Revista Vírus #9

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VÍRUS #9 — MAIO/JUNHO 2010

FRAGMENTOS PARA A TRANSIÇÃO PERRY ANDERSON

UMA ESQUERDA INVERTEBRADA – A HERANÇA DESPERDIÇADA DA ITÁLIA

JORGE CAMPOS

“I LIKE GODS, I UNDERSTAND THEM”

MANUEL GARÍ

NANO‑AMIZADES PERIGOSAS

DAVID HARVEY

ORGANIZANDO PARA A TRANSIÇÃO ANTICAPITALISTA + CONTO E LEITURAS


É AINDA CEDO, EMBORA JÁ SEJA TARDE EDITORIAL | JOÃO TEIXEIRA LOPES

AO TENTAR ENCONTRAR UM LEMA PARA este número da Vírus, apercebi-me do seu carácter algo fragmentário. Que relação podem ter um ensaio sobre o fracasso do partido comunista italiano (do conhecido historiador/sociólogo Perry Anderson); um texto sobre princípios de política cultural emancipatória (do jornalista/documentarista Jorge Campos); um outro que reflecte a partir do desinvestimento público, a desregulação e o risco na investigação de vanguarda em nanotecnologia (Manuel Garí) e mais uma tentativa do geógrafo materialista David Harvey para pensar a alternativa ao capitalismo decadente? Em seguida lembrei-me da habilidade de Simmel, sociólogo da vida quotidiana e da filigrana das relações sociais que, através de curtos artigos, produziu instan-

tâneos poderosos sobre a mercantilização da vida nas grandes cidades. Apercebi-me, então, da utilidade deste aparente pen‑ samento em ruínas. O fragmento contém em si mesmo um apelo à compreensão sistémica, sem deixar de perder a sua configuração específica. O fragmento é a base da diferença e a diferença relaciona. Na verdade, este número da Vírus apresenta-se como um convite à compreensão sistémica através de portas de entrada diversas em forma de textos. De alguma maneira, perpassa intensa, embora fluida, a ideia (e a sua intrínseca materialidade) de que é necessário, como diz Harvey, perante o que pressente ser uma das graves crises estruturais do capitalismo, «organizar a transição». Para tal, urge reconhecer esferas e contextos diferentes: a) formas de produção tecnológicas

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e organizacio­nais, intercâmbio e consumo; b) relações com a natu­reza; c) relações sociais entre as pessoas; d) concepções mentais do mundo, abrangendo conhecimentos e enten­dimentos culturais e crenças; e) processos de trabalho e produção de bens específicos, geografias, serviços ou sentimentos; f) arranjos institucionais, legais e governa­mentais g) a condução da vida diária que está subjacente a reprodução social. Harvey entusiasma-se porventura demasiado e encontra no movimento estudantil planetário um novo sujeito social. É ainda cedo, embora já seja tarde. Mas é por aqui, assim o defendo, na articulação da babel (e introduzo já o magnífico «conto com moral» de Pedro Eiras) das múltiplas esferas de actividade ou mundos da vida (trabalho, estado, sociedade civil, subjectividades, lazer, ética, estética, pesquisa…) que se refundará


uma praxis revolucionária de pluralidades irmanadas – traduções e trânsitos tensos, contraditórios, complexos – mas eficazes. É da raiz das ideias – da sua radicalidade – produzirem efeitos propriamente práticos sobre o mundo. Como diz Agustina Bessa-Luís, citada por Jorge Campos: “Pensar é o acto mais violento que há.”. Precisamos dessa violência como o presente precisa do futuro.

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UMA ESQUERDA INVERTEBRADA

A HERANÇA DESPERDIÇADA DA ITÁLIA VÍRUS MAIO/JUNHO 2010

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PERRY ANDERSON


UMA ESQUERDA INVERTEBRADA – A HERANÇA DESPERDIÇADA DA ITÁLIA PERRY ANDERSON | HISTORIADOR MARXISTA, EDITOR DA REVISTA NEW LEFT REVIEW

A ESQUERDA ITALIANA FOI EM TEMPOS O maior e mais impressionante movimento popular para a mudança social na Europa Ocidental. Compreendendo dois partidos de massas, cada um com a sua própria história e cultura e cada um comprometido não em melhorar mas em superar o capitalismo, a aliança do pós‑guerra entre Socialistas e Comunistas, PSI e PCI, não sobreviveu ao crescimento explosivo dos anos 50. Em 1963, Pietro Nenni levou os Socialistas para o governo pela primeira vez como associados juniores dos Democratas‑Cristãos, por um caminho que levaria por fim a Bettino Craxi, deixando o Comunismo italiano no comando indisputado da oposição ao regime Democrata‑Cristão. Desde o início o PCI tinha sido organizativa e ideologicamente o mais forte dos dois, com uma mais ampla base de massas – mais de dois milhões de membros em meados dos anos 50 – indo de camponeses no Sul, a artesãos e professores no meio do país, a trabalhadores industriais no Norte. Tinha também uma herança intelectual mais rica, nos Cadernos da Prisão de Gramsci recentemente publicados, cujo significado foi imediatamente reconhecido bem para além do partido. No seu auge, o PCI pôde atrair uma extraordinária variedade de energias sociais e morais, combinando raízes populares mais profundas e uma influência intelectual mais ampla do que qualquer outra força no país.

Confinado pela Guerra Fria a quarenta anos de oposição nacional, o partido entrincheirou‑se em administrações regionais locais e mais tarde em regionais e nas comissões parlamentares pelas quais a legislação italiana tem de passar, entrelaçando‑se com a ordem dominante em muitos níveis secundários. Mas a sua estratégia subjacente permaneceu mais ou menos estável até ao fim. Depois de 1948 os despojos da Libertação foram divididos. O poder caiu para a DC; a cultura para o PCI. A Democracia‑Cristã controlou as alavancas do estado, o Comunismo atraiu os talentos da sociedade civil. A capacidade do PCI de polarizar a vida intelectual italiana em sua volta, não só num amplo arco de eruditos, escritores, pensadores e artistas mas num clima geral da opinião progressista, não teve paralelo em mais nenhum lugar da Europa. Graças em parte à sociologia da sua liderança, que diferentemente da dos Partidos Comunistas franceses, alemães, britânicos ou espanhóis, era na sua maioria altamente instruída, e em parte a um manejo relativamente tolerante e flexível da ‘luta de ideias’, o seu domínio nesta esfera foi o activo realmente distintivo do Comunismo italiano. Mas com um preço duplo em relação ao qual o partido permaneceu persistentemente cego. Já que a extensão da influência do PCI através do mundo do pensamento e da arte era também uma função

