirme que nunca mais haverá bloco central. Claro, será mais plausível assistir-se a uma recomposição do espectro partidário... No que ao PSD interessa, dum lado o social-liberalismo aglutinando os sectores mais desinibidos e que não precisam do cristianismo como fundador da Europa e portanto mais abertos à luxúria cosmopolita; do outro lado a direita pura e dura, cabeças juntas e patas
para fora reclamando-se da defesa dos valores de Deus, Pátria e Família acima de todas as coisas. A Pátria dos mortos, porque a dos vivos está sempre em construção. O PÂNTANO ALEGROU-SE COM O COAXAR DAS RÃS Sendo significativo que pouco mais de seis meses depois de Luís Filipe Meneses ter sido eleito por muito confortável maioria, o PSD já tenha sentido necessidade de mudar de chefe, é ainda mais significativo que se achasse estranho a acesa e por veses pouco delicada luta travada entre os vários pretendentes a... derrotar o PS de Sócrates em 2009. Cada qual mais destituído que o outro de alternativa coerente .Saiu afinal o que tinha de sair: a solução mais próxima do poder, a cavaquista Manuela Ferreira Leite. O coaxar das rãs no pântano reflectiu a luta entre os interesses instalados de grupos vorazes e parasitários do erário público, mesmo quando se proclamam paladinos da iniciativa privada. Já no início dos anos noventa Cavaco Silva, sem nenhuma originalidade mas com o peso da sua maioria absoluta, proclamava que só o mercado livre garante a democracia.. Ouvindo o hoje o presidente da República preocupado exactamente com a violência das consequências do que considera a condição sine qua non da democracia – a liberdade do mercado -, e a sua mais fiel discípula, a vencedora das eleições directas no PSD, colocar
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no centro do discurso a preocupação face à situação de “emergência social”, temos razões para não desanimar: é o PSD no seu melhor. O PSD nunca foi mais do que isto que nos mostrou nestas eleições internas: a disputa entre interesses pouco claros mas estreitos e cristalizados em torno de figuras que nada mais têm para oferecer que a garantia de que são ganhadoras! Ao ponto de o troglodita das ilhas ter sido apontado, por gente credenciada, como o melhor candidato a Primeiro Ministro porque... “é um ganhador”. Programa? poder. Ideologia? dinheiro. O PSD desde muito cedo se habituou ao pragmatismo mais rasteiro, aliás o mais apropriado para assegurar a satisfação dos grupos de interesses instalados ou emergentes nas várias conjunturas, na parasitagem institucionalizada que tem caracterizado os governos em Portugal desde o 25 de Novembro com maior notoriedade desde os dois Governos da AD (PSD,CDS,PPM), culminando com os dez anos de consulado cavaquista. MEUS FILHOS, O VINHO TAMBÉM SE PODE FAZER COM UVAS Sá Carneiro não legou verdadeiramente um programa ao PSD. Legou-lhe um guia prático de conquista do poder. Sá Carneiro quando não tinha a certeza de ganhar, desertava e depois voltava para secar as lágrimas dos abandonados. Quando conseguiu a vitória da AD por maioria absoluta em eleições intercalares em 1979, de
imediato preparou o seu grande golpe: um plebiscito para substituir a Constituição de 1976 por uma que permitisse o “reencontro com a nossa história”, interrompida, como já vimos, pelo 25 de Abril. Assim, tendo mantido a maioria da AD em 1980, recusou apresentar na AR, estando a isso constitucionalmente obrigado, o programa de governo para só o vir a fazer com a vitória desejada e esperada do General Soares Carneiro candidato da AD à presidência da República. Preparando o golpe, a AD lançou um forte ataque à liberdade de informação, impedindo os Conselhos de Redacção de funcionar, chegando-se ao ponto de os seus testas de ferro na RDP chamarem a polícia para impedir o Conselho de Redacção de reunir. Grande parte dos melhores jornalistas da RDP e da RTP foram irradiados ou colocados na prateleira sendo substituídos por comissariozinhos políticos e analfabetos. O próprio Marcelo Rebelo de Sousa dizia no Expresso em Outubro de 1980: “temos, deste modo, à frente da gestão das instituições informativas controladas pelo Estado pessoas escolhidas de acordo com um critério político e que obviamente actuarão de acordo com esse critério”. A RTP e a RDP, ao serviço da eleição de Soares Carneiro, chamavam ao campo de concentração de S. Nicolau, de que aquele fora responsável, “granja de recuperação de indígenas”. A trágica morte de Sá Carneiro, dois dias antes das eleições, haveria de poupá-lo ao desgosto de ver derrotado o seu projecto estratégico de uma maioria, um governo, um presidente; por enquanto...
A SOCIAL-DEMOCRACIA SEM DOR Curiosamente o PSD só teve um papel minimamente progressista quando ainda não existia. Era apenas um embrião improvável no tempo da “ala liberal” do marcelismo... Sá Carneiro, Magalhães Mota, Miller Guerra, Pinto Balsemão, entre outros, ensaiam uma oposição colaborante com a ANP (a União Nacional renomeada, como a PIDE o foi por DGS). E foi num projecto jornalístico liberal que o grupo investiu no último ano do marcelismo, depois de terem saído da Assembleia Nacional desgostados com a má aceitação das medidas que propunham. Em 1970 viram chumbado um projecto de constituição subscrito por Sá Carneiro e Mota Amaral que preconizava “a abolição da censura e a proclamação da liberdade de Imprensa; a eliminação dos entraves administrativos à liberdade de associação; a extinção dos tribunais plenários, o fim das medidas de segurança sem termo certo que podiam equivaler na prática à prisão perpétua; a limitação da prisão preventiva sem culpa formada a um prazo máximo de setenta e duas horas; a inclusão do direito ao trabalho e do direito à emigração na lista dos direitos fundamentais” entre outras estranhezas para o regime fascista. A “ala liberal” do marcelismo, manteve-se à espera da evolução na continuidade. Era o tempo de, sob a doce e monótona sonoridade das “Conversas em Família”, Marcello Caetano ir brutalizando ainda mais o regime apagando as ténues esperanças que levantara em 1968 nos sectores da burguesia liberalizadora, ansiosa por poder fazer negócios livremente como quaisquer capitalistas que se prezam. A luta operária e, fundamentalmente, a contestação global à guerra colonial, não permitiam veleidades liberalizantes.
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A Europa esperava por “nós” embora já tivesse acolhido o Portugal fascista na NATO há mais de vinte anos. O capital precisava de propagandear as suas virtudes e libertar-se dos condicionamentos que limitavam a sua expansão e restringiam os lucros a meia dúzia de famílias que exploravam barbaramente a mão de obra semi-escrava das colónias. Ao abandonar a Assembleia Nacional fascista, em 1973, com o famoso “é o fim”, Sá Carneiro dava sinal aos seus companheiros liberais que a luta ia continuar lá fora. O Expresso, acabado de nascer, passou a ser o quartel general do grupo como centro da denúncia e da desmoralização do regime face à elite liberal, tendo cumprido um importante papel. No entanto a visão da “ala liberal” não a leva até ao ponto, nuclear como se viu, de condenar a guerra em África, que era a corda que segurava o regime fascista nela enforcado. A guerra colonial definia a linha de ruptura fundamental e de demarcação essencial. Qualquer programa social-democrata mínimo teria que colocar o reconhecimento do direito à autodeterminação das colónias no centro da sua política quando a onda contestatária, com centro na universidade, radicalizava a luta contra a guerra colonial, o eixo principal da luta anti fascista desde as greves académicas de 1962 e que iriam culminar nas de 1969, réplica nacional do Maio de 68. Sá Carneiro e os seus passaram de liberais marcelistas a social-democratas como quem bebe uma imperial com tremoços.Elaboram um programa vagamente social-democrata para conservadores, sem raizes, nem tradição nem ideias consolidadas. Uma alta burguesia com ímpetos modernizadores – diferen-
OS REINADINHOS DE DURÃO BARROSO E DE SANTANA LOPES SÃO BRINCADEIRA DE CRIANÇAS COMPARADOS COM A CAMPANHA MORTÍFERA, ENSAIADA COM O BLOCO CENTRAL E CONDUZIDA COM MÃO DE FERRO POR CAVACO SILVA, O MESMO QUE HOJE SE PREOCUPA COM A POBREZA. QUE BOM CRIAR POBRES PARA PODERMOS AJUDÁ-LOS! VÍRUS JUNHO/JULHO 2008
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ciada do fascismo já podre – disposta a aguentar-se nas vagas da revolução, certa de que ela não duraria muito, criou o PPD conservador, social democrata no verniz, populista, caciquista e golpista na essência. Escreveram o programa, em Novembro de 1974, com as banalidades aprendidas nos manuais de ciência política das faculdades de Direito de Lisboa, Porto e Coimbra e depois num pragmatismo avassalador praticaram a política do marcelismo sem Marcello logo que o 25 de Novembro os libertou da pressão social revolucionária que os constrangera ao ponto de proclamarem o socialismo como o pai de todas as coisas boas. Magalhães Mota, Jorge Miranda, Vilhena de Carvalho, Cunha Leal, entre outros intelectuais de relevo, 37 ao todo, que haviam aderido ao PPD na convicção de estarem a dar corpo a um projecto social-democrata, viram-se obrigados a sair, em protesto contra o pragmatismo e o manobrismo de Sá Carneiro, e a formarem um Agrupamento Parlamentar, a Associação Social Democrata Independente (ASDI) O 25 DE ABRIL NUNCA EXISTIU? Os sucessores de “ala liberal” organizados no PPD nunca conseguiram ir além da teoria de que o 25 de Abril não teria sido necessário.E, perante a ostensiva evidência dos factos históricos, tentaram escamotear aquilo mesmo de que vinham a queixar-se: a revolução do 25 deAbril, da qual nem o cravo quiseram resgatar. Sem receio de contradizerem o slogan dos dois Carneiros, de “reencontro com a história”. Para tal elaboraram a subtil explicação de que tudo não passara de uma evolução (na continuidade?...)
A SOCIAL DEMOCRACIA À PSD TEM UMA GÉNESE PRÓPRIA. ELA RADICA NUM MARCELLISMO EVOLUTIVO E NUNCA DE LÁ SAIU. NÃO SOFRE DO PECADO ORIGINAL DA SOCIAL-DEMOCRACIA EUROPEIA. ELA NÃO FOI CONDICIONADA POR MOVIMENTOS DE MASSAS, PORQUE O 25 DE ABRIL NUNCA EXISTIU OU NÃO PASSOU DA EVOLUÇÃO NA CONTINUIDADE!
Em 1996, Marcello Rebelo de Sousa confessava-se “fascinado pelo papel de Spínola na transição”. A evolução vai passar a ser para o PPD/PSD a bandeira comemorativa do 25 de Abril como se encarregou de teorizar e servir na propaganda do governo de Durão Barroso, o historiador António Costa Pinto. A evolução na continuidade estava (e está) de tal forma entranhada nas hostes do PPD que em Abril de 1992, Cavaco, depois de a ter negado a Salgueiro Maia, concedeu a Pides uma pensão por “altos serviços prestados à Pátria”. Francisco Sousa Tavares, que fora deputado do PSD, reagiu na Capital, o jornal de que era director,: «Este escarro em tudo o que representou a Revolução de Abril ressoará muito tempo em todos os que sofreram, em todos os que foram perseguidos pela PIDE, em todos os que prestaram à Pátria o excelso serviço de luta pela liberdade, com sacrifício da sua vida, do bem-estar, da carreira e da sua própria segurança» Com o mesmo sentido de Estado tal distinção já tinha sido concedida por Cavaco em 1987, ao capitão Maltez Soares da Polícia de Choque fascista e, em 1988, a outro agente da PIDE, Fernando Ferreira Alves.
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Não podemos, pois, admirar-nos por, no passado 10 de Junho, o PR ter afirmado com tanto vigor querer “sublinhar acima de tudo a raça, o dia da raça, o dia de Portugal, de Camões e das Comunidades”. Ideologicamente o PPD esteve, desde o primeiro dia, pronto para abraçar de alma e coração o neoliberalismo de Reagan e Thatcher que aí havia de chegar. Exactamente no auge da investida neoliberal, o PPD crisma-se, sob a orientação de Cavaco: Partido Social Democrata. A social democracia à PSD tem uma génese própria. Ela radica num marcellismo evolutivo e nunca de lá saiu. Não sofre do pecado original da social-democracia europeia. Ela não foi condicionada por movimentos de massas, porque o 25 de Abril nunca existiu ou não passou da evolução na continuidade!: “Na evolução verificada ao longo dos últimos quinze anos é patente a diferença na génese e na afirmação da social-democracia portuguesa relativamente às suas congéneres europeias. Estas, de um modo geral, e por terem surgido e se terem afirmado quer no final do Séc. XIX ou no início do século XX, quer em períodos subsequentes à queda de totalitarismos de direita, assumiram a defesa de opções claramente influenciadas por esse condicionalismo envolvente.
Tal condicionalismo foi marcado pelos movimentos de massas e por contradições aparentemente irredutíveis entre classes e grupos sociais, bem como pela influência do marxismo, revestindo muitas vezes cariz anticapitalista, antiliberal e antiparlamentar e postulando uma acentuada intervenção do Estado na vida económica e social”.1 Os legítimos herdeiros da “ala liberal” marcelista puderam enfim retornar às suas raízes . “Reencontram-se com a sua própria história”, como queria Sá Carneiro quando apoiava o ex-responsável pelo Tarrafal angolano a presidente da República em 1980. A história mais recente do PSD, desde o apoio empenhado ao crime contra a humanidade que é a guerra com que Bush arrasou o Iraque, à fuga de Durão Barroso para Bruxelas, à tomada de posse de Santana Lopes como primeiro ministro por sucessão dinástica sem escrutíneo do próprio PSD, até Meneses capaz de tudo e do seu contrário e agora Manuela Ferreira Leite obrigada a lembrar-se dos pobrezinhos por não ter qualquer saída face a quem faz melhor que ela o que ela própria defende, tem sido a história do pragmatismo, da ganância mais rasteira. Desde as autarquias ao poder central. Mas sempre sob a bandeira libertadora dos EUA. A defesa de Portugal como protectorado dos EUA (Quadratura do Círculo, 13/6/08) foi a mais recente demonstração de fidelidade aos princípios por parte do inspirador e teórico de Manuela Ferreira Leite, senão mesmo de Cavaco, José Pacheco Pereira. PAS DE DEUX Depois da AD lançar as bases para as privatizações sustentadas, o Bloco Central formaliza na política o que já vinha sendo desde o 25 de Novembro a afir-
mação mais ou menos conturbada da preponderância dos grandes interesses financeiros assente nos dois grandes pilares da comunidade, o PS e o ainda PPD. A consolidação do projecto precisava de uma solução política firme que não se compatibilizava com as hesitações inerentes a uma governação bicéfala: Mário Soares e Mota Pinto. A história é conhecida, carro novo, rodagem, Cavaco ganha o congresso do PPD para ir explorar a sementeira deixada pelo Bloco Central. O seu consulado de 10 anos é de arrebenta a bexiga: a revisão constitucional de 1989 com o PS, abre as portas à privatização e liberalização total da economia e lançamento das bases do casino nacional pela reconstituição (melhor dizendo reforço) do poder das grandes fortunas (vindas quase todas do fascismo) que passam da indústria para a finança, indemnizações chorudas e iníquas aos novos pobres que o 25 de Abril tinha criado: Quina, Champallimaud, Roquete, Espírito Santo, etc. Liquidação das pescas, da rede interior dos caminhos de ferro, lançamento das bases do negócio do ensino superior privado (para encher a mula a professores da dita ruça) com 350 milhões de contos retirados ao ensino público, lançamento do ataque em forma ao SNS, liquidação da marinha mercante e das pescas, da indústria naval, etc. Os reinadinhos de Durão Barroso e de Santana Lopes, são brincadeira de crianças comparados com a campanha mortífera ensaiada com o Bloco Central e conduzida com mão de ferro por Cavaco Silva, o mesmo que hoje se preocupa com a pobreza. Que bom criar pobres para podermos ajudá-los!
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Passaram trinta anos de alternância em que PS e PSD se acusam mutuamente de fazerem coisas bem piores quando estão no governo!... A grande vitória do PSD coincide exactamente com o seu canto do cisne: quando finalmente a vida lhe dá razão - a “ala liberal” hoje faria boa figura - é quando o PS no governo o torna irrelevante. O PS ganha perdendo os socialistas; o PSD ganha perdendo quase a razão de existir. De qualquer forma esteve certo mais cedo. Agora é uma questão de saber fazer. E Sócrates sabe fazer melhor. Vencidas as eleições com um terço dos militantes, Manuela Ferreira Leite vai andar por aí a proferir banalidades com perfume social. O grande aglutinador do PSD actual só poderia ser Sócrates pois é ele quem detém o poder executivo e cumpre o programa da finança. Quem sabe? Na prática, tem sido com ele que se cumpre o projecto estratégico com que sonhou Sá Carneiro e o próprio Cavaco: uma maioria, um governo, um presidente. E vamos a ver quais serão as hostes apoiantes de Cavaco em 2011.
