VÍRUS #7 — NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009
A PARTIR DAS CIDADES CARLA LUÍS TODA A GENTE TEM O DIREITO DE VIVER JUNTO AO RIO VILNELE E O RIO VILNELE TEM O DIREITO DE PASSAR POR TODA A GENTE RITA ÁVILA CACHADO HABITAÇÃO SOCIAL NAS ÚLTIMAS DÉCADAS FERNANDO CRUZ A DISNEYFICAÇÃO DA CIDADE JOÃO TEIXEIRA LOPES DA CULTURA COMO LOCOMOTIVA DA CIDADE-EMPRESA A UM CONCEITO ALTERNATIVO DE DEMOCRACIA CULTURAL JORGE CAMPOS REGRESSO AO REAL IMAGINADO + MÚSICA, CONTO E LEITURAS
A PARTIR DAS CIDADES
EDITORIAL | JOÃO TEIXEIRA LOPES
DEPOIS DE UM TEMPO ELEITORAL INTENSO, eis que regressa um novo número da Vírus. Dir-se-ia que é impróprio separar o tempo da reflexão e o tempo da acção, gerando divisões artificiais do trabalho político. Mas ainda não chegamos à altura em que, como Marx preconizava, poderemos pescar de manhã, fazer activismo à tarde e produzir teoria crítica pela noitinha. Este número da Vírus teria sido útil antes das autárquicas, mas os recursos são escassos. Trata-se de propor uma reflexão sobre políticas públicas e iconografias a partir das cidades. Para tal, importa não confundir, por um lado, a cidade com o urbano e não esquecer, por outro, que o território é cada vez mais reticular, o que aumenta a importância dos estudos de caso, dadas as interdependências e os efeitos de contaminação. Rita Ávila propõe um olhar sobre as políticas de habitação social no pós 25 de Abril, começando pelo SAAL
e chegando, provisoriamente, ao recente Plano Estratégico de Habitação, sem esquecer os erros do PER, ao provocar segregação espacial e social em bairros com ínfimas estruturas e uma altíssima densidade populacional. Ao tentar resolver-se um problema, novos se criam, em espiral, exigindo mesmo, medidas e planos casuísticos de intervenção-remendo. Ora, sem a concertação entre actores, sem o envolvimento dos moradores e sem uma intervenção global, o direito ao local e à habitação transformam-se, perversamente, no usufruto da falta de qualidade de vida e da degradação urbana. A autora alerta, ainda, para os estigmas e estereótipos que, sem uma prática metódica de diagnóstico das situações, concebem os habitantes como uma massa homogénea de pobres, supostamente regidos pelos mesmos comportamentos e orientações de vida. Um pensamento pobre, afinal. Fernando Cruz reflecte sobre um dos locais emblemáticos da cidade do Porto, o conjunto formado pela
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[2] EDITORIAL
Avenida dos Aliados, a Avenida da Liberdade e a Praça General Humberto Delgado, recentemente «requalificadas» com uma intervenção urbanística de Siza Vieira e Souto Moura que teve como principal efeito modificar radicalmente as apropriações e usos daquele espaço público. A nova praça, austera, sem o jardim de outrora, apresenta-se como um desenho de tabula rasa que, independentemente dos juízos estéticos, transfere para os «gestores e programadores do espaço», neste caso a autarquia, a responsabilidade de criar acontecimentos no espaço «seco». Ora, a estratégia tem sido…a ausência de estratégia, pela multiplicação caótica de eventos desconexos, mediáticos e espectaculares que trazem a lógica urbanística de Las Vegas à baixa do Porto. João Teixeira Lopes, por seu lado, critica a ideologia do «criativo» patente no novo discurso do Planeamento Estratégico que usa a cultura e a animação cultural como isco para a (re)conquista dos espaços centrais da cidade
pelos novos gentrificadores: artistas, intelectuais (que legitimam, pela aura da sua presença, enormes operações imobiliárias) e empresas do «terciário avançado», as tais ditas «criativas» e/ou de «conteúdos», imateriais e simbólicas, a versão doce do novo capitalismo. Carla Luís deambula, perdendo-se, pelos signos de várias cidades, usando a fotografia para criar um novo real, interligado com pequenos textos que indagam sentidos e despertam a viagem. Fora deste «núcleo-duro» temático, Jorge Campos questiona o documentário para além do cinema, no cruzamento entre arte, televisão e jornalismo, reivindicando uma historicidade que situe politicamente o regresso ao real (não por acaso, o forte boom do documentário contemporâneo ocorreu pós 11 de Setembro), nessa ânsia de «compreender o que está a acontecer», sem deixar de renunciar à análise e à interpretação – um real, então, imaginado na textura das relações sociais. Pedro Eiras apresenta-nos mais um texto inédito, convite para que, nos seus personagens, encontremos essa mesma tensão entre o real e o imaginário. De volta, pois, sem nunca termos verdadeiramente partido.
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[3] EDITORIAL
CIDADES INVISÍVEI
TODA A GENTE TEM O DIREITO DE VIVER JUNTO AO RIO VILNELE E O RIO VILNELE TEM O DIREITO DE PASSAR POR TODA A GENTE
TEXTO E FOTOS DE CARLA LUÍS VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009 [4] CIDADES INVISÍVEIS
TODA A GENTE TEM O DIREITO DE VIVER JUNTO AO RIO VILNELE E O RIO VILNELE TEM O DIREITO DE PASSAR POR TODA A GENTE TEXTO E FOTOS DE CARLA LUÍS | FLICKR.COM/PHOTOS/AOUTRAVOZ/
TODA A GENTE TEM O DIREITO DE VIVER JUNto ao rio Vilnele e o rio Vilnele tem o direito de passar por toda a gente. É com esta frase que entramos em Vilnius e na República Uzupi, que se situa bem no seu coração. A República Uzupi poderia ser definida de muitas formas. É uma espécie de freetown, à semelhança de Christiana, em Copenhaga. É também uma república, situada no centro de Vilnius, capital da Lituânia, com um rei, constituição – e muito sonho nas entrelinhas. Por ela passa o rio, o tal que tem o direito de passar por toda a gente. É nesta cidade dentro da cidade que nos deparamos com uma obra de are urbana a cada esquina. É o monumento a Frank Zappa, a máquina de lavar (que consiste num bloco de pedra) à beira rio, casas ocupadas, centros artísticos, todo o tipo de performances à luz do dia. Embora, para quem cruza o Báltico, Vilnius surja mais pobre do que a vizinha Riga, a República Uzupi dá-lhe uma outra vida urbana que Riga não tem. Perguntamo-nos, então, de que são feitas as cidades. De muitas coisas, sem dúvida. Mas a arte urbana e as dinâmicas que a envolvem têm sem dúvida um papel muito importante.
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Olhemos para Bucareste, capital da Roménia. É um choque para o viajante, acabado de chegar. A cidade oscila numa indefinição. Tem magníficos edifícios de arte nova, de fins do século dezanove, inícios do século vinte. Estão num estado miserável, a cair, sujos e pretos, de fazer pena. Ao lado, os edifícios do socialismo real. Agora, os do capitalismo real. Não sabemos para onde olhar e tudo aquilo dá dó: a magnífica igreja ortodoxa com um arranha-céus envidraçado ao lado, o palacete a cair em ruínas, a torre enorme que se ergue por todo o lado. É uma cidade arquitectonicamente agressiva, à qual precisamos de nos habituar. A arte urbana, no entanto, abunda. São grafitti na zona da universidade (nada de novo, pensar-se-ia), são murais cheios de cor por toda a cidade, são stencis de protesto contra a mulher do governador. A cada esquina há uma peça de arte urbana a descobrir e isso dá um novo colorido à cidade. Que há vida, que há movimento social, qualquer coisa a existir e ao mesmo tempo a protestar.
É COMO UMA JANELA QUE SE ABRE, PARA UMA OUTRA DIMENSÃO.
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Mas qual a função da arte urbana? Pode a arte urbana ter um museu? A resposta é fácil: não só pode, como já tem. Mas como o próprio nome indica, é um museu muito particular. Existe em Lisboa, por exemplo. Que nome melhor do que “Museu do Efémero” (onde se responde já em parte à primeira pergunta)? É uma galeria ao ar livre – mas não é isso toda a cidade? O Museu do Efémero é uma galeria sempre aberta, em constante mutação. Mas a acompanhar as características mais clássicas dos museus, também ele tem um mapa e um audioguide. Bata ir ao site, descarregar o mapa, descarregar as faixas e percorrer a cidade. Estão ambos divididos por zonas e através deles fica-se sem dúvida a conhecer melhor Lisboa. Nos sítios, nas ditas obras, lá está a tabela, com o nome da obra e indicação do autor. Na época em que Banksi entra no museu (desta vez legalmente), aqui é o museu que vai às obras de arte. Um dos seus pontos fortes é, por exemplo, na Rua de São Bento, junto à Assembleia da República. Quem desce a rua em direcção ao poder confronta-se também com esta forma de invasão criativa urbana. Pode ser que faça despertar um pouco quem todos os dias faz as leis... GATO QUE COSTUMAVA DORMIR NA R. DE S. BENTO, LISBOA
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A arte urbana faz também parte das memórias emocionais de uma cidade. Há dias, quando se falava em elefantes cor-de-rosa, foi impossível não cruzar olhares com um italiano e pensar de imediato na entrada do bairro de San Lorenzo, em Roma.
MÍTICOS ELEFANTES ROSA, ESPALHADOS PELO |BAIRRO DE SAN LORENZO, EM ROMA.
Uma cidade que surpreendeu pela abundância de street art foi Coimbra. Da última vez que lá estive toda a cidade parecia um manifesto. Não havia muro ou parede sem graffiti. Com mensagem política ou apenas imaginação, eles lá estavam - e faziam pensar. Não acredito que alguém que vá para a universidade fique indiferente a um bando de pombos que esvoaçam das escadas. Impossível não esvoaçar com eles também, pelo menos em pensamento.
PÁSSAROS ESVOAÇANTES NUMA ESCADA DE COIMBRA
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A street art é muitas vezes corrosiva, agressiva com a passividade, incita à acção e não deixa ninguém indiferente.
APELOS AO VOTO NAS FÁBRICAS DEGRADADAS DE CACILHAS.
NO MÉXICO MUITOS MURAIS TÊM NÚMERO DE AUTORIZAÇÃO, COMO QUALQUER OUTRO MEIO DE PROPAGANDA POLÍTICA E ELEITORAL.
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Há mensagens que não percebemos muito bem a quem se destinam.
PARA DENTRO OU PARA FORA?
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Há arte urbana que nos assalta e surpreende no meio da rua, momentos de pura poesia.
BAILARINAS QUE DANÇAM, NO SILÊNCIO VAZIO DE VILNIUS.
ANJOS QUE POVOAM AS RUAS DE GALWAY, NA IRLANDA.
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A arte urbana é assim. Espalha-se por qualquer lado, chega a saltar das valetas.
HÁ QUEM ESPREITE, JUNTO À RIA DE AVEIRO.
É sem dúvida um aviso útil à nossa sobrevivência.
AVISO RELEVANTE NAS RUAS DE VILNIUS, LITUÂNIA.
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HABITAÇÃO SOCIAL NAS ÚLTIMAS DÉCADAS RITA ÁVILA CACHADO
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HABITAÇÃO SOCIAL NAS ÚLTIMAS DÉCADAS RITA ÁVILA CACHADO | ANTROPÓLOGA CIES-ISCTE
“A PAZ, O PÃO, HABITAÇÃO, SAÚDE, EDUCAção”, direitos fundamentais e condições para a liberdade resumidos no forte verso da canção de Sérgio Godinho, repetido pelas últimas gerações de jovens portugueses, são essenciais para todos os cidadãos nos Estados-nação contemporâneos. A habitação, no meio do verso, fornece a imagem de virtude indispensável para o exercício da cidadania. Se na Europa, face à evidência de um grande número de cidades devastadas, a habitação social foi a pedra de toque do Estado do bem-estar no pós-guerra, em Portugal, as preocupações com a habitação ao nível das políticas sociais só vieram para as primeiras linhas dos programas políticos no início dos anos 90. O objectivo central da reflexão que se segue é contextualizar a política social de habitação social nas últimas décadas1, dando especial atenção aos equívocos na aplicação prática de realojamentos e procurando mostrar que o passado recente traz novas possibilidades para abordagens políticas mais próximas das necessidades reais das pessoas a quem o artigo 65º da constituição portuguesa – o direito à habitação – continua bloqueado. POLÍTICAS DE HABITAÇÃO PÓS-25 DE ABRIL – CONTORNOS SOCIAIS E POLÍTICOS Logo depois do 25 de Abril, destacam-se as operações SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local), no espírito revolucionário de então, sem equivalente nas políticas de habitação que se lhe seguiram. As operações
SAAL, com prós e contras como era inevitável sabendo que foi uma política que procurou levar em conta as pessoas implicadas, levaram engenheiros, arquitectos e finalistas de arquitectura para um grande número de núcleos residenciais degradados, de génese ilegal, na tentativa de recuperar e reabilitar os espaços, mantendo por vezes a traça das casas já construídas, e legalizando os terrenos. Num documentário recente, chamado precisamente “As Operações SAAL” (de João Dias, 2007, 90’), podem denotar-se as ambiguidades da aplicação de uma política de habitação revolucionária, mas sobressai uma pergunta, que fica no ar: porque não se fez nada assim depois? E realmente, o que aconteceu depois do SAAL?2 A partir de finais dos anos 1970, a construção clandestina aumentou muito em toda a Área Metropolitana de Lisboa (AML). Um dos factores que contribuiu para este crescimento foi um vazio da promoção legal da habitação, na sequência de um acordo entre o governo português e o FMI3, que provocou a suspensão do lançamento de novos empreendimentos do sector público e cooperativo (Ferreira, 1988: 60). As taxas de juro aumentaram exponencialmente e a aquisição de habitação própria, motivada entre 1974 e 1976, ficou comprometida. A construção civil fruto desta conjuntura é sobretudo a construção de bairros clandestinos4, que permitia satisfazer as necessidades familiares face à ausência de alternativas (Paiva, 1985: 75). Depois do SAAL, o contexto da habitação em Portu-
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gal mudou drasticamente. As necessidades de habitação foram muito maiores do que até então. Os bairros de barracas aumentaram exponencialmente em tamanho e em número de habitantes no contexto das migrações dos países africanos ex-colonizados por Portugal. Muitos imigrantes sem capacidade económica assentaram em bairros de habitações precárias, onde, numa situação de ausência de loteamento formal, compraram casas ou terrenos a baixos custos aos primeiros ocupantes, refizeram ou construíram de raiz, e melhoraram a construção ao longo dos anos conforme a disponibilidade para adquirir melhores materiais. Por isso, chamar bairros de barracas a conjuntos residenciais construídos em alvenaria e telhados de Lusalite pelos seus moradores é, a meu ver, exagerar a precaridade de muitos bairros que tinham na realidade condições de serem restruturados em lugar de serem demolidos. Em meados dos anos 1980, o crescimento de bairros precários era notado por todos, muito embora esta percepção não tenha tido correspondência em termos de estudos que dessem conta da realidade dos bairros de barracas em Portugal. A importância desses estudos começou a ser notada já com o PER (Programa Especial de Realojamento) em curso. No caso da AML, estes bairros cresceram, em grande parte, em zonas inicialmente periféricas e tornando-se mais centrais, seguindo o processo de suburbanização da cidade de Lisboa (como é o caso do Areeiro, Chelas, Benfica, Lumiar). O número de bairros aumentou de forma extremamente visível.