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do grau com o qual ele assimilou e reproduziu a tensão dominante numa cultura italiana pré‑existente desde há muito. Este era o idealismo que encontrara a sua mais poderosa expressão, mas de forma nenhuma a expressão moderna única, na filosofia de Benedetto Croce, figura que ao longo dos anos adquirira uma posição quase do tipo da de Goethe na vida intelectual do país. Foi o sistema historicista de Croce, com um prestígio subscrito pela atenção que lhe foi dada na prisão por Gramsci, que ficou naturalizado como o éter circum‑ambiente de muita da cultura italiana do pós‑guerra à qual o PCI, directa ou indirectamente, presidiu. Mas por trás dele residem tradições muito mais antigas que concederam preeminência ao reino das ideias, concebidas como vontade ou compreensão, na política. Entre a queda do Império Romano e a conclusão do Risorgimento, a Itália nunca conheceu um estado ou uma aristocracia peninsulares e a maior parte do tempo esteve sujeita a um leque de poderes estrangeiros em conflito. O resultado, por longos períodos, foi a criação duma esmagadora sensação de fosso entre a glória passada e a desgraça presente no meio das suas elites instruídas. De Dante para cá, desenvolveu‑se aí uma tradição de intelectuais com um forte sentido de vocação para recuperar e transmitir a cultura elevada da antiguidade clássica e embebidos da convicção de que o país podia ser endireitado apenas


pelo cunho de ideias revivificadoras, das quais só eles poderiam ser os artífices, nas realidades em que caíram. A cultura não era uma esfera distinta do poder: haveria de ser o passaporte para ela. Em boa medida, o Comunismo italiano herdou este hábito da mente. A nova forma que deu a uma predisposição nacional, se não fiel a Gramsci, foi retirada dele. Nesta versão, ‘hegemonia’ era uma ascendência cultural e moral a ser ganha consensualmente dentro da sociedade civil, como a fundação real da existência social que poderia assegurar por fim a posse pacífica do estado, uma expressão mais externa e superficial da vida colectiva. Nesta visão, a posição de comando que o partido tinha ganho na arena intelectual mostrava que estava no rumo para a vitória política final. Isto não era aquilo em que Gramsci acreditara. Revolucionário da Terceira Internacional, nunca pensara que o capital pudesse ser quebrado sem a força das armas, por mais importante que fosse a necessidade de ganhar o consentimento popular para o derrube da ordem dominante. Mas isto ajustava‑se ao molde idealista da cultura em geral. Dentro da própria esfera intelectual, para além disso, o PCI reproduziu o viés humanista das elites tradicionais para quem a filosofia, a história e a literatura sempre tinham sido campos de eleição. Ausentes do portfolio do partido estavam as disciplinas mais modernas da economia e da sociologia e os métodos que tentaram pedir emprestados, para melhor ou pior, às ciências naturais. Por formidáveis que as suas posições parecessem do auge duma hierarquia cultural consagrada, eram mais fracas cá em baixo, com sérias consequências em devido tempo. Porque quando as duas grandes mudanças que alterariam a ecologia do PCI na Itália do pós‑guerra atin-

gem o partido, ele estava bastante impreparado. A primeira foi a chegada duma cultura de massas completamente comercializada, duma espécie ainda inimaginável no mundo de Togliatti, quanto mais de Gramsci. Mesmo no seu apogeu, tinha havido certos limites óbvios à influência do PCI e, mais geralmente, da esquerda italiana na cena cultural, uma vez que a Igreja ocupava um tão grande espaço na crença popular e na imaginação. Abaixo do nível das universidades, editores, estúdios ou jornais nos quais os movimentos do partido eram tão comuns e distintos dos baluartes da ordem estabelecida burguesa liberal na imprensa, um matagal de revistas conformistas ou espectáculos talhados para os gostos meio‑sérios ou incultos dos eleitores da DC sempre houvera florescido. Dos seus posicionamentos de vantagem na cultura de elite, o PCI podia ver este universo com uma condescendência tolerante, como expressões do legado dum passado clerical cuja importância Gramsci há muito vincara. Não era ameaçado por ele. O influxo duma cultura de massas completamente secular, totalmente Americanizada, foi outra questão. Apanhados impreparados, o aparelho do partido e os intelectuais que se tinham formado em volta dele foram atirados para o lado. Embora um compromisso crítico com revistas populares não faltasse em Itália – Umberto Eco foi pioneiro – o PCI não conseguiu estabelecer a ligação. Nenhuma dialéctica criativa, capaz de resistir às ventanias do novo transformando as relações entre sério e popular, se materializou. O caso do cinema, em que a Itália tinha primado sobretudo depois da guerra, pode ser tomado como simbólico. Não houve revezamento da geração de grandes realizadores – Rossellini, Visconti, Antonioni – que se tinham iniciado nos anos

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40 ou no princípio dos 50 e cujos últimos trabalhos importantes se agrupam no início dos 60. Em falta a partir daí esteve qualquer cruzamento combustível entre vanguardismo e formas populares que se comparasse com Godard em França ou com Fassbinder na Alemanha; mais tarde, apenas a bebida fraca que foi Nanni Moretti. O resultado foi um fosso tão grande entre a sensibilidade instruída e popular que o país foi deixado mais ou menos indefeso face à contra‑revolução cultural do império televisivo de Berlusconi, saturando o imaginário popular com a vaga duma maré dos mais crassos idiotismo e fantasias – lixarada tão baixa que o próprio termo seria demasiado simpático. Incapaz de confrontar ou de inverter a mudança, durante uma década o PCI procurou resistir‑lhe. O verdadeiro último líder do partido, Enrico Berlinguer, personificou o desprezo austero da auto‑indulgência e o infantilismo do novo universo de consumo cultural e material. Depois de ele partir, da recusa inflexível à capitulação efusiva foi um curto passo – vindo Walter Veltroni a parecer‑se com um cromo resplandecente saído dos álbuns dos meninos de escola cujo nome fez ao distribuí‑los com exemplares do Unità quando se tornou editor do jornal. Se o idealismo do PCI o impediu de agarrar as pulsões materiais do mercado e dos meios de comunicação que transformaram o lazer na Itália, a mesma falta de antenas económicas ou sociológicas impediu‑o de descobrir mudanças não menos decisivas no local de trabalho. Já no virar dos anos 60 lhes prestava menos atenção do que ao recrutamento de jovens radicais que continuariam a produzir o fenómeno peculiarmente italiano do operaismo, uma das mais estranhas aventuras intelectuais da esquerda europeia desse período [*]. Diferentemente do PCI, o