NOTA: 1 Programa do PSD aprovado no XVI Congresso, 13-14-15 de Novembro de 1992
CIDADES INVISÍVEIS
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NOTAS DE UMA PESQUISA EMPÍRICA | MARIA BENEDITA PORTUGAL E MELO VÍRUS JUNHO/JULHO 2008
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REPRESENTAÇÕES DOS PROFESSORES DO ENSINO SECUNDÁRIO A PROPÓSITO DOS RANKINGS ESCOLARES – NOTAS DE UMA PESQUISA EMPÍRICA
MARIA BENEDITA PORTUGAL E MELO | PROFESSORA AUXILIAR DO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO DA FACULDADE DE CIÊNCIAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
AS ACTUAIS EXIGÊNCIAS DIRIGIDAS À ESCOLA «para todos» e aos professores resultam de uma complexa rede de influências e interdependências na qual a lógica global detém um papel determinante no modo como a actividade docente tem vindo a ser definida e regulada pelo Estado português (Teodoro, 2001; Antunes, 2005). A adopção, no início da década de noventa, dos princípios ideológicos neo-liberais característicos de uma nova filosofia de gestão do sector público e da «cultura de excelência» que a ela se encontra associada (Afonso, 1999) levou o Estado nacional a assumir progressivamente políticas de “recentralização, de “metaregulação” e de “controlo remoto” (Sanches, 2004, p.42) que visam a responsabilização e prestação de contas por parte dos professores e das escolas. Em Portugal, esta ideia tem vindo a ser recorrentemente defendida por parte de muitos opinion makers que têm participado no debate mediatizado sobre a escola nos últimos anos. A difusão da ideia de que os piores resultados escolares se devem aos professores e às escolas, mais concretamente aos «maus» professores – os que utilizam a «pedagogia» - e às «más» escolas foi uma constante. Os efeitos «escola» e «professor» aparecera, de acordo com estes juízos, como os únicos factores determinantes para o sucesso ou insucesso escolar, na medida em que é “devido à sua actuação” que não são incutidos nos alunos os hábitos de estudo, trabalho e aprendizagem adequados. Os maus resultados que os estudantes atingem em provas internacionais (P.I.S.A.)
que medem as suas competências ao nível da literacia ou numeracia, por exemplo, são por eles apresentados como provas da “crise” em que a educação em Portugal se encontra e como um dado objectivo que sustenta e reforça a necessidade de os professores prestarem contas da sua acção. A propagação mediática dos resultados de pesquisas internacionais e nacionais que salientam o atraso do sistema educativo português relativamente à União Europeia e de uma retórica que defende, insistentemente, a organização de um mercado escolar instituído com base nas preferências dos consumidores, no direito parental à escolha da escola e nos rankings escolares têm vindo, na verdade, a contribuir fortemente para legitimar as políticas educativas que visam promover a expansão de uma educação com qualidade devidamente aferida através de uma avaliação quantificada. Em nome da promoção da qualidade do sistema educativo nacional, a avaliação das aprendizagens dos estudantes do ensino secundário – sob a forma de exames nacionais – e a avaliação da eficácia da acção dos professores – sob a forma de rankings escolares – foi apresentada mediaticamente como uma das medidas fundamentais para se solucionar a “crise” em que a educação nacional se encontra. A divulgação dos rankings não só permitiria ao Estado e à população portuguesa aferir as escolas que proporcionam um ensino “com mais rigor, exigência e qualidade”, como daria a possibilidade às restantes escolas “de seguirem o exemplo das melhores classificadas”.
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Os professores passaram, assim, a ser confrontados com discursos antinómicos: o que valoriza os processos educativos, isto é, a especificidade local e contextualizada da sua acção e o que enfatiza uma avaliação quantificada dos resultados do seu desempenho que não tem em conta as características dos meios em que estes actores sociais desenvolvem a sua actividade profissional (Antunes, 2005, p. 131). Confrontados com a necessidade de “desenvolverem plenamente os estudantes num mundo social e profissional fortemente hierarquizado e dominado pela ideia de performance” (Valentim, 1997, p.75), os docentes do ensino secundário têm, na verdade, de gerir diariamente no seu ofício várias imposições contraditórias: por um lado, promoverem o desenvolvimento integral dos discentes, dado que esta norma oficial é dirigida a todos os professores, independentemente dos ciclos de escolaridade que leccionam; por outro, avaliar «objectivamente» os estudantes através dos testes e provas escolares. Ora, se a primeira tarefa apela para a função não hierarquizadora da escola, as avaliações dos alunos conduzem inevitavelmente à hierarquização e selecção escolar (Perrenoud, 1999). O facto de os docentes trabalharem com os alunos ao longo de um ano lectivo e de efectuarem uma avaliação contínua desse mesmo trabalho, possibilita-lhes, pelo menos teoricamente, resolver este dilema: desenvolverem práticas lectivas que estimulem nos alunos o espírito crítico, a criatividade, a capacidade de iniciativa,
o trabalho em equipa, a responsabilidade e, simultaneamente, realizarem a avaliação dos desempenhos escolares também com base na «medição» das valências que os estudantes possuirão para serem bem sucedidos no mercado de trabalho. Todavia, a existência de exames nacionais e de rankings escolares que publicamente dão a conhecer a diferença entre a classificação final atribuída pelo professor no final do ano lectivo e a classificação final obtida pelo aluno no exame nacional de 12º ano poderá originar uma deriva desta aplicação de princípios de justiça distintos para a concentração única na “justeza” dos dispositivos (a expressão é de Derouet, 2002, p.14). De forma a evitarem uma grande discrepância entre a classificação interna e a classificação externa obtida pelo estudante, os professores do 12º ano poderão, com efeito, direccionar os seus investimentos pedagógicos apenas para as dimensões cognitivas do trabalho escolar em detrimento das tarefas que visam incutir nos estudantes as competências que tanto valorizam retoricamente. Os dados obtidos na investigação que realizámos demonstram que as práticas dos professores inquiridos, em vez de traduzirem os valores presentes no seu discurso, revelam, sobretudo, a percepção dos condicionalismos a que se encontram quotidianamente sujeitos para poderem desempenhar o amplo conjunto de tarefas que lhes são incumbidas. Na verdade, ao nível da retórica, os professores questionam a imposição de um modelo educativo que privilegia um modelo de avaliação centrado meramente em provas e exames - “reduzindo, assim, o indivíduo à sua performance” – e salientam o papel que a escola
deve também desempenhar na formação integral dos sujeitos. Evidenciando uma concepção compósita sobre o papel da escola, os docentes inquiridos entendem que a missão principal do sistema educativo não se reduz à transmissão de saberes universais passíveis de ser quantificados. Perante um conjunto diversificado de funções com que foram confrontados, os professores do 12º ano elegeram como as três mais importantes as que respeitam as que visam a formação de “cidadãos críticos, competentes e activos”, as que os preparem para “serem criativos e flexíveis” e as que respeitam à “transmissão de saberes universais” – Ver quadro 1 na próxima página). As prescrições «modernas» de que o sistema de ensino é alvo, isto é, à necessidade de a escola intervir na educação para a cidadania dos jovens e formá-los para a vida activa reúnem bastantes mais respostas (44,7%) que a referente à “transmissão dos conhecimentos” (25,1%). A socialização profissional de que foram alvo e a situação concreta em que se encontram estes docentes poderá explicar estes resultados. Ao leccionarem o último ano dos estudos secundários, estarão mais sensibilizados para a transmissão de competências que se encontram associadas ao futuro próximo dos seus alunos e à sua consequente integração social e profissional. A participação cívica dos estudantes e a entrada no mundo do trabalho ou na universidade exigirão da parte dos jovens que sejam activos, críticos, flexíveis, adaptáveis, competentes, criativos e capazes de trabalhar em grupo para terem sucesso. Nesta ordem de ideias, compreendese que a função da democratização do ensino, embora
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relevante – muito mais do que a valorização do mérito dos alunos - não surja como prioritária para estes professores. Sendo confrontados, no exercício do seu trabalho, com alunos que já foram alvo de um forte processo de selecção escolar, parecem mais preocupados com as questões que têm de gerir no seu quotidiano do que com os desígnios ideais que a escola deveria cumprir. Provavelmente será por isso que desvalorizam as funções relacionadas com a promoção da autonomia e eficiência do sistema escolar: não exercendo funções de gestão nos seus estabelecimentos de ensino, estas directrizes estarão mais distantes do seu dia-a-dia, parecendo-lhes, assim, menos prementes. No entanto, esta concepção compósita sobre o papel da escola não parece ter uma tradução directa nas práticas lectivas destes inquiridos. Questionados sobre os efeitos da implementação dos exames nacionais no 12º ano nas suas práticas lectivas, 61,7% dos professores inquiridos apontaram a “impossibilidade de experimentarem outras pedagogias” como a consequência mais nefasta da imposição da obrigatoriedade dos exames nacionais no 12º ano de escolaridade - Ver quadro 2 na próxima página2. Apesar de revelarem a percepção de que terão perdido alguma autonomia e espaço para desenvolverem a criatividade – características tradicionais do trabalho docente -, constata-se que a maioria dos inquiridos considera que a estratégia pedagógica mais adequada para que os alunos obtenham bons resultados seja a que traduz uma lógica de ensino-aprendizagem mais «mecanizada»: leccionarem o programa, dando mais relevância às matérias que poderão sair no exame e treinando os
QUADRO 1 – FUNÇÕES SOLICITADAS AO SISTEMA DE ENSINO BÁSICO E SECUNDÁRIO CONSIDERADAS PELOS PROFESSORES COMO MAIS IMPORTANTES TRANSMISSÃO DO CONHECIMENTO Dar instrução, transmitir conteúdos programáticos Transmitir valores e saberes universais DEMOCRATIZAÇÃO DO SISTEMA ESCOLAR Garantir a igualdade de oportunidades a todos os alunos Integrar todos os alunos/ter em atenção a sua multiculturalidade Promover o sucesso escolar dos alunos ‘menos capazes’ Valorizar as diferenças entre as personalidades dos alunos EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA E FORMAÇÃO DOS JOVENS PARA A VIDA ACTIVA Desenvolver plena e harmoniosamente a personalidade dos alunos Transmitir as regras de uma cidadania comum Formar cidadãos críticos, competentes e activos* Incutir nos alunos competências para que estes aprendam a trabalhar em grupo* Incutir nos alunos competências que os preparem para ser criativos e flexíveis* PROMOÇÃO DE TALENTOS Valorizar o mérito dos alunos ‘mais capazes’ Promover a excelência ao nível dos resultados escolares PROMOÇÃO DA EFICIÊNCIA DO SISTEMA ESCOLAR Racionalizar e optimizar os investimentos e recursos económicos na escola Racionalizar e optimizar os recursos humanos na escola Efectuar uma gestão escolar eficaz e competitiva AUTONOMIZAÇÃO DOS ESTABELECIMENTOS ESCOLARES Desenvolver a escola como uma “comunidade educativa” Adaptar a escola à especificidade do contexto local em que se encontra TOTAL DE RESPOSTAS
QUADRO 2 – OPINIÃO DOS PROFESSORES RELATIVAMENTE AOS ASPECTOS NEGATIVOS DA OBRIGATORIEDADE DOS EXAMES NACIONAIS NO 12º ANO
N 40 24 N 23 7 9 3
% 15,7 9,4 % 9,0 2,7 3,5 1,2
Sub-total 64 25,1% Sub-total
N 15 10 57
% 5,9 3,9 22,4
Sub-total
Aspectos negativos Introduziu muita pressão no trabalho dos professores Retirou margem de manobra aos professores Impossibilitou a experimentação de outras pedagogias Outra razão mais significativa Sub-total Não se aplica*
42 16,5%
N 5
% 10,6
8
17,0
29
61,7
5 47 37
10,6 100
OS RESULTADOS APRESENTADOS NESTE QUADRO CORRESPONDEM À SOMA DAS RESPOSTAS DOS PROFESSORES QUE CONSIDERARAM A OBRIGATORIEDADE DOS EXAMES DE 12º ANO COMO UMA MEDIDA NEGATIVA OU COM ASPECTOS POSITIVOS E NEGATIVOS. NESTE ÚLTIMO CASO, SÃO APENAS CONSIDERADAS
5
1,9
114
27 N 5 13 N
10,6 % 1,9 5,0 %
44,7% Sub-total 18 6,9% Sub-total
1 3 5 N 6 2
0,4 1,2 1,9 % 2,4 0,8
9 3,5% Sub-total 8 3,2%
255
100
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AS RESPOSTAS AOS FACTORES NEGATIVOS..
* O CONTEÚDO DESTES ITENS APELA SIMULTANEAMENTE ÀS DIMENSÕES DA EDUCAÇÃO PARA A CIDADANIA E DA FORMAÇÃO PARA A VIDA ACTIVA. AO ASSINALAREM-NOS NAS SUAS RESPOSTAS, OS INQUIRIDOS PODERÃO TER-LHES ATRIBUÍDO OS DOIS SENTIDOS OU APENAS UM DELES. POR ESSE MOTIVO, OPTÁMOS POR APRESENTAR EM CONJUNTO AS DUAS FUNÇÕES EM CAUSA.
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alunos, desde o princípio do 12º ano, a saber responder a testes cujos enunciados são idênticos aos exames de final do ano (Quadro 3). Se estas opiniões poderão revelar uma crença na necessidade do ensino secundário ser eficaz «a todo o custo», poderão igualmente desvendar como as rotinas profissionais destes docentes tendem a centrar-se na avaliação e na criação de “hierarquias de excelência” (Perrenoud, 1999). Ora, esta forma de perspectivar o exercício da actividade lectiva poderá resultar num paradoxo relativamente à forma como a organização do sistema educativo se encontra estruturado e aos objectivos que presidiram à sua construção. Com efeito, o sistema escolar encontra-se organizado em graus correspondentes a níveis distintos de aprendizagem, para proporcionar o acesso a estádios cada vez mais complexos de compreensão do saber (Dubet, 2005, p.57). Todavia, dada a pressão para se obterem boas classificações nas provas de 12º ano, os alunos são treinados, desde o primeiro período lectivo, a saber responder a testes cujos enunciados são idênticos aos exames de final do ano. Por isso, ao longo do ano, os professores não experimentam nem arriscam estratégias de ensino novas que levem os alunos a apreender os conteúdos de formas diferentes, que lhes permitam «aprender a pensar», pois estas estratégias implicam um dispêndio de tempo que não podem perder. O saber transmitido no último ciclo do secundário parece, assim, estar a perder a sua nobre função humanista de contribuir para a formação de um ser humano completo intelectualmente «elevado» e «emancipado» (Laval, 2004, p. 42) e a ser progressivamente encarado como um «instrumento» que tem de ser o mais rentabilizado
possível, adquirindo o cunho utilitarista característico das exigências do mercado. Nesta ordem de ideias, apesar de teoricamente o ensino secundário dar acesso a níveis crescentes de complexidade de conhecimento e reflexão, interrogamo-nos se a instrumentalização da cultura escolar a favor dos critérios da eficiência e eficácia não provocará, na prática, um empobrecimento deste nível de ensino, cujas consequências nas vivências dos estudantes não serão de ignorar. Muito mais do que os rankings escolares, é a existência dos exames nacionais que parece justificar o modo como os professores desenvolvem a sua acção quotidiana. De facto, os dados obtidos nesta pesquisa demonstram que a maioria dos professores percepcionam os rankings escolares como meios que produzem um julgamento público sobre o mundo escolar em geral, e sobre o seu desempenho, em particular, mas isso não é uma condição suficiente para alterarem as rotinas profissionais. Na verdade, só um número reduzido do total de docentes inquiridos - 22,4% - assumiram que a publicação dos rankings escolares influenciou o modo como passaram a leccionar – Ver quadro 43. O processo de recepção das mensagens mediáticas é um processo de “negociação do significado” no qual interferem diversas variáveis. A falta de credibilidade e confiança que os docentes atribuem aos critérios que presidem à elaboração das listas ordenadas das escolas, por um lado, e o facto de ideologicamente defenderem a realização de uma avaliação multidimensional que integre os aspectos qualitativos da realidade educativa, por outro, explicarão porque motivo a grande maioria dos
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inquiridos não alterou as suas práticas pedagógicas. Mas, para além disso, um outro factor poderá explicar estes resultados: parte dos docentes que não alteraram as suas práticas lectivas, não o fizeram porque estas já visavam o objectivo exame e já tinham em atenção as diferenças entre as notas obtidas na frequência e as notas dos testes nacionais: “sempre tive em atenção a meta do exame”; “sempre tive a preocupação de comparar os resultados dos meus alunos obtidos na nota de avaliação interna e na nota do exame”. Fruto das orientações políticas na área da educação, a emergência do paradigma da “educação contábil” (Lima, 2002, p.106), poderá, na verdade, ter provocado efeitos nas práticas profissionais dos docentes muito antes de os rankings escolares serem publicitados. Importa, pois, termos em atenção que o discurso omnipresente da qualidade da educação, da avaliação, dos resultados, do rigor principiou a fazer-se sentir no início da década de noventa, tendo-se acentuado desde que os exames nacionais de 12 ano passaram a ser obrigatórios. Terá sido, assim, a partir de meados dos anos noventa que objectivamente tomou forma “a educação que conta, isto é, aquela que é orientada segundo objectivos precisos e que dessa forma se torna contável através da acção de instâncias de contadoria e dos respectivos agentes e processos contadores” (sublinhados do autor, Lima, 2002, p.106). Ao perspectivarem as escolas, o ensino e a aprendizagem como elementos quantificáveis e mensuráveis, via processos avaliativos validados, fiáveis e fidedignos, (procurando, assim, esbater imperfeições e subjectividades), as orientações políticas contribuíram, com efeito, como salienta Lima, para discriminarem a educação que
QUADRO 3 – CONDIÇÃO MAIS IMPORTANTE PARA QUE OS ALUNOS OBTENHAM BONS RESULTADOS NOS EXAMES DE 12º ANO, SEGUNDO OS PROFESSORES
Condições Terem professores que leccionem o programa, dando mais relevância às matérias que poderão sair no exame Terem professores que leccionem o programa e avaliem os alunos desde o primeiro período com testes semelhantes aos dos exames Terem professores que leccionem o programa, dêem mais relevância às matérias que poderão sair no exame e avaliem os alunos desde o primeiro período com testes semelhantes aos dos exames Terem professores que leccionem o programa mas permitam aos alunos desenvolver actividades e realizar testes independentemente dos exames Outra Sub-total Não responde Total de inquiridos
N 4
% 4,8
21
25,0
43
51,2
11
13,1
5 84 1 85
6,0 100
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QUADRO 4 – OPINIÃO DOS PROFESSORES RELATIVAMENTE À INFLUÊNCIA DO RANKING ESCOLAR NO MODO COMO PASSARAM A LECCIONAR AO 12º ANO. A publicação dos rankings teve influência nas práticas lectivas Sim Não Total de inquiridos
N
%
19 66 85
22,4 77,6 100
conta da educação que não conta, ou conta menos (sublinhados do autor, Lima, 2002, p.107). A educação que conta centra-se no cálculo e na mensuração dos resultados, sendo a que não conta ou conta menos a que se refere aos processos e dimensões educativas mais amplas e informais, que visam a incorporação de «competências» e de «qualificações» de tipo democrático e cívico (Lima, 2002 p.107). Assim sendo, aventamos a possibilidade de ter sido a partir do momento em que foi implementada a obrigatoriedade de realização de exames nacionais que muitos docentes se sentiram impelidos a assumir uma “lógica de acção por objectivos” (Derouet, 1996, p.78), adoptando práticas pedagógicas que visassem a rentabilização máxima dos resultados. A afirmação de um professor que não alterou as suas práticas, é clara a este respeito: “desde 1996 que tenho a preocupação com os resultados obtidos pelos meus alunos nos exames, tendo procurado fazer o ajustamento necessário na gestão do programa para um melhor desempenho”. Se, porventura, os professores que alteraram a forma como leccionavam ao 12º ano resistiriam a sobrevalorizar as dimensões mensuráveis, comparativas e avaliativas da educação, desde a publicação dos rankings escolares passaram a atribuir tanta importância aos exames que parecem deles fazer “a sua razão de existir” (Correia e Matos, 2001, p.126): “eliminei o acessório, centrei-me nas capacidades de que serão objecto de testagem, utilizo menor variedade de metodologias”; “passei a preparar os alunos quase exclusivamente para o exame”. Os rankings escolares parecem, assim, terem sobretudo influenciado a forma como os professores passaram a avaliar os seus alunos. A valorização da avaliação aferida
OS RANKINGS ESCOLARES PARECEM, ASSIM, TEREM SOBRETUDO INFLUENCIADO A FORMA COMO OS PROFESSORES PASSARAM A AVALIAR OS SEUS ALUNOS. A VALORIZAÇÃO DA AVALIAÇÃO AFERIDA DOS DESEMPENHOS DOS ALUNOS EM DETRIMENTO DA AVALIAÇÃO FORMATIVA CONSTITUIRÁ A CONSEQUÊNCIA MAIS EVIDENTE DA ADOPÇÃO DESTAS PRÁTICAS.