No início dos anos 80 fala-se em 16585 famílias a viver em barracas na AML (Salgueiro, 1985: 63). Entretanto, nasceram algumas cooperativas de habitação; os subúrbios das grandes cidades, sobretudo em Lisboa, viram crescer um sem número de complexos imobiliários, num processo conhecido de compromisso fiscal com as autarquias que só muito recentemente tem vindo a abrandar. Os paradigmas da habitação também mudaram; as exigências a nível habitacional por parte das famílias não eram compatíveis com casas pequenas em centros de cidade degradados, e muito menos em casas de bairros de barracas. Deste modo, as políticas de habitação que se seguiram foram atrás desse paradigma, afastando os moradores das cidades dos centros urbanos e procurando satisfazer necessidades de espaço e de privacidade para os agregados familiares residentes em habitações precárias. Antes do PER, algumas políticas de habitação de alcance limitado tiveram lugar em Portugal nos anos 80 do século XX, e que merecem atenção para a reflexão sobre habitação no presente e no futuro. Apesar de limitadas nos objectivos e na sua consecução, e de terem tido poucos fundos, tiveram algumas mais-valias que vale a pena recordar. É o caso da Auto-construção e do Auto-acabamento. A auto-construção procurava aproveitar terrenos municipais; os técnicos ofereciam os projectos-tipo e os materiais; as pessoas tinham assim a possibilidade de construir as suas próprias casas. O Auto-acabamento consistia na construção da estrutura das casas por responsabilidade das autarquias e os moradores faziam os acabamentos. As principais limitações a estas políticas verificaram-se a nível da disponibilidade dos terrenos, mas o que importa reter é o envolvimento
A AUTO-CONSTRUÇÃO PROCURAVA APROVEITAR TERRENOS MUNICIPAIS; OS TÉCNICOS OFERECIAM OS PROJECTOS-TIPO E OS MATERIAIS; AS PESSOAS TINHAM ASSIM A POSSIBILIDADE DE CONSTRUIR AS SUAS PRÓPRIAS CASAS. O AUTO-ACABAMENTO CONSISTIA NA CONSTRUÇÃO DA ESTRUTURA DAS CASAS PELAS AUTARQUIAS E OS MORADORES FAZIAM OS ACABAMENTOS.
dos agregados domésticos na construção ou no acabamento das casas e a percepção dos técnicos envolvidos de que o know how dos moradores poderia ser aproveitado num programa de realojamento da população. De facto, muitos dos moradores nos bairros de barracas foram empregados por longos anos em várias áreas da construção civil, uma vantagem a priori para possíveis políticas de reconstrução e reabilitação de bairros. Uma outra política de habitação, apesar de igualmente limitada em termos de execução, merece referência: o Plano de Intervenção a Médio Prazo (PIMP), que projectava o realojamento de famílias residentes em habitações precárias. Legislado em 1987 (DL 226/87 de 06/06/1987), deu origem à construção de 9698 fogos até 1993, ano da legislação do PER. Segundo Fonseca Ferreira, no PIMP a “(...) lógica quantitativa prevalece em relação à visão de conjunto do problema habitacional. (...)” (Ferreira, 1988: 58), ilustrando a razão pela qual este programa falhou em grande parte. O PER – PROMESSA POLÍTICA PARA ACABAR COM AS BARRACAS No início de 1993 é lançado o Livro Branco da Habi-
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tação, que refere como primeira característica da política de habitação a sua dimensão social. Nas propostas, fala-se da necessidade de construir 500 mil novas casas até ao ano 2000 e da criação de um parque social de aluguer alternativo às barracas e clandestinos (Ferreira, 1993: 52). Nos anos anteriores formara-se um consenso político alargado relativamente à necessidade de uma política habitacional e de uma intervenção estatal forte. O Estado procurou intervir com o objectivo de acabar com a exclusão social e contribuir dessa forma para a diminuição da incidência da pobreza. A pobreza surge então como mote político (Guerra, 1994: 13). Um sinal claro desta aposta política é, ainda antes do PER, o Programa Nacional de Luta Contra a Pobreza (PNLCP), no seguimento do II Programa Europeu de Luta Contra a Pobreza (Capucha, 2004: 88) e iniciado em 19905. Este programa é, aliás, referido no próprio DL que enquadra o PER6. É assim que, sem estudos aprofundados sobre as condições sociais e económicas dos moradores dos bairros de barracas, pobreza e habitação precária ficaram irremediavelmente associadas, para o bem e para o mal... No texto do decreto-lei do PER podemos encontrar três ideias fundamentais: (1) erradicar as barracas, (2)
ALGUNS MUNICÍPIOS TERÃO ACOLHIDO O PER COMO UM PRESENTE ENVENENADO. MAIS DE 10 ANOS DEPOIS DO INÍCIO DA APLICAÇÃO DO PER, TÉCNICOS MUNICIPAIS REFEREM QUE O ESTADO DESRESPONSABILIZOU-SE DE CERTA FORMA DA HABITAÇÃO SOCIAL AO TER ACABADO COM A POSSIBILIDADE DE ENDIVIDAMENTO DAS CÂMARAS, QUE ERA UMA DAS FORMAS DE DAR PROSSEGUIMENTO AOS PROCESSOS DE REALOJAMENTO.
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envolver os municípios de forma vincada no processo, e (3) potenciar, com o realojamento, uma mudança no estilo de vida supostamente associado aos bairros degradados. Logo no início do texto que precede as alíneas do decreto encontramos uma frase chave para entender o fundamento argumentativo do decreto: “A erradicação das barracas, uma chaga ainda aberta no nosso tecido social, e consequente realojamento daqueles que nelas residem impõem a criação de condições que permitam a sua total extinção.” (DL 163/93 de 7 de Maio DR, I Série – A nº 106 07/05/1993: 2381). As barracas são vistas como uma chaga social, um problema que tardava a ser resolvido e que todos podiam constatar. A solução explícita é a sua demolição total e respectivo realojamento das populações que habitam os bairros. Os artigos que compõem o decreto legislam sobre o envolvimento e responsabilidade dos municípios na execução do programa. Alguns municípios terão acolhido o PER como um presente envenenado. Mais de 10 anos depois do início da aplicação do PER, técnicos municipais referem que o Estado desresponsabilizou-se de certa forma da habitação social ao ter acabado com a possibilidade de endividamento das Câmaras, que era uma das formas de dar prosseguimento aos processos de realojamento. Muito embora o compromisso das Câmaras tivesse já sido ensaiado noutras legislações (como no PIMP e mesmo durante o Programa das Casas Económicas durante o Estado Novo), é com o PER que esse compromisso se torna mais substantivo. Além do objectivo principal da erradicação das barracas e do meio principal para o fazer – o envolvimento activo dos municípios – o PER tem a finalidade da alteração dos estilos de vida das populações através
do realojamento. A alteração dos modos de vida surge como solução para a exclusão social a que as populações estão sujeitas por habitarem nos bairros de barracas, seguindo a percepção política de então, veiculada no texto legislativo: “Complementarmente à resolução do problema habitacional, é oferecido aos municípios ou instituições particulares de solidariedade social um programa alargado de inserção social das comunidades envolvidas, visando a criação de condições a uma plena integração destas populações na comunidade e combatendo os problemas de criminalidade, prostituição e toxicodependência, entre outros, a que a exclusão social motivada pela falta de condições habitacionais condignas as deixou votadas.” (idem). Esta vertente do texto legislativo do PER traz implícita uma estigmatização social dos bairros de barracas e que as condições de habitação degradadas favorecem comportamentos desviantes, empolando a importância da acção social sobre eles. Esta circunstância não é singular no caso português; ela manifesta-se em vários países da União Europeia, sobretudo em virtude do Quarto Programa de Bases da Comissão das Comunidades Europeias (1994) que elabora documentos sobre a falta de controlo de indivíduos e grupos específicos socialmente excluídos ou discriminados. Logo após a aprovação do decreto-lei que legisla o PER surgem críticas e avisos relativamente à sua aplicação prática por parte da comunidade científica implicada, onde desempenharam papel de destaque os sociólogos da habitação, uma disciplina que dava nessa altura os primeiros passos. Neste âmbito, destaca-se uma importante publicação, um número da revista Sociedade e Território, sugestivamente intitulado As pessoas não são
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coisas que se ponham em gavetas. As lições e prevenções para o PER de Fonseca Ferreira, que abre o volume, é um texto que dá um sinal claro dessa chamada de atenção para os possíveis erros em que o PER cairia. Ferreira vaticina: “O PER tem à partida todos os ingredientes para o desastre: construção massiva, realojamentos concentrados, populações de grande precariedade económica e com graves problemas sociais, serviço de administração burocratizados.” (Ferreira, 1994: 10). No artigo seguinte, que dá o título à publicação, Isabel Guerra começa por chamar a atenção para o fracasso de experiências anteriores ao PER de realojamento densificado e para a crescente heterogeneidade cultural dos bairros (Guerra, 1994: 11). Os argumentos principais vão no sentido de apelar a “(…) uma estratégia de desenvolvimento social urbano da cidade (…)”, a um “(…) aprofundamento da concertação entre os parceiros (…)” e, enfim, por uma intervenção global (idem: 15-6). Os organizadores do volume convidam um especialista francês na matéria, Michel Bonetti, que escreve um artigo sobre a revalorização dos bairros sociais construídos nos subúrbios das grandes cidades francesas, com uma construção intensiva, que procurou reproduzir as unidades de habitação modernistas das cidades jardim de Le Corbusier, mas em zonas menos favorecidas, com piores materiais e com menos espaço territorial para executá-las. Bonetti (1994) retrata a realidade francesa em meados dos anos 90, e o seu artigo funciona como uma advertência do que poderia acontecer se a construção de bairros na aplicação do PER fosse intensiva: adviriam problemas sociais complexos, com necessidades de programas específicos de desenvolvimento social.
O PER NA PRÁTICA Quaisquer políticas sociais podem ser analisadas e criticadas através das suas propostas, mas a sua colocação em prática e a observação da sua execução traznos dados importantes para compreender melhor por dentro uma política de habitação como o PER. Segue-se um resumo, em termos gerais, do que foi este programa na prática. O PER foi executado a partir de protocolos celebrados entre as autarquias e o Instituto Nacional de Habitação. As famílias com direito a realojamento eram aquelas que já residiam nos bairros em 1993. Deste modo, todas as pessoas que não conseguiram provar a sua residência anterior a 1993 viram o seu realojamento ser posto em causa. Muitos residentes no início dos anos 2000 tinham de facto chegado aos bairros depois de 1993, fruto de novas correntes migratórias, havendo por isso milhares de famílias não contempladas no PER e sem alternativa residencial, uma vez que não se elaboraram novas legislações relativamente a possíveis realojamentos de famílias residentes em bairros de barracas. O PER foi, ao longo dos anos, actualizando a legislação conforme as necessidades decorrentes da aplicação prática do programa7, mas sempre com a premissa de que os residentes tinham de habitar os bairros em data anterior a 1993. Em termos gerais, a aplicação do PER parece ter ignorado os avisos dos técnicos especializados: muitos dos realojamentos fizeram-se longe dos centros urbanos, acentuando a segregação espacial dos moradores, e em blocos residenciais de ocupação habitacional massiva, com poucas infra-estruturas de base, acentuando, por seu lado, a segregação social das famílias. Tal como aconteceu no caso francês, as autarquias e o Estado vi-
A APLICAÇÃO DO PER PARECE TER IGNORADO OS AVISOS DOS TÉCNICOS ESPECIALIZADOS: MUITOS DOS REALOJAMENTOS FIZERAM-SE LONGE DOS CENTROS URBANOS, ACENTUANDO A SEGREGAÇÃO ESPACIAL DOS MORADORES, E EM BLOCOS RESIDENCIAIS DE OCUPAÇÃO HABITACIONAL MASSIVA, COM POUCAS INFRA-ESTRUTURAS DE BASE.
ram-se obrigados a activar programas específicos para minorar a segregação, através de associações e de projectos em prol da ambicionada integração social, de que se destaca o Programa Escolhas. Contudo, não se pode simplesmente acusar uma má aplicação do PER pelas autarquias. Estas tiveram algumas dificuldades contextuais que não devem ser esquecidas: (1) dispunham de poucos terrenos para os realojamentos; (2) os proprietários dos terrenos onde os bairros de barracas foram erigidos, face à legislação que previa a sua demolição, começaram a fazer exigências depois de deixarem ao abandono as suas terras ao longo das últimas décadas; (3) as autarquias tinham poucos técnicos especializados. A aplicação do PER provocou a confrontação dos técnicos com situações humanas e culturais muito diversas e havia uma grande falta de estudos sobre a realidade social das famílias que habitavam os bairros tanto a nível cultural, como económico e social. Os bairros que tinham já alguma organização associativa viram o programa ser aplicado de forma mais célere do que os bairros sem estruturas associativas, uma vez que estes últimos tinham a tarefa de mediação entre o bairro e a autarquia dificultada.
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Do ponto de vista das famílias e dos técnicos responsáveis por cada núcleo residencial, a aplicação prática do PER consistiu na gestão dos seus processos familiares. Cada família tinha um dossier com documentação sobre o seu caso, desde o registo na altura do recenseamento, dizendo quantas pessoas residiam na habitação e condições da habitação, passando por actualizações relativamente a cada agregado. A documentação pedida procurava confirmar o estatuto de pobreza e de necessidade de realojamento, bem como se as mesmas pessoas continuavam ou não a residir na mesma casa até à altura do realojamento, por via de óbitos ou de mudança de casa, e se havia novos membros no agregado, fruto de casamento ou de nascimento. Esta foi uma gestão complexa justamente devido à variedade cultural das populações, com necessidades específicas, dificultando a avaliação quanto a deverem ou não ser levadas em conta essas mesmas necessidades específicas. Além disso, a diversidade de casos humanos, com famílias estáveis ao longo dos anos (situação mais desejada para um realojamento burocraticamente facilitado), famílias com grandes alterações ao longo dos anos devido a casamentos, nascimentos, separações, necessi-
SÓ PERANTE A AMEAÇA DE DEMOLIÇÕES DOS EXECUTIVOS DA AMADORA MAIS RECENTES (PS) É QUE A REQUALIFICAÇÃO DA COVA DA MOURA VOLTOU A SER PENSADA DE FORMA MAIS SISTEMÁTICA. A NÃO DESTRUIÇÃO DO BAIRRO DEVE-SE, CONTUDO, A UMA FORTE VIDA SOCIAL E CULTURAL DO BAIRRO, QUE RESISTE APESAR DOS ESTIGMAS QUE SE FORAM SEDIMENTANDO RELATIVAMENTE À SUA POPULAÇÃO.