PSI do pós‑guerra tinha possuído pelo menos uma figura principal, Rodolfo Morandi, cujo Marxismo era dum molde menos idealista, que se concentrou nas estruturas da indústria italiana, da qual foi autor de um estudo famoso. Dentro da geração seguinte encontrou em Raniero Panzieri um sucessor dotado, um militante do PSI que, tendo‑se deslocado para Turim, começou a investigar a condição de trabalhadores fabris nas fábricas da Fiat, reunindo em volta da sua empresa um grupo de intelectuais mais jovens, muitos (Antonio Negri entre eles) mas não todos a partir originalmente de organizações juvenis Socialistas. Durante a próxima década, o operaismo evolui para uma força proteica, lançando uma sucessão de jornais seminais, ainda que de vida curta – Quaderni rossi, Classe operaia, Gatto selvaggio, Contro‑ piano – explorando as transformações do trabalho e do capital industrial na Itália contemporânea. O PCI não tinha nada de comparável para mostrar e prestou escassa atenção a esta ebulição, embora nesta fase o mais influente dos novos teorizadores fosse um jovem das suas próprias fileiras de Roma, Mario Tronti. Este era um meio cuja cultura era essencialmente alheia ao partido, de facto declaradamente hostil a Gramsci, acusado de espiritualismo e populismo. O impacto do operaismo vinha não apenas das interrogações ou das ideias dos seus pensadores, mas da sua conexão com a revolta de novos contingentes das classes trabalhadoras: imigrantes jovens do Sul, em revolta contra salários baixos e condições opressivas nas fábricas do Norte – para não falar dos sindicatos liderados por comunistas desconcertados pelas erupções espontâneas de militância ou pelas formas inesperadas de luta. Ter antecipado esta turbulência deu ao operais‑

EM MEADOS DOS 70, CONSCIENTES DE QUE A INDÚSTRIA ITALIANA SE MODIFICAVA MAIS UMA VEZ E DE QUE A MILITÂNCIA DAS OFICINAS ESTAVA EM DECLÍNIO, NEGRI E OS OUTROS RECORRERIAM À FIGURA DO ‘TRABALHO SOCIAL’ EM GERAL COMO PORTADOR DA REVOLUÇÃO IMANENTE.

mo um poderoso vento contrário intelectual. Mas também o fixou no momento do seu discernimento original, levando a uma romanticização da revolta proletária como um fluxo mais ou menos contínuo de lava vindo do chão da fábrica. Em meados dos 70, conscientes de que a indústria italiana se modificava mais uma vez e de que a militância das oficinas estava em declínio, Negri e os outros recorreriam à figura do ‘trabalho social’ em geral – virtualmente qualquer um, empregado ou desempregado pelo capital, onde quer que fosse – como portador da revolução imanente. A abstracção desta noção foi um sinal do desespero e a política apocalíptica que o acompanhou levou esta ala do operaismo a um beco sem saída nos finais dos 70. O PCI, contudo, depois de falhar a mutação dos 60, não tinha aprendido com isso e não ofereceu nada de melhor através duma sociologia industrial. Portanto foi isso que, quando a economia italiana sofreu modificações novas e críticas nos anos 80, com o surgimento de pequenas firmas de exportação e duma economia negra – o ‘segundo milagre italiano’, como foi esperançosamente referido naquele tempo – o partido estava impreparado de novo e desta vez o golpe na sua posição como representante político do traba-

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lhador colectivo revelou‑se fatal. Vinte anos depois, tal como o triunfo de Forza Italia dramatizaria a sua falha em reagir a tempo de intervir na massificação da cultura popular, assim as vitórias da Liga do Norte revelariam a sua incapacidade em responder a tempo à fragmentação do trabalho pós‑moderno. Esses foram défices duma mentalité com fontes mais profundas do que o Marxismo do partido, um sentido clássico de valores intelectuais que, com todas as suas limitações, era à sua própria maneira raramente menos que honroso e muitas vezes admirável. Houve outro lado e um lado mais danoso para o mesmo idealismo, contudo, específico do Comunismo italiano e pelo qual carregava uma responsabilidade política consciente. Foi um reflexo estratégico que nunca realmente se alterou da Libertação em diante e cujas pós‑convulsões continuam hoje. Quando Togliatti voltou de Moscovo para Salerno na Primavera de 1944, deixou bem claro ao seu partido que não podia haver nenhuma tentativa de fazer uma revolução socialista na Itália logo a seguir à expulsão da Wehrmacht, já previsível. A Resistência no Norte, na qual o PCI desempenhava um papel principal, podia complementar mas não substituir os exérci-


AO INVÉS DE ISOLAR A DEMOCRACIA‑CRISTÃ, TOGLIATTI MANOBROU PARA PÔR NA CHEFIA DO GOVERNO O SEU LÍDER, DE GASPERI, E DEPOIS JUNTOU‑SE À DC – PARA INDIGNAÇÃO DOS SOCIALISTAS – NA CONFIRMAÇÃO DO TRATADO DE LATRÃO QUE MUSSOLINI SELARA COM O VATICANO.

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tos anglo‑americanos no Sul como força principal para expulsar os Alemães do país e o Alto Comando Aliado é que ditaria as regras uma vez a paz restaurada. Depois de vinte anos de repressão e exílio, a tarefa do PCI era construir um partido de massas e desempenhar um papel central numa assembleia eleita para pôr a Itália numa nova base democrática. Esta era uma leitura realista do equilíbrio de forças na península e da determinação de Washington e de Londres em não permitirem qualquer assalto à capital no seguimento da derrota alemã. Uma insurreição pós‑guerra não estava na agenda. Togliatti, contudo, foi muito além disto. Na Itália, a monarquia que ajudou a instalar o Fascismo e logo confortavelmente com ele coabitou, tinha desalojado Mussolini no Verão de 1943, receosa de soçobrar com ele depois dos Aliados aterrarem na Sicília. Depois de um breve intervalo, o rei fugiu com Badoglio, o conquistador da Etiópia, para o Sul, onde os Aliados os colocam no topo duma administração regional inalterada, enquanto no Norte os Alemães instalam Mussolini à cabeça dum regime fantoche em Salò. Quando a guerra acabou, a Itália não foi assim tratada como a Alemanha, como um poder derrotado, mas como um “co‑beligerante” punido. Uma vez que as tropas Aliadas se foram, um governo de coligação, compreendendo o Partito d’Azione liberal de esquerda, os Socialistas, Comunistas e Democratas‑Cristãos, enfrentou o legado do Fascismo e a monarquia que colaborara com ele. Os Democratas‑Cristãos, conscientes que os seus potenciais eleitores permaneciam leais à monarquia e reconhecendo que os seus apoios naturais no aparelho de estado tinham sido os instrumentos de rotina do Fascismo, estavam determinados em a prevenir algo