dos desempenhos dos alunos em detrimento da avaliação formativa constituirá a consequência mais evidente da adopção destas práticas. O risco de a multiplicidade de olhares sobre os alunos se ir reduzindo e de estes passarem apenas a ser representados como meros reprodutores de conhecimento - dada a desvalorização que passa a ser concedida à sua participação nas aulas e ao seu envolvimento nas diferentes actividades educativas, incluindo as actividades extra-curriculares (Santiago, et al, 2004, p.20) - torna-se então bastante provável, como, aliás, o reconhecem alguns professores: “preparar os alunos para o exame não significa prepará-los bem, mas sem notas nos exames não há opção de escolha e a minha leccionação é orientada para o exame”. Das suas afirmações é também possível constatar um outro efeito paradoxal que a divulgação mediática das «listas» terá provocado na actividade lectiva destes docentes. No discurso modernizador preconizado pelos defensores do ranking escolar e pelos que entendem que o sistema escolar deverá acompanhar as mudanças que as sociedades actuais têm sofrido, estão em jogo diversas variáveis, nomeadamente o comprometimento dos professores numa dinâmica escolar colectiva que visa supe-
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rar as características tradicionais do trabalho docente: trabalho centrado no ensino e nos alunos, protegido e isolado do trabalho dos outros professores (Tardif e Lessard, 1999, cit. por Maroy, 2005, p.6), dispondo de uma forte autonomia à qual se encontra associada um forte isolamento e incerteza. Neste sentido, pretendese que os docentes construam uma identidade “organizacional”, “inovadora e cooperativa” prescrevendo-se, para isso, um tempo de trabalho dedicado à componente lectiva e um tempo dedicado a tarefas de gestão e actividades em grupo (Maroy, 2005, p.10). Pretende-se ainda que assumam o modelo de profissionalismo correspondente ao do “prático reflexivo”, isto é, a de um actor educativo que aplica uma pedagogia do tipo construtivista e diferenciada - tanto mais importante quanto mais se acentua a heterogeneidade do público escolar -, que trabalha em equipa e investe na vida colectiva do seu estabelecimento escolar (Maroy, 2005, p.8 -10). Ora, tudo indica que a maioria dos professores inquiridos continua a construir a sua identidade muito mais a partir de uma “definição profissional” (Maroy, 2005, p.8) do que “organizacional”, dada a importância que atribuem ao exercício da actividade lectiva e à componen-
EM VEZ DO MODELO DO “PEDAGOGO” – PROFESSORES CENTRADOS NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM DO CONHECIMENTO («ENSINAR A APRENDER A APRENDER») E DO MODELO DO “PRÁTICO REFLEXIVO”, PODEREMOS ESTAR A ASSISTIR AO RETORNO DO MODELO DO “MESTRE”, CARACTERÍSTICO DO ETHOS DO DOCENTE DO PRINCÍPIO DO SÉCULO XX
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te das competências disciplinares e da transmissão dos saberes. Deste modo, em vez do modelo do “pedagogo” – professores centrados no processo de aprendizagem do conhecimento («ensinar a aprender a aprender») e do modelo do “prático reflexivo”, poderemos estar a assistir ao retorno do modelo do “mestre”, característico do ethos do docente do princípio do século XX (Lang, 1999, cit. por Maroy, 2005, p.9). Na verdade, as características do ensino promovido pelo “mestre instruído” parecem corresponder às evidenciadas pelos professores que interrogámos: docentes que dominam antes de mais os saberes disciplinares, trabalham individualmente e aplicam uma metodologia de tipo “monolítico” e transmissivo” centradas nos conteúdos programáticos das suas disciplinas (Maroy, 2005, p.9). Aliás, o que diferencia estes professores uns dos outros, não será o desenvolvimento de práticas lectivas diversificadas, mas uma concepção simbólico-ideológica da sua actividade profissional claramente discordante da visão que sobre eles é actualmente promovida e que os rankings materializam. Será, assim, por isso, que parte dos docentes que não alteraram o modo como leccionavam o 12º ano, se insurgem contra os rankings escolares não admitindo, pelo menos retoricamente, que estes interfiram no seu trabalho. Em consequência, afirmam o seu profissionalismo, defendem uma auto-análise integrada na sua actividade diária e exaltam o exercício responsável da autonomia que dispõem, bem como a importância de desenvolverem uma relação pedagógica com os alunos: “sempre pautei a minha actuação pelo máximo rigor, profissionalismo, privilegiando não só a leccionação dos conteúdos como a relação pedagógica”; “a minha preocupação essencial
é preparar os alunos, dotá-los de conhecimentos, independentemente dos rankings”. Num contexto em que o processo de democratização quantitativa do ensino secundário e superior continua a aumentar, a multiplicidade crescente dos públicos escolares apela a uma maior atenção à diversificação dos métodos de ensino para que este crescimento quantitativo dê lugar a um sucesso qualitativo. No entanto, as pressões que mais fortemente se dirigem aos professores – quer as exercidas pela publicação dos rankings, quer as exercidas pelo Estado através da introdução dos exames obrigatórios - assentam sobretudo em critérios quantitativos. A tendência que parece verificar-se para estes redefinirem a sua missão em torno dos valores académicos, preterindo as dimensões educativas e afectivas, será então o resultado paradoxal da adaptação destes professores às exigências de desenvolverem performances mais eficazes.
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NOTAS: As questões trabalhadas neste texto resultam da investigação que realizámos no âmbito do doutoramento em Sociologia, na especialidade Sociologia da Comunicação, da Cultura e da Educação. 1
Esta opção de resposta é a mais assinalada por todos os respondentes, independentemente do sexo, dos anos de serviço, da área de estudos e da posição relativamente à publicação dos rankings escolares - Quadros 25; 26; 27 e 28 – Anexo 1. 2
Uma vez mais, não se registaram variações de resposta dignas de registo entre os inquiridos – Quadros 70, 71, 72 e 73 – Anexo 1. 3
BIBLIOGRAFIA AFONSO, Almerindo Janela (1999), Políticas Educativas e Avaliação Educacional, Braga, Edição do Centro de Estudos em Educação e Psicologia, Instituto de Educação e Psicologia ANTUNES, Fátima (2005), “Globalização e Europeização das Políticas Educativas” in Sociologia, Problemas e Práticas, nº 47, pp.125-143 CORREIA, José Alberto; MATOS, Manuel (2001) Solidões e solidariedades nos quotidianos dos professores, Porto: Edições ASA DEROUET, Jean-Louis (1996) O Funcionamento dos Estabelecimentos de Ensino em França: Um Objecto Científico Em Redefinição in João Barroso (org) O Estudo da Escola, Porto: Porto Editora, pp.61-72 DEROUET, Jean-Louis (2002) A sociologia das desigualdades em educação posta à prova pela segunda explosão escolar: deslocamento dos questionamentos e reinício da crítica in Revista Brasileira de Educação, nº 21, pp 5-16 DUBET, François, (2005), La Escuela de Las Oportunidades – Qué es una escuela justa?, Barcelona, Editorial Gedisa, S.A. LAVAL, Christian (2004) A Escola não é uma empresa – O neo-liberalismo em ataque ao ensino público, Londrina: Editora Planta
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A MÃO VISÍVEL
O PRINCÍPIO DE UMA CRISE DEVASTADORA ROBERT BRENNER
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[20] A MÃO VISÍVEL
O PRINCÍPIO DE UMA CRISE DEVASTADORA
ROBERT BRENNER | HISTORIADOR ECONÓMICO. ESTE ARTIGO FOI ORIGINALMENTE PUBLICADO NA REVISTA AGAINST THE CURRENT (JANEIRO/FEVEREIRO 2008)
A ACTUAL CRISE PODE TONAR-SE A MAIS DEvastadora desde a Grande Depressão dos anos trinta. Ela exprime os profundos e não resolvidos problemas da economia real, escondidos pelo recurso à dívida das últimas décadas, bem como um racionamento do crédito de curto-prazo cuja gravidade é inédita desde a Segunda Guerra Mundial. A combinação da fragilidade da acumulação de capital com a crise do sistema bancário transformou o presente declínio económico numa crise de difícil resolução pelo poder político e que potencialmente se pode tornar num desastre. A praga das falências domésticas e das casas agora abandonadas – muitas vezes pilhadas de tudo o que nelas tem valor, como a cablagem de cobre – atinge com particular intensidade Detroit e outras cidades do Midwest norte americano. O desastre humano que a crise representa para centenas de milhares de famílias e para as suas comunidades pode, no entanto, ser só um primeiro sinal do impacto da actual crise. O crescimento histórico dos mercados financeiros nos anos 80, 90 e 2000 – com a contínua transferência de rendimento para os 1% mais ricos da população– desviou as atenções das fragilidades de longo prazo das principais economias capitalistas. O desempenho económico nos EUA, Europa Ocidental e Japão, deteriorou-se em todos os indicadores relevantes (crescimento económico, investimento, salários) década após década, ciclo económico após ciclo económico, desde 1973.
Os anos correspondentes ao presente ciclo económico, cujo início recua a 2001, foram os piores. O crescimento do PIB (Produto Interior Bruto) nos EUA foi o mais lento, em comparação com qualquer outro intervalo temporal desde o fim dos anos 40, com o crescimento do investimento físico (fábricas e equipamento) e a criação de emprego a corresponderem a um e dois terços, respectivamente, da média do pós-guerra. Os salários reais horários dos trabalhadores industriais e do pessoal que não exerce tarefas de supervisão, 80% da força de trabalho, permaneceram estagnados em torno dos níveis alcançados em 1979. A expansão económica também não foi particularmente mais robusta na Europa Ocidental e no Japão. O declínio do dinamismo do mundo capitalista desenvolvido está enraizado numa forte queda das taxas de lucro, causada sobretudo pela crónica tendência para a a criação de sobrecapacidade no sector industrial mundial que recua ao período do final dos anos 60 e início dos anos 70. Em 2000, nos EUA, Japão e Alemanha, as taxas de lucro na economia privada ainda não tinham recuperado os níveis anteriores. O seu crescimento no ciclo económico dos anos 90 não chegou a ultrapassar os níveis dos anos 70. Com sofríveis taxas de lucro, as empresas disponham de menos recursos que pudessem investir nas suas fábricas e equipamento e menores incentivos para se expandirem. A perpetuação de baixas taxas de lucro desde
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os anos 70 conduziu não só a uma constante queda do investimento, medido enquanto percentagem do PIB, nas principais economias capitalistas, como também a uma progressiva redução do crescimento económico, dos meios de produção e do emprego. A longa desaceleração da acumulação de capital, somada à repressão salarial por parte das empresas e aos cortes nas despesas sociais por parte dos governos (na tentativa de restaurarem as taxas de lucro) resultou numa quebra do crescimento do investimento, da procura dos consumidores e da despesa pública, e assim num decréscimo da procura como um todo. A fragilidade da procura agregada, em última análise, causa da redução das taxas de lucro, é o principal entrave ao crescimento das principais economias capitalistas. De forma a contrabalançar a persistente fragilidade da procura agregada, os governos viram-se forçados a endividarem-se de forma crescente, através de canais cada vez mais variados e complexos, para assim conseguirem manter o dinamismo económico. Inicialmente, durante os anos 70 e 80, os Estados foram forçados a incorrer em crescentes défices orçamentais de forma a sustentar o crescimento económico. Mas, ao manterem a economia razoavelmente estável, estes défices tornaram-na cada vez mais estagnada: os governos estavam progressivamente a conseguir menos efeitos na economia por cada dólar gasto, menos crescimento do PIB para um dado aumento da dívida.
DA LUTAS CONTRA OS DÉFICES À ECONOMIA ESPECULATIVA No início dos anos 90, nos EUA e na Europa, liderados por Bill Clinton, Robert Rubin e Alan Greenspan, os governos, guiados pelo pensamento neoliberal (privatização e e cortes nos programas sociais), procuram ultrapassar a estagnação económica através de políticas orçamentais restritivas. Mas, embora este facto não seja realçado nas análises deste período, esta dramática mudança de política foi altamente contraproducente. Dado que as taxas de lucro ainda não tinham recuperado os seus anteriores valores, as reduções dos défices públicos impostas pelas políticas de equilíbrio orçamental tiveram um forte impacto na procura agregada. Os EUA e o Japão sofreram profundas recessões, as piores do período do pós-guerra, com os EUA a viver uma subsequente recuperação económica sem criação de emprego. Desde meados dos anos 90, os EUA foram assim forçados a recorrer a mais poderosas e arriscadas formas de estímulo económico para contrariar a tendência para a estagnação económica. Os tradicionais défices públicos keynesianos foram substituídos pelo endividamento privado e por uma inflação do preço de activos ou o que podemos intitular de “keynesianismo pelo preço de activos”, ou, simplesmente, “bubblenomics”. Na grande corrida aos mercados bolsistas dos anos 90, as empresas e familías abastadas assistiram a uma forte expansão da sua riqueza nominal. Foram, por isso, incentivadas a embarcar em empréstimos de montantes nunca antes vistos, que sustentaram uma poderosa expansão do investimento e do consumo. A chamada “nova economia” foi a expressão directa da histórica bolha dos preços das acções dos anos 1995-2000. No entanto, vis-
to que os preços das acções cresceram paralelamente a uma quebra das taxas de lucro e que os novos investimentos exacerbavam o problema de sobrecapacidade industrial, o “crash” bolsista foi a consequência natural, com a correspondente recessão em 2001, reduzindo os lucros dos sector não financeiro para os níveis mais baixos desde 1980. No entanto, a Federal Reserve norte-americana, ajudada por outros grandes bancos centrais, contrariou o novo declínio económico com mais uma promoção da inflação de outros activos que, entretanto, nos conduziram à situação presente. Através de reduções das taxas de juro de curto prazo até aos 0% durante três anos, estas instituições facilitaram uma explosão, sem precedentes históricos, dos empréstimos às famílias, o que contribuiu e alimentou o aumento dos preços da habitação e o correspondente incremento da riqueza familiar. De acordo com a The Economist, a bolha imobiliária mundial entre 2000 e 2005 foi a maior de sempre, ultrapassando mesmo a de 1929. Ela tornou possível um crescimento constante das despesas de consumo e do investimento residencial, os dois grandes motores da expansão económica. Entre 90 a 100% do crescimento económico nos EUA durante os cinco primeiros anos deste ciclo económico, foi contabilizado como devendo-se ao consumo doméstico e à construção residencial. Durante o mesmo período, o sector imobiliário, segundo a Moody’s Economy.com, foi responsável por uma subida do crescimento económico 50% acima do que seria sem a sua contribuição – 2,3% em vez de 1,6%. Assim, acompanhando os défices orçamentais de George W. Bush, o endividamento recorde das famílias conseguiu esconder as reais fragilidades da recuperação
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económica. O crescimento da procura com origem no consumo apoiada no endividamento e, mais genericamente, no crédito de fácil acesso, não só revitalizou a economia norte-americana como, através de um aumento nas importações e de um aumento recordista do défice das balanças comercial e de pagamentos, promoveu o que pareceu ser uma expansão económica mundial notável. Se os consumidores fizeram a sua parte, o mesmo não pode ser dito do sector empresarial privado, conquanto este tenha beneficiado de um estímulo económico sem precedentes. Greenspan e a Reserva Federal insuflaram a bolha do sector imobiliário de forma a dar tempo às empresas para lidarem com o seu excesso de capital e retomarem o investimento. No entanto, em alternativa, as empresas organizaram uma ofensiva brutal contra os trabalhadores par assim restaurarem das suas taxas de lucro. As empresas aumentaram o crescimento da produtividade, não tanto através de mais investimento em tecnologia e equipamento, mas sobretudo cortando radicalmente o emprego e obrigando os trabalhadores que permaneceram redobrarem os seus esforços nas tarefas agora libertadas. Ao reprimirem os salários, ao mesmo tempo que aumentavam a intensidade do trabalho, as empresas apropriaram-se de uma proporção, sem precedentes históricos, do crescimento do produto no sector não financeiro. As empresas não financeiras, durante esta expansão, aumentaram significativamente as suas taxas de lucro, mas não o suficiente para recuperar os níveis, já de si reduzidos, dos anos 90. Assim, tendo em conta a forma como o crescimento dos lucros se deveu simplesmente a um aumento da taxa de exploração (obrigar os tra-
DESDE 2000, TEMOS ASSISTIDO, NOS EUA E NO MUNDO CAPITALISTA DESENVOLVIDO, AO MAIS LENTO CRESCIMENTO ECONÓMICO REAL DESDE A II GUERRA MUNDIAL E À MAIOR EXPANSÃO DA ESFERA FINANCEIRA DA ECONOMIA DA HISTÓRIA DOS EUA. NÃO É PRECISO SER MARXISTA PARA ARGUMENTAR QUE ESTA REALIDADE NÃO É SUSTENTÁVEL.