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dades culturais específicas ao nível da família como por exemplo a manutenção da coabitação com os pais ou sogros ou, ao inverso, o desejo de beneficiar do contexto do programa de realojamento para adquirir uma habitação que facultasse a independência dos núcleos domésticos simples (pai, mãe e filhos). As variantes são quase infinitas e as exigências legislativas do programa tanto davam azo, por parte dos responsáveis pela aplicação do programa, a interpretações excessivas como a leituras presas ao texto legislativo, sem abertura aos casos particulares. COVA DA MOURA – A EXCEPÇÃO À REGRA PER Apesar de a maioria dos núcleos residenciais degradados nas franjas das grandes cidades terem sido equacionados para realojamentos no âmbito do PER, alguns bairros não foram inscritos neste programa. É o caso do mediático bairro da Cova da Moura, no concelho da Amadora. Os autarcas locais no princípio dos anos 90 acreditavam na requalificação gradual do bairro. Mas o processo revelou-se muito lento e, só perante a ameaça de demolições dos executivos da Amadora mais recentes (PS) é que a requalificação voltou a ser pensada de forma mais sistemática. A não destruição do bairro deve-se, contudo, a uma forte vida social e cultural do bairro, que resiste apesar dos estigmas que se foram sedimentando relativamente à sua população. O bairro Cova da Moura acaba por ter um excesso de visibilidade que, actualmente, lhe é tão cara quanto vantajosa. A maioria dos moradores, com forte enraizamento no bairro, é favorável a projectos de reconversão. Em Outubro de 2006, o jornal Público anuncia para breve um protocolo assinado entre a Câmara da Amadora
e o governo, com vista à reconversão do bairro. A ideia é começar por estudar as condições de habitabilidade (com o know how do Laboratório Nacional de Engenharia Civil), recensear com exactidão a população residente, e fazer a devida reconversão estrutural. O programa tinha previsto a sua conclusão em quatro anos, e inserese na iniciativa do governo “Operações de Qualificação e Reinserção Urbana de Bairros Críticos”, coordenada pelo Ministério do Ambiente. O programa de requalificação, um projecto que se adivinha com muitas qualidades, não teve a concordância de todo o executivo camarário, que cedo incentivou as polémicas em torno deste programa. O próprio presidente da Câmara, Joaquim Raposo, logo a seguir ao anúncio do protocolo, revelou não estar disposto a abdicar da gestão do ordenamento local previsto antes do programa de reconversão. As vozes em desacordo com o programa surgem, no entanto, de outros quadrantes – da parte da população, houve quem, pelo menos inicialmente, levantasse suspeitas em relação às boas intenções do programa. A descrença, afinal, não é surpreendente, uma vez que a população está habituada a que muitos dos projectos para ali desenhados não passem de promessas. O PLANO ESTRATÉGICO DE HABITAÇÃO COMO SOLUÇÃO ACTUAL No início do ano passado, os realojamentos tinham ultrapassado a fasquia das 60 mil famílias, mas os estudos efectuados na área estimavam uma carência de 40 mil habitações para famílias a viver em condições precárias. Em meados de 2008 surge finalmente uma alternativa. Nuno Portas, Augusto Mateus e Isabel Guerra, com
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larga experiência na área da habitação, são os principais mentores do Plano Estratégico de Habitação (PEH). O Plano é apologista do fim dos bairros sociais, tendo em conta a sua obsolescência e propõe como alternativa essencial a dinamização do mercado de arrendamento e a reabilitação de fogos. A ideia chave é que o Estado deixe de ser interventor directo para passar a ser sobretudo regulador e fiscalizador. A adesão dos municípios a este Plano é o principal objectivo a curto prazo para pôr o PEH em prática. O arrendamento e a reabilitação estão no topo das prioridades. A bolsa de fogos daí decorrente terá, de acordo com o Plano, uma quota-parte dedicada à habitação a custos controlados, especialmente a pensar nas famílias que não foram contempladas no PER. Esta é a solução actualmente em debate e o grau de empenhamento dos municípios relativamente à habitação num futuro próximo ditará a exequibilidade do PEH. EM SÍNTESE O PER foi feito com base num censo de 1993. As pessoas que imigraram para Portugal depois disso e foram viver para os chamados bairros de barracas ficaram sem a possibilidade de serem realojadas. Acresce que não havia praticamente estudos sobre esses bairros e tomaram-se as pessoas e os bairros como muito pobres e sem infra-estruturas, e apenas se equacionou o realojamento e não a possibilidade de melhorar as condições de bairros que foram construídos pelas mãos dos seus habitantes, muitas vezes com um know how a nível de construção civil que mereceria ser levado em conta em todas as políticas de habitação social. A falta de conhecimento sobre a realidade social das populações levou a muitos mal entendidos e a um con-
trolo excessivo sobre as populações. Ou seja, no processo burocrático do realojamento, as pessoas foram controladas de forma que apenas aquelas que provassem o seu estatuto de pobreza podiam manter o seu direito ao realojamento. O que isto quer dizer é que se reproduziu uma ideia da cultura da pobreza associada aos bairros de barracas, um apriorismo que nem sempre tem correspondência e que acaba por alimentar a incorporação desse estatuto nas pessoas. Em suma, esta situação relaciona-se com a ideia feita de que muita gente procura aproveitar-se dos subsídios e das políticas sociais e que não se esforçam para sair do seu ciclo vicioso. Acabar com as barracas foi a promessa do PER e as palavras de ordem de sucessivos governos relativamente à habitação. Em consequência, milhares de pessoas esperaram por um realojamento em bairros sociais ainda mais afastados da cidade do que os bairros degradados onde moravam e com menos qualidade de vida, levantando novos problemas sociais. Ao contrário do que seria de esperar tendo em conta a prévia experiência europeia, repetiram-se assim os mesmos erros que noutros países europeus. O Plano Estratégico de Habitação, proposta mais recente na área da habitação, vê, e com razão, o realojamento como resposta obsoleta para a habitação precária. As soluções passam, por isso, por realojar as famílias em casas recuperadas nos centros das cidades, por legalizar os terrenos onde vivem e reabilitar as habitações, dotando os bairros das infra-estruturas em falta e pelo fomento de um mercado de arrendamento a custos controlados. Apesar de restarem poucos núcleos residenciais nestas situações, não é tarde para os milhares de famílias que esperam pelo PER há mais de 15 anos.
CULTURA DA POBREZA NÃO! Um dos problemas das políticas sociais, de habitação ou outras, prendese com a visão sobre a pobreza das populações a quem se dirigem, sem conhecimento prévio da realidade socio-cultural em que vivem. Tomase o todo pela parte. As pessoas que vivem sob algum grau de segregação – espacial, económica, social, ou todas juntas – apesar de os seus problemas deverem ser solucionados com a ajuda do Estado e do sector associativo e com a colaboração activa dos implicados, não são necessariamente pobres, nem necessariamente dependentes de ajudas. São actores sociais que desenvolvem as suas estratégias de adaptação e de resistência às situações em que vivem, sejam essas estratégias mais ou menos afins das expectativas dos decisores. Os estigmas sobre as populações inscritas no PER aumentaram com o senso comum de que as casas eram dadas às famílias, escamoteando que cada família pagaria uma renda de acordo com os seus orçamentos familiares. Recentemente, na sequência de problemas sociais em alguns bairros das franjas de Lisboa, reproduziu-se a ideia de que muitas famílias pagariam uma renda irrisória pelas suas casas. Mais
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uma vez, tomou-se o todo pela parte; as notícias veiculadas nos media não referem que a maior parte das famílias residentes em bairros sociais paga uma renda perto dos 100 euros (ainda que baixo, é um valor muito longe dos 10 euros de que se falava então). Acresce que estas populações tendem a ser mais controladas do que as classes médias e altas a vários níveis, precisamente porque nalgum momento se lhes atribuiu um estatuto de pobreza de que devem ou sair ou manter através de provas prestadas nesse sentido. Toda uma burocracia associada, desde declarações de centros de emprego, passando por atestados médicos, declarações de IRS, actualização de documentação de identidade, entre outros, fazem parte das tarefas quotidianas das populações segregadas que devem confirmar, através deste tipo de documentação, em vários momentos, as suas necessidades sociais. Deste modo, permanecem as indesejadas incomunicações entre instituições e populações. De um lado, instituições que olham as populações como eternamente dependentes de auxílio estatal, do outro, populações que vão incorporando um estatuto de
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pobreza do qual de facto é difícil sair não apenas devido a contingências conjunturais (como o desemprego, a dificuldade de acesso à habitação, etc.), mas também devido ao reforço burocrático de uma ideia de pobreza que recai sobre estas famílias. Em alternativa, é urgente (1) a igualdade no controlo fiscal e social das várias camadas sociais da população, e não apenas tendencialmente aos mais desfavorecidos como tem acontecido; (2) a avaliação, no terreno, e não com base em suposições baseadas em apriorismos obsoletos, das condições de vida e das expectativas das populações (que nem sempre se coadunam com os paradigmas médios da sociedade ocidental); (3) a defesa da aplicação da figura do mediador sobretudo nos locais onde o associativismo tem fraca incidência, no sentido de minorar a reprodução de estereótipos sobre as populações; finalmente, (4) as políticas sociais de habitação devem equacionar devidamente a experiência dos movimentos sociais nos bairros precários e nos bairros sociais, uma vez que são estes técnicos e voluntários as pessoas que melhor poderão contribuir com novas perspectivas nestas áreas.
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NOTAS 1 As reflexões veiculadas neste artigo decorrem de interpretações realizadas previamente no contexto da elaboração de uma tese de doutoramento (publicada online aqui: https://repositorio.iscte. pt/handle/10071/1267). A investigação de terreno central incidiu sobre o processo de realojamento do bairro Quinta da Vitória, em Loures. O principal universo de estudo centrou-se na população hindu local, cuja conjuntura histórica, cultural e social se revelou extremamente interessante para pensar a aplicação de uma política social de habitação como é o PER. 2 Muito se escreveu sobre este programa realizado sob o espírito revolucionário que se seguiu ao 25 de Abril. Salientamos algumas referências importantes para perceber o SAAL, no seu conjunto. Um artigo do Arqº Nuno Portas, “O processo SAAL: entre o Estado e o poder local” (1986), que resume as principais linhas de força do programa. V. também, sobre a arquitectura do SAAL, Bandeirinha (2007). 3 O objectivo deste acordo era desacelerar o endividamento provocado pelo excesso de créditos contraídos nos anos anteriores.
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Conhecidos também por Áreas Urbanas de Génese Ilegal (AUGIs), cuja legalização e restruturação urbana ocupa uma boa parte das preocupações urbanísticas das autarquias. 5 O PNLCP é fruto da Resolução do Conselho de Ministros, de 20 de Março de 1990. 6 No DL 163/93 de 7 de Maio DR, I Série – A nº 106 07/05/1993: 2381 podemos ler: “A decisão agora tomada vem na sequência do Programa Nacional de Luta Contra a Pobreza, lançado pelo Governo em 1991, através do qual estão em curso cerca de 100 projectos em todo o território nacional.” 7 As principais actualizações foram o PER-Famílias (DL 76/96 de 20 de Junho) e o PROHABITA (DL 135/2004 de 3 de Junho). O primeiro teve grande importância na aplicação do PER na segunda metade da década de 90 e legisla o regime de concessão de comparticipações para apoio à aquisição ou reabilitação de fogos por famílias abrangidas pelo PER; o segundo, é o programa de financiamento para acesso à habitação, que regula a concessão de financiamento para resolução de situações de grave carência. 4
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A DISNEYFICAÇÃO DA CIDADE FERNANDO CRUZ
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A DISNEYFICAÇÃO DA CIDADE
FERNANDO CRUZ | INVESTIGADOR . INSTITUTO DE SOCIOLOGIA/FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO
A CIDADE Uma cidade pode ser definida como “uma colectividade social multifuncional, territorialmente delimitada”, podendo as suas formas históricas, geográficas, técnicas e sociais ser tão diferentes que o mesmo termo pode abranger “realidades sociais e ecológicas muito diferenciadas” (Castells, 2001). Esta compreende, fundamentalmente, processos de produção, consumo e troca, cujas relações socioespaciais entre estes processos, determinam a existência de um processo de gestão ou político, que intervém sobre os primeiros (Castells, 2001). A cidade é, nas palavras de Firmino da Costa, um contexto de estudo, onde actores e processos sociais “produzem cidade e […] imagens da cidade” na análise do próprio processo social (Costa, 2003). Esta reconhece-se por conseguinte, como real e representacional, texto e contexto, ética e estética (Fortuna, 2001), potenciando a autonomia, o anonimato, a concorrência, a tolerância, a imprevisibilidade, a insegurança e desincentivando a participação social, de acordo com as características clássicas definidas por Wirth (2001). Por conseguinte, os promotores e agentes turísticos, os designer e criativos, os profissionais da comunicação, os técnicos e os decisores políticos, bem como, as instituições e entidades locais ou não, se assumam como os responsáveis pelas imagens que as cidades transmitem.
Daí que acontecimentos efémeros ou iniciativas mais duradouras, ou designações mais vinculativas possam ser instrumentalizadas por igual e convertidos em recurso promocional das cidades (Fortuna, 2001), correndo o risco da excessiva simplificação da sua identidade, transformar a cidade antiga e singular, numa cidade genérica, sem história. Nestas, a sua principal característica é a anomia, dada a atenção centrar-se, sobretudo nas auto-estradas em detrimento das alamedas e das praças (Koolhaas, 2006), lugares privilegiados de sociabilidade. A ausência do centro nas cidades genéricas (Koolhaas, 2006), transforma as identidades em “transitórias, plurais e auto-reflexivas” e aquelas em cidades narradas, ou cidades-espectáculo, hipertextuais ou hiper-reais, ao perder-se a distinção entre o real e o simulacro (Lopes, 2002). ESPAÇOS URBANOS A reconstrução dos espaços urbanos e o processo de gentrification ou enobrecimento urbano levaram por um lado, ao aparecimento de novos edifícios sob a forma de centros comerciais, hipermercados, museus, zonas ribeirinhas e parques temáticos e à reestruturação e por outro, ao enfraquecimento de relações de vizinhança dada a deslocação centrífuga das classes desfavorecidas e centrípeta das classes com maior poder económico.