comparável à des‑Nazificação alemã. Mas estavam em minoria no gabinete, onde a esquerda secular detinha mais postos. Nesta conjuntura o PCI, em vez de pôr a DC na defensiva exigindo uma purga inflexível do estado – limpando todos os funcionários colaboracionistas seniores na burocracia, poder judiciário, exército e polícia – convidou‑a a encabeçar o governo e mal levantou um dedo para desmantelar o aparelho tradicional do poder de Mussolini. Ao invés de isolar a Democracia‑Cristã, Togliatti manobrou para pôr na chefia do governo o seu líder, de Gasperi, e depois juntou‑se à DC – para indignação dos Socialistas – na confirmação do Tratado de Latrão que Mussolini selara com o Vaticano. Os prefeitos, juízes e polícias que tinham servido o Duce foram deixados virtualmente intocados. Ainda em 1960, 62 dos 64 prefeitos tinham sido serviçais do Fascismo e todos os 135 chefes de polícia do país o foram. Quanto a juízes e funcionários, os tribunais por reconstruir absolveram os torturadores do regime e condenaram os resistentes que tinham lutado contra eles, retrospectivamente declarando os combatentes da República Fascista de Salò beligerantes legítimos, e os da Resistência ilegítimos – os últimos sujeitos como tal a execução sumária depois de 1943, sem sanções penais depois de 1945 para os primeiros. Essas enormidades foram uma consequência directa das acções do PCI. Foi o próprio Togliatti que, enquanto ministro da justiça, promulgou em Junho de 1946 a amnistia que os tornou aptos. Um ano depois, o partido foi recompensado com uma ejecção do governo sem cerimónias por de Gasperi, que já não precisava disso. A história da Itália do pós‑guerra ia assim ser in-

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teiramente diferentemente da da Alemanha, onde não houve qualquer Resistência popular. O nazismo foi destruído tanto pelo extremo da derrota militar como pelo extermínio com as ocupações Aliadas subsequentes. Na República Federal, o Fascismo não pôde mais voltar a levantar a cabeça. Na Itália, em contraste, a Resistência deixou para a posteridade uma ideologia de anti‑fascismo – patriótico – cuja retórica oficial ubíqua, no que o PCI tomou a dianteira, cobriu as continuidades reais do Fascismo, quer como aparelho de leis e funcionários herdado, quer como credo abertamente proclamado e movimento. Reconstituído como MSI, o partido Fascista ia sentar‑se em breve novamente no Parlamento e acabar por ser recebido na ordem estabelecida sob o seu líder, Giorgio Almirante. Exaltando as leis anti‑semíticas de Mussolini, esta figura tinha dito aos seus compatriotas em 1938 que ‘o racismo é o mais amplo e valente reconhecimento de si que a Itália alguma vez tentou’ e em 1944, depois de Mussolini ter sido levado via aérea para o Norte pelos Alemães, que se não se alistassem como combatentes pela República de Salò seriam alvejados pelas costas. Quando Almirante morreu nos anos 80, a viúva de Togliatti esteve entre os que o choraram a sua morte no funeral. Hoje Gianfranco Fini, o seu herdeiro designado, é orador na Câmara de Deputados, e sucessor provável de Berlusconi como primeiro ministro. Para além das repreensões óbvias a esta trajectória, o que há de mais condenável pela parte do PCI nisso é a sua futilidade auto‑destrutiva. Quando teve uma oportunidade de enfraquecer a Democracia‑Cristã mergulhando a espada de um anti‑fascismo intransigente nos seus flancos, cortando‑o dos eleitorados reaccionários que tinham sustentado o regime de Mussolini, fez


precisamente o oposto, ajudando a DC a estabelecer‑se como a força dominante no país, ao passar uma esponja suavizante sobre a colaboração com o regime. Ao fazê‑lo simplesmente consolidou o bloco conservador sob comando clerical que o viria a deixar do lado de fora do poder até ao dia da sua morte. Neste fracasso, a conduta do partido não teve desculpas ao nível internacional. A revolução pode ter sido excluída na Itália do pós‑guerra, mas antes de 1946 os Aliados tinham basicamente deixado o país e não estavam em posição de deter uma purificação do Fascismo. A ingenuidade de Togliatti em ser tão completamente manobrado por de Gasperi com superioridade teve pouco a ver com influências externas. Enraizava‑se num conceito estratégico que tinha obtido de Gramsci, interpretado pela neblina de Croce e seus antepassados. A persecução do poder político, escrevera Gramsci, tinha requerido dois tipos de estratégia, cujos termos tomou da teoria militar, guerra de posição e guerra de manobra: guerra de trincheira ou de cerco, por oposição a assalto móvel. A Revolução Russa tinha exemplificado a segunda; uma revolução no Ocidente necessitaria da primeira, durante um período considerável, antes de passar por fim à última. Tal como diluíra a noção de hegemonia de Gramsci tão só no seu momento consensual, fixando‑a essencialmente na sociedade civil, também sob Togliatti o PCI reduziu o seu conceito de estratégia política a uma guerra de posição apenas, à aquisição lenta de influência na sociedade civil, como se nenhuma guerra de manobra – emboscada, carga súbita, rapidamente desviar o ataque para todo‑o‑terreno, apanhar de surpresa inimigos de classe ou o estado – fosse já necessária no Ocidente. Em 1946‑47 de Gasperi e os seus colegas não cometeram o mesmo erro.

QUANDO EMERGIU DENTRO DO PARTIDO A OPOSIÇÃO CRÍTICA À SUA INÉRCIA SOB A FORMA DO GRUPO MANIFESTO – DE ASPECTO MAIS GENUINAMENTE GRAMSCIANO E COM UMA INTELIGÊNCIA POLÍTICA MUITO MAIOR DO QUE OS OPERAISTI FORA DELE – A LIDERANÇA DO PCI NÃO PERDEU TEMPO NA SUA EXPULSÃO.

Por volta de 1948 o élan popular da Libertação quebrou‑se. O ataque da Guerra Fria trouxe a derrota eleitoral e foram precisos vinte anos até que outra onda de revolta política formasse crista na Itália. Quando chegou, a rebelião geracional do final dos 60, abraçando tanto estudantes como trabalhadores jovens, foi mais ao fundo e durou mais do que em qualquer outro sítio da Europa. Sob o sucessor de Togliatti, Luigi Longo, que tinha um pouco mais de lutador do que de diplomata, o PCI não reagiu tão negativamente à revolta juvenil como o PCF em França. Mas também não respondeu criativamente, não conseguindo ligar‑se a uma cultura de rua em que sério e popular – os clássicos do passado Marxista e Bolchevique, os graffitti de lata de spray do presente – durante um tempo interagiram dinamicamente, nem renovar o seu stock cada vez mais estacionário de conceitos estratégicos. Quando emergiu dentro do partido a oposição crítica à sua inércia sob a forma do grupo Manifesto – de aspecto mais genuinamente gramsciano e com uma inteligência política muito maior do que os operaisti fora dele – a liderança do PCI não perdeu tempo na sua expulsão. A excomunhão veio a propósito da invasão sovié-