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balhadores a trabalhar mais, pagando-lhes menos por hora), havia poucas dúvidas de que esta expansão não iria durar muito. Mas, acima de tudo, ao melhorarem as suas taxas de lucro através da repressão do emprego, investimento e salários, as empresas norte-americanas reduziram o crescimento da procura agregada, minando assim os seus próprios incentivos para a expansão. Simultaneamente, em vez de aumentarem o investimento, a produtividade e o emprego para aumentar os seus lucros, as empresas tentaram explorar os baixíssimos custos do crédito para melhorar a sua posição e a dos seus accionistas através da manipulação financeira – saldando as dívidas, pagando dividendos e comprando as suas próprias acções de forma a que estas se valorizassem, sobretudo através de uma enorme onda de fusões e aquisições. Nos EUA, durante os últimos 4/5 anos, a proporção do valor do rendimento retido pelas empresas em dividendos e compras de acções próprias explodiu para os maiores níveis do pós-guerra. O mesmo tipo de fenómeno aconteceu no resto da economia mundial (Europa, Japão e Coreia). REBENTANDO BOLHAS A ideia central é a de que, desde 2000, temos assistido, nos EUA e no mundo capitalista desenvolvido, ao mais lento crescimento económico real desde a Segunda Guerra Mundial e à maior expansão da esfera financeira da economia da história dos EUA. Não é preciso ser marxista para argumentar que esta realidade não é sustentável. Claro está que, tal como o bolha especulativa nos mercados accionistas dos anos 90 terminou, também a bolha no sector imobiliário acabou por rebentar. Como
consequência, o filme da expansão económica baseada no sector imobiliário, a que assistimos durante a fase ascendente do ciclo económico, está agora a ser exibido ao contrário. Hoje os preços da habitação já caíram à volta de 5% em relação ao pico de 2005, mas este fenómeno só agora começou. A Moody’s estima, que quando a bolha estiver totalmente deflacionada, previsto para o inicio de 2009, os preços terão caído 20% em termos nominais (ainda mais em termos reais), de longe a maior queda na história norte-americana do pós-guerra. Tal como o efeito de riqueza positivo, que conduziu a economia na sua expansão graças à bolha especulativa imobiliária, também o correspondente efeito negativo está a atrofiar o crescimento. Com o valor das suas habitações a diminuir, as familias já não podem tratar as suas casas como máquinas multibanco. Os empréstimos domésticos estão a colapsar, obrigando-as a consumir menos. O perigo iminente está no facto de, ao não poderem “poupar” através do aumento do valor dos seus imóveis, as famílias norte-americanas estarem obrigadas a subitamente começar a poupar realmente, conduzindo a um crescimento das taxas de poupança e ao correspondente decréscimo do consumo. Ao anteciparem as implicações do fim da bolha especulativa no comportamento dos consumidores, as empresas começam a contratar menos, o que já resultou numa queda significativa do crescimento do emprego desde o início de 2007. Graças à emergente crise do sector imobiliário e à desaceleração do emprego já no segundo trimestre de 2007, os fluxos totais reais de rendimento das famílias, que tinham crescido a uma taxa à volta de 4,4% em 2005 e 2006 quase caíram para zero. Ou seja, se somarmos
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o rendimento real disponível das famílias à queda dos valor das suas casas, aos seus empréstimos ao consumo e aos seus ganhos de capital, chegaremos a um resultado onde o dinheiro que as famílias realmente dispõem para gastar parou de crescer. A expansão económica já estava no seu último fôlego ainda antes da crise financeira do último Verão. A crise do sub-prime, resultado da extensão da bolha imobiliária, está obviamente a complicar e tornar particularmente perigoso a presente fase descendente do ciclo económico. Os mecanismos que ligam os empréstimos sem escrúpulos neste sector às falências domésticas maciças, ao colapso dos mercados de títulos suportados por hipotecas sub-prime, e à crise dos grandes bancos que lidaram com gigantescas quantidades destes títulos, necessitam de uma discussão à parte. Podemos simplesmente argumentar em jeito de conclusão, que graças às enormes perdas do sector bancário, cujo tamanho deve continuar a crescer ao longo da actual crise, a economia enfrenta o cenário, sem precedentes no pós-guerra, do congelamento do crédito no exacto momento em que entra num período recessivo. Os governos pouco ou nada podem fazer para prevenir este resultado.
Este artigo foi originalmente publicado na revista Against The Current (Janeiro/Fevereiro 2008). Robert Brenner, historiador económico marxista, é autor de “The Economics of Global Turbulence” e “The Boom and Bubble”.
ONTRATEMPOS
“POLÍTICA TECNO” REDES, CÓDIGOS E MOVIMENTOS
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INÊS PEREIRA
“POLÍTICA TECNO”: REDES, CÓDIGOS E MOVIMENTOS INÊS PEREIRA | ECONOMISTA
MOVIMENTO NA INTERNET Grandes manifestações, um pouco por toda a parte, convocadas pela Internet. Petições online, juntando milhares de assinaturas em prol das mais variadas causas. Manifestações virtuais, fóruns de discussão, agendas noticiosas alternativas. Reportórios de acção directa detalhadamente explicados em sites especializados, ao alcance de um clique. Informáticos e programadores que se organizam em associações, reivindicando um outro modo de produzir tecnologia. E, por outro lado, legiões de pessoas a fazer downloads ilegais e lenta e firmemente alterando o panorama da industria discográfica no mundo inteiro. A política, nos dias de hoje, reveste-se de contornos muito tecno. No presente artigo, procuro traçar algumas pistas sobre as relações entre a politica – focando-me particularmente na acção dos movimentos sociais – e a tecnologia – principalmente a informática e a Internet. A relação entre os movimentos sociais e a Internet pode ser analisada segundo dois grandes pontos de vista. Por um lado, a Internet surge como uma ferramenta ao serviço dos movimentos sociais, permitindo a comunicação sincrónica em larga escala e consequentemente a construção de alternativas políticas em rede, transnacionais. Numerosos exemplos desta tendência surgem à esquerda e à direita, do fundamentalismo religioso à esquerda radical, passando por projectos de solidariedade internacional. Sobre os trilhos da Internet, promove-se uma
difusão e concertação de lutas, criam-se causas globais, caminha-se por vezes para uma convergência de projectos contestatários, encurtando-se espaços e tempos. Por outro lado, as próprias tecnologias de informação tornam-se causa e motivo de contestação social. O acesso à informação e aos seus mecanismos de produção, bem como as próprias condições de produção e uso de software e hardware surgem, num mundo em acelerado progresso tecnológico, numa sociedade baseada no progresso científico, na tecnologia e na circulação da informação (como nos têm referido um conjunto de teorizações sobre as sociedades contemporâneas), como um dos principais palcos de conflito social. As análises da sociologia dos movimentos sociais, tradicionalmente atentas às diferentes gerações e ciclos de mobilização colectiva, tendem a colocar a seguinte questão: serão o combate à info-exclusão, a luta pela liberdade de expressão e divulgação da informação com o recurso às novas tecnologias de comunicação, ou a luta pela democratização da Internet, novos palcos de combate (a par, por exemplo com a divulgação da cultura científica e tecnológica) para uma novíssima geração de movimentos sociais? INFRA-ESTRUTURAS E SUPER-ESTRUTURAS A mobilização social bem sucedida, de larga escala, com um impacto profundo, não se constrói apenas em torno de projectos, discursos ideológicos e retóricas. Constrói-se, quotidianamente, sobre um campo de
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possibilidades mais ou menos restrito, exigindo recursos disponíveis: capacidade financeira, conhecimento, capitais relacionais, mobilidade e disponibilidade de espaços-âncora onde a acção toma lugar. Neste sentido, podemos dizer que a acção política dos movimentos sociais fundamenta-se sobre um conjunto vasto de mecanismos infra-estruturais, também tecnológicos. Neste âmbito, a Internetm e de um modo geral as tecnologias de informação e comunicação, têm ganho uma preponderância particular, permitindo, entre outras coisas, a constituição de redes relacionais amplas entre os diferentes movimentos sociais, marcadas por um duplo processo de alargamento e convergência. Este processo de ampliação e fusão opera simultaneamente: (1) na difusão e (re)produção de projectos, causas e ideologias; (2) na concertação de acções colectivas; (3) na (re)combinação de actores e agentes políticos e (4) na convergência de diferentes presenças num imenso espaço virtual, que surge assim como uma nova arena onde o conflito social tem lugar. Numerosos exemplos de cada um destes processos podem ser convocados. Em primeiro lugar, o uso mais generalizado da Internet tem permitido, de forma particularmente expressiva, a presença no espaço global de movimentos de cariz local ou particular. “Estar na Internet”, tem vindo a contribuir, de diversas formas, para o maior impacto de alguns movimentos, que se têm constituído como causas globais. Veja-se a título de exemplo a presença na net do MST – o movimento brasileiro dos sem-terra – ou do
movimento neo-zapatista, considerado como a primeira guerrilha informacional. O espaço virtual actua nestes casos como um showcase que permite a explanação de discursos, projectos e causas, e a transferência de informação e conhecimento. A presença na Internet resulta frequentemente (e notavelmente nos casos citados) numa eficaz difusão destes movimentos e no recrutamento de aliados em diversas partes do globo. Esta necessidade de estar na net é amplamente reconhecida por associações e grupos em diversas partes do mundo, e não é por acaso que, a cada novo colectivo que se forma, uma novo site ou blog é criado, permitindo simultaneamente a divulgação do projecto e o diálogo com diferentes actores. Em segundo lugar, a circulação acelerada de informação, de forma sincrónica, permite uma concertação da acção a diversos níveis. Por um lado, em diversos sites encontram-se não apenas informações ou debates ideológicos, mas também repertórios concretos de acção e modus operandi para a realização de diferentes acções, que podem ser, modularmente, transpostos e reconvertidos de forma a serem reutilizados noutras partes do mundo. Das performances alternativas tipificadas em manifestações à organização de atentados, um mundo de actividades é difundido no espaço virtual podendo ser adaptado e reproduzido nos mais diversos contextos. Por outro lado, a infra-estrutura tecnológica permite também o desenvolvimento de acções, quer numa escala local, permitindo a convocatória electrónica para manifestações e outros happenings, quer numa escala global, através da organização concertada de eventos simultâneos. A manifestação global contra a guerra no Iraque, convocada via Internet para o dia 15 de Fevereiro de 2003, constitui um exemplo emblemá-
A INFRA-ESTRUTURA TECNOLÓGICA PERMITE TAMBÉM O DESENVOLVIMENTO DE ACÇÕES, QUER NUMA ESCALA LOCAL, PERMITINDO A CONVOCATÓRIA ELECTRÓNICA PARA MANIFESTAÇÕES E OUTROS HAPPENINGS, QUER NUMA ESCALA GLOBAL, ATRAVÉS DA ORGANIZAÇÃO CONCERTADA DE EVENTOS SIMULTÂNEOS.
tico desta realidade. A convocatória por SMS para as manifestações em Madrid pós 11 de Março constituiu outro exemplo amplamente referenciado neste âmbito. Em terceiro lugar, esta concertação de acções permite uma paralela convergência de actores, numa dupla lógica de amplificação e densificação de redes sociais. Por um lado, amplia-se o espaço social de recrutamento (através da difusão de informação). Por outro, torna-se possível a concertação de actores individuais e colectivos de diversas partes do globo, através da abertura de canais de comunicação que conectam diferentes movimentos sociais e que proporcionam pontos de comunicação entre movimentos, nomeadamente através de mailing lists disseminadas por diversos endereços electrónicos, fóruns de discussão, newsletters. O surgimento destas listas electrónicas, bem como de salas de conversação virtual (chats) e de mecanismos que possibilitam telefonemas baratos através da Internet permitem agregar colectivos dispersos e criar plataformas internacionais. Desta forma, actores distantes que partilham determinados princípios políticos podem pôr-se em contacto e, idealmente, conjugar esforços. A chamada Web 2.0 (um termo que pretende designar a
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tendência crescente do uso da Internet de forma criativa, participativa e colaborativa, através de blogs, sites de social networking, ou outras comunidades virtuais), veio permitir um maior engajamento dos diferentes actores, com recurso a diferentes ferramentas, entre as quais poderemos, por exemplo, salientar as de escrita colaborativa, ou seja, sites onde é possivel introduzir, apagar e editar livremente os seus conteúdos (o exemplo paradigmático desta tendência é a famosa Wikipedia, enciclopédia online colaborativa, mas existem wikis de um grande número de colectivos e movimentos). Na articulação entre projectos, acções e actores constroem-se, assim, territórios virtuais comuns. O espaço contestatário virtual encontra-se pejado de lugares de convergência: desde sites com informação sobre os mais variados movimentos e acções políticas até manifestações virtuais, onde os participantes se podem registar, colocar mais um activista na manifestação e escolher o seu vestuário e os slogans proferidos. Os exemplos anteriormente citados mostram como a Internet surge como uma poderosa ferramenta para a construção de movimentos em rede e redes de movimentos, entroncando, desta forma, enquanto infra-estrutura
NOVOS PALCOS DE CONFLITO EMERGEM: O ACESSO ÀS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO E O COMBATE À INFO-EXCLUSÃO; A DEFESA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE ACESSO AOS MECANISMOS DE PRODUÇÃO DA INFORMAÇÃO; A PARTILHA DE CONTEÚDOS (INFORMAÇÃO, MÚSICA, SOFTWARE) COM RECURSO À INTERNET; A PRÓPRIA PRODUÇÃO DO SOFTWARE E, FINALMENTE, A PRODUÇÃO DE HARDWARE E O RITMO DE DESENVOLVIMENTO A ESTE ASSOCIADO.