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Um dos traços mais significativos da nova arquitectura é a sua função lúdica ao produzirem sensações de encantamento, desorientação ou espanto, por forma a reviver o passado ou a ficção (Featherstone, 2001). O espaço colectivo é cada vez menos um espaço público, sendo a sua gestão gradualmente entregue a entidades privadas (Lopes, 2000). Daí que, a nova arquitectura urbana permita uma compressão do espaço-tempo, onde os “novos” centros das cidades, materializados em centros comerciais, aparecem abstraídas do espaço e tempo exteriores. Ao mesmo tempo, este “urbanismo de fantasia” exclui todos os aspectos negativos da cidade como a sujidade, a toxicodependência, trânsito e pobreza (Lopes, 2000). As cidades de densidade social e demográfica variável implicam relacionamentos sociais recíprocos, simbolicamente variados e em co-presença. Ora, o conceito de sociabilidade designa as relações sociais que se formam independentemente de quaisquer outras necessidades, interesses ou objectivos (Costa, 2003). Como refere Costa, a co-presença é um elemento constitutivo fundamental das práticas sociais e das situações relacionais, quer em contextos privados, quer em espaços públicos (Costa, 2003). Simmel caracterizava as formas de sociabilidade metropolitana, tendo em conta a intensificação e a multiplicação das relações sociais, acentuando o individualismo, a atitude blasé e as relações de estranhamen-
to (Fortuna, 2001). Contudo, os contactos face a face são sobretudo regidos pela impessoalidade, superficialidade, sendo por isso, transitórios e segmentares. Estas relações, de acordo com Wirth, tendem a ser utilitárias, tendo em conta os objectivos a atingir (Fortuna, 2001). Ruas extremamente povoadas são encarada pela maioria das pessoas como locais de passagem e circulação, podendo contudo existir a divisão dos espaços em termos de funções, etnias e culturas. A coexistência nestes espaços sem qualquer interacção parece ser a tónica dominante (Lopes, 2002). Segundo Innerarity, a relevância do espaço público depende da capacidade de organizar socialmente uma esfera de mediação de subjectividade, experiência, implicação e generalidade. Daí que considere que o público caracteriza aquilo que é de interesse geral e que apela a um espaço de acção onde os membros da comunidade possam desenvolver dialogicamente os seus assuntos relativos à comunidade em geral (Innerarity, 2006). Todavia, há que ter em conta, como o refere João Teixeira Lopes, que sofremos a influência de estruturas espáciotemporais, bem como, a compressão espaço-tempo em que cada cidadão participa. Deste modo, a intensidade e a descontextualização das relações sociais são, por isso, responsáveis pelo enfraquecimento da interacção face-aface própria dos lugares antropológicos (Lopes, 2002). DISNEY WORLD O Disney World deve-se à abstracção técnica e arquitectural dos lugares, bem como, das emoções que estas invocam. Desde 1985, que é entendido como uma poderosa reorganização visual e espacial da cultura pública. Os seus espaços dão visibilidade à memória social,
A DISNEYLANDIA E O DISNEY WORLD SÃO DOIS DOS MAIS SIGNIFICATIVOS ESPAÇOS CRIADOS NO SÉCULO XX QUE TRANSCENDEM AS IDENTIDADES ÉTNICAS, DE CLASSE OU REGIONAIS PARA OFERECER UMA CULTURA PÚBLICA NACIONAL AO ESTETICIZAR AS DIFERENÇAS E AO CONTROLAR O MEDO.
o que permite a identificação colectiva com o mercado. As dimensões e funções do Disney World permitem ser encarados como uma representação da cidade real, construída para pessoas da classe média. Por outro lado, a esteticização da paisagem urbana foi construída com a exclusão do medo à cidade. Contudo, o mundo Disney é um espaço autónomo cuja entrada está limitada ao pagamento da mesma, afastando assim, os indesejáveis (espaço privado). A Disneylandia e o Disney World são dois dos mais significativos espaços criados no século XX que transcendem as identidades étnicas, de classe ou regionais para oferecer uma cultura pública nacional ao esteticizar as diferenças e ao controlar o medo. Representa, por isso, uma narrativa da identidade social sobre o que as pessoas fazem ou deveriam fazer (Zukin, 2006). As estratégias de organização do espaço do Disney World influenciaram o comércio da cidade de Nova Iorque cujo primeiro objectivo consistiu na limpeza da área, do reforço da segurança com a imposição de barreiras ao acesso público e com a regulamentação do comportamento permitido nesses espaços; com a contratação de seguranças privados; bem como, a organização da movi-
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mentação das pessoas nos espaços públicos e dos lugares onde as mesmas se podem sentar; com a influência sobre as normas de apresentação e o modo de vestir; com a adopção de vestuário próprio para os funcionários. Estas estratégias sociais criaram uma relação de confiança entre os estrangeiros (Zukin, 2006). QUALIDADE E FESTIVILIZAÇÃO A actividade é mínima nos espaços urbanos de fraca qualidade mas intensa nos espaços abertos e de boa qualidade. Por isso, no centro da cidade, as actividades são geralmente superficiais e a maioria dos contactos passivos: ver e ouvir um grande número de pessoas desconhecidas. Esta oportunidade implica recolher um vasto conjunto de informação sobre o contexto social. A experiência de estar com outras pessoas implica a emissão e recepção de actividades abundantes e diversificadas ao contrário da experiência contemplativa de edifícios e monumentos. Por conseguinte, as cidades vivas implicam a interactividade entre as pessoas, resultando daí experiências ricas e estimulantes, ao contrário das cidades sem vida por muito que os edifícios sejam coloridos e diversificados (Gehl, 2006).
NA CIDADE DO PORTO PODEMOS MENCIONAR A TÍTULO DE EXEMPLO AS FESTAS DE S. JOÃO, A PASSAGEM DE ANO COM FOGO DE ARTIFÍCIO NA AVENIDA DOS ALIADOS (2006 A 2008) OU O CARNAVAL ORGANIZADO NA CIDADE NOS ANOS DE 2007 E 2008. A CIDADE ASSUME-SE ASSIM COMO CIDADE-ESPECTÁCULO, PALCO DE ENCENAÇÕES PENSADAS E ORGANIZADAS PELO MUNICÍPIO OU EMPRESAS DELA DEPENDENTE
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Há, por isso, que recorrer em algumas cidades fruto da desertificação dos centros urbanos à festivilização (Venturi apud Muñoz, 2008) dada a necessidade de grandes eventos para chamar pessoas a estes espaços urbanos. O recurso ao marketing acompanha ou segue o fenómeno de gentrificação dos referidos centros como condição da referida transformação urbana. Desse modo, a organização de eventos nos centros urbanos leva à concentração de centenas ou milhares de pessoas. Na cidade do Porto (fotos da página anterior) podemos mencionar a título de exemplo as festas de S. João, a passagem de ano com fogo de artifício na Avenida dos Aliados (2006 a 2008) ou o Carnaval organizado na cidade nos anos de 2007 e 2008. A cidade assume-se assim como cidade-espectáculo, palco de encenações pensadas e organizadas pelo município ou empresas dela dependente (Porto Lazer, EM). “A Avenida dos Aliados vai transformar-se, mais uma vez este ano, num grande Salão de Baile. Depois da festa em 2007, que envolveu milhares de pessoas, a PortoLazer, juntamente com a Panmixia, vai voltar a apostar no Entrudo de outros tempos. O Carnaval da Invicta terá assim dois palcos para duas orquestras, com lustres pendurados no céu, diversões à moda antiga, com bombos na rua, ranchos, máscaras, batalhas de flores, carrosséis, fotógrafos e sobretudo, com teatro musical, na continuação do grande folhetim “Maria do Bolhão”.” Porto Lazer (2008) Contudo, a postura de quem se desloca ao centro da cidade é sobretudo a de observador ou espectador.
Individualmente ou com a família ou ainda com amigos, o objectivo é sobretudo assistir aos espectáculos. A própria arquitectura da Avenida dos Aliados, na cidade do Porto, bem como, as próprias condições atmosféricas durante uma parte do ano não convidam à permanência no centro da cidade durante muito tempo. A Avenida está concebida sobretudo para grandes afluências de público, isto é, para “espectadores de pé”. Junto à Câmara Municipal estão algumas mesas e cadeiras como se de uma esplanada de um café se tratasse… Por outro lado, as poucas árvores que se encontram na mesma, bem como a ausência de sombra, protecções para a chuva ou outras infra-estruturas para crianças, não convidam as famílias a aí permanecerem muito tempo, excepto para tirarem fotos, numa atitude voyerista. É paradigmática a organização do Carnaval de 2007 e 2008, onde predominou uma certa ambiência burguesa de finais do séc. XIX e princípios do séc. XX na indumentária do espectáculo apresentado. Os próprios edifícios e a Câmara Municipal fruto da dinâmica arquitectónica daquela época e que persistem no tempo, parecem pretender “agarrar” essa época, como locus distintivo das demais cidades. É como se se pretendesse criar um grande parque temático, onde a burguesia, o comércio e o vinho do Porto se perpetuassem no tempo. NOTA CONCLUSIVA Com a organização de eventos no centro urbano da cidade do Porto, este constitui-se como um “palco”, onde os cidadãos – “espectadores” – têm de assumir um papel passivo no consumo da “peça” que se desenrola em es-
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paços públicos – “cenário” – onde as questões relativas à prática da cidadania são esquecidas. O Disney World idealiza o espaço público urbano ao promover estratégias competitivas em detrimento da civilização (Zukin, 2006). A aposta da imagem visual é a nosso ver bastante nítida na cidade do Porto e tal como no Disney World, a cultura visual, o controlo espacial e a gestão privada criam um novo tipo de espaço urbano. Para concluir, parece-nos que o centro da cidade do Porto é sobretudo usufruído turisticamente, sendo essencialmente as ruas de comércio que aglutinam os cidadãos num espírito consumista e voyerista face à ausência de população residente no mesmo centro urbano. Por outro lado, as estratégias seguidas não parecem ser consistentes por forma a levar à ocupação efectiva do referido espaço urbano dada a concepção do mesmo: amplo e a ausência de equipamentos permanentes que humanizem o referido espaço.
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DA CULTURA COMO LOCOMOTIVA DA CIDADE-EMPRESA A UM CONCEITO ALTERNATIVO DE DEMOCRACIA CULTURAL JOÃO TEIXEIRA LOPES VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009
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DA CULTURA COMO LOCOMOTIVA DA CIDADE-EMPRESA A UM CONCEITO ALTERNATIVO DE DEMOCRACIA CULTURAL JOÃO TEIXEIRA LOPES | SOCIÓLOGO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS Num dos muitos blogues sobre o Porto pode ler-se o seguinte post de Pedro Bismarck: “Um espaço infinitamente desdobrável de ideias, de pessoas, de manifestações artísticas e poéticas, de layers variadas que se sobrepõem e cruzam. Uma cartografia infinita e surpreendente de possibilidades, é isso a cidade, é isso o Porto”. Impossível não fazer uma imediata associação a um texto célebre de Jonathan Raban, Soft City (Raban, 1974). Nele, o autor defende, precisamente, essa infinita gama de opções que se colocam ao urbanita contemporâneo, a um ponto tal que cidade e indivíduo se transformam em espelho mútuo: “Decida quem é e a cidade assumirá mais uma vez uma forma fixa em seu redor. Decida o que ela é e a sua própria identidade será revelada, como um mapa estabelecido por triangulação. As cidades, ao contrário das aldeias e das pequenas cidades, são plásticas por natureza. Moldamo-las à nossa imagem: elas, por sua vez, moldam-nos” (idem, pp. 9-10). Plasticidade ou plasticina: tudo é moldável, espécie de artesanato das identidades e cartografias. Por antítese, os constrangimentos não existem ou não se revelam e a sociedade, como num sonho de um demiurgo narcísico, adquire a sua forma e imagem. Esta narrativa suave, de contornos pós-modernos,
arrisca-se, com matizes várias, a estabelecer-se como o discurso hegemónico dos actuais processos de transformação das grandes cidades (cidades globais ou cidades região, em qualquer caso com projecção estratégica). Em certa medida, trata-se da última nova velha versão da pressão que o capitalismo de acumulação flexível exerce para a polarização e reinvenção permanente de hierarquias, fronteiras e distinções no sistema urbano globalizado. NADA DE NOVO. E NO ENTANTO… O poder propriamente mágico das palavras e do discurso consiste, em boa parte, na sua capacidade performativa de resolver os problemas, isto é, de criar os quadros de inteligibilidade dentro dos quais as respostas ganham sentido e são reconhecidas como tal. Na sombra, ou na mais pura inexistência, fenecem as realidades que a perspectiva da enunciação não permite alcançar. Na actualidade, vários são os nomes por que se designam os processos de transformação das cidades no âmbito da globalização de soma-zero (o que umas ganham, outras perdem): regeneração, reconstrução, revitalização ou até renascença. Certos termos, no entanto, cada vez mais são evitados: higienização ou gentrificação. Nada de novo, por conseguinte, tampouco na excitação agora patente na versão criativa da competição pelo lugar das
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cidades na divisão espacial do consumo (e apenas complementarmente na divisão espacial do trabalho, dada a centralidade de uma economia cultural dos bens simbólicos assente na capacidade criativa/destrutiva do volátil capitalismo tardio). Falamos, então, na consolidada vulgata urbanística, em cidades criativas; bairros criativos, economias criativas; indústrias criativas e, naturalmente, em classes criativas, numa certa redundância semiótica que banaliza/naturaliza a circulação destes conceitos na esfera pública. Neil Smith (2002), em particular, salienta a centralidade deste discurso como gramática de uma prática urbanista (o “novo urbanismo” enquanto “novo globalismo”) que encara as cidades como os grandes laboratórios do capitalismo contemporâneo. A própria noção de imagem de cidade liberta-se do quadro de enunciação em que Kevin Lynch a criou para significar a intensa imbricação e mútua conversão entre capital simbólico e capital económico, funcionando, de facto, como um produto sofisticado de marketing territorial. Mas até aqui, como dizíamos, aparentemente nada de novo. Aparentemente, apenas, pois na verdade nunca como hoje as cidades funcionaram enquanto máquinas velozes de crescimento locomovidas pela esfera cultural, num processo que modifica os próprios conceitos de cultura e de cidade, unindo, desse modo, como até
então não acontecera, a economia política da cultura e a economia política do lugar. De facto, seguindo Otília Arantes (2007), a cultura surge como uma espécie de «isca» capaz de atrair o investimento privado, subordinando, mesmo, o interesse público e promovendo a especulação, nomeadamente a imobiliária. Trata-se, segundo a autora, de um “culturalismo de mercado”, em que a centralidade da cultura é cada vez mais comandada pela consolidação da “cidade-empresa-cultural”. Radicalizando a crítica, Arantes chega mesmo a considerar a animação cultural como um dispositivo de “convergência entre governantes, burocratas e urbanistas em torno de uma espécie de teorema padrão: que as cidades só se tornarão protagonistas privilegiadas, como a Idade da Informação lhes promete, se e somente se, forem devidamente dotadas de um Plano Estratégico capaz de gerar respostas competitivas aos desafios da globalização (sempre na língua geral dos prospectos), e isto a cada oportunidade (ainda na língua dos negócios) de renovação urbana que porventura se apresente na forma de uma possível vantagem comparativa a ser criada” (Arantes, 2007: 13). Ora, Arantes encontra vários paradoxos neste processo. Antes de mais, a reciclagem, pelo capitalismo tardio, da «ideologia do plano»; por outro lado, a íntima associação ao cultural turn que, surgido como movimento anti establishment nos campus universitários americanos (dando origem, em boa medida, ao que Daniel Bell apelidou de “contradições culturais do capitalismo”, que perdia a sua legitimidade pela emergente hegemonia da nova esquerda e da cultura das ruas), cedo deu lugar a um passe-partout cultural (“everything Cézanne”) o qual, na verdade, constituiria uma segunda fase desse cultural turn. A fase, en-
A PRODUÇÃO DA CIDADE NOVA, DOS BOULEVARDS E ARCADAS, IMPLICAVA TANTO DE CRIAÇÃO COMO DE DESTRUIÇÃO (O PRÓPRIO BARÃO, LEMBRA BENJAMIM, CLASSIFICAVA-SE DE «ARTISTA DA DEMOLIÇÃO»). SIMPLIFICAR, MEDIR, ORGANIZAR CIENTIFICAMENTE, PREVER – EIS AS PALAVRAS DE ORDEM.