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tica da Checoslováquia que o Manifesto condenou sem reservas. Aqui, a par do idealismo nativo da sua formação, reside a segunda razão para a paralisia estratégica perdurante do Comunismo italiano. Por mais flexível que fosse noutros aspectos, o PCI permanecia estalinista tanto nas suas estruturas internas como nos laços externos com o estado soviético. Desesperando com a ordem unipartidária duma Democracia‑Cristã entorpecida, os admiradores liberais do partido – dois quais haveria muitos ao longo dos anos – exprimiriam repetidamente admiração pela moderação interna sensata do PCI, mas exasperação por comprometer um registo, afora isso excelente, de conexões à URSS e às normas organizativas que se seguiram. Na realidade as duas estavam estruturalmente relacionadas. De Salerno em diante, a moderação do partido foi uma compensação pelas relações com Moscovo, não uma contradição com elas. Só porque podia ser sempre reprovado por um parentesco suspeito com a terra da Revolução de Outubro, tinha de se exceder a comprovar a inocência em relação a qualquer desejo de emular aquele modelo de mudança demasiado famoso. O peso duma culpa imputada e a busca duma respeitabilidade exoneradora andavam de


INCAPAZ DE ASSUMIR OU DESENVOLVER AS REVOLTAS DOS FINAIS DOS 60 E PRINCÍPIOS DOS ANOS 70, O PCI VIROU‑SE UMA VEZ MAIS PARA A DEMOCRACIA‑CRISTÃ, NA ESPERANÇA SAUDOSA QUE TIVESSE MUDADO OS SEUS MODOS E ESTIVESSE AGORA PREPARADA PARA COLABORAR NA GOVERNAÇÃO – CATOLICISMO E COMUNISMO UNINDO‑SE NUM ‘COMPROMISSO HISTÓRICO’ PARA DEFENDER A DEMOCRACIA ITALIANA DOS PERIGOS DA SUBVERSÃO E DAS TENTAÇÕES DO CONSUMISMO.

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mãos dadas. O mais abertamente direitista do partido, o aterrorizante Giorgio Amendola, que fazia avisos contra qualquer tolerância para com a revolta estudantil enquanto regularmente se refugiava na Bulgária para as férias com a família, personificou os mecanismos desta dualidade. Incapaz de assumir ou desenvolver as revoltas dos finais dos 60 e princípios dos anos 70, o PCI virou‑se antes e uma vez mais para a Democracia‑Cristã, na esperança saudosa que a DC tivesse mudado os seus modos e estivesse agora preparada para colaborar com ele no governação do país – Catolicismo e Comunismo unindo‑se num ‘compromisso histórico’ para defender a democracia italiana dos perigos da subversão e das tentações do consumismo. Propondo este pacto em 1973, logo depois se se tornar o novo líder do partido, Berlinguer invocou o exemplo do Chile, onde Allende tinha acabado de ser derrubado, como aviso duma guerra civil em risco de estourar, se a esquerda – Comunistas e Socialistas combinados – alguma vez tentasse governar o país com base numa mera maioria aritmética do eleitorado. Poucos argumentos poderiam ter sido mais obviamente especiosos. Não havia a menor perspectiva de guerra civil na Itália, onde mesmo erupções de violência como as que tinham ocorrido – a bomba colocada por terroristas direitistas na Piazza Fontana em Milão em 1969 fora o pior caso – tiveram pouca incidência na vida política do país no seu conjunto. Mas, uma vez que o PCI se movimentara para abraçar a DC, os grupos revolucionários à sua esquerda, saídos da rebelião juvenil, previram a emergência duma ordem estabelecida parlamentar monolítica, não tendo o governo oposição, e deslocaram‑se para a acção directa contra ele. Os pri-

meiros ataques letais das Brigadas Vermelhas começaram no ano seguinte. Mas o sistema político não estava em perigo. As eleições de 1976, em que o PCI se portou bem, foram perfeitamente tranquilas. Na sua sequência, a DC aceitou cortesmente o apoio comunista aos governos da assim chamada ‘solidariedade nacional’ sob Giulio Andreotti, sem alterar a sua política ou conceder qualquer ministério ao PCI. A legislação repressiva, restringindo liberdades civis de forma gratuita, teve uma escalada. Dois anos depois as Brigadas Vermelhas detiveram o líder mais influente da DC, Aldo Moro, em Roma, exigindo a entrega dos seus presos em troca de o libertarem. Durante os 55 dias do cativeiro, temendo ser abandonado pelo seu próprio partido, Moro escreveu cartas cada vez mais amargas aos seus colegas, colocando uma ameaça clara a Andreotti caso viesse a ser libertado. Nesta crise o PCI mais uma vez não mostrou nem humanidade nem senso comum, denunciando qualquer negociação para assegurar a entrega de Moro mais veementemente do que a própria liderança da DC que ficou compreensivelmente dilacerada. Moro foi devidamente deixado ao seu destino. Se lhe tivessem permitido viver, o seu regresso teria certamente divido a Democracia‑Cristã e provavelmente terminado a carreira de Andreotti. O preço da sua salvação era desprezível. As Brigadas Vermelhas, pequeno grupo que em nenhum sentido objectivo era ameaça significativa à democracia italiana, dificilmente seria fortalecido pela libertação de uns poucos membros, que teriam ficado sob vigilância policial contínua mal saíssem da cadeia. A noção de que o prestígio do estado não sobreviveria a tal rendição ou de que milhares de novos terroristas

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teriam irrompido na sua sequência, não foi mais do que uma histeria interessada. Os Socialistas compreenderam isto e defenderam negociações. Plus royalistes que le roi 1, os Comunistas, na sua ansiedade em provar que eram os mais firmes dos bastiões do estado, sacrificaram uma vida e salvaram a sua nemesis 2 em vão. A DC não mostrou gratidão alguma. Depois de os usar, Andreotti – um mestre em sentido de oportunidade superior ao próprio de Gasperi – rebaixou‑os. Quando chegaram as eleições, em 1979, o PCI perdeu um milhão e meio de votos e foi novamente deixado de fora. O ‘compromisso histórico’ não lhe tinha rendido nada para além da desilusão dos seus eleitores e dum enfraquecimento da sua base. Quando Berlinguer no ano seguinte apelou aos funcionários da Fiat, ameaçados com despedimentos em massa, para ocuparem as suas fábricas, o apelo caiu em orelhas moucas. A última grande acção industrial na qual o partido alguma vez se ocuparia foi rapidamente esmagada. Há cinco anos, reflectindo amargamente sobre a política do seu país, Giovanni Sartori fez notar que Gramsci tivera razão ao distinguir entre guerra de posição e guerra de manobra. Grandes líderes – Churchill ou de Gaulle – entenderam a necessidade de guerras da manobra. Em Itália, os políticos conheciam apenas guerras da posição. Ele próprio sempre achara que o título do livro famoso de Ortega y Gasset, España Invertebrada, seria ainda mais adequado na Itália em que a Contra‑Reforma tinha criado hábitos profundos de conformismo e invasões estrangeiras e conquistas contínuas tinham tornado os Italianos em especialistas em sobrevivência ao curvarem‑se até ao chão. Na falta de quaisquer elites de fibra, esta era uma nação sem um só osso no cor-