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tecnológica, na discussão actual (e que transcende o presente artigo) sobre a constituição de um movimento de movimentos, multidimensional e global (consubstanciado no chamado movimento anti/alter-globalização). No entanto, as redes entre movimentos sociais não se baseiam apenas nas condições de possibilidade – na infra-estrutura tecnológica – e exigem também processos de convergências e fusões conceptuais, que são também possibilitados pela existência de um conjunto de instrumentos, também eles de base tecnológica, que actuam como uma, digamos, super-estrutura. Falo, por exemplo, de instrumentos que facilitam a construção quer de agendas colectivas, seleccionando noticias, eventos e convocatórias; quer de memórias e narrativas comuns, sistematizando e divulgando informação sobre organizações e eventos e desta forma construindo uma memória colectiva partilhada. Embora este tipo de função seja cumprido a diversos níveis, notavelmente pelos teóricos dos movimentos sociais, em suportes mais tradicionais como os livros ou as palestras, podemos destacar, no âmbito da Internet, a existência de determinados instrumentos. Por um lado, agências noticiosas alternativas, como é o caso do Indymedia – Centro de Media Independente, que recebe, edita e agrega informação noticiosa e agendas de contestação, sendo organizado como uma estrutura descentralizada, com delegações em diversos países; ou de um conjunto vasto de mailing lists e revistas online, que divulgam agendas de participação (veja-se, por exemplo, no âmbito do Estado Espanhol, o NODO50, que tem uma mailing list de divulgação de eventos em todo o Estado). Por outro lado, podemos referir um conjunto de ferramentas de memória, organizadas como redes internacionais de
investigação-activista que sistematizam uma memória comum. Note-se o caso do Common Memory Project/ Memoria Viva, projecto de sistematização de dados sobre o Fórum Social Europeu, que acumula bases de dados, sistemas de pesquisa e de visualização de informação sobre eventos, organizações e redes ligadas ao FSE. UMA OUTRA TECNOLOGIA É POSSÍVEL A Internet não é apenas uma ferramenta ao serviço dos movimentos sociais. Constitui também uma arena de conflito privilegiado, leit motiv para a mobilização social. Novas formas de dominação, acentuação de clivagens sociais, perturbações no equilibro ecológico – a consciência de todas estas questões implicou um novo olhar sobre a inovação tecnológica – bem como a elaboração de meta-discursos políticos e ideológicos. Por outro lado, a própria forma de produção e consumo da tecnologia constitui campo de acção para uma série de movimentos sociais. Novos palcos de conflito emergem: o acesso às tecnologias de informação e o combate à info-exclusão; a defesa da liberdade de expressão e de acesso aos mecanismos de produção da informação; a partilha de conteúdos (informação, música, software) com recurso à Internet; a própria produção do software e finalmente, a produção de hardware e o ritmo de desenvolvimento a este associado. A partir destas premissas constroem-se movimentos de intervenção social, quer de cariz reactivo, quer pro-activo (como em todos os campo de contestação, de resto), que procuram colmatar falhas e transformar a própria produção tecnológica. Neste texto centrar-me-ei particularmente, por um lado, nos movimentos que promovem, de diferentes
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formas, o acesso à Internet, e por outro, naqueles que pretendem transformar as condições de produção de software e hardware. Destaco-os pelo seu protagonismo particular, e também por, ao se constituírem em redes de mobilização específica, serem exemplos de uma potencial nova geração de movimentos tecnológicos. Todavia, não é possível, nesta área, ignorar quer o trabalho conduzido no âmbito da promoção de liberdade de expressão (incidindo no combate à censura, nas questões de privacidade e segurança e no desenvolvimento da Web 2.0), quer o impacto assinalável e com um imenso potencial de transformação social dos softwares que permitem o download/upload de conteúdos (e que, no caso da indústria discográfica, têm já provocado alterações substanciais nas formas de comercialização e promoção). Em primeiro lugar, o acesso à informação constitui uma questão fundamental. Num mundo profundamente globalizado, e fortemente baseado na sociedade de informação, na tal “sociedade em rede”, o acesso a esta constitui-se como peça fundamental para a participação plena na sociedade. No entanto o acesso à Internet – e a outras infra-estruturas tecnológicas – é fortemente condicionado por questões físicas e espaciais (os lugares estão desigualmente conectados), financeiras, sociais e de conhecimento. Perante o eclodir da sociedade da informação, novas desigualdades emergem. Termos como info-exclusão ou fosso digital pretendem dar conta destas profundas assimetrias globais, que alargam profundamente quer o fosso Norte-Sul, quer as assimetrias sociais internas a cada país, quer ainda as desigualdades geracionais. É neste sentido que diversos movimentos sociais (e também agências estatais e outras instituições) têm concentrado esforços
no combate à info-exclusão e no atenuar do fosso digital, através da formação e da distribuição de hardware. Por outro lado, as capacidades de participação tecnológica estão também desigualmente distribuídas dentro dos próprios actores dos movimentos sociais. É verdade que os exemplos apresentados na secção anterior – e haveria muitos mais a apresentar – desenham a traço grosso um mundo contestatário, que, tal como o status quo que se pretende desafiar, estaria interconectado, graças à disseminação acelerada de um conjunto de infra-estruturas tecnológicas. No entanto, esta interconexão global tem os seus limites. Se a concertação e o impacto social se baseiam largamente nesse tipo de redes, o acesso a estas torna-se assim numa pre-condição para a mobilização. Neste sentido novas desigualdades e novas hierarquias internas aos próprios movimentos socais são construídas em torno da questão tecnológica, tema que tem também constituído um ponto focal no debate sobre as chamadas ferramentas políticas, e que constitui tambem área de intervenção para um conjunto de colectivos que elegem o desenvolvimento e a integração nestas infra-estruturas como umas das suas principais esferas de acção. Refiro-me aqui a organizações que promovem e divulgam conhecimento e know-how sobre ferramentas da Internet ou que oferecem espaço virtual para o alojamento de websites de movimentos sociais (a este nível veja-se, por exemplo, o projecto Pangea, sediado em Barcelona, que disponibiliza espaço no seu servidor para o alojamento de páginas de diversas associações e grupos informais, e que, paralelamente, promove acção de formação em ferramentas tecnológicas). Uma outra vertente deste combate passa por projectos de acesso partilhado à Internet, por exemplo, atra-
PARA MUITOS O MAIOR MILAGRE DO LINUX FOI TER LANÇADO AS BASES PARA UMA INTERACÇÃO INTENSA EM TORNO DO DESENVOLVIMENTO DE UM SISTEMA OPERATIVO. INTERACÇÃO ESSA QUE SE VEIO A TRANSFORMAR NUMA AMPLA REDE DE DESENVOLVIMENTO.
vés da criação de redes comunitárias de acesso WIFI. Subjacente a estes movimentos está a ideia de que, com o recurso a redes abertas, via rádio, com muito menos exigência infra-estrutural, se consegue promover um maior acesso à Internet. Em diversas cidades do mundo estão já constituídas comunidades e cooperativas locais que partilham entre os seus associados o acesso a estas redes móveis, prescindindo dos contratos de serviço Internet via ADSL ou cabo, mais caros e individuais. Por outro lado, a própria produção de software tem sido alvo de contestação. Exemplo paradigmático desta realidade encontra-se no movimento do software livre. Muito resumidamente, o software livre pode ser definido como aquele cujo código-fonte (o programa na linguagem original em que ele foi escrito) está disponível, sendo portanto possível modificá-lo e distribuí-lo livremente, sem necessidade de autorizações adicionais. Uma aplicação que circule como software livre pode ser corrigida ou modificada por qualquer utilizador ou programador que não o inicial. Este conceito foi criado por Richard Stallman, que começou, nos anos 80, a construir um novo sistema operativo, como forma de protesto ante o fechamento de informação e a expan-
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são do software proprietário de grandes corporações. Ao mesmo tempo Stallman criou o enquadramento legal para o software livre e definiu-o a partir de quatro grandes liberdades: (1) Liberdade de executar o software para qualquer uso; (2) Liberdade de estudar o funcionamento de um programa e de adaptá-lo às necessidades do utilizador; (3) Liberdade de redistribuir cópias; (4) Liberdade de melhorar o programa e de tornar as modificações públicas de modo que a comunidade inteira beneficie da melhoria. Ao projecto iniciado por Stallman juntou-se mais tarde o Linux, o núcleo (kernel) do sistema operativo, que surgiu em 1991, pelas mãos de um jovem estudante da Universidade de Helsínquia: Linus Torvalds. Para muitos o maior milagre do Linux foi ter lançado as bases para uma interacção intensa em torno do desenvolvimento de um sistema operativo. Interacção essa que se veio a transformar numa ampla rede de desenvolvimento, que se foi alargando consideravelmente, e não muito tempo depois, dezenas de programadores contribuíam para a melhoria do sistema. Uma vez criado um sistema operativo livre, assiste-se a uma crescente expansão. O GNU/Linux, o sistema completo que nasce
O MOVIMENTO DO SOFTWARE LIVRE SURGE COMO UM MOVIMENTO SOCIAL, FUNDAMENTADO EM DETERMINADOS PROJECTOS IDEOLÓGICOS: A LIBERDADE DE CRIAR, INOVAR E PRODUZIR; A PARTILHA DO CONHECIMENTO, A INDEPENDÊNCIA FACE ÀS GRANDES CORPORAÇÕES MONOPOLISTAS E A RECUSA DOS SEUS PROJECTOS COMERCIAIS.
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do casamento entre o projecto GNU e o kernel desenvolvido por Torvalds, é constantemente melhorado, através das contribuições de dezenas, centenas, milhares de indivíduos, em cantos diferentes do mundo, que acedem ao sistema (adquirindo cds ou através da transmissão de ficheiros via Internet), testam as suas funcionalidades, lêem o código-fonte e inserem melhorias e modificações. Ao mesmo tempo, o movimento do software livre aplica-se no trabalho de divulgação e envolve-se em lutas pelos ideais associados ao movimento (partilha da informação, acesso ao conhecimento, possibilidade de criação tecnológica), assumindo directamente algumas lutas, como, por exemplo, contra as propostas de patenteamento do software. Uma primeira questão colocada pelo software livre prende-se com o modelo alternativo de inovação tecnológica que implica, consubstanciando o conceito de engenharia em rede, em que o desenvolvimento das aplicações informáticas resulta de uma multiplicidade de contributos diferenciados de programadores espalhados por todo o mundo. Contributos que, de resto, podem seguir trilhos convergentes ou divergentes, havendo lugar para sobreposições, cruzamentos de caminhos, ou alternativamente, subdivisões por direcções distintas. Este modelo de inovação tecnológica resulta de três premissas: (1) a partilha do conhecimento; (2) a reconfiguração da dicotomia produtor/consumidor; e, finalmente, (3) a noção de progressão tecnológica como patchwork,. E não seria de todo possível sem o acesso à Internet. Se, por um lado, o software livre desafia o modelo organizacional convencional de produção tecnológica, por outro desafia também o modelo de comercialização do software, e o modelo económico que lhe é associado,
assumindo, desta forma, um papel na corrente discussão sobre a mais ampla alteração dos modelos de negócio face à Internet. Simultaneamente, o movimento do software livre surge como um movimento social, fundamentado em determinados projectos ideológicos: a liberdade de criar, inovar e produzir; a partilha do conhecimento; a independência face às grandes corporações monopolistas; e a recusa dos seus projectos comerciais. Se a produção de software é alvo de debate aceso, a produção de hardware também o é, embora de forma mais tímida. Com efeito, a proliferação de computadores e outros artefactos tecnológicos tem elevados custos, primeiro que tudo, ambientais (principalmente num contexto em que a vida útil de um computador apetrechado com um sistema operativo como o Windows é extraordinariamente curto). Por outro lado, do ponto de vista social e humano, a produção de computadores está longe de ser uma indústria limpa, sendo, à semelhança de muitos outros contextos de produção, marcada por sistemas de exploração de mão-de-obra barata, em condições de trabalho extremamente precárias, nos chamados países em vias de desenvolvimento. Se é verdade que não existe um movimento alternativo organizado de produção independente de computadores que cubra todo o processo de produção (como existe para bens do sector primário e para alguma indústria alimentar ou de artesanato no âmbito do movimento do Comércio Justo ou de outros), a verdade é que, nos últimos anos, tem-se assistido a tentativas – ainda incipientes – de movimentos de reciclagem de computadores, através da reutilização de componentes e da implementação de software durável (como é o caso da maior parte das aplicações de software livre).
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AS REDES E OS CÓDIGOS DA POLÍTICA TECNO Em redes de movimentos sociais construídas com base em redes electrónicas e em códigos de conduta na produção e acesso à Internet, parcialmente baseados no uso de soluções de código aberto, constrói-se um espaço para uma acção política e tecnológica. As recentes gerações de movimentos sociais mostram o caminho, potenciando os usos da tecnologia, reclamando a aposta numa outra tecnologia e desta forma fazem parte de uma geração de “política tecno”. Note-se que a tecnologia (e neste caso a Internet) não é a solução para todos os males, mas também não é a fonte dos problemas do mundo globalizado. É, como quase tudo, parte do problema e parte da solução. Cabe aos movimentos sociais a potencialização das capacidades transformadoras das redes tecnológicas, como forma de conduzirem de forma mais eficaz a processos de transformação social. As dinâmicas de internacionalização, a amplificação de redes e a concertação da acção constituem peças fundamentais no desenvolvimento de movimentos globais. Processos todavia que não são particularmente novos – a internacionalização dos movimentos sociais é muito mais antiga que a sociedade de informação – nem totais – uma grande parte da luta social continua a ocorrer fora destes contextos, baseando-se em redes inter-pessoais, em contextos microsociais de base. No entanto constituem oportunidades e recursos que podem e devem ser utilizados. Por outro lado, a consciência das desigualdades, da info-exclusão, e dos próprios custos associados ao modelo corrente de produção de hardware e software devem ser tidos em conta e transformados também eles em áreas de conflito social. É este o desafio de uma “política tecno”.
DOSSIER ITÁLIA
QUERER OU NÃO QUERER CONTAR DANIEL OLIVEIRA A DERROTA ITALIANA, A ESQUERDA E O PODER JORGE COSTA BERTINOTTI PERDEU O COPYRIGHT LUÍS FAZENDA, CARLOS SANTOS E VICTOR FRANCO A ESQUERDA ITALIANA EM ESTADO DE CHOQUE RICARDO PAES MAMEDE
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QUERER OU NÃO QUERER CONTAR
DANIEL OLIVEIRA | JORNALISTA. A VERSÃO ORIGINAL DESTE TEXTO FOI PUBLICADA NO BLOGUE ARRASTÃO.
É EVIDENTE QUE A HECATOMBE DA ESQUERda Arco-Íris nas últimas eleições em Itália tem muitas explicações. Mas não há volta a dar. Em 2006 a Refundação Comunista teve 5,8%. Agora, coligada aos Verdes, à Esquerda Democrática (uma cisão da DS) e ao Partido dos Comunistas Italianos (uma cisão da Refundação), consegue 3,1% (estes partidos separados conseguiram no total 10,2%). Perderam quase três milhões de votos. A pior notícia desta catástrofe é que ela apanhou a chamada “esquerda radical” num processo de transformação. A Esquerda Arco-Íris era uma experiência de alargamento, que incluía de comunistas mais “duros” até ecologistas mais moderados. Experimentada agora (talvez o momento tenha sido tacticamente errado), morre à nascença. Já morreu. E na Refundação começará a luta fratricida. Antes de referir as razões que têm a ver com as escolhas feitas pela Refundação, vale a pena perder algum tempo com alguns pormenores circunstanciais. Não servem de desculpa. Servem para que não se façam análises apressadas. A verdade é que este desastre foi acentuado pela lei eleitoral italiana. A barreira nacional de 4% para a Câmara e a barreira regional de 8% para o Senado, assim como o favorecimento dos pequenos partidos que concorram em coligações maiores, leva a absurdos políticos. O Movimento para a Autonomia do Sul, com um terço dos votos da Esquerda Arco-Íris (apenas 1,1%), elegeu
oito deputados e dois senadores. A coligação liderada pela Refundação não elegeu nenhum. Não cheguei a encontrar nenhuma análise da transferência de votos fiável. Mas parece evidente que a Esquerda Arco-Íris perdeu muitos votos para a coligação entre o novo Partido Democrático (que juntou todo o centro-esquerda italiano) e a Itália dos Valores, do juiz Di Pietro. A confirmação deste facto salta à vista nos números: todos os partidos que concorreram fora das duas coligações foram punidos. A UdC (centristas democrata-cristãos), de Casini, apesar dos seus 5,6% para a Câmara, ficou muito longe do renascimento da outrora pujante Democracia-Cristã italiana. A lista do famoso Giuliano Ferrara, “Aborto, não Obrigado”, ficou-se por uns miseráveis 0,4%. Pelo contrário, os maiores vencedores foram os partidos de segunda linha que se aliaram aos dois gigantes: Liga Norte (mais de 8%) e Itália dos Valores (4,3%). Ou seja, os italianos quiseram dar força a blocos de governo mas dentro deles premiaram as franjas. Junta-se a isto um pormenor talvez menos importante: a Refundação concorreu com um símbolo novo e um novo nome, sem qualquer referência às suas componentes e ao seu líder histórico, ao contrário do que aconteceu com os restantes partidos e do que é hábito em Itália. Ainda assim, o efeito disto será marginal. Para explicar esta perda de votos podem ser feita duas análises: a nova formação promovida pela Refundação foi vítima do voto útil de uma Itália polarizada em
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duas forças mais coesas do que o habitual ou foi punida pela sua participação num governo que pouco tinha a ver com ela. Suponho que, com uma descida tão acentuada, as duas serão igualmente verdadeiras e, mesmo que tal pareça paradoxal, se encontam juntas em muitos eleitores. Com esta descida, é evidente que esta esquerda perdeu votos para todos: seguramente para a abstenção (que aumentou um pouco), muitos para o Partido Democrático e parece que também para o PdL, de Berlusconi, e até para a Liga Norte, do xenófobo Bossi. Vale a pena concentrarmo-nos na questão política de fundo, até porque o voto útil não chega para explicar tamanha humilhação. Mais: para o Senado, onde o voto útil faria ainda mais sentido (a barreira em cada região é de 8%, enquanto para a Câmara, a nível nacional, é de 4%), a Esquerda Arco-Íris tem praticamente a mesma votação. Até tem mais um pouco: 3,2%. A Refundação Comunista esteve num governo incaracterístico onde a sua agenda quase não pesou. Demasiadas vezes acabou por se encontrar na esquizofrénica situação de contestar na rua o governo em que participava. Na política externa, na economia e na política social, o governo estava muito longe das opções programáticas da Refundação Comunista e da agenda da base social que a apoia. Pior: sendo um governo sem qualquer coesão conseguia desagradar a todos ao mesmo tempo. Na altura em que a Refundação decidiu entrar no governo defendi que, não sendo politicamente defensável
a sua participação, ela era inevitável. Aliás, a decisão da Refundação estava tomada quando decidiu participar na coligação da esquerda na corrida eleitoral. Vale a pena, quando se analisa este resultado, ter a cautela de ter isto em conta. Qual teria sido o resultado da Refundação se, nas eleições anteriores a estas, já com este sistema eleitoral em vigor, decidisse concorrer separada? E, concorrendo coligada, que margem de manobra ou até que autoridade moral tinha para ficar fora do governo? Mas mesmo assim teve outras oportunidades para sair de um governo que se manteve demasiado distante dos mínimos que se tem de exigir à esquerda e perante vários gestos de provocação da ala mais à direita do governo, que testou a cada momento e para lá do razoável, a “lealdade” dos comunistas. Infelizmente, na política, as circunstâncias contam. Seria melhor se a Refundação tivesse saído e feito cair o governo? Não sabemos. Mas pensemos nisto: o partido que fez cair o governo Prodi eclipsou-se nestas eleições. A Refundação seria presa por ter cão (estar no governo) e por não ter (sair dele). É difícil, olhando para os resultados, atribuir ao posicionamento ideológico da Refundação esta queda. A cisão mais à esquerda da Refundação, a Esquerda Crítica, composta pelo ex-senador Luigi Malabarba, senador Franco Turigliatto, e deputados Salvatore Cannavò, Lidia Cirillo e Flavia D’Angeli, para onde podia ter ido algum voto de protesto, ficou-se por uns irrelevantes 0,46%. Se olharmos para os resultados como um sinal dado pelo eleitorado de esquerda italiano, este resultado deve entrar na equação. O protesto contra a escolha de Bertinotti tinha para onde ir. Não foi. Foi para lugares bem mais distantes.