fim, em que «tudo é cultura» e onde o estético invade o quotidiano e a cidade, de forma a impor o image making: a cultura como imagem e representação, na senda de um capital volátil e intangível. Como resultado, o lugar exprime uma outra contradição “entre o valor de uso que (…) representa para os seus habitantes e o valor de troca com que ele se apresenta para aqueles interessados em extrair um benefício económico” (Idem: 26). DOS MODERNOS À «TERCEIRA GERAÇÃO» DO PLANEAMENTO ESTRATÉGICO As reformas «clássicas» urbanísticas, ditas frequentemente «modernas» encaravam a cidade como tabula rasa e, nas suas diferentes versões (funcionalistas, modernistas em sentido estrito, racionalistas), progressistas ou conservadoras, encarnavam na e pela cidade um ideal de Homem Novo. O seu início pode encontrar-se no afã de higienização e embelezamento da cidade industrial do século XIX. O Barão de Haussmann transformou Paris, sob a égide do Estado Imperial, numa urbe de ruas abertas e largas (“longas e alinhadas fileiras de ruas”, no dizer de Benjamin) e de prédios altos e impo-
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nentes, destruindo massivamente a habitação popular e mesmo parte considerável do que hoje seria indubitavelmente classificado como património. A produção da cidade nova, dos boulevards e arcadas, implicava tanto de criação como de destruição (o próprio Barão, lembra Benjamim, classificava-se de «artista da demolição»). Simplificar, medir, organizar cientificamente, prever – eis as palavras de ordem. As alterações que este modelo acarretou para a vida quotidiana estão bem presente nos textos de Simmel (1997) sobre a atitude blasé enquanto defesa face à intensidade e heterogeneidade de estímulos que a metrópole provoca, assim como na postura do flanêur de Baudelaire, analisada com deliciosa ambivalência por Walter Benjamin (1997), enquanto alguém que, em atitude de rebeldia e boémia, procura refúgio na multidão, desligando-se da acção política e tornando-se uma criatura a-social. Não por acaso, refere Benjamin, a “única comunhão sexual que [Baudelaire] concretizou na sua vida foi com uma prostituta” (Idem: 74). Na verdade, esta é a cidade em que ricos e pobres hão de respirar o mesmo ar…Nas arcadas, privilegiados e destituídos apropriam-se diferentemente de um mesmo espaço, gerando leituras e
A TERCEIRA GERAÇÃO URBANÍSTICA CORRESPONDE, GROSSO MODO, À ERA DO PLANEAMENTO ESTRATÉGICO E DO RENASCIMENTO URBANO ASSENTE NA REGENERAÇÃO CULTURAL GERIDA PELOS NOVOS “EMPREENDEDORES”. ESTES RENUNCIAM À AMBIÇÃO DE TOTALIDADE DO URBANISMO ANTERIOR E DEFINEM, POR ASSIM DIZER, UMA ZONA DE VISIBILIDADE QUE DEMARCA O QUE TEM INTERESSE (E MERECE INVESTIMENTO), DO INEXISTENTE EM TERMOS DE VANTAGENS COMPARATIVAS. VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009
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práticas justapostas, mas incompatíveis (heterotopias?). A cidade metamorfoseia-se em mercadoria que entorpece as massas que miram as ornamentações do edificado e o apelo das vitrinas. Em Benjamin, agudiza-se o pathos da percepção da crise dos ideais emancipatórios. Este modelo de pendor racionalista gerou uma ambivalência sobre a imagem da cidade e do espaço público. De um lado, como refere Teresa Caldeira (2003: 303), “o perigo das multidões, anomia, individualismo excessivo, congestionamento” e “ocasionais apropriações violentas”; de outro, a abertura, a acessibilidade, a demarcação entre o público e o privado, o jogo entre desvendar-se e ocultar-se, a relativa abertura à “alteridade não assimilada” (Young in Caldeira, 2003: 304). No entanto, existe uma ficção de contrato social próprio de uma comunidade aberta que nunca existiu. Os modernistas, como Le Corbusier e Niemeyer, declaram «morte às ruas», retirando os transeuntes do que julgavam ser o anonimato das artérias e praças, colocando a ênfase num plano integrado controlado pelas autoridades públicas, capaz de seccionar a cidade em áreas funcionais diferenciadas mas interligadas num grande todo que funcionaria, ele sim, como um imenso espaço público moderno, racionalista, universal e homogéneo onde se esbateriam as diferenças sociais visíveis à escala da rua. Todavia, como refere Caldeira, “ao destruir a rua como espaço para a vida pública, o planejamento modernista também minou a diversidade urbana e a possibilidade de coexistência de diferenças. O tipo de espaço que ele cria promove não a igualdade (…) mas apenas uma desigualdade mais explícita (Idem: 311). Entretanto, o fim do modernismo anuncia-se por um lado, com o contextualismo (anos 60 e 70) e a sua
ênfase no sentido do lugar, na preservação da memória e na revitalização como reabilitação, intervindo “em migalhas” e reanimando a vida dos bairros, sem violentar os moradores (Arantes, 2007: 44), e, por outro, com o pós-modernismo do urbanismo high tech, da arquitectura de ficção, do pastiche e do palimpsesto. O libertário cultural, como refere Otília Arantes, ansiava por se desembaraçar das amarras racionalistas e da “monotonia funcional do Modernismo”, começando por exercer uma crítica cerrada ao economicismo, resgatando a importância dos bens simbólicos na e da cidade para, num segundo momento, se erigir como membro da “classe criativa”, resvalando para uma certa indeterminação de posicionamento social e de intervenção política que Benjamin já assinalara na boémia parisiense da viragem do século XIX para o século XX. A cidade suave encontra, pois, alicerces, numa espécie de 3ª via em que políticos e académicos de esquerda reinventam o jogo político libertando-o da grelha classista e apostando, doravante, em dimensões transversais e pós-materialistas como a qualidade de vida, a estética e o ambiente, terrenos férteis para a fabricação e difusão simbólica e para a generalização da cultura como o ar que se respira nas cidades competitivas e modernas. A terceira geração urbanística corresponde, grosso modo, à era do planeamento estratégico e do renascimento urbano assente na regeneração cultural gerida pelos novos “empreendedores”. Estes renunciam à ambição de totalidade do urbanismo anterior e definem, por assim dizer, uma zona de visibilidade que demarca o que tem interesse (e merece investimento), do inexistente em termos de vantagens comparativas. Trata-se,
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na verdade, de uma abordagem de concentração selectiva de recursos que gerará, concomitantemente, níveis desiguais de produção do espaço no interior de cada cidade, doravante esquartejada. É o caso de Londres e das Docklands, de Paris e das «Grandes Obras» do consulado Mitérrand/Lang, de Barcelona e Berlim como montras experimentais da arquitectura contemporânea, do Fisherman’s Wharf de São Francisco, do Inner Harbor de Baltimore, do Quincy Market e da Waterfront de Boston, de Lisboa e da Expo98, das empresas de reabilitação urbana ligadas a eventos desportivos ou às Capitais Europeias da Cultura… Castells define, da seguinte forma, o planeamento estratégico: “A flexibilidade, globalização e complexidade da nova economia do mundo exigem o desenvolvimento do planeamento estratégico, apto a introduzir uma metodologia coerente e adaptativa face à multiplicidade de sentidos e sinais da nova estrutura de produção e administração” (Castells cit. in Vainer, 2007:76). Em suma, esta modalidade de intervenção urbanística visa reduzir a complexidade trazida pela globalização, orientando a competição entre territórios urbanos através da designação do que possui relevância estratégica. E quem define os subjacentes critérios de relevância? Os especialistas, como Castells ou Jorba, no sub-modelo catalão, em aliança com os detentores de capital, os políticos e os novos intermediários culturais – os mágicos contemporâneos, operadores da transmutação da cidade em mercadoria pela política cultural; os vendedores da cidade (urban imagineers), através da mercadotecnia urbana (Borja e Forn, 1996) em que os eventos culturais se assemelham, crescentemente, a «produtos» e «resultados» de vastas operações «criativas», através do pres-
suposto, raramente explicitado, de que vender a imagem de cidade equivale a vender a própria cidade. DO «PATRIOTISMO DE CIDADE» À CULTURA COMO CONSENSO Assim, nas novas valências da cultura, eis que emerge como uma espécie de guião ou fio condutor do planeamento estratégico, desdobrando-se, não apenas enquanto marcador do que tem ou não interesse do ponto de vista da imagem de cidade e da atracção de investimento, mas, igualmente, enquanto revelador da orientação dos fluxos e da estrutura reticular do território (impondo, por exemplo, novas hierarquias nos factores locativos e na relação entre usos do espaço e classes sociais). Mais ainda, a cultura tece as mediações e os nós que entrelaçam o campo artístico, o campo cultural, o campo político e o campo económico, produzindo intersecções e consensos. No modelo catalão de planeamento estratégico esta função surge com particular incidência. À cidademercadoria e à cidade-empresa junta-se a cidade como pátria, tapando as brechas abertas pelas resistências populares e novos movimentos sociais. Este «patriotismo cívico» ou «patriotismo de cidade», defendido por Borja, Castells e Forn, entre outros, visa alimentar a produção de identidades em torno de «obras e serviços visíveis, tanto os que têm um carácter monumental e simbólico, como os dirigidos a melhorar a qualidade dos espaços públicos e o bem-estar da população” (Castells e Borja cit. in Vainer, 2007: 94). Ou, como Forn e Foxà referem, de modo bem explícito, trata-se de produzir um cimento simbólico-ideológico assente na “consciência ou patriotismo de cidade – eis o elemento-chave
A ENORME SEDE DE PROTAGONISMO URBANO NA COMPETIÇÃO ENTRE CIDADES LEVOU A UMA CARTILHA DE INTERVENÇÕES, LEGITIMADA POR UMA “RETÓRICA DO CRIATIVO” OU DA PANCRIATIVIDADE. A ANIMAÇÃO, A PATRIMONIALIZAÇÃO, A ESPECTACULARIZAÇÃO, A LUDIFICAÇÃO, A ESTETICIZAÇÃO OU A GENTRIFICAÇÃO GERARAM-SE ATRAVÉS DE SIMULACROS DE SIMULACROS,
para o estabelecimento, em bases permanentes, da cooperação público-privada e para a posterior difusão do pensamento estratégico entre os agentes económicos e sociais da cidade” (Borja e Foxà, cit. in Vainer, 2007: 95). A produção de processos e dispositivos de identificação e projecção identitária é, não raras vezes, feita em nome do cosmopolitismo, embora siga, na verdade, os velhos preceitos do nacionalismo mais blindado. Mesmo uma difundida e vaga apologia dos espaços públicos, geralmente povoados por grandes emblemas arquitectónicos, monumentais e artísticos, assenta na recuperação da velha concepção de cidade como centro e representação do poder. Em relação àquilo que é considerado cidade, tudo o resto se define como «periferia», «subúrbio», territórios residuais e desinteressantes. Ora, o espaço público é originalmente pensado como arena agonística, terreno de confronto e interpelação, locus de formação dialógica da opinião pública. O patriotismo de cidade usa, pois, a cultura como máquina efabulatória de um encontro imaginário de todos perante algo que os transcende e hipnotiza, anulando a política da diferença: grandes eventos, «bairros culturais», «cidades da arte», megaequipamentos, complexos museológicos, etc.
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EFEITOS NÃO PRETENDIDOS DO PLANEAMENTO ESTRATÉGICO Muitos dos balanços entretanto elaborados a propósito do impacto do planeamento estratégico na revitalização de cidades e regiões sugere um possível esgotamento do modelo, apesar de inegáveis efeitos directos (no emprego e nas receitas), indirectos (turismo, transportes, restauração, edição, informação, etc.) e ainda induzidos (competências, redes, imagem - Costa, 2007). Na verdade, a armadilha existia, desde o início, como paradoxo: se tudo é passível de encantamento nada se diferencia; se tudo é cultura, nada é cultura; se tudo é Cézanne, nada é Cézanne. A enorme sede de protagonismo urbano na competição entre cidades levou, de facto, a uma cartilha de intervenções, legitimada por uma “retórica do criativo” ou da pancriatividade. A animação, a patrimonialização, a espectacularização, a ludificação, a esteticização ou a gentrificação geraram-se através de simulacros de simulacros, originando, no final, uma constrangedora homogeneidade e um quase receituário com fraco enraizamento e especificidade territorial, revelando uma propensão para a queda no mainstream e no franchising cultural (tipo Guggenheim). O investimento
no simbólico, por outro lado, descurou as dimensões materiais. Ao invés da coesão e integração sociais, a descontinuidade sócio-espacial aumentou nas grandes urbes, provocando ambientes de desconfiança, hostilidade e mesmo agressividade entre distintos grupos e classes sociais. Cresce, aliás, a tendência para a construção do que Caldeira (2003) apelida de espaços públicos não modernos e não democráticos: enclaves, casas, ruas e praças muradas, condomínios fechados, etc. No dizer de Carlos Vainer, as esferas políticas locais atrofiaram-se e a city procurou substituir a polis. A World-class-city, acrescentaria, substituiu a diversidade e a interculturalidade (que nada devem à lógica descendente e paternalista da «tolerância» snob das “classes criativas”). Por outro lado, ao fazer-se uma economia da diversidade de situações de partida e da diversidade de metodologias institucionais e organizacionais (Costa, 2007), o pensamento criativo revela-se enquanto pensamento pobre, guiado, na verdade, por um pensamento único sobre a viabilidade das cidades. Mesmo ao nível do sector cultural, avanços significativos na esfera da oferta (equipamentos e infraestruturas, competências dos recursos humanos, alguns desenhos organizacionais e institucionais inovadores, certas dinâmicas sustentadas e sistemáticas de políticas públicas) não encontram eco do lado da procura, mantendo-se, no essencial, a mesma composição dos públicos assíduos e fidelizados. AINDA A ANIMAÇÃO CULTURAL Apesar de, no essencial, me identificar com as análises de Harvey, Arantes, Vainer e Caldeira, creio que importa superar algum reducionismo de cariz ideológi-
co, patente, em particular, em Arantes. A crítica radical que desenvolve contra a animação cultural deveria, na verdade, dirigir-se às suas modalidades colonizadas e domesticadas. Jaume Trilla (2004), por exemplo, realça a intensa conflitualidade teórica que anima a animação…Paradigmas tecnocratas conflituam com paradigmas interpretativos e fenomenológicos e com modelos sócio-críticos. Estes últimos, assentes em pedagogias dialógicas, reflexivas e críticas recusam a instrumentalização da cultura para usos de legitimação dos poderes instituídos (usos que Arantes denuncia, ao considerar que a cultura acaba por ser um mecanismo de encenação da própria ideologia que anima os políticos que a produzem). Por outro lado, existe um vasto manancial, já avaliado e validado, de experiências emancipadoras levadas a cabo dentro do paradigma da democracia cultural (ou de que apelidei de políticas culturais de terceira geração – Lopes, 2003 e 2007), entendida como: i) Em primeiro lugar, uma clara negação de qualquer conceito de cultura como “ornamento de espírito, sinal de distinção social, modo de supremacia dos iniciados sobre os demais, dotado de linguagens reservadas e de ritos particulares que excluem aqueles que os ignoram” (Crevoisier, 1979: 12); negação peremptória, enfim, dos usos hierarquizados e hierarquizantes, classificatórios e estigmatizantes da cultura como violência simbólica ou forma de infligir sofrimento, infelicidade e humilhação a outros sujeitos sociais; ii) Em segundo lugar, uma opção: a democracia cultural entronca num direito à cultura, simultaneamente individual e colectivo, devedor de uma concepção de serviço público centrado na própria ideia de liberdade: só há democracia cultural na dignificação social, política e
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ontológica de todas as linguagens e formas de expressão cultural e na abertura de repertórios e de campos de possíveis, condição sine qua non para a expressão e escolha livres. Tal não significa abdicar de critérios de qualidade, mas sim ter como subjacente o questionamento do carácter universal desses critérios, bem como a explicitação da sua construção intersubjectiva, provisória e, necessariamente, conflitual. iii) Em terceiro lugar, a democracia cultural aponta para uma incidência transversal: na criação de bens e obras culturais, na sua distribuição e recepção. Uma concepção de democracia cultural assente apenas na familiarização, pela via da recepção, a todos os códigos e modos de expressão (numa acepção ideal-típica), seria uma versão diminuída e ineficaz. José Madureira Pinto (1994), num artigo tornado clássico, afirma claramente intenções de democratização do campo da produção cultural: “propiciar a segmentos populacionais vastos, sobretudo das camadas populares, o contacto com as formas culturais mais exigentes em termos dos instrumentos estético-cognitivos necessários à sua descodificação e fruição (alargamento de públicos), procurando, de forma tão sistemática quanto possível, que a recepção da obra se prolongue em aproximação empática ao acto criador (participação) e que esta última promova a prazo uma intervenção autónoma e auto-enriquecedora ao nível da criação (democratização da esfera da produção cultural) iv) Em quarto lugar, importa colocar a formação de públicos no centro da democracia cultural. Este conceito implica a destruição sistemática do conceito mítico de público, no singular, espécie de comunidade imaginada ao serviço de uma colectividade de práticas rituais, no-
ESTA PROPOSTA DE DEMOCRACIA CULTURAL É INCOMPATÍVEL COM A NOÇÃO DE UTENTE, CONSUMIDOR OU VISITANTE. IMPÕE-SE, POR ISSO, UMA SOCIOLOGIA DOS USOS E DOS MODOS DE RELAÇÃO COM A CULTURA, PARA DESOCULTAR A DIVERSIDADE NA MIRÍFICA FICÇÃO DE IGUALDADE PATENTE NA CONCEPÇÃO SINGULARIZADA E HOMOGÉNEA DE PÚBLICO – UMA ESPÉCIE DE SUSPENSÃO MÁGICA DAS DESIGUALDADES SOCIAIS. VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009
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meadamente alicerçada na integração e coesão sociais sob o manto diáfano da ideologia dominante. De igual modo, esta proposta de democracia cultural é incompatível com a noção de utente, consumidor ou visitante. Impõe-se, por isso, uma sociologia dos usos e dos modos de relação com a cultura, para desocultar a diversidade na mirífica ficção de igualdade patente na concepção singularizada e homogénea de público – uma espécie de suspensão mágica das desigualdades sociais. v) Em quinto lugar, a defesa da socialização institucional na formação de públicos obriga à invenção de uma nova profissionalidade, em particular no que se refere às funções de interpretação (nomenclatura anglo-saxónica) ou de mediação (classificação francófona). Esta nova profissionalidade, enquanto processo dinâmico de comunicação entre as instituições e os seus públicos, longe de ser meramente um sector pericial, especializado e acantonado nos organigramas das instituições deve fazer valer a sua transversalidade, disseminando-se pelas competências das várias categorias de intermediários culturais (conservadores, gestores, administradores, curadores, comissários, programadores, animadores, mediadores...). Trata-se, afinal, não só de facilitar a familiarização com a obra de arte através de uma nova cultura organizacional, mas de plasmar o respeito pelas apropriações e usos dos espaços e equipamentos culturais, nomeadamente através das múltiplas interpretações e pontos de vista que a relação com as obras suscita e que na base do ofício de público.