po. Sartori não falava ao acaso. Os destinatários eram a classe política que descreveu. Por esta altura o PCI desaparecera, Berlusconi estava no poder e os seus objectivos centrais eram claros: proteger‑sea si e ao seu império da lei. As medidas ad personam 3 para defender ambos, com adopção forçada no Parlamento, aterraram na secretária do presidente. A presidência italiana não é um posto puramente honorífico. O Quirinale não só nomeia o primeiro‑ministro, que tem de ser ratificado pelo Parlamento, como pode também reter a aprovação de ministros e recusar‑se a assinar a legislação. Em 2003 o beneficiado foi o antigo banqueiro central Carlo Azeglio Ciampi, um ornamento do centro‑esquerda que havia encabeçado o governo final da Primeira República, servido como ministro das finanças sob Prodi e que é hoje senador do Partido Democrático. Imperturbavelmente, Ciampi assinou a legislação excepcional não só para consolidar a mão de Berlusconi na televisão, mas para lhe garantir imunidade processual – imunidade da qual o próprio Ciampi, como presidente, foi também beneficiário, ao apender a sua assinatura. Fora do Quirinale, apelos angustiados na rua, à luz de velas, pediram‑lhe que não o fizesse. Mas os herdeiros do Comunismo não apresentaram objecção alguma. De facto tinha sido das fileiras do próprio centro‑esquerda que o primeiro esboço de lei da imunidade tinha vindo. Se houve torcer de mãos na imprensa a propósito da lei, o presidente – supostamente super partes do ponto de vista constitucional e tratado com a devida reverência – não foi posto em questão. Só uma voz nacional significativa se levantou, não em lamento, mas com severidade contra Ciampi. Ela veio de Sartori, um liberal conservador, que publicamente perguntou a Ciampi se

A QUEDA DO COMUNISMO ITALIANO É NESSE SENTIDO UMA PARTE DUMA HISTÓRIA MAIS COMPRIDA, PARA ALÉM DA CENSURA. CONTUDO EM MAIS NENHUMA PARTE FOI UMA HERANÇA TÃO IMPONENTE ASSIM COMPLETAMENTE DESPERDIÇADA.

ele realmente existia, desdenhosamente alcunhando‑o de coelho pela sua covardia. Nos dias de hoje é um antigo Comunista – Giorgio Napolitano – o líder da facção mais direitista do PCI depois da morte de Amendola – quem se senta no Quirinale. No momento em que foi eleito, a primeira lei de imunidade tinha sido derrubada pelo Tribunal Constitucional. Mas quando lhe deram uma nova embalagem – à moda de Lisboa, poder‑se‑ia dizer – e a substância da mesma lei foi aceite por votação novamente pela maioria de Berlusconi no Parlamento, o líder da bancada pós‑comunista no Senado, longe de se lhe opor, explicou que o Partido Democrático não tinha qualquer objecção de princípio, embora talvez devesse entrar em vigor apenas na legislatura seguinte. Napolitano não teve tempo para tais points d’honneur 4, assinando a passagem a lei no dia em que a recebeu. Mais uma vez, as únicas vozes a denunciar esta ignomínia foram liberais ou apolíticas, Sartori e um punhado de espíritos livres – imediatamente reprovados na imprensa não só de obediência Democrática, como da Rifondazione, por falta de respeito ao chefe de estado. Tal é a sinistra inver‑ tebrata 5 da Itália hoje.

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Forças históricas poderosas – o fim da experiência soviética; a contracção ou desintegração da classe trabalhadora tradicional; o enfraquecimento do estado de bem‑estar; a expansão da videosfera; o declínio de partidos – pesaram muito na esquerda em todo o lado na Europa, não deixando ninguém em forma particularmente boa. A queda do Comunismo Italiano é nesse sentido uma parte duma história mais comprida, para além da censura. Contudo em mais nenhuma parte foi uma herança tão imponente assim completamente desperdiçada. O partido que de Gasperi e Andreotti superaram em esperteza, que não conseguiu purgar o Fascismo ou quebrar o clericalismo, era ainda uma força em expansão com notável vitalidade, qualquer que fosse a sua inocência estratégica. Os seus descendentes conspiraram com Berlusconi, sem sombra qualquer de desculpa, totalmente conscientes de quem ele era e do que estavam a fazer. Há agora uma literatura abundante expondo Berlusconi, dentro e fora da Itália, inclusive pelo menos três estudos de primeira categoria em inglês. Mas é patente como muito disto se torna amaneirado quando toca no papel do centro‑esquerda em ajudá‑lo a limpar a folha e a entrincheirar‑se no poder. A cumplicidade dos


O QUE ACONTECERA PELA SUA PARTE À GRANDE CATEDRAL DA CULTURA DE ESQUERDA NA ITÁLIA? TINHA COMEÇADO A ESMIGALHAR‑SE MUITO ANTES, COM AS FUNDAÇÕES MINADAS PELA ANTIGA FORTALEZA DO PRÓPRIO PARTIDO DE MASSAS. COMO NA ALEMANHA, A VIRAGEM À DIREITA DEU‑SE INICIALMENTE NO CAMPO DA HISTÓRIA, COM UMA REAVALIAÇÃO DA DITADURA ENTRE GUERRAS NO PAÍS.

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seus presidentes em ofertas sucessivas para o pôr – e a si mesmos – acima da lei não é anomalia alguma, faz parte dum padrão coerente que viu os herdeiros do Comunismo italiano permitirem‑lhe conservar e estender o seu império de meios de comunicação, desafiando o que foi em tempos lei; não levantando um dedo para lidar com os seus conflitos do interesse; fazendo saltar da cadeia o seu braço‑direito e não poucos outros criminosos milionários; e repetidamente procurando fazer acordos eleitorais com ele, à custa de todos os princípios democráticos, para tirar benefício. No fim de tudo isto, ficaram não só de mãos tão vazias como os seus predecessores, como mais terminalmente vazios de mente e consciência. O que acontecera pela sua parte à grande catedral da cultura de esquerda na Itália? Tinha começado a esmigalhar‑se muito antes, com as fundações minadas pela antiga fortaleza do próprio partido de massas. Como na Alemanha, a viragem à direita deu‑se inicialmente no campo da história, com uma reavaliação da ditadura entre guerras no país. O primeiro volume da biografia de Mussolini por Renzo de Felice, cobrindo o período até ao fim da Primeira Guerra Mundial, foi publicado em 1965. Mas só depois do quarto ter aparecido em 1974, cobrindo o período da Grande Depressão até à invasão da Etiópia – seguido um ano depois por uma entrevista com o tamanho dum livro com o neo‑conservador americano Michael Ledeen, posteriormente proeminente na questão Irão‑Contras – é que este enorme empreendimento teve um impacto importante na esfera pública, atraindo uma barragem de crítica à esquerda por ser uma reabilitação do Fascismo. No momento em que o seu quinto volume saiu, no início dos anos 80, de Felice tinha‑se tornado uma autoridade aceite, gozando de