A REFUNDAÇÃO NÃO FEZ UMA ESCOLHA. NÃO TINHA ESCOLHA. SE SUPORTASSE ESTE GOVERNO SEM PROGRAMA NEM ALMA SERIA PUNIDA. SE NÃO O APOIASSE E ENTREGASSE O PODER A BERLUSCONI TAMBÉM O SERIA. E O DRAMA É EXACTAMENTE ESTE: TER PARTIDOS POLÍTICOS A TORCER PARA QUE NADA DEPENDA DELES. CONVENHAMOS QUE É POUCO ENTUSIASMANTE. A tese que defendo é outra e um pouco mais dramática. Para muitos eleitores, alguns partidos cumprem hoje a função de tubo de escape do sistema. É para isso que parte dos seus eleitores os querem. E quando se aproximam do poder ficam apenas com o voto convicto, que é bem menor. O resto foge para outros pontos de protesto (aqui foi para a direita, que estava na oposição, e para a abstenção) ou para quem está convictamente no poder e beneficia da chantagem do voto útil. Quem se zanga por alguns partidos participarem no poder não tem qualquer problema em votar em quem está no poder. Mas nesse voto prefere votar em quem realmente determina os governos. Para estes partidos reserva (e não quer mais) um papel de fiscais, de forma de pressão. Ou de voto de protesto que não pretende ser consequente. Convenhamos que nenhum partido que queira ter futuro político e determinar as políticas pode definir as suas estratégias com o objectivo de corresponder a estas expectativas. Porque, na realidade, os que, dentro dos respectivos partidos, reivindicam este papel e apenas têm como programa cumprir este papel até às ultimas consequências, julgando-se mais radicais que os restantes, não o são. Pelo contrário. Este é um papel perverso
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e sem futuro. Em vez de tentar mudar seja o que for, serve de almofada para que tudo fique na mesma. Aliás, é por isso que estes partidos são muitas vezes punidos perante a pressão do voto útil. Quando alguma coisa está realmente em risco os eleitores debandam. Claro que Itália não é o melhor exemplo para este debate. Itália tem Berlusconi e um sistema eleitoral surrealista. A Refundação não fez uma escolha. Não tinha escolha. Se suportasse este governo sem programa nem alma seria punida. Se não o apoiasse e entregasse o poder a Berlusconi também o seria. E o drama é exactamente este: ter partidos políticos a torcer para que nada dependa deles. Convenhamos que é pouco entusiasmante. Não podemos por isso fazer a transposição do que se passou em Itália para Portugal. O sistema eleitoral é diferente mas, mais importante, os actores políticos são outros. A esquerda à esquerda do PS está aqui separada e é provável que assim fique por muitos anos. Não há nenhuma diferença substancial entre o PS e o PSD, coisa que não se pode dizer entre a direita xenófoba de Berlusconi e o Partido Democrático (mais por causa do primeiro do que pelo segundo), e o PSD não constitui um risco sério para a democracia.
Mas é interessante verificar que mesmo em Portugal as sondagens confirmam a tese que aqui defendo: sem que nada tenha mudado na sua forma de agir, nos seus programas ou nos seus protagonistas, PCP e BE aparecem com acentuadas subidas eleitorais. Tudo leva a crer que se trata de um voto de protesto contra as políticas do PS. É uma boa notícia esta subida eleitoral? Claro que sim. Mas alguém sabe o que fazer com esta boa notícia? O mais provável é que esta tendência continue enquanto o PS estiver no governo e ainda mais se o PSD continuar longe de qualquer ambição governativa. Mas, mal a direita regresse, é de esperar que este voto de protesto volte para os socialistas. Claro que há a possibilidade do PS ficar sem maioria absoluta. Afastando a participação num governo de Sócrates (que seria de todo inaceitável), sabemos que o PS ficará dependente ou de acordos com a direita (que acentuarão ainda mais as piores opções políticas do governo) ou que o BE e o PCP de alguma forma imponham alguma da sua agenda. Mas, se correrem bem as próximas eleições, chegará sempre o momento em que ou BE, ou PCP, ou os dois terão de escolher se fazem cair um governo com o qual não concordam. E esse dilema coloca-os numa posição péssima que merecerá, seja qual for a escolha, uma punição eleitoral. Os “duros” acham que este resultado em Itália prova a sua razão e acredito que até o celebrem. Reconheço que eleitoralmente é provável que tenham razão – apesar de valer a pena fazer uma análise mais fina – só não tiro daí as mesmas conclusões políticas. Porque, do ponto de vista estratégico, só podem levar a esquerda europeia para um beco. Porque não têm alternativa a não ser esperar sempre que tudo corra mal na vida das pessoas
e que os governos façam o contrário do que defendemos para crescer momentaneamente. E que o voto útil se encarregue de levar tudo quando estiver em causa quem governa. E que no meio nada dependa realmente deles para não terem de pagar esse preço. E isso não é vida para quem quer melhorar a sua vida e a dos outros. E com isso não se constrói nada nem se cresce para o futuro. O caminho a seguir não é fácil. É construir programa, tentar ter efeitos práticos no destino da governação (seja no poder ou na oposição) e sofrer, quando assim tem que ser, as consequências dessa escolha. Até porque não há alternativa. Estar genuinamente disponível para participar no poder ou condicioná-lo de forma determinante e clara e deixar isso evidente para o eleitorado. O objectivo da esquerda não pode ser crescer à custa da degradação das condições de vida das pessoas. O objectivo da esquerda tem de ser o de crescer porque teve um papel na melhoria das condições de vida das pessoas. E pagar o preço quando e se não o conseguir. Os votos e o apoio popular são fundamentais. Mas são os que se limitam a contar votos para saber se o caminho que se escolhe é o acertado e que, para crescer, não se importam de ficar no inútil lugar de reserva moral da Nação, que se rendem ao jogo eleitoralista. A esquerda não precisa de reservas morais. Precisa de gente que ponha as mãos à obra e prove que é possível fazer diferente. E quem quer determinar o poder perde a pureza e paga o preço disso. Esse é o risco que corre quem quer mudar a vida concreta das pessoas. Ou isso, ou esperar mais um século enquanto se somam derrotas.
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A DERROTA ITALIANA, A ESQUERDA E O PODER JORGE COSTA
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A DERROTA ITALIANA, A ESQUERDA E O PODER JORGE COSTA | DIRIGENTE DO BLOCO DE ESQUERDA
1. Em política, não se diz “eu bem avisei”. A esquerda italiana está em escombros. Face à pujança social do populismo de direita, exposta desde 2006 pela tangencial vitória de Prodi, o governo do centro-esquerda não teve projecto alternativo. Nas eleições de Abril passado, o Partido Democrático não refez a maioria. Participante no governo, a Esquerda Arco-Íris1 caiu de 11% para 3%. A esquerda radical, saída há pouco da Refundação Comunista, não chegou a afirmar-se2. Já depois, nas eleições municipais em Roma, o candidato do centro-esquerda, Rutelli, conseguiu ter menos votos na segunda volta do que na primeira e perdeu para um dirigente da extrema-direita. Estas ruínas são notícias tristes para a esquerda europeia. Um debate maduro não pode menorizar a crítica, nem anatemizá-la como quinta-coluna que celebra às escondidas: excepto, talvez, na dimensão que teve, esta razia era previsível. 2. Todas as experiências de participação da esquerda em governos com a social-democracia conduziram ao descrédito e ao desgaste eleitoral. No último quarto de século, a contra-reforma liberal tem destruído os compromissos sociais estabelecidos no pós-guerra e, com eles, os movimentos sociais e os virtuais interlocutores do “diálogo social”. A social-democracia conduziu, quando não iniciou, essa demolição. Pior: o seu reformismo sem reformas deixou à direita a bandeira das transformações e a força da acusação contra “privilégios” e “corporativismos”. O liberalismo da
“terceira via” social-liberal agravou a crise de referências políticas da nossa época e converteu uma parte da classe trabalhadora de esquerda em eleitorado de populismos de direita. Os partidos à esquerda da social-democracia têm pago cara a sua participação em governos de aliança. O exemplo da “Esquerda Plural” poderia ter feito escola. Integrando o governo de Lionel Jospin, o PCF escolheu submeter-se à política de privatizações, perseguição aos sem-papéis e imposição do Tratado de Amsterdão. Mesmo a reivindicação histórica das 35 horas foi aplicada de tal modo que reuniu a hostilidade do mundo do trabalho. Na sequência desta participação governamental, o PCF definhou até à marginalidade eleitoral em que se encontra sempre que concorre autonomamente do PS. 3. Berlusconi não obrigou a Refundação a governar. Não há qualquer excepção italiana. A perversidade da lei eleitoral – piorada pela direita em Abril de 20063 – não foi, nem podia ser, a razão desta participação governativa da esquerda alternativa. Pelo contrário, esta participação explica-se por uma viragem radical, operada pela direcção da Refundação, face a um período excepcional na história do partido e face aos compromissos políticos que o identificavam perante a sociedade italiana. Essa viragem tem raízes. A Refundação sempre integrou, entre outras, uma cultura política que situou o comunismo italiano como corrente “de luta e de gover-
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no”. Essa cultura vem do togliattismo e do “compromisso histórico”4, mas recusou integrar a mutação do PCI, participando na construção da Refundação Comunista como alternativa à conversão social-democrata. No entanto, o governismo esteve no centro das tensões de todo o percurso da Refundação e de duas cisões, em 1995 e 1998. Na segunda, o partido perdeu mesmo a maioria do seu grupo parlamentar5. A divergência situava-se justamente no apoio a governos vinculados ao programa liberal da burguesia europeia. Sob a direcção de Fausto Bertinotti, predominou a autonomia política da Refundação e o desenvolvimento de uma identidade nova na esquerda italiana, “antagonista” e de movimento, alterglobalista e contra a guerra. Depois de derrubar o primeiro governo Prodi, pela retirada de apoio parlamentar em 1998, a Refundação Comunista não cessou de crescer em influência social e número de votos. Chega a 6% (europeias 2004) e é força motriz de grandes mobilizações sociais. Mas a velha herança do PCI, submersa durante os anos 1998 a 2004, reemerge vigorosamente no congresso de 2005, onde a nova orientação de Bertinotti – integrar a coligação União, liderada por Romano Prodi, e participar no seu futuro governo – recolhe 60% dos votos dos delegados. Estive presente nesse congresso, onde fui um dos representantes do Bloco de Esquerda. Ao abraçar Romano Prodi, que o escutava como convidado na primeira fila, Fausto Bertinotti não usava as justificações fracas do “mal menor” e do “tudo menos Berlusconi”, a que
recorrem alguns dos seus apoiantes. Ao invés, para conquistar o partido e a sua base eleitoral para o projecto de integração ao centro, Bertinotti desenvolveu vasta retórica sobre as propriedades socialmente mobilizadoras do futuro governo. Não sendo um governo da esquerda, tratar-se-ia de uma ruptura com o curso liberal, assegurada pela “aliança com a parte das classes dirigentes e empresariais que se propõe contribuir para a grande reforma do país” (Bertinotti, entrevista ao Corriere della Sera, 16.07.2006). Os fatalistas podem continuar a defender a opção da Refundação como se não fosse uma opção explícita, mas apenas o vagido da rez a caminho do matadouro. Vai dar ao mesmo: perante o desejo popular de mudança e sob a bipolarização, restaria saltar para o abismo. Assim fez Bertinotti, brandindo a ilusão da permeabilidade de Prodi às reivindicações do povo de esquerda. O resultado foi o congelamento do mais potente movimento da Europa contra a guerra, o italiano6, e uma massiva frustração na resistência organizada dos trabalhadores. 4. O governo Prodi não era “incaracterístico”: representava uma parte da burguesia italiana. A estória que Bertinotti contou foi-se desfazendo ao longo dos dois anos em que o líder da Refundação presidia também aos trabalhos do parlamento. Por isso é que a calamidade actual é tão pouco surpreendente. O governo Prodi tem a sua primeira crise grave em Fevereiro de 2007, na sequência do chumbo parlamentar da participação italiana na ocupação do Afeganistão. O único senador que votou de acordo com o programa da Refundação – contra o orçamento militar para a ocupação – foi expulso do partido.
OS DIRIGENTES DA ESQUERDA ARCO-ÍRIS FORAM ABANDONADOS PELO “SEU” ELEITORADO PORQUE ERAM MINISTROS E DIGNITÁRIOS DE UM GOVERNO LIBERAL FRACASSADO, QUE FICARÁ APENAS COMO COROLÁRIO DA BIPOLARIZAÇÃO ITALIANA. ERRARAM LIVREMENTE E FORAM A VOTOS PROPONDO-SE PERSISTIR NO ERRO.
Prodi impôs então à sua coligação um conjunto de doze condições para se manter à cabeça do governo. Entre elas, “o apoio constante à política externa de defesa e estabilização no quadro da ONU, aos nossos compromissos internacionais que derivam da pertença à UE e à NATO e do nosso envolvimento na missão no Afeganistão”; “a continuação do processo de liberalização [dos serviços públicos]”; “a reorganização do sistema de reformas, dando grande atenção à compatibilidade financeira e privilegiando as pensões mais baixas e os jovens” [i.e: nivelamento por baixo dos “regimes particulares”, em sectores onde lutas antigas conquistaram melhores condições]. Enquanto promovia novos golpes de liberalismo, o governo não só mantinha a legislação laboral de Berlusconi e a famigerada lei Bossi-Fini sobre a imigração, como aumentou as despesas militares e baixou os impostos sobre os patrões. Assim, a Esquerda Arco-Íris não se desfez por estar comprimida entre críticas ao seu estilo no governo – pela esquerda (falta de nuances críticas) e pela direita (insuficiente solidariedade com Prodi e perda de influência). Pelo contrário, os dirigentes da Esquerda Arco-Íris foram abandonados pelo “seu” eleitorado porque eram ministros e dignitários de um governo liberal fracassado,
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que ficará apenas como corolário da bipolarização italiana. Erraram livremente e foram a votos propondo-se persistir no erro. 5. A estratégia da esquerda anti-capitalista é enfrentar “a crise da política”, criando uma nova relação de forças social e uma nova cultura de poder. Resumir a luta pelo poder à institucionalidade que existe e à sua representação espectacular separa-a do conflito social real e reduz a política a um jogo plano, em que a posição dispensa o movimento e extingue o objectivo. Muitos comentadores chamam-lhe “governabilidade”. Recusá-la, seria exilar-se na “pureza” de “amanhãs que cantam” e “assaltos ao palácio de Inverno”, esperando, como diz o Daniel Oliveira, “que tudo corra mal na vida das pessoas para crescer momentaneamente”. Aceitá-lo, desejar as suas “responsabilidades”, seria coragem para o “aqui e agora”. Fora do jogo, só sobra o “protesto”, esse “tubo de escape” (ainda o Daniel) para que tudo fique na mesma. Só um pormenor não bate certo aqui. Se a participação em maiorias parlamentares e governos é a forma de conseguirmos “coisas concretas”, então porque
não é? Ou, de outro modo, o problema em França e em Itália foram exactamente as “coisas concretas”, o conteúdo da governação, o projecto político e o seu alinhamento social com os mais fortes – o concreto profundo, a força da classe dominante e a consolidação do seu domínio. A esquerda socialista não recusa a questão do poder, nem capitula a uma função de “protesto”. Bem pelo contrário, a recusa do jogo da alternância é condição para a única hipótese de vitória: a estratégia que se compromete com o socialismo. A esquerda socialista é uma força de mobilização, que acumula conhecimento, memória e proposta, querendo ser cada vez mais dirigente e, como tal, cada vez mais portadora de poder social, de peso na relação de forças. Constatando hoje a excessiva ausência do protagonismo essencial – o da maioria da população, confinada ao voto e privada de outras expressões sociais e políticas da democracia –, a esquerda socialista não aceita substitui-lo. A questão da participação governamental é colocada, portanto, num quadro de exigência que é o da transformação da relação de forças entre classes. Isso implica uma acumulação de experiência e conflito, vividos amplamente e que assegurem novas conquistas. Fora de tal quadro prévio, a participação governamental da esquerda está condenada à conformação e à derrota. Esta é a primeira condição essencial para a participação numa maioria de governo.7 A outra condição é a abertura de uma dinâmica hostil à ordem do capital: no que respeita às questões da propriedade pública dos sectores estratégicos, da correcção fiscal das injustiças sociais, da ruptura com amarras como o Pacto de Estabilidade ou a NATO. Uma maioria
eleitoral, neste quadro e com estes compromissos, poderia colocar a questão do governo em termos novos. Seria bom (tentar) encerrar no século passado os erros nele cometidos. Mas, para tanto, não bastará à esquerda a crítica profunda ao totalitarismo burocrático e o compromisso de princípio com as liberdades. A social-democracia tem a sua marca na barbárie do século XX, nas suas guerras (começando e acabando nos Balcãs, passando por todas as colónias) e na regressão liberal da Europa em que o século terminou. O calendário virou com sinais de esperança: um movimento de recusa da globalização capitalista arrancou no Brasil e chegou à Europa pela porta italiana, animado também por partidos, como o PT e a Refundação Comunista, então portadores de uma crítica radical. O seu percurso distinguia-os dos pais da “crise da política” à esquerda: o estalinismo e a social-democracia. Porém, no Brasil como em Itália, a estratégia governista dissipou anos de acumulação de forças, credibilidade social, energia transformadora. Sendo uma luta pelo poder, a luta pelo socialismo precisa de uma estratégia forte. O estado do mundo exige pressa, mas desaconselha os atalhos.