Desta forma, é possível, assim o creio, superar o patamar de uma crítica certeira e oportuna, mas com laivos de reducionismo e fatalismo, em direcção a uma institucionalização da cultura e dos modos de relação com a cultura relativamente autónoma face a usos instrumentais, subalternos e extrínsecos, recuperando quer o perfil intelectual, reflexivo e crítico dos novos intermediários culturais, quer uma certa dádiva e gratuitidade na instauração de espaços públicos urbanos modernos e democráticos.
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CONTRATEMPO
REGRESSO AO REAL IMAGINADO JORGE CAMPOS
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REGRESSO AO REAL IMAGINADO
JORGE CAMPOS | DOCUMENTARISTA, PROFESSOR DA ESMAE
A PESQUISA INSTITUCIONAL SOBRE O DOCUmentário tem vindo a alargar o escopo dos seus interesses, ou retomando caminhos já prosseguidos, mas depois abandonados, ou encetando outros não confinados apenas ao universo do cinema. Este interesse renovado e transversal produz efeitos a vários níveis, seja aprofundando ou encarando sob novas perspectivas os aspectos mais conhecidos e amplamente tratados pelas teorias do cinema, seja investigando modalidades narrativas emergentes do campo dos media, de modo a estabelecer uma rede de relações na qual é ainda possível identificar questões apenas sumariamente agendadas ou precariamente resolvidas. Para tanto, reclama-se a função moderadora da historicidade, a qual permite avançar gradualmente na identificação dos diferentes modos de documentários, no pressuposto de que a lógica das imagens e a ordem do cinema, mesmo se encaradas numa perspectiva integrada de sistemas de significação, jamais poderão estar ausentes. Questionando as corruptelas da televisão e construindo argumentos sobre o mundo histórico o documentário, cuja diversidade permite veicular livremente visões do mundo ancoradas em compromissos de ordem ética, informativa e estética, surge, nesse contexto, como garantia do real imaginado em função do qual ganha corpo a possibilidade de organizar a memória prospectivamente.
HISTORICIDADE Patrício Guzmán, autor de filmes como A Batalha do Chile (1973) e Salvador Allende (2004), disse um dia que o documentário é o álbum de família de um povo. Essa expressão, pela carga simbólica nela investida, justificaria só por si uma descriminação positiva: tomado à letra, o álbum de família promove a identidade de quem somos e, ao fazê-lo, estabelece pontes para uma visão actualizada da História. Numa época em que a lógica mediática reside no efémero, o documentário surge como um poderoso instrumento de preservação da memória ou, se preferirmos, como um lugar de reencontro dos homens com a sua condição e a sua circunstância. Todo o século XX pode, aliás, ser dado a conhecer através do documentário e todo o presente pode ser imaginado, reinterpretado ou simplesmente reconhecido através dele porque nele reside o potencial de utopia que, permitindo a revelação, gera conhecimento. Daí o interesse renovado em torno das suas múltiplas manifestações, sobretudo agora, quando devido a uma crise global cujo epicentro económico-financeiro está iniludivelmente ligado às indústrias da evasão, ganha força, no plano simbólico, a reclamação de um regresso ao real. O entendimento deste regresso ao real – num contexto em que o discurso televisivo ideologicamente dominante vacila e se mostra, de um modo geral, incapaz de dar resposta aos problemas do nosso tempo – exige a presença da historicidade articulada com a abordagem
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sumária de uma antinomia central da teoria do documentário que é aquela que releva do campo da arte, por um lado, e da esfera da reportagem, por outro. Seguindo este método, o qual não dispensa algumas derivas tidas por esclarecedoras, o documentário será sempre entendido enquanto argumento sobre o mundo histórico. E, como tal, parafraseando Chris Marker, ficará claro que, hoje mais do que nunca, para ser um lugar habitável, o mundo precisa de ser imaginado. Para se entender este postulado devemos salientar, em primeiro lugar, que o confronto com a historicidade, ou seja situar o documentário no seu tempo, permite elucidar o movimento pendular em torno da retórica e da poética uma vez que recolhendo subsídios de cada época nos é permitido desenhar um quadro dinâmico a partir do qual melhor possa entender-se a relação com a actualidade, território, aliás, comum à reportagem, o que está longe de ser uma questão menor. Com efeito, os paradigmas do mundo das notícias sempre contribuíram para redefinir o quadro de expectativas dos receptores na sua relação simbólica com o real. Invocando Jean Thévenot, André Bazin, por exemplo, ao referir-se à génese do documentário fala do “filme de grande reportagem” e acrescenta como elemento importante dos critérios de verosimilhança o facto de a partir do final da II Guerra Mundial, com a disseminação dos media, o público exigir acreditar no que vê, uma vez que “a sua confiança é controlada por outros meios de informação: a rádio, o livro e
a imprensa (Bazin: 1992)”. Esse processo, evidentemente, acentuou-se com a chegada da televisão. Em segundo lugar é necessário admitir que do ponto de vista teórico há sempre a possibilidade de abordar a antinomia arte/ reportagem em função de dois enfoques distintos. Falando de arte, falamos de Cinema. Falando de reportagem, falamos de Jornalismo. Porém, quando hoje se fala do documentário, a cada passo nos defrontamos com uma rede de relações que rompe com as tentativas de sistematização exclusivamente centradas num ou noutro enfoque. Vejamos a seguinte deriva. Se, por absurdo, o cinema tivesse acabado antes do advento do som, tudo seria mais simples uma vez que a arte do cinema tinha atingido a plenitude com a conquista de uma linguagem exclusivamente visual e, por extensão, com a afirmação de um pensamento puramente visual. Assim não sucedeu. A partir do advento do som, a palavra, no dizer de René Clair, ameaçou o cinema de se transformar num gramofone com imagens. Cedo algo de semelhante se verificou em newsreels como March of Time influenciando figuras tutelares do documentário como John Grierson que em diferentes ocasiões disse uma coisa e o seu contrário. Tanto falou no tratamento criativo da actualidade quanto afirmou que, desde o início, o movimento documentarista foi essencialmente anti-estético. Disse mais: a ideia de documentário, tal como ele tinha sido levado a pensá-la, não era o produto de nenhuma escola de cinema, mas do pensamento da Faculdade de Ciências Políticas da Universidade de Chicago nos anos 20 do século passado. Por aqui logo se entende o valor instrumental da historicidade, pelo que todo o documentarista deveria ter noção quer da História do documentário quer do debate teórico dela indissociável.
Como se sabe, o uso da palavra documentário para qualificar um determinado tipo de filme é atribuído a John Grierson que, em 1926, se referiu a Moana (1926) de Robert Flaherty como tendo valor documental. Havendo indícios de Edward S. Curtis ter aludido ao filme documentário muito antes, por volta de 1915, quando fez The Land of the War Canoes (1914), o qual, aliás, antecipa muitos dos procedimentos posteriores de Flaherty em Nanook of the North (1922), a verdade é que foi a famosa expressão tratamento criativo da actualidade utilizada por Grierson, em 1927, que daí em diante enquadrou os primeiros debates sobre o documentário. O cinema documental, contudo, é anterior a essa formulação e aparece amiúde associado a intuitos informativos e de propaganda como no caso de Dziga Vertov, o responsável pelos jornais cinematográficos soviéticos após a revolução bolchevique. As suas teses do Cine-Olho deram corpo a narrativas que associam o registo da actualidade a uma experimentação da qual alguns números de Kino-Pravda constituem exemplos. Mas, Kino-Pravda o que é? Cinema? Jornalismo? Na verdade, o Cine-Olho é tanto uma teoria como uma prática e assenta no pressuposto de que o cinema permite ver “outra coisa”, ou seja, é encarado como uma possibilidade de intervenção sobre o real de modo a interromper a naturalidade do fluxo das suas aparências e a revelar-lhe os movimentos de fundo. Kino-Pravda, sendo um jornal, obedecia a esses mesmos propósitos. O Homem da Câmara de Filmar (1929) é o pináculo dessa utopia radical. E o que é Nanook of the North? Enquanto filme histórico-naturalista oferece ao espectador a ilusão de estar perante os acontecimentos narrados, os quais passam a habitar o seu imaginário como prova de verdade. Cons-
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truído a partir de proposições lógicas, Nanook induz uma leitura única da história que conta, a qual resulta, naturalmente, de um ponto de vista correspondente à representação individual de um modo de ver. Flaherty, o mais improvável dos repórteres, visto que nele tudo é encenação, ainda assim faz “reportagem”, na medida em que reportar é dar conta de algo ou de alguém, neste caso da vida de Nanook, enquanto símbolo da vida dos esquimós, METAMORFOSES DO REAL – ARTE E REPORTAGEM Em qualquer dos casos coloca-se, naturalmente, o problema da narrativa. Toda a narrativa é construção, e toda a construção é encenação. O documentário, exigindo a organização dos seus signos, é uma construção. Tratar-se-á, ainda assim, de uma construção diferente daquela que serve a reportagem e, sobretudo a ficção, com a qual, aliás, o documentário divide áreas de luz e sombra. Por exemplo, o documentário também dispõe de cenários. Serão cenários naturais dispensando, portanto, a complexidade de elaboração associada ao cinema de estúdio, mas nem por isso deixam de ser cenários e de cumprir uma função enquanto tal. O documentário, em princípio, prescinde de actores profissionais recolhendo da autenticidade das suas personagens uma das suas razões de ser. Mas, tudo se complica quando nos interrogamos sobre o que é o actor e nos deparamos com comportamentos da vida real, os quais, devido à presença de uma câmara, adquirem evidências ou promovem ocultações que de outro modo não se manifestariam. Os exemplos poderiam prosseguir porventura indeterminadamente – um sinal da vitalidade do documentário de cinema.
TAMBÉM O DOCUMENTÁRIO INTERPRETA E COMENTA O REAL. QUANDO PAUL ROTHA AFIRMA QUE ELE DEVE REFLECTIR SOBRE OS PROBLEMAS DO PRESENTE, NO FUNDO, ESTÁ A DIZER ISSO MESMO. PODER-SE-IA, PORTANTO, SUSCITAR A QUESTÃO DE SABER ATÉ QUE PONTO É LEGÍTIMO AO DOCUMENTÁRIO RECORRER NO TODO OU EM PARTE À ORDEM REGULADORA PRESCRITA PELO JORNALISMO. VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009
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Seguindo esta linha de argumentação, num discurso habitualmente conotado com expressões como verdade, realidade e objectividade todos os paradoxos são possíveis. Da fase da pesquisa à ética da rodagem, da técnica da entrevista à estética da montagem, qualquer que seja o domínio sob observação, é sempre inevitável deparar com um conjunto complexo de operações a partir do qual se opera a metamorfose do real em realidade. Sucede algo de semelhante no campo do jornalismo. Se por real entendermos a vida em estado bruto, digamos assim, tal qual se passa à nossa volta, por realidade entenderemos um particular entendimento desse real em função dos códigos interpretativos pertencentes a uma determinada linguagem. É, pois, a linguagem que permite operar essa metamorfose. E é nesse sentido, também, que os acontecimentos deixam de pertencer ao domínio do real para entrarem no domínio da realidade, a partir do momento, portanto, em que se transformam em notícias. As notícias, pertencendo ao universo dos signos e dos valores simbólicos, contribuem para a formação da imagem que a sociedade tem de si mesma. Como tal, essa imagem é uma realidade construída e não, como pretendem os defensores da objectividade pura, nem um espelho do mundo, nem uma janela para o mundo. Diz Gomis que “nem o espelho nem a janela, enquanto metáforas, têm em linha de conta a mediação da linguagem que é fundamental para o entendimento dos meios de comunicação (Gomis: 1991)”. Explicar como funciona o jornalismo será, então, explicar como se forma o presente de uma sociedade. Esse presente interpretado em nome dos critérios jornalísticos é, todavia, difuso e comporta construções informativas a vários níveis. Num primeiro momento,
as notícias cumprem uma função de actualização de conhecimentos de modo a dotar os destinatários de informações úteis ao seu relacionamento imediato com o mundo. Esse conhecimento, porém, só ganha uma ressonância prospectiva a partir do momento em que se amplia e dá lugar à reflexão e à interpretação através do recurso a outros géneros jornalísticos. É o caso, por exemplo, do comentário, o qual, mais do que a notícia permite configurar a dinâmica da actualidade, projectando-a para além do presente imediato. Na verdade, o presente é o que se comenta e as notícias são tanto mais notícias quanto mais perduram, ou seja, quanto mais são comentadas. Também o documentário interpreta e comenta o real. Quando Paul Rotha afirma que ele deve reflectir sobre os problemas do presente, no fundo, está a dizer isso mesmo. Poder-se-ia, portanto, suscitar a questão de saber até que ponto é legítimo ao documentário recorrer no todo ou em parte à ordem reguladora prescrita pelo jornalismo. Grierson, ao fazer a distinção de duas categorias de filmes vinculados ao real, a superior e a inferior, de algum modo parece rejeitar essa possibilidade. Para ele o documentário é exclusivo da primeira categoria visto que os filmes incluídos na categoria inferior “não dramatizam, limitando-se à mera descrição ou exposição de factos”. Contudo, o mesmo Grierson que aqui se coloca do lado da poética não enjeitou ser consultor em Londres de March of Time e produziu, durante a guerra, no Canadá, World in Action, um jornal de actualidades cinematográficas. Aliás, parte da produção do movimento documentarista britânico foi essencialmente jornalística e tal aconteceu tanto por razões de ordem tecnológica quanto de ordem política e de propaganda.