acesso imediato aos meios de comunicação – apareceria cada vez mais na televisão – encontrando um decrescente desafio dentro do país. Em breve estava a pedir o fim do anti‑fascismo como ideologia oficial na Itália. Em meados dos 90 explicava que o papel da Resistência no que foi de facto uma guerra civil no Norte, na qual as lealdades à República de Salò tinham sido subestimadas, tinha de ser desmistificado. O seu oitavo e último volume, incompleto à sua morte, saiu em 1997. No total, de Felice dedicou 6500 páginas à vida de Mussolini, mais do triplo da extensão da biografia de Hitler por Ian Kershaw e proporcionalmente mais longas até do que a vida autorizada de Churchill por Martin Gilbert: o maior monumento singular a um líder do século 20. A escala da obra, mal escrita e muitas vezes arbitrariamente construída, não foi igualada nunca pela sua qualidade. A sua força reside na pesquisa infatigável em arquivos por de Felice e na sua insistência numas poucas verdades irrepreensíveis, principalmente em que os militantes do Fascismo como movimento tinham vindo na maior parte da classe média‑baixa, que o Fascismo como sistema atraiu o apoio de homens de negócios, de burocratas e das mais altas classes sociais em geral e que no seu apogeu o regime comandou um largo consenso popular. Estes achados, nenhum particularmente original, quedavam na companhia incoerente das afirmações de que o Fascismo brotara do Iluminismo, que não teve nada a ver com o Nazismo, que o seu colapso assistiu à morte da nação italiana, e não menos, de um retrato do próprio Mussolini com dimensões desesperadamente exageradas, indulgente, como um grande político realista– ainda que com falhas. Intelectualmente falando, de Felice teve pouco do equipamento conceptual ou da

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amplitude do interesse de Ernst Nolte, cujo primeiro livro tinha precedido o seu. Mas o seu impacto foi muito maior, não só por força do peso absoluto da sua erudição, ou até do facto – fundamental por muito que seja óbvio – de que na Alemanha o Fascismo tinha sido desacreditado de forma muito mais absoluta do que na Itália, mas também por no fim da sua carreira haver tão pouca vida na cultura oficial do pós‑guerra a que ele se tinha pretendido opor. Significativamente, as demolições mais radicais do seu edifício vieram de Denis Mack Smith em Inglaterra e não de qualquer historiador italiano. Mas se não houve nenhum verdadeiro equivalente ao Historikerstreit na Itália, em que de Felice poderia sentir que tinha realizado a maior parte dos seus objectivos, houve também uma viragem à direita das energias intelectuais em geral com contornos menos nítidos do que na Alemanha. O sucessor principal a de Felice, Emilio Gentile, dedicou‑se a amplificar o tema familiar de que as políticas de massas do século 20 foram versões secularizadas da fé sobrenatural, dividindo‑as em marcas malignas – Comunismo, Nazismo, nacionalismo – incluindo de religiões ‘políticas’ fanáticas e formas mais aceitáveis, nomeadamente o patriotismo americano, que constituem religiões ‘civis’: totalitarismo versus democracia em roupagens sagradas. Isto é uma construção que ganhou mais seguimento nos EUA ou no Reino Unido do que na própria Itália. O mesmo, paradoxalmente, poderia dizer‑se dos últimos frutos à esquerda do operaismo. Aí, o espírito sóbrio da enquête ouvrière 6 tinha falecido com a morte prematura de Panzieri em meados dos 60, e com a impulsão de Tronti e do jovem crítico literário – então igualmente incendiário – Alberto Asor Rosa, a sua perspectiva sofreu duas voltas drásticas.


De Tronti veio a convicção de que a classe trabalhadora, longe de ter de suportar transformações económicas sucessivas às mãos da capital, era o seu demiurgo, impondo a empregadores e ao estado as mudanças estruturais de cada fase de acumulação. O segredo do desenvolvimento não residia nos requisitos económicos impessoais da rentabilidade vinda de cima, mas na pressão condutora da lutas de classes vinda de baixo. De Asor Rosa veio o argumento de que ‘a literatura comprometida’ era um delírio populista, dado que a classe trabalhadora nunca poderia esperar beneficiar com as artes ou as letras dum mundo moderno no qual a cultura como tal era, por definição, irremediavelmente burguesa. Não se seguiu nenhum filistinismo cru, nem tolstoyanismo pobre‑de‑espírito. Pelo contrário, era apenas o Alto Modernismo de Mann ou Proust, Kafka ou Svevo, e o vanguardismo radical até, mas não depois, de Brecht que contavam como literatura – mas enquanto testemunhos tantos, de incomparável invenção formal, das contradições internas da existência burguesa, não enquanto legado de uso algum para o mundo do trabalho. A divisória entre os dois não podia ser ligada até pelas melhores intenções revolucionárias de um Mayakovsky: era da sua constituição. Para fazer boa literatura, o socialismo não foi essencial. Para fazer a revolução, os escritores não serão essenciais. A luta de classes toma um caminho diferente. Tem outras vozes para se exprimir, se fazer entender. E a poesia não pode estar por trás dela. Porque a poesia, quando é grande, fala numa língua na qual as coisas – as coisas difíceis de luta e da existência diárias – assumiram já o valor exclusivo de um símbolo, de uma metáfora gigantesca do mundo: e o preço, muitas vezes trágico,

da sua grandeza é que o que diz escapa à prática, para não regressar mais a ela. Quando isto foi escrito, o objectivo era a linha oficial do PCI, e por trás dela Gramsci, que tinha acreditado que o movimento comunista era o legítimo herdeiro da cultura europeia mais elevada, da Renascença, Reforma e Iluminismo em diante e que entre os problemas ele tinha de resolver na Itália estava a ausência duma literatura popular nacional. Mas como os motins do fim dos 60 se desenrolavam, primeiro Tronti e logo Asor Rosa decidiram que fazia mais sentido trabalhar dentro do PCI, onde se podia encontrar a classe trabalhadora organizada no fim de contas, do que fora dele. Ao dar este passo, Tronti transpôs a sua visão da primazia das lutas na fábrica às actividades do partido na sociedade, radicalizando‑a numa teoria da autonomia da produção da política. Mais jovem do que Asor Rosa ou Tronti, e o mais intelectualmente ambicioso do trio, Massimo Cacciari concluiu então o que eles tinham começado, não meramente separando cultura e economia da política revolucionária, mas propondo uma dissociação sistemática de todas as esferas da vida e do pensamento modernos umas das outras como outros tantos domínios técnicos, cada um intraduzível num outro. Em comum estava apenas a sua crise, igualmente visível na física, economia neoclássica, epistemologia canónica, política liberal do virar de século para não falar da divisão do trabalho, das operações do mercado e da organização do estado. Apenas o ‘pensamento negativo’ tinha sido capaz de agarrar a profundidade desta crise – Schopenhauer, Nietzsche, Wittgenstein, Heidegger. O que Hegel tinha juntado, eles recusaram: síntese dialéctica de qualquer espécie.