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NOTAS: 1 - A Esquerda Arco-Íris era composta pela Refundação Comunista, Partido Comunista dos Italianos, Verdes e Socialistas Democráticos (cisão dos Democratas de Esquerda que recusaram integrar o PD de Veltroni). 2 - As duas formações saídas da Refundação, Esquerda Crítica e Partido Comunista dos Trabalhadores, reuniram 1%. 3 - A proporcionalidade só se aplica a um quarto dos assentos parlamentares. 4 - Governo de aliança entre o PCI e a Democracia Cristã, quase concretizado no final dos anos 70 pelo secretário-geral comunista Enrico Berlinguer. 5 - Esta cisão, favorável à manutenção do apoio a Prodi, deu origem ao PCdI de Armando Cossutta, uma das formações da Esquerda Arco-Íris. 6 - Ocorreram importantes mobilizações contra o alargamento da base da NATO de Vicenza, confrontando o governo Prodi, que se manteve firmemente ao lado do plano norte-americano. 7 - Note-se que as importantes lutas dos últimos anos em Itália foram de natureza defensiva, não lograram travar a direita e foram esvaziadas, sem serem atendidas, pelo governo Prodi.
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BERTINOTTI PERDEU O COPYRIGHT LUÍS FAZENDA, CARLOS SANTOS E VICTOR FRANCO
ESTE TEXTO FOI PUBLICADO EM OUTUBRO DE 2007 NA REVISTA “A COMUNA”
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LUÍS FAZENDA, CARLOS SANTOS E VICTOR FRANCO | TEXTO PUBLICADO EM OUTUBRO DE 2007 NA REVISTA “A COMUNA”
NO FINAL DE 2002, O SECRETÁRIO DO PARTIDO da Refundação Comunista de Itália, Fausto Bertinotti, elaborou e divulgou as suas “Quinze Teses para uma Esquerda Alternativa Europeia”. Trata-se de uma sequência de enunciados e conclusões, em menos de três páginas. A publicação dessas Teses foi simultânea à reunião em Florença de muitos partidos de esquerda da Europa, sob os auspícios da Rifondazione. O leque ideológico dos assistentes era largo, e a oportunidade não podia ser melhor na véspera do 1º Fórum Social Europeu. O texto de Bertinotti exerceu uma influência marcante no processo de aproximação e convergência de várias esquerdas no velho continente, apostadas numa luta política comum, sem prejuízo e para além das marcas de identidade de cada uma delas. O movimento e os debates que se lhe seguiram foram um impulso à cooperação europeia, até mais do que a forma a que deu lugar, a European Left (E.L.), hoje congelada a baixíssima temperatura. Vale a pena revisitar esse prontuário a usar e perguntar à actualidade o que pensa dele. 1. Bertinotti, em 2002, apoia-se na análise da globalização capitalista para deduzir o alargamento do campo de contra-hegemonia e de alternativa. “O nascimento e desenvolvimento do movimento de crítica contra a globalização gera um fenómeno de valor estratégico”. Esperava-se, e bem, revelar “o elo existente entre o modelo social neo-liberal e a guerra da globalização”. O
“renascimento da política” passava por aqui. E, de um modo particular, a Refundação Comunista. Esta visão estratégica provou, e prova, estar acertada. Desde logo pelo surto do “complexo Iraque” na política mundial, cavando o isolamento dos EUA, pelas vagas de protesto social que acelerou em muitas regiões, em especial na América Latina. O sistema de guerra imperialista é o paroxismo do regime global dominante. Como é simples de perceber, o actual cerco à ditadura discordante do Irão, apoiado num argumento de autoridade idêntico ao utilizado no Iraque – quem tem as armas – alimenta o regresso de um movimento mundial pela paz, por sua vez gerador de mais profunda contestação ao neo-liberalismo. Entretanto, a Refundação substituiu a visão estratégica de afrontamento da Casa Branca e satélites por uma deriva de aceitação do “multilateralismo negociado” dos conflitos internacionais. Com várias consequências negativas: obscurece as causas do conflito imperialista e o seu domínio totalizante sob qualquer pretexto, espalha a ilusão de uma “América Democrática” que se seguirá a Bush, e só deita sal nas feridas do mundo. O processo do Império, à falta de rupturas essenciais nos EUA e na Europa, mostrará que o multilateralismo não passa de um carnaval de época, destinado a confundir a opinião pública mundial. Do ponto de vista particular da “refundação do comunismo” trata-se até de uma adaptação inexplicável ao neoliberalismo, mesmo que em versão mitigada:
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isso é simplesmente uma recuperação burguesa de um pensamento socialista. 2. Espaço à Europa. Bertinotti sublinhava em 2002 que “no seio da política mundial a Europa é, para nós, a dimensão mínima necessária para o renascimento da política das classes populares”. Pensava então que o destino europeu se ligava à ultrapassagem da crise da política pela participação das classes subalternas, por um “salto em frente” que poderia agudizar a crise da dominação da globalização capitalista. Bertinotti teve até o cuidado, fundado, de se demarcar das fragilidades democráticas da Europa actual, porém vincando bem a cultura enriquecida pela luta de classes do continente europeu. Essa visão levou a um processo, não isento de contradições, de rejeição total do modelo de instituições da União Europeia, de oposição à prevista “Constituição Europeia”, em nome de um processo democrático dos povos para outra Carta da Europa. Só esse processo tornou possível que o congresso da fundação da EL tivesse tomado essa posição por unanimidade, em consonância com os movimentos sociais mais expressivos do continente, com excepção da cúpula da Confederação Europeia de Sindicatos. Em consequência, todas as forças da EL reclamaram o referendo para rejeitar o Tratado Constitucional. Hoje, trata-se de fazer o mesmo pelo Tratado Reformador, irmão gémeo do anterior. Exigir o referendo. Pelas mesmíssimas razões. Sem tirar nem pôr.
Contudo, o espectro do jogo da ratificação parlamentar ronda a EL, e isso nada tem a ver com o renascimento da política das classes populares. 3. A crise estratégica do reformismo. Foi tema destas “Quinze Teses” e de muitos outros escritos. As intervenções de 2002/4 de Bertinotti recordam essa zona dura, violenta até, de acusações aos partidos sociais-democratas e afins, culpados de terem “contribuído para a eleição de forças de direita nos EUA e na Europa” no que se chamava “a segunda fase da globalização”. Bertinotti asseverava: “Nós sabemos que as ondas de choque contraditórias dos novos processos mundiais, por um lado a globalização capitalista e por outro lado aquele que propõe que um outro mundo é possível (e necessário), põem dramaticamente em crise a hipótese reformista (…)”. Apesar do autor chamar a atenção para o facto de que as forças reformistas se dividem, consolidava a evidência de que essas forças estavam, sob a pressão da globalização, rendidas ao neo-liberalismo. Ora a “hipótese reformista” é o que governa agora Portugal, Espanha, Inglaterra, Suécia, até a coligação na Alemanha, e a própria Itália, já não falando de outros casos menos distintivos. Não é difícil verificar o avanço da NATO e a retirada de direitos sociais em todos esses países. Não há “hipótese reformista” porque vingou em toda a linha o modelo liberal e “o carácter fundamentalmente regressivo” da globalização capitalista. A tese demarcatória era e é correcta. Aplicada à Itália de hoje torna a posição da Refundação uma caricatura. Não podemos, contudo, diminuir a importância do assunto. A autoridade dos partidos, a força dos movimentos sociais, não irromperam apenas das
A PARTICIPAÇÃO GESTIONÁRIA NUM GOVERNO LIBERAL, DE “CENTRO-ESQUERDA”, PODE ATÉ SER JUSTIFICADA PARA IMPEDIR MALES MAIORES ÀS CLASSES POPULARES MAS COMETE O CRIME DE ROUBAR A ESPERANÇA NUMA ALTERNATIVA SOCIAL. UMAS MIGALHAS NÃO FAZEM A DIGNIDADE NUMA LUTA DE OPOSTOS.
contradições objectivas com os interesses das “classes subalternas” mas também do capital de esperança das alternativas – essa é a força subjectiva, da consciência social. A participação gestionária num governo liberal, de “centro-esquerda”, pode até ser justificada para impedir males maiores às classes populares mas comete o crime de roubar a esperança numa alternativa social. Umas migalhas não fazem a dignidade numa luta de opostos. Ao acentuar-se a crise estratégica do reformismo mantinha-se um apelo ao reagrupamento das esquerdas políticas e sociais. A Refundação ao fazer parte da crise do reformismo produz desmembramento do espaço transformador, divisões, atraso na consciência social. 4. Em 2002, Fausto Bertinotti entendia não fazerem sentido alianças de governo com os reformistas. Nas “Teses” diz-se expressamente: “O facto de que possa construir-se uma transição procurando uma aliança de governo com os reformistas, facto fixado por uma identidade histórica herdada do passado, sofre um golpe mortal na situação actual”. O autor juntava duas reflexões a esta conclusão. A primeira, as forças comunistas não se
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definiam mais pelo confronto com a social-democracia, isso não era mais um debate na esquerda. Segunda, a crise da esquerda reformista juntava-se à crise dos grupos comunistas tradicionais. O epílogo desta linha de pensamento não podia ser mais categórico: “Sabíamos que a Refundação era necessária para reconstruir uma perspectiva revolucionária. Agora damo-nos conta que ela é necessária mesmo para existir”. Com tais palavras a participação da Refundação no governo Prodi soa a epitáfio. O afastamento de governos compostos por forças gestoras do modelo liberal, embora reclamando-se de centro-esquerda, seria até uma oportunidade de crescimento da perspectiva refundacionista. E isto porquê? Segundo Bertinotti, não sendo possível qualquer aliança de governo:, “O motor para a mudança é então a constituição de um novo movimento operário. A Europa é um dos lugares privilegiados para este tipo de transformação da sociedade capitalista dos anos 2000. É obrigatoriamente o nosso terreno de acção privilegiado”. Quando o ministro do Trabalho do governo italiano, Paolo Ferrero, discute por estes dias com os sindicatos o aumento da idade da reforma dos trabalhadores e a desvalorização das pensões, trazendo na gravata a sua
qualidade de dirigente da Refundação, não pode haver maior divórcio entre a tese e a vida. O oportunismo assume o zénite. O terreno de acção mudou para o partido. Mas o terreno de acção do movimento operário far-se-á, apesar da Refundação, como se vê pela contestação da FIOM (Federação dos Metalúrgicos) às medidas do governo Prodi. 5. Está na altura de a esquerda alternativa proceder a clarificações. Não se deve ser adepto de capelas e seitas que embargam o debate entre as esquerdas europeias. Em todo o caso, isso não significa escamoteamento de posições políticas, ponderadas e abertas. A esquerda alternativa tem avançado por reagrupamentos e clarificações. A cada clivagem certa tem correspondido um avanço num movimento plural. Presume-se que a Refundação tenha regressado ao perfil e à política habitual do que apelidavam de grupos comunistas tradicionais, e nem de todos. Seguramente, a política não é feita por exorcismos, mas por escolhas. Para quem nunca subscreveu várias teses de Bertinotti, as de 2002 eram suficientes para uma caminhada nova da esquerda alternativa europeia. As “Quinze Teses”, então afirmadas, estão ainda hoje válidas. Lamentavelmente, o seu autor perdeu os respectivos direitos. Nós mantemos essa escolha e trazemo-la ao crivo da crítica. Bertinotti perdeu o copyright. (citações de “Quinze Teses” a itálico)
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A ESQUERDA ITALIANA EM ESTADO DE CHOQUE
RICARDO PAES MAMEDE | ESTE TEXTO ENCERRA UMA SÉRIE DE NOVE POSTS PUBLICADOS NO BLOGUE “LADRÕES DE BICICLETAS”
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A ESQUERDA ITALIANA EM ESTADO DE CHOQUE POR DETRÁS DA DERROTA ELEITORAL, A PERDA DE INFLUÊNCIA SOCIAL DA ESQUERDA ITALIANA1
RICARDO PAES MAMEDE | ECONOMISTA . ESTE TEXTO ENCERRA UMA SÉRIE DE NOVE POSTS PUBLICADOS NO BLOGUE “LADRÕES DE BICICLETAS”
O DEBATE EM PORTUGAL SOBRE A DERROTA da Esquerda Arco-Íris nas últimas eleições italianas parece estar condenado a centrar-se na questão da participação no governo. Como aqui sugeri, esta não é uma questão menor. As condições em que os partidos da esquerda crítica participaram no governo Prodi (aderindo à coligação de centro-esquerda de forma incondicional), aliada à escassa maioria parlamentar que apoiava este executivo, restringiram a acção daqueles partidos: no governo não tiveram força para fazer vingar as suas propostas, fora dele viram-se obrigados a conter as suas críticas para não serem acusados de estar a favorecer o regresso da direita ao poder. No entanto, antes de discutir se em 2006 a Esquerda Arco-Íris poderia ter optado por manter-se fora da coligação de centro-esquerda e do 2º governo Prodi, ou se deveria ter reivindicado condições programáticas mínimas para essa participação (e quais seriam os custos políticos das várias alternativas), vale a pena questionarmo-nos como é possível o espaço à esquerda do centro político encontrar-se na situação actual. Nomeadamente, importa tentar compreender como é que depois de 5 anos (2001-2006) de um governo inqualificável liderado por Berlusconi (com a participação da direita xenófoba e pós-fascista) a coligação de esquerda e centro-esquerda não conseguiu em 2006 mais do que uma vitória marginal – sendo claro que a fragilidade da maioria parlamentar foi um factor fortemente condicionante da acção da esquerda crítica no seio do o governo
Prodi (entre 2006 e 2008) e condenou este governo a um tempo de vida limitado à nascença. Esta questão é tanto mais pertinente quanto o período do governo Berlusconi foi dos mais activos e mobilizadores das últimas décadas para a esquerda italiana.2 A resposta a esta questão é tudo menos simples. A fragilidade estrutural das esquerdas italianas encontra as suas razões numa diversidade mais vasta de factores, que incluem: os efeitos profundos e duradouros da operação ‘Mãos Limpas’ no início dos anos 90 (ver aqui), que levou ao colapso dos partidos do centro-direita e da credibilidade do sistema político italiano; o aproveitamento por parte das novas direitas populistas dessa crise sistémica, bem como dos graves problemas enfrentados pela economia italiana3 e das incertezas e inseguranças que deles decorrem; a utilização recorrente e bem-sucedida por Berlusconi da comunicação social sob seu controlo directo para atacar os adversários e para promover a sua imagem; a incapacidade da esquerda ‘reformista’ para construir um discurso claro, distintivo e mobilizador (mais sobre isto aqui); a opção das esquerdas (a ‘reformista’ e a ‘radical’, para simplificar) por um modelo de intervenção política assente na personalização e no mediatismo; inversamente, a capacidade de parte das novas direitas para intervir na sociedade italiana através de uma sólida presença junto das populações. São estes dois últimos aspectos – que dizem respeito às formas de intervenção na sociedade italiana pelas forças políticas italianas (em particular, às opções toma-
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das pelos líderes da esquerda crítica italiana em matéria de organização e de formas de intervenção política nos anos mais recentes) – que pretendo aqui realçar. Aquilo que os quatro partidos que constituíram a plataforma Esquerda Arco-Íris nestas últimas eleições (Refundação Comunista, PdCI, Verdes e SD) tinham em comum era a (vontade de) identificação com os vários movimentos sociais e de protesto que marcaram a Itália no período 2001-2006. Como aqui escrevi, este foi um dos períodos mais significativos de mobilização popular das últimas décadas em Itália, envolvendo muitos milhões de pessoas que faziam questão de se distanciar das políticas de centro-direita, prosseguidas pelo governo, tanto no plano interno como no externo. Impressionados pelo sucesso dos movimentos sociais de protesto e perante a opção recorrente por parte do centro-esquerda de manter a distância face a estes movimentos (supostamente para não afastar o eleitorado centrista), os líderes dos partidos do Arco-Íris convenceram-se que poderiam constituir-se como representantes da Itália da paz, do ambiente e da resistência a Berlusconi – um espaço político amplo, onde cabiam comunistas e socialistas de várias extracções, pacifistas, feministas, activistas LGBT, ambientalistas e católicos progressistas. Neste processo destaca-se o papel da Refundação Comunista, o partido mais representativo deste espaço político e cujo líder histórico, Fausto Bertinotti, encabeçou a lista da Esquerda Arco-Íris às eleições de 2008.