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Será então indiferente que as coisas se passem de uma maneira ou de outra? Muito pelo contrário. Vivendo em permanente confronto com a historicidade o documentário pode ser encarado como uma série de transformações. À semelhança das notícias contribui para a formação da imagem que a sociedade tem de si mesma. Tal como o comentário e a crónica adquire um valor monumental para o futuro mas, na medida em que pode ser utilizado recorrentemente e autoriza leituras das quais não se ausenta, antes se afirma, o prazer do texto, eleva-se a um outro patamar requerente da imaginação criadora indissociável da capacidade de construir argumentos sobre o mundo histórico e, como tal, exigindo a singularidade do ponto de vista. São esses os documentários que permitem ler o mundo justamente porque nos dão a ver um real imaginado. Podemos concordar ou discordar. Mas sabemos ao que vamos porque no contrato celebrado entre autor e destinatário há uma cláusula de segurança segundo a qual a verdade transportada para o ecrã é a verdade do autor. A nossa será outra, ou não. Assim é o documentário de cinema: Être et Avoir de Philibert, Nuit et Brouillard de Resnais, Basic Training de Wiseman, Le Joli Mais de Marker, Vacances du Cinéaste de Van Der Keuken, Cabra Marcado para Morrer de Coutinho, Les Plages de Agnés de Varda, Phillips Radio de Joris Ivens, Porto da Minha Infância de Oliveira, Diary for Timothy de Jennings e tantos, tantos outros, todos eles portadores de um olhar fundador simultaneamente agente de mudança criativa e garante de uma memória sem a qual o homem prescinde do entendimento do presente e mergulha na deriva de um quotidiano sem futuro.
TELEVISÃO O corpo a corpo com o real inscreve-se, no entanto, num campo discursivo mais vasto sobre o qual é igualmente necessário reflectir posto que resulta de múltiplas declinações. Voltemos então à televisão e à controvérsia em seu redor. Há quem, como Mander, discuta a possibilidade de haver vida inteligente na televisão, como há quem, como Popper e Condry, a considere como uma ameaça para a democracia. Há inúmeros textos relevando os aspectos manipulatórios do discurso televisivo, estabelecendo-se, nomeadamente, uma antinomia entre a razão e a emoção, sendo esta última encarada como indutora de fenómenos de hipnose, entorpecimento e fascinação. Muitos desses textos partem até de premissas e querelas aparentemente desligadas da matéria que nos ocupa, mas acabam por condicionar a sua abordagem. Por exemplo, o contraditório eventualmente existente entre a Imprensa e a Televisão. A racionalidade estaria no lugar da palavra escrita e do pensamento lógico a ela associado; a emoção, a sensação e a irracionalidade no lugar das imagens electrónicas. Terrível anátema, prognóstico sombrio: a sociedade da imagem, alertaram os pessimistas, incorre no risco de promover um novo totalitarismo. McLuhan desvalorizou a questão sublinhando a incompatibilidade do pensamento linear da Galáxia de Gutenberg com a nova ordem sensorial da Galáxia de Marconi: é como olhar o mundo pelo retrovisor, disse ele. Em contrapartida, Umberto Eco, reflectindo sobre a cultura de massas, advertiu que o futuro da democracia passava pela capacidade de transformar a linguagem da imagem num estímulo à reflexão e não num convite à hipnose. Uma controvérsia de contornos semelhantes ocorre muitas vezes quando
UMA CONTROVÉRSIA DE CONTORNOS SEMELHANTES OCORRE MUITAS VEZES QUANDO SE OPÕE CINEMA E TELEVISÃO: A RAZÃO, A REVELAÇÃO, A ARTE, DO LADO DO CINEMA; A CONFUSÃO, A VULGARIDADE, O LIXO, DO LADO DA TELEVISÃO. QUEM NÃO SE LEMBRA DO CÉLEBRE AFORISMO DE GODARD: O CINEMA É A MEMÓRIA, A TELEVISÃO O ESQUECIMENTO.
se opõe cinema e televisão: a razão, a revelação, a arte, do lado do cinema; a confusão, a vulgaridade, o lixo, do lado da televisão. Quem não se lembra do célebre aforismo de Godard: o cinema é a memória, a televisão o esquecimento. Perguntar-se-á: mas que cinema e que televisão? Não iremos por aí, mas vamos por partes. A televisão teve um impacto indiscutível sobre o documentário a ponto de no Reino Unido estudos académicos terem identificado dezenas de tipos de “documentários de televisão”, cujo denominador comum seria a existência de um qualquer vínculo ao real. A favor desta proliferação surgiram argumentos relevando a bondade de soluções que teriam permitido encontrar um ponto de equilíbrio face à controvérsia da identificação das narrativas, de modo a promover, dentro de parâmetros aceitáveis, a convivência e transversalidade dos diferentes modos de significar. Contra esta leitura optimista e, porventura, não inteiramente desinteressada, poder-se-ia invocar o facto de muitas dessas abordagens pouco ou nada terem em comum com a tradição do filme documentário, nem sequer da tradição do melhor documentário jornalístico de televisão, resultando simplesmente de meras estratégias casuísticas dos operadores competindo por audiências.
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Em todo o caso, parece evidente que a televisão, pelo seu imediatismo e alegadamente devido à sua natureza, encontrou no jornalismo a expressão aparentemente mais ajustada ao seu modo peculiar de dar a ver o mundo. Por essa razão, as rotinas produtivas da informação televisiva, em particular da reportagem, afirmaram-se de um modo gradual como elementos legitimadores de um efeito de apropriação do filme documentário, impondo formatos, condicionando o tempo e o modo de dizer e remetendo para a palavra o lugar central de instância reguladora do sentido. Prevalecendo o enunciado do texto sobre a lógica das imagens, abriu-se espaço ao oposto do olhar documentário fundado sobre o primado do sistema de significação da imagem cinematográfica. Explicitar e compreender este tipo de contaminação exige uma nota adicional e um ou outro comentário. Por via de regra, a reportagem é previsível: texto off, entrevista, repórter em campo assinalando a sua “presença no local”. Em muitos casos, a mediação jornalística é minimal e insere-se numa perspectiva de go between, embora este jornalista mensageiro, tendo capacidade de representação, possa alcançar notoriedade e tornar-se uma espécie de oráculo seja do que for como, ironicamente,
DEPOIS DE FAZER REFERÊNCIA ÀS SOMAS ASTRONÓMICAS CONSEGUIDAS NA BILHETEIRA PELOS FILMES DE MICHAEL MOORE BOWLING FOR COLUMBINE E FAHRENHEIT 9/11 – ESTE ÚLTIMO FEZ 120 MILHÕES DE DÓLARES, SÓ NOS ESTADOS UNIDOS, DURANTE O PRIMEIRO MÊS DE EXIBIÇÃO –, MCENTEER LEMBRA QUE OITO DOS DEZ DOCUMENTÁRIOS MAIS RENTÁVEIS DE SEMPRE NOS ESTADOS UNIDOS FORAM REALIZADOS A PARTIR DO ANO 2002 VÍRUS NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009
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demonstrou Alain Woodrow. Concebida para ser exibida num contexto de ruído, tendo de conviver com informações variadas passando ininterruptamente em rodapé, ocupando um espaço saturado de signos, a reportagem tende a tratar os assuntos, por mais sérios que sejam, como fait divers. E fá-lo sem especial preocupação de ordem sígnica ou sintagmática. De acordo com Hartley a necessidade de alcançar o máximo de audiência num medium popular como a televisão obriga o jornalismo a servir dois donos: “info” and “tainment”. Naturalmente, mesmo na televisão comercial generalista, há gradações no modo como se encara este fenómeno. A fórmula existe mas não quer dizer que seja igualmente aplicada em todas as estações. Tão pouco se pode concluir que os formatos híbridos da televisão sejam necessariamente negativos do ponto de vista do alargamento da esfera pública. E quanto aos canais especializados de notícias, de que a CNN foi pioneira, há até um conjunto de prescrições que a globalização veio legitimar e que basicamente consiste em apresentar as notícias dramaticamente sem, todavia, as transformar em drama, expor os assuntos de forma acessível e compreensível, mas sem exceder a duração de 30 minutos e, tendo embora consciência de que todos os shows de notícias se assemelham, procurar introduzir marcas de diferenciação. Só que essas diferenças são ténues e dificilmente haverá abertura para sobressaltos criativos eventualmente perturbadores da percepção dos destinatários habituais. A fonte da confusão muito disseminada entre reportagem e documentário passa exactamente por aí, porque se criou um dispositivo estereotipado e rarefeito de representar o mundo através de uma linguagem relativamente
arbitrária, ancorada num hibridismo formal oportunista que reclama para si, como elemento de legitimação, a objectividade jornalística. Por isso, para os pragmáticos programadores de televisão os documentários com autoria são quase sempre considerados disfuncionais e, como tal, o melhor é produzir algo de vagamente semelhante sob a responsabilidade de produtores supostamente especialistas no conhecimento e gosto do público ou de jornalistas com notoriedade, também eles, supostamente especialistas em garantir audiências. Ou seja, os documentários devem encarados como programas. Provavelmente, caso essa tendência dos programadores fosse contrariada, abrir-se-ia o caminho a uma maior e mais interessante variedade de leituras sobre o mundo histórico o que, no caso da televisão de serviço público poderia corresponder a uma nova hipótese legitimadora: a diversificação, permitindo o acesso do público a representações do real à margem dos estereótipos informativos dominantes, seria um passo em frente no domínio do conhecimento dos mecanismos da construção da realidade com benefício para o exercício da cidadania. Tal, porém, com excepção de experiências interessantes na televisão segmentada, dificilmente acontecerá. A televisão não serve para oferecer programas ao público, mas para oferecer público aos anunciantes. Quem o disse foi Berlusconi. Por estas e outras razões os documentários de televisão – ao contrário do filme documentário sobre o qual há trabalho teórico relevante – continuam a ser objectos mal identificado, ambíguos e até, eventualmente, suspeitos. É difícil estabelecer-lhes os contornos e problemático atribuir-lhes um estatuto de credibilidade em nome da regularidade de uma produção que faz da audiência
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o seu referencial estruturador. No estádio actual do seu relacionamento com o real o actual modelo de televisão parece, pois, ter chegado a um ponto limite: o mundo é cada vez mais a televisão e a televisão a espuma dos dias. Dizia o jornalista e documentarista Danny Schechter sobre os serviços informativos das principais networks americanas: the more you see, the less you know. Outros, como Chomsky, simplesmente compararam os grandes conglomerados de media a gigantescas centrais de propaganda. E para James McEnteer o efeito Fox News sobre as grandes corporações produtoras de notícias de televisão na cobertura da guerra do Iraque acabou por desacreditar o sistema no seu conjunto e abrir as portas para uma entrada em cena com um vigor sem precedentes do documentário político. Depois de fazer referência às somas astronómicas conseguidas na bilheteira pelos filmes de Michael Moore Bowling for Columbine e Fahrenheit 9/11 – este último fez 120 milhões de dólares, só nos Estados Unidos, durante o primeiro mês de exibição –, McEnteer lembra que oito dos dez documentários mais rentáveis de sempre nos Estados Unidos foram realizados a partir do ano 2002, e avança a seguinte explicação: “Há na América uma grande necessidade de compreender o que, na realidade, está a acontecer. Estes filmes vêm dar resposta a essa necessidade. E essa necessidade é tanto mais sentida quanto maior se tornou a concentração da propriedade dos media noticiosos, com as consequências daí decorrentes em termos corporativos e de trivialização das notícias com o afunilamento do espectro informativo. Em vez de inovação e investigação, há repetição e imitação (McEnteer: 2006)”.
UM ARGUMENTO SOBRE O MUNDO HISTÓRICO. Na sua vertente mais elaborada, ou seja a da filiação cinematográfica, o documentário assenta no reconhecimento de um conjunto de valores de referência cujas premissas podem ser assim resumidas de acordo com o pensamento de Miriam Bratu Hansen: “O cinema foi o mais singular e expansivo horizonte discursivo no qual os efeitos da modernidade foram reflectidos, rejeitados ou negados, transformados ou negociados. Foi um dos mais claros sintomas da crise pela qual a modernidade se deu a ver, tansformando-se, ao mesmo tempo, num verdadeiro discurso social, através do qual uma grande variedade de grupos humanos se procurou ajustar ao impacto traumático da modernização (Grilo: 2006)”. Esta formulação remete para o álbum de família de Patrício Guzmán. Obviamente, ao filme documentário também não são estranhas as noções de verdade e objectividade, uma e outra fazendo parte do contrato que se estabelece não apenas com o espectador, mas também no complexo processo de negociação envolvendo o cineasta, as suas personagens e uma multiplicidade de instituições. Neste caso, porém, ao exprimir o seu ponto de vista o autor não prescinde de pôr em cena situações e personagens em função da subjectividade decorrente do seu modo peculiar de ler o mundo, naturalmente, escorado em compromissos que são, também, tanto de natureza ética quanto estética. O documentarista constrói a narrativa que entende dever construir e não narrativas pensadas exclusivamente para responder de forma mais ou menos casuística àquilo que se supõe ser o gosto da audiência. Ao proceder desse modo está, de
resto, a mostrar o respeito que ao público é devido. Ele diz: eu penso isto, mas deixa implicitamente uma outra pergunta: e vocês? Os mecanismos de significação e de construção da narrativa obedecem, naturalmente, a um movimento pendular que oscila em busca da forma mais justa, sendo por isso objecto de constantes mudanças de rumo ditadas quer pela contingência e pelos imprevistos da rodagem, quer no processo de montagem onde ocorre uma espécie de revisitação do olhar a partir da qual a estrutura ganha autonomia a ponto de em boa medida se determinar a si própria, impondo determinadas soluções. Como diria um grande pintor português, Nadir Afonso, num filme que fiz sobre ele, as formas tornam- se exigentes. Nesse sentido, a excelência do discurso será um critério superior de exigência. Os argumentos sobre o mundo histórico estão, portanto, sujeitos à intervenção permanente da imaginação criadora. Não são textos redigidos para depois serem meramente ilustrados como sucede na reportagem televisiva. Em suma, o enorme potencial do filme documentário (e também do filme de não-ficção, para utilizar uma expressão de Plantinga) como forma de negociar valores, veicular informação e dar-nos a conhecer o mundo histórico faz dele, assumidamente, “(...) um veículo de verdades e enganos, de registo e manipulação, de equilíbrios e ideias e pré-concebidas, de arte e técnica mecânica, de retórica e informação imediata. Os filmes de não-ficção são representações complexas com uma infinita diversidade e multiplicidade de usos. Tal é a sua complexidade retórica e pragmática que para nos aproximarmos deles não basta uma abordagem meramente teórica: a sua compreensão exige a atitude
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crítica e o recurso à história (Plantinga: 1997)”. Concluindo, aceitar a inevitabilidade das contradições é um primeiro passo para pensar o documentário em profundidade, o que implica não fechar a porta a lógicas de enunciação criativas sustentadas por gramáticas particulares e em especial pela ordem do cinema. Por isso, neste pujante regresso ao real no início do século XXI é de elementar prudência mais a abertura à diversidade do que a defesa de pontos de vista sistematicamente reiterados numa atitude de resistência. Será esta a posição mais exigente e, também, a mais difícil, porque se obriga a questionar, por um lado, aquilo que na tradição do cinema cristalizou em dogma – uma história que ficará para outra altura – e, por outro, a combater a contaminação sem regras nem princípios de dispositivos televisivos cujos resultados estão à vista e se rejeitam.