Procurando sinalizar a sua predisposição para dar voz aos ‘movimentos’, a direcção de Bertinotti começou por promover o envolvimento dos activistas da Refundação nos movimentos sociais (em detrimento da vida partidária), e por favorecer a inclusão de figuras destacadas (sem filiação partidária) dos vários ‘movimentos’ (nomeadamente, dirigentes de associações e ONGs dedicadas a temas como a paz, a cooperação, o ambiente, etc.) nas listas eleitorais da Refundação. Percebendo que esta estratégia corria, ainda assim, o risco de ser vista como uma tentativa de controlo hegemónico da Refundação sobre os movimentos sociais em Itália – o que tenderia a fragilizar tanto aquele como estes – Bertinotti foi promovendo uma aproximação aos outros partidos de orientação ‘movimentista’ e a crescente diluição da Refundação no seio de uma ‘plataforma Arco-Íris’. Tal como os herdeiros formais do ex-PCI (inicialmente PDS, depois DS, agora PD) se uniram a segmentos da ex-Democracia Cristã para tornar mais convincente a sua transformação reformista, os Verdes pela Paz foram para a Refundação um parceiro de coligação útil, capaz atenuar o preconceito existente em algum eleitorado relativamente à herança comunista do partido, permitindo o alargamento da sua base eleitoral. Neste contexto de aproximação à esquerda não comunista, a Refundação optou: por privilegiar os temas consensuais entre a esquerda de protesto (paz, ambiente, direitos civis) relativamente aos temas potencialmente divergentes (e.g., questões laborais); por reforçar a crítica relativamente às experiências de “socialismo real”, sem insistir na discussão sobre modelos alternativos de sociedade; e por aligeirar a organização partidária (e.g., desvalorizando as células locais e de empresa),
O ESPAÇO DEIXADO LIVRE PELA ESQUERDA ITALIANA (SEJA A ESQUERDA ARCO-ÍRIS OU A DO PARTIDO DEMOCRÁTICO, QUE HERDOU AS PRINCIPAIS ESTRUTURAS DO PCI), AO DESISTIREM DA FORMA DE PARTIDO DE MASSAS, PRÓXIMOS DAS VIDAS QUOTIDIANAS DAS POPULAÇÕES, FOI EFICAZ E UTILMENTE OCUPADO POR PARTE DAS DIREITAS PÓS-’OPERAÇÃO MÃOS LIMPAS’
assentando a intervenção política numa lógica essencialmente mediática, personalista (centrada na figura de Bertinotti) e fortemente institucional (simbolizada pela eleição de Bertinotti para a presidência da Câmara dos Deputados em 2006). Esta estratégia de diluição da identidade e da organização da Refundação no conjunto das forças pretensamente representativas dos ‘movimentos’, e de institucionalização da imagem do partido, revelou-se bem-sucedida nas penúltimas eleições (2006), quando a Refundação obteve mais 2,5 milhões de votos (e o conjunto da esquerda movimentista quase 4 milhões), tornando-se incontornável neste período da vida política italiana. Mas o custo a pagar por esta estratégia não demorou tempo a fazer-se sentir: a sua base eleitoral alargada, assente nos sectores menos ligados à tradição crítica, não resistiu a um contexto de bipolarização; num cenário de diluição de identidade política tornou-se mais fácil perder eleitores tradicionais para o voto útil; a opção por uma abordagem essencialmente mediática à intervenção política mostrou rapidamente os seus limites (ainda para mais num contexto em que grande parte dos meios
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de comunicação social eram controlados pelo principal adversário político); finalmente, a opção de criar um ‘partido ligeiro’, em que a abertura aos movimentos sociais do momento (muitos deles sem enraizamento na sociedade italiana e também eles caracterizados por uma intervenção essencialmente mediática e personalista) foi feita à custa da construção de uma presença orgânica no território e nos locais de trabalho, acabou por alienar muitos militantes e simpatizantes entre o eleitorado popular menos atento às dinâmicas macro-sociais. O espaço deixado livre pela esquerda italiana (seja a Esquerda Arco-Íris ou a do Partido Democrático, que herdou as principais estruturas do PCI), ao desistirem da forma de partido de massas, próximos das vidas quotidianas das populações, foi eficaz e utilmente ocupado por parte das direitas pós-’Operação Mãos Limpas’ – o que ajuda a explicar o facto de a Esquerda Arco-Íris perder parte do seu eleitorado para a Liga Norte. O partido separatista liderado por Umberto Bossi é hoje muito mais do que um mero movimento folclórico que reclama contra os impostos pagos pelo Norte e desperdiçados pelas máfias e pelos políticos indigentes do Sul, ou contra a invasão da Padânia por imigrantes
de Leste. A Liga Norte é hoje uma força política organizada, constituída por uma vasta rede de autarcas e de activistas fortemente envolvidos na vida quotidiana das pequenas cidades e vilas pré-alpinas, e que se apresentam aos olhos dos eleitores como cidadãos iguais a todos os outros, empenhados em resolver os problemas concretos das populações. Várias associações de bairro, organizações de pequenos empresários e agricultores, sindicatos e outras associações de base – algumas fundadas e impulsionadas por gente de esquerda – são hoje dinamizadas por leghistas, muitos deles genuinamente empenhados nas suas actividades. Não por acaso, nas eleições de Abril passado a Liga Norte obteve mais votos do que a Refundação no distrito operário do complexo industrial da FIAT (outrora uma praça forte do PCI e da extrema-esquerda). A perda dramática de influência social da esquerda em Itália não começou com a participação da Refundação no último governo Prodi – e, infelizmente, nada indica que aí vá parar. Sem ter em consideração este processo não é possível compreender os maus resultados eleitorais sucessivos das esquerdas italianas. Talvez valha a pena, assim, não isolarmos a questão da participação da esquerda crítica no governo quando reflectimos sobre a evolução recente da política italiana – por muito que nela se queira encontrar a demonstração inequívoca da justeza das posições de cada um relativamente aos próximos capítulos da política portuguesa.
NOTAS 1 - Este texto é baseado numa série de ‘posts’ publicados entre Abril e Maio de 2008 no blog Ladrões de Bicicletas. 2 - Na sequência dos protestos de Génova em 2001, aquando da reunião do G8, o movimento alterglobalista ganhou uma visibilidade e uma capacidade de mobilização raras. A força deste movimento fez-se sentir em varias ocasiões, como no protesto popular contra as guerras do Afeganistão e do Iraque (em que milhões de italianos, desde os vales dos Alpes às vilas costeiras da Sicília, colocaram nas suas janelas, durante meses, bandeiras com as cores do arco-íris em sinal de adesão ao protesto), na manifestação convocada pela CGIL que levou a Roma 3 milhões de pessoas em luta contra a liberalização da regras laborais ou ainda no Fórum Social Europeu de Florença, onde dezenas de milhares de activistas de várias causas se juntaram para trocar ideias e experiências, e procurar vias alternativas ao modelo de desenvolvimento neoliberal. 3 - A Itália encontra-se numa situação económica particularmente adversa, apresentando desde há mais de uma década as mais baixas taxas de crescimento económico entre os países da UE e da OCDE. O crescimento do PIB foi de 1.5% em 2007 e prevê-se que não será superior a 0.5% em 2008, situação sem paralelo entre as economias industrializadas.
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RAPS Ó DIA
«NAPOLI ANTIFASCISTA CRIME SQUAD», DE DANIELE SEPE | «MAIO 08», DE REGINA GUIMARÃES
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«NAPOLI ANTIFASCISTA CRIME SQUAD» AS MÃOS SOBEM, INEVITAVELMENTE, À cabeça quando se ouvem as mais recentes notícias de Itália. Esquecemo-nos quão jovem e quão diferente de norte para sul é este país com o qual os portugueses dizem tanto identificar-se. A tomada de posse do novo presidente da Câmara de Roma, a vitória e as novas medidas de Berlusconi (em perseguição aos imigrantes ilegais) e a greve dos funcionários das lixeiras em Nápoles não findam de nos surpreender diariamente. É precisamente em Nápoles e em toda aquela confusão urbana, tão pitoresca quanto perigosa, que se esconde um músico, muitas vezes subvalorizado: Daniele Sepe. Saxofonista, compositor, activista e militante da cena musical napolitana, começou a trabalhar nas raízes culturais da sua região com o grupo operário E Zezi, rapidamente iniciando ele próprio um processo de reinvenção da música tradicional da região misturando-a com estilos tão diferentes como a música clássica, o jazz, a funk, o rock ou o samba. O humor e a representação em palco são também características muito presentes e vincadas. Tudo isto realmente torna difícil classificar a música de Daniele Sepe. Não é mesmo nada fácil classificar (e ainda bem) a linha de trabalho deste compositor, arranjista e músico que adora mudar e saltar de formação em formação recorrendo a nomes sugestivos como Art Ensemble of Soccavo, Luchistu Luchiddu, i suoi Abbracalabra ou Orchestra dell’On Trombetta, conjuntos com diferentes números de músicos – do trio à big band com vinte elementos. O teatro e o cinema são suportes para os quais trabalha com regularidade, bem como projectos de
SANDY GAGEIRO
âmbito social e cívico. Durante a Guerra do Golfo, por exemplo, Sepe agarrou em cinquenta músicos napolitanos e produziu uma cassete de temas dedicados à paz que distribuiu gratuitamente à boca das fábricas e escolas. Em 1994 surgiu Vite Perdite, álbum que lhe granjeia mais notoriedade conduzindo-o a variadíssimos festivais pelo mundo. Conseguiu, inclusivamente, um lugar nas play-lists italianas e críticas distintas na revista britânica Folk Roots (“um dos discos italianos que vale mesmo a pena ouvir”). Poderão torcer o nariz, mas sugiro que ouçam. Em 1995 Spiritus Mundi reconfirma o êxito do anterior e não obstante o reconhecimento, embarca com o jornal Il Manifesto na produção do CD Transmigrazioni, envolvendo um enorme número de músicos que são imigrantes em Itália. Não podia deixar de referir também Lavore Stanca, de 1998, sobre o amor, o trabalho e a vida em Itália. Projectos como estes e títulos como Napoli antifascista Crime Squad poderão ser muito úteis à Itália destes dias... a exigir um rápido e violento acordar.
DISCOGRAFIA: Vite Perdite - Polosud-Piranha (1994) Napoli antifascista Crime Squad antologia (1994) Spiritus Mundi - Polo Sud (1995) Viaggi fuori dai paraggi - Il Manifesto (1996) Trasmigrazioni - Il Manifesto (1996)
NAPOLI ANTIFASCISTA CRIME SQUAD DANIELLE SEPE 1994
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«PLANET OF SLUMS», DE MIKE DAVIS ASSISTIMOS HOJE A UM MOMENTO HISTÓRICO de viragem da demografia global. A maioria da população mundial, pela primeira vez na história, vive em cidades. Mas esta urbanização deve pouco ao crescimento das tradicionais grandes cidades dos países mais desenvolvidos como Tóquio, Nova Iorque ou Paris. É na expansão de cidades como São Paulo, Cidade do México, Lagos ou Dhaka, localizadas nas regiões mais pobres do globo, que encontramos os destinos de um êxodo rural de dimensões nunca antes vistas. O resultado é uma explosão do número dos que vivem em “bairros de lata” (slums em inglês) – 78% daqueles que vivem nas cidades dos países em vias de desenvolvimento. São bairros caracterizados pelo sobrepovoamento, habitação precária e inadequado ou inexistente acesso a electricidade, água e saneamento. A sua população chega a atingir dimensões idênticas à de cidades como Lisboa (no bairro de Neza na cidade do México vivem quatro milhões de pessoas). No entanto, sabemos pouco sobre as causas e consequências desta reconfiguração da cidade e dos modos de vida de quem aqui vive. Mike Davis, geógrafo marxista norte-americano, até aqui sobretudo conhecido pelo seu livro City of Quartz, uma fantástica análise histórica da cidade de Los Angeles, mudou radicalmente de objecto em Planet of Slums. Das dinâmicas económicas e sociais de uma das cidades símbolo da economia capitalista global, o autor desenvolve um breve, mas ilustrativo, estudo sobre a explosão urbana das cidades da periferia. Síntese de extensa literatura da sociologia, do urbanismo, da economia e da estatística, este livro procura mostrar
NUNO TELES
com detalhe o apocalipse em que boa parte da população mundial vive quotidianamente. O que diferencia este movimento de caótica explosão urbana não parece ser tanto os factores de atracção clássicos das populações rurais, nomeadamente a procura de melhores condições de vida nas cidades dinamizadas pela industrialização. Se é certo que nos países ditos emergentes, como a China, a urbanização das suas populações é a consequência da proletarização acelerada que o crescimento económico promove, a maior parte dos “bairros de lata” proliferam em regiões deprimidas. São sobretudo os factores de expulsão do meio rural que aqui prevalecem – desastres naturais, guerra, mecanização da agricultura -, a que se soma, a partir dos anos oitenta, os programas ajustamento estrutural impostos pelo Fundo Monetário Internacional e pelo Banco Mundial, que através da promoção da concentração agrária, liberalização comercial e ausência de apoios públicos, condenaram à miséria as populações rurais dos países mais pobres. Face a esta migração forçada e desorganizada, as cidades estratificaramse, condenando a sua depauperada população para a uma periferia onde o espaço é escasso (e alvo de forte especulação), vulnerável às catástrofes naturais, e onde, devido à falta de saneamento e água corrente, a doença grassa. Se o discurso dominante de abordagem ao problema tem tido algumas nuances, no entanto pouco se afasta dos planos do Banco Mundial desenvolvidos depois dos anos setenta. Tendo o mercado como o melhor arranjo institucional para esta crise, esta instituição
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“PLANET OF SLUMS” MIKE DAVIS VERSO BOOKS 228 PÁGINAS. 16 € NA FNAC
promoveu a posse da terra por parte dos ocupantes ilegais. Os resultados foram desastrosos. Sem qualquer enquadramento público do programa, especuladores e construtores civis, face a populações depauperadas, facilmente ganharam controlo dos novos títulos de propriedade e urbanizaram estas novas regiões, expulsando as populações para uma nova periferia, ou serviram-se dos seus novos direitos legais para a exploração de rendas e serviços pagos a peso de ouro – uma renda num “cortiço” de São Paulo chega a ser 90% maior do que no mercado formal; o preço da água vendida nos bairros de Manila é 4200% superior ao da água canalizada. Ao Estado restou o papel repressivo, destruindo os “bairros de lata” das áreas agora privatizadas e protegendo os bairros das classes médias e altas da “turba” que os circundava. Mais recentemente, com o falhanço das anteriores políticas, adoptou-se um discurso, apoiado pela arquitectura pós-moderna (Rem Koolhas é um exemplo), que pretende mostrar o “bairro de lata” como uma organização de geração espontânea da economia informal, em que a liberdade individual de mercado prospera. O único problema é a ausência de capital, resolvido pelo micro-crédito, que financie esta multidão de empreendedores. Esta visão romanceada da informalidade ignora a sua origem: um brutal exército industrial de reserva que, lutando quotidianamente pela sobrevivência, vive a sobreexploração da fragmentação das fontes de rendimento existentes, aqui confundida por livre iniciativa Planet of Slums é assim um livro obrigatório, escrito de forma objectiva e escorreita, não só para quem quer
uma notável descrição da vida nos “bairros de lata”, mas para quem quer perceber as consequências desastrosas da aplicação do neoliberalismo nos países mais pobres nas últimas décadas. Um livro de a necessitar de urgente tradução.
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MAIO 08 1
REGINA GUIMARÃES
o poeta esfomeado meteu a unha ao poema e sem se fazer rogado chuchou-lhe a coxa e asa ao ver os restos em verso tão belos e descarnados meteu os ossos ao bolso e foi chorar para casa
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acordo de cu para o ar nem me sinto nem queixo mas entre lençóis não deixo o que só posso sonhar e ando de cama às costas cada vez mais caracol ponho os pezinhos à sombra ponho os corninhos ao sol
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CÁLCULO
PEDRO EIRAS
O MARQUÊS, O CONDE, O BARÃO E O DUQUE contemplam avidamente o prato com os bolinhos. Parecem suculentos, com o chantilly a irromper pelas fendas mal abertas, o chocolate a brilhar sob o lustre do tecto. Ninguém avança os dedos, porém. Todos partilham o mesmo pensamento, o marquês, o conde, o barão e o duque, educados numa escola de alta exigência e conscientes de que o império pode cair mas a grosseria não deve entrar nestas portas. Na verdade, pensam, se houvesse apenas um bolinho no prato, como acontece por vezes no fim de uma refeição, rude seria quem tomasse a iniciativa de o comer. O bolinho da etiqueta deve ficar sempre. Todavia, rude seria também quem decidisse comer o penúltimo bolinho, isto é, o último bolinho que se pode comer. Esse seria duplamente mal-educado, uma vez que deixaria no prato um único bolinho, o da etiqueta, intocável. Por isso, quando restam dois bolinhos, é preferível não tocar em nenhum, conservando a compostura e a aparência da generosidade. Mas a mesma lógica governa o uso ou desuso do antepenúltimo bolinho. Quem se lembrasse de o comer deixaria apenas dois bolinhos, precipitando a situação embaraçosa de obrigar alguém a comer o penúltimo bolinho deixando apenas o bolinho da etiqueta. E o mesmo se aplica ao ante-antepenúltimo bolinho, e assim sucessivamente do último para o primeiro. Por isso o marquês, o conde, o barão e o duque, modelos de gentileza e know-how no mundo, desfazemse em cortesias cheios de fome, pensando cada qual num meio discreto de envenenar cada um dos outros.
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IMAGENS DOSSIER ITÁLIA
IMAGENS ENSAIO GERAL
MAFALDABLUE BERNINI VS BERLUSCONI
CHEE MENG AU YONG
ANDRÉ BEJA LA UNIONE DIREITOS RESERVADOS
LUIS MIGUEL MARTINS HANDSHAKE UNO
RICCIO
TINY, BIG, BIGGER, BIGGEST!
“FALCE E MARTELLO” SE LI PORTA CIASCUNO DENTRO DI SE, O IN SPALLA
COLORGUZ SIMILI O OPPOSTI? DECIDETE VOI
IMAGENS CIDADES INVISÍVEIS
RICCIO HARD DAYS
RICK E DICK VANCOUVER 465 CHRIS CAMPBELL FRONT OF CLASSROOM
IMAGENS CONTRATEMPOS PAUL WOOLRICH MY 17” APPLE POWERBOOK G4
IMAGENS A MÃO VISÍVEL
GÜNES IN WONDERLAND WIFI
FANTASYSAGE JACKSON
BROKE DOLINSKI
PHOTOGRAPHER PADAWAN BLACKFIELD
IMAGENS CAPA BUBUSTUDIO
IMAGENS RAPSÓDIA
I LOVE GREEN TATUNG ELECTRIC FAN
DOTTED IMAGINE.
REVISTA VÍRUS #3 JUNHO/JULHO 2008 DIRECÇÃO JOÃO TEIXEIRA LOPES EDIÇÃO GRÁFICA LUÍS BRANCO CONSELHO EDITORIAL ANA DRAGO | ANDREA PENICHE | JORGE COSTA | JOSÉ SOEIRO | MANUEL DENIZ SILVA MARIANA AVELÃS | NUNO TELES | PEDRO SALES | RITA SILVA | RUI BORGES COLABORARAM NESTE DOSSIER CARLOS SANTOS | DANIEL OLIVEIRA | INÊS PEREIRA | LUÍS FAZENDA | MARIA BENEDITA PORTUGAL E MELO MÁRIO TOMÉ | RICARDO PAES MAMEDE | VICTOR FRANCO WWW.ESQUERDA.NET/VIRUS VÍRUS ABR/MAIO 2008
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