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Popper, Karl e Condry, John – Televisão: Uma ameaça para a democracia, Gradiva, Lisboa, 1995. Romaguera I Ramio, Joaquim e Thevenet, Homero Alsina – Textos y Manifestos del Cine, Ediciones Catedra, Signo e Imagen, Madrid, 1989 Rosteck, Thomas – See it Now Confronts McCarthysm (Television Documentary and the Politics of Representation), The University of Alabama Press, Tuscalosa and London, 1994 Saunders, Dave – Direct Cinema (Observational Documentary and the Politics of the Sixties), Wallflower Press, London , 2007 Woodrow, Alain – Informação, Manipulação, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1991
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RAPS Ó DIA
MÚSICA SANDY GAGEIRO ENTREVISTA YANN FALQUET , DOS GENTICORUM REVISTA
20 ANOS DEPOIS DO MURO, POR MIGUEL CARDINA
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CONTO «O DUPLO» POR PEDRO EIRAS
CANTA QUE EU RESPONDO
SANDY GAGEIRO ENTREVISTA YANN FALQUET DOS GENTICORUM
Os concertos do grupo Genticorum são mais como uma longa conversa com o público. Com a ajuda da música que transportam conhecemos melhor a região do Quebeque e as pessoas que a construíram. Yann Falquet é o guitarrista do grupo e dispôs-se a explicar-nos o que são as chanson à répondre.
Recebem algum tipo de apoio institucional para a vossa música? Temos um apoio estatal do Quebeque e do Canada dirigido à música tradicional... temos muita sorte. Ajuda-nos especialmente quando temos que tocar muito longe de casa.
Decidiram enveredar por este género porque gostavam ou porque vos corre na família? Interpretamos a canção franco-canadiana tradicional. A maior parte do repertório é constituído por chanson à répondre “canções de resposta”, o vocalista canta e o resto da banda repete ou quem estiver na cozinha no momento! É uma música muito participativa. Há também um vasto repertório de lamentos que normalmente é cantado a solo. Todas estas canções vêm dos franceses que se fixaram no Quebeque há 400 anos…a coisa mais fácil de transportares contigo de sítio para sítio – realmente - é um conjunto de canções que duram a viagem e muito para além disso! Quanto a mim, comecei tarde neste universo. Eu era apenas músico, mas o Pascal e o Alex começaram ainda crianças. Eu descobri na adolescência e adorei. Apercebi-me que para ser um músico mais completo tinha que cantar também…especialmente na música tradicional. Com a música tradicional do Quebeque não tens que ser cantor para interpretar, podes sempre responder, treinar as letras, mesmo que sejas envergonhado não faz mal. Um dia se fores muito corajoso podes encontrar uma canção para interpretar e os outros responder.
É uma canção que luta para sobreviver? Neste momento não, está numa boa situação. Houve um revivalismo da música tradicional do Quebeque nos anos setenta, com bandas como La Bottine Souriante– identificados com o movimento independentista quebequoise – que trouxe um renovado interesse pela identidade daquela região e isso popularizou muito os novos grupos. O interesse decresceu nos anos oitenta com os sintetizadores modernos - que agora nos parecem velhos - …e houve o referendo pela independência que não passou e isso desmoralizou. A segunda vaga de interesse já surge nos anos noventa mas sem referência política, apenas pela música e está mais sedimentada agora do que nunca. O Quebeque tornou-se também entretanto um pólo de interesse da música pop… - Sim, com os Arcade Fire… - É difícil concorrer com a pop… - Ás vezes pergunto-me se é importante dar o salto para esse tipo de popularidade. A música que fazemos não é para agradar a todos, não segue nenhuma moda é como é…está lá há tantos anos. E esperamos que as pessoas gostem porque há muito de sólido e de genuíno nesta música que a faz sobreviver tanto tempo.
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GENTICORUM DISCOGRAFIA:
La Bibournoise 2008 Malins Plaisirs 2005 Le Galarneau 2002
O DUPLO
PEDRO EIRAS
(a partir da história do navio Argos, recordada por Roland Barthes)
Um dia, apareceu uma pequena mancha no rosto do conde. – Tendes aí uma pequena mancha – disseram o duque, o barão e o marquês – mancha, aliás, deveras mui graciosa. Graciosa ou não, o barão decidiu ir ao médico, não fosse o diabo tecê-las. – É uma pequena mancha sem importância, senhor conde, mas eu aconselhava a operaçãozinha cirúrgica. Mais vale prevenir. – Com certeza, senhor doutor. – Aliás, já que fazemos esta pequena intervenção, podíamos aproveitar para outros pequenos acertos. – Quais acertos, senhor doutor? – Coisa pouca, senhor conde. Acertávamos um pouco o nariz, por exemplo. Uma coisa de nada. Só um poucochinho assim... E o médico apertava o nariz do conde. – Aliás – continuou – também víamos esta imperfeiçãozinha nas sobrancelhas. E aqui nos cantos da boca. Estas rugas. – Acho boa ideia, senhor doutor. Tudo duma só vez, não é? – Tudo duma só vez. Até lhe tratava do couro cabeludo, está a ver estas entradas? E os dentes, como estão os seus dentes? – Não andam famosos...
– Temos de ver isso. E dávamos um jeito aos músculos. Os chumaços naturais do corpo, hum? – Pode ser... – Diga-me, o senhor conde não teve umas crises de fígado, aqui há uns tempos? – Nem me lembre, senhor doutor! – Podíamos pensar num transplante. Um fígado novinho, que acha? E também víamos os rins e os pulmões. Com uma transfusãozinha, só para renovar o sangue, também é preciso. Acha bem? – Para dizer a verdade, o que me custa mais é as dores nas costas. – Pode-se ver uma prótese. Um transplantezinho de coluna vertebral, se calhar. Como vai o coração do senhor conde? – Assim, assim, senhor doutor. – Então arranja-se também um coração. Ouça, o mais simples é fazer uma coisa holística, global. Os órgãos todos, o pack completo, sim? Vísceras novas, sangue novo, pele nova, tudo. Corpo novo. É mais simples e fica mais barato. – Senhor doutor, e o cérebro? – Que tem o cérebro? – Também vou receber um transplante do cérebro? – E que mal tem receber um cérebro novo? Sabe que há uma certa mania de sobrevalorizar o cérebro. São coisas da moda.
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– Estou nas suas mãos, senhor doutor. Tenho plena confiança. – Assine aqui, senhor conde. É só uma formalidade. – Com certeza. Mas tenho uma pergunta. – Sim? – Os meus órgãos, senhor doutor, o que vai fazer com os meus órgãos? – É simples, senhor conde. Com os seus órgãos, construo uma pessoa igual ao senhor conde. Não é o senhor conde, claro. Afinal, não passará de um conjunto de órgãos ligados uns aos outros, com um coração da irrigar os tecidos, e um cérebro a dominar a marcha e a fala... o costume. Será exactamente igual ao senhor conde, a pensar os pensamentos do senhor conde – mas não será o senhor conde. Valeu? A operação foi um sucesso, e o conde sentiu-se maravilhoso no seu novo corpo: atlético, flexível, viril. Simplesmente, deste então, o conde atravessa as multidões, atento, inquieto, à espera de reconhecer alguém. Alguém que não é ele, claro, mas apenas um amontoado dos seus órgãos, animado pelo seu antigo coração, pensando os seus velhos pensamentos. Quando encontrar essa pessoa, há-de reconhecê-la por uma pequena mancha no rosto. O conde atravessa as multidões, desesperado, à procura de um rosto.
VINTE ANOS DEPOIS DO MURO
PUBLICADO NO BLOGUE CAMINHOS DA MEMÓRIA
MIGUEL CARDINA
EM NOVEMBRO DE 1989, APÓS UM ÊXODO INtenso de alemães de leste para oeste e um conjunto crescente de manifestações populares, começou a ser derrubado o muro que dividia a Alemanha em duas. A queda do muro simbolizou a derrota histórica do socialismo soviético, mas a transição não foi simples e indolor. Basta ver Goodbye Lenin, de Wolfgang Becker, para se perceber como a voragem da mudança levou a modos impressionantes de recusa e desnorte, que o filme ilustra magnificamente no episódio do telejornal forjado. Pese embora todo o esforço da reunificação, a antiga cortina mantém-se ainda hoje esvoaçante, ora na taxa de desemprego duas vezes maior no leste, ora nas diferenças culturais que persistem mesmo entre os mais jovens, ora em pormenores deliciosos como os distintos semáforos em Berlim – uns bonecos com chapéu ou sem chapéu –, que evocam nessa diferença a perturbante memória recente da cidade. O número deste mês da revista L’Histoire traz-nos um dossier que ajuda a compreender e a situar essa cicatriz de betão de 155 quilómetros de comprimento e 28 anos, 2 meses e 27 dias de vida. Edgar Wolfrum alinha «sete questões sobre um muro», explicando o contexto em que foi erguido e as razões da sua queda. Étienne François, por sua vez, esclarece numa entrevista algumas das especificidades da ex-RDA. Ao mesmo tempo que considera que a organização política dessa «ditadura pedagógica» – como lhe chama mais à frente Emmanuel Droit – permanece ainda hoje visível, François nota que «é porque a RDA está efectivamente morta que pode existir o luxo da nostalgia».
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Para além da reflexão colectiva de alguns historiadores sobre a Europa e a Alemanha pós-muro, destaque-se ainda um texto de Guillaume Mouralis sobre a vaga de processos e condenações de responsáveis da RDA na década de noventa, bem como o interessante artigo de Droit dedicado ao «comunismo no quotidiano». Na verdade, um óptimo aperitivo a anteceder a leitura de O Mundo Perdido do Comunismo. Uma História Oral da Vida Quotidiana do Outro Lado da Cortina de Ferro, de Peter Molloy, acabado de lançar pela Bertrand, e que procura narrar os diferentes quotidianos na Alemanha Oriental, Checoslováquia e Roménia. O livro é uma espécie de guião elaborado por Molloy para uma série homónima da BBC e, logo nas primeiras páginas, o autor esclarece a intenção de mostrar – mais do que a repressão, a vigilância policial ou o activismo dos dissidentes – o modo como as pessoas viveram vidas «perfeitamente normais», cuja recordação nos aparece hoje frequentemente tingida pela nostalgia. Isto é claro nas palavras da actriz Corinna Harfouch: «não reconheço o meu país nas descrições que dele faz a imprensa e os meios de comunicação social. Não tivemos só Outono e Inverno. Também tivemos Primavera e Verão. A vida não girava apenas em torno da Stasi.» Um outro entrevistado, o médico Kurt Starke, observa que os jovens e as jovens de leste tinham uma vida sexual mais satisfatória do que os seus e as suas congéneres do outro lado do muro. Os estudos que efectuou comprovam mais altas taxas de orgasmo na RDA e mostram que dois terços das mulheres jovens do país o atingiam «quase sempre» durante uma relação sexual. Um certo
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REVISTA L’HISTOIRE ED. 346, OUT. 2009
liberalismo no que concerne ao corpo – patente na prática elevada do nudismo e num ambiente familiar mais aberto – tomou forma a partir de finais dos anos sessenta, e terá sido marcante, na opinião de Starke, para o que ocorreu em 1989-1990. Mas o socialismo de Estado imposto na RDA foi também um foco de ruína moral. Se na União Soviética se estima que tenha existido um agente do KGB por cada seis mil pessoas, na Alemanha de Leste, incluindo todos os informadores a tempo parcial, existiu aproximadamente um informador por cada seis pessoas. Talvez
nunca nenhuma sociedade se tenha vigiado tanto a si própria. Como conclui Molloy, «o facto de muitos colaborarem com a Stasi, fosse qual fosse o nível de coacção, é um dos motivos por que fazer as pazes com o passado tem sido tão difícil para muitos cidadãos da RDA.» O autor entrevista mesmo uma dissidente que soubera depois da queda do muro que fora espiada pelo marido desde adolescente e elementos de uma banda punk cujo baixista servia de informador da Stasi. Por outro lado, e uma vez que se entendia que a classe operária havia tomado o poder no país, qualquer demonstração de revolta era vista como uma forma mais ou menos directa de auxiliar o inimigo capitalista. Quando, a 17 de Junho de 1953, cerca de meio milhão de trabalhadores entraram em greve exigindo melhores salários, a demissão do governo e eleições livres, tanques russos invadiram Berlim Oriental e dispararam a matar sobre os manifestantes. Também a fuga foi uma forma de contestação do regime: até à construção do muro, três milhões de pessoas haviam desertado do lado oriental e muitos outros conseguiram fazê-lo já depois de 1961. Cerca de duas centenas de pessoas foram mortas a tentar transpor a barreira de betão, perante guardas que tinham ordens para disparar. Foi precisamente a possibilidade e o desejo de viajar – a par da fúria contra as eleições fraudulentas e a fraca prestação económica – que levaram à queda do regime. Às sete da tarde de dia 9 de Novembro de 1989, Günter Schabowski anunciou em conferência de imprensa a entrada em vigor de um decreto que possibilitava viajar para o Ocidente. Questionado sobre quando entraria em
vigor, Schabowski respondeu «imediatamente», sem se aperceber das consequências da palavra. Duas horas depois, os postos fronteiriços estavam inundados de gente disposta a abandonar o país. Seis horas mais tarde, o muro começava a cair..
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REVISTA VÍRUS #7
IMAGENS CAPA COMPARE AND CONTRAST
NOVEMBRO/DEZEMBRO 2009
AN UNTRAINED EYE
DIRECÇÃO
IMAGENS CIDADES INVISÍVEIS OS BATOTEIROS
JOÃO TEIXEIRA LOPES
TIAGO MATOS SILVA
MOITA (BAIRRO SOCIAL DA QUINTA DA FONTE DA PRATA) TEATRO FÓRUM - MINI FESTIVAL AVENIDA DOS ALIADOS
XPGOMES
XANOVSKY
LUÍS BRANCO
LILIVANILI
CONSELHO EDITORIAL
FOTOS DO AUTOR
ANSCHOOL II
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IDENTITY CHRIS
SPITTING FOUNTAIN
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ALBANY T _ IM
WE’RE ALL INDIVIDUALS
JORGE COSTA
MUGLEY
JOSÉ SOEIRO
MANUEL DENIZ SILVA
IMAGENS CONTRATEMPOS QUARZ-ZOOM DS8-3
MARIANA AVELÃS
JOHN SOQQUADRO
CAMERAMAN, SEUL 2009
NUNO TELES
HOJUSARAM
THIS RALLY PAID FOR BY....
EDIÇÃO GRÁFICA
PEDRO SALES
TREVIÑO
RITA SILVA
RUI BORGES
IMAGENS RAPSÓDIA MY BEDROOM CURTAIN BEHIND THE BLINDS
COLABORARAM NESTA EDIÇÃO
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CARLA LUÍS
FERNANDO CRUZ
JORGE CAMPOS
MIGUEL CARDINA PEDRO EIRAS
RITA ÁVILA CACHADO
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