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O operaismo sempre fora anti‑historicista, ele era também anti‑humanista. Na Krisis de Cacciari (1976), encontrou agora inspiração na linha de pensadores niilistas, dos quais Nietzsche foi inicialmente o mais importante pela sua narrativa da vontade de poder, cuja encarnação contemporânea só podia ser o PCI. Mas não devia haver qualquer irracionalismo. O que a ‘cultura da crise’ exigia eram ordens e formas da racionalidade novas, específicas de cada prática. Assim ao guiar o partido em direcção aos seus objectivos, Weber e Schmitt – não Gramsci – foram os conselheiros indicados, cada um especialista em política como técnica lúcida, fria. Intelectualmente falando, uma rejeição mais meticulosa do Marxismo reverenciado no PCI, impregnado dum espírito hegeliano de síntese, seria difícil de imaginar. Mas, politicamente, a viragem nietzschiana do operaismo provou ser perfeitamente compatível com a linha oficial do partido no princípio dos anos 70. Porque o que poderia a vontade de poder querer dizer na Itália desse tempo? A resposta, argumentou Tronti, era clara: era a vocação do PCI para governar o país como o arquitecto duma aliança entre o trabalho organizado e o grande capital para modernizar a economia e a sociedade, de forma não diversa do New Deal na América, que ele sempre admirara – um pacto de salários e lucros contra o parasitismo das rendas. O PCI, que sempre fora tolerante com as diferenças teóricas contanto que não ameaçassem com perturbação política, acomodou os defensores do pensamento negativo sem dificuldade – por esta altura não era já capaz de se comprometer criticamente com tais afloramentos exóticos de qualquer modo. Sensível ao prestígio de que estes viriam a gozar, na devida ocasião assegurou‑lhes


honras na esfera política cuja autonomia tinham sustentado. Cacciari tornou‑se deputado do PCI antes de prosseguir fazendo carreira como prefeito de Veneza, onde está agora colocado; Tronti e Asor Rosa acabaram por ser feitos senadores. Inevitavelmente, o preço de tal integração num partido que tão conspicuamente falhou no terreno do poder em que eles o tinham nomeado, foi o desvanecer do operaismo como um paradigma coerente. Vinte anos depois, o PCI feito agora apenas memória, Asor Rosa comporia um melancólico balanço da esquerda italiana, ao qual ele e Tronti permaneceram fiéis à seu próprio estilo, enquanto Cacciari é hoje um ornamento da direita do Partido Democrático, combinando misticismo e tecnicismo – de forma nada desajustada para um admirador de Wittgenstein – numa política de outro modo muito semelhante à do New Labour. O legado intelectual do pensamento negativo foi pouco mais do que um culto árido de especialização e concomitante despoliticização, para quem veio depois. Na encruzilhada do final dos 60, Negri seguiu na direcção contrária, defendendo não um compacto entre capital e trabalho organizado, para a modernidade, sob a égide do PCI, mas uma escalada no conflito entre trabalho não organizado – ou desempregado – e o estado, em direcção à luta armada e à guerra civil. Depois do esmagamento da Autonomia da qual tinha sido o teórico, e da sua detenção por um magistrado comunista por acusações fraudulentas de ter idealizado a morte de Moro, o exílio em França produziu uma corrente constante de publicações, a mais notável sobre Spinoza. Aqui se preparou a metamorfose do trabalhador não‑fabril do fim do século 20 da Autonomia Operaia na figura do século 17 da ‘multidão’ no Império, escrito com Michael Hardt, apare-

VISTAS COMPARATIVAMENTE, AS SEMELHANÇAS DO OPERAISMO COM FILAMENTOS DO GAUCHISME QUE FLORIA EM FRANÇA NA DÉCADA DE MEADOS DOS 60 A MEADOS DOS 70, SÃO NOTÁVEIS – AINDA MAIS PELA FALTA DE QUALQUER CONTACTO DIRECTO ENTRE ELES.

cendo nos Estados Unidos muito antes de se ver impresso em Itália. Desde que famoso, o impacto internacional de Negri foi mais vasto do que a sua influência nacional, embora exista um público seguidor mais jovem. O mesmo é verdade para Giorgio Agamben, uma chegada tardia à constelação, compartilhando muitos pontos de referência com Cacciari – Heidegger, Benjamin, Schmitt – mas com uma inflexão política, pô‑los à parte. Vistas comparativamente, as semelhanças do operais‑ mo com filamentos do gauchisme que floria em França na década de meados dos 60 a meados dos 70, são notáveis – ainda mais pela falta de qualquer contacto directo entre eles. Parece ter sido uma concordância objectiva que levou pensadores em volta do Socialisme ou barbarie quase pelo mesmo caminho dos em volta de Contropiano, dum obreirismo 7 radical a um subjectivismo anti‑fundacional – embora nos Negri ou Agamben mais tardios, com as suas dívidas a Deleuze ou Foucault, correntes franceses e italianas fluíssem directamente para dentro um do outro. O resultado contrastante das duas experiências deverá ser largamente explicado por diferenças na situação nacional. Em França o PCF não oferecia nenhuma tentação e a revolta de Maio‑Junho de 1968 foi

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tão breve quanto espectacular. Em Itália, onde a rebelião popular durou muito mais tempo, o comunismo era menos fechado e os pensadores eram significativamente mais jovens, a vida após a morte do operaismo permanece maior, se bem que confinada às margens. A recuperação do Fascismo à direita, o eclipse do obreirismo à esquerda, mudaram o espaço do centro, no qual as versões seculares e clericais do juste milieu 8 têm tradicionalmente coexistido. Aí, paradoxalmente, o colapso da Democracia‑Cristã, terminando o domínio dum partido político abertamente Católico, em vez de diminuir o papel da religião na vida pública, redistribuiu‑o mais equilibradamente através do espectro político do que alguma vez no passado. Pois os votantes da DC não só muitas vezes se dividiram equilibradamente entre o centro‑direita e o centro‑esquerda, como também se revelaram o sector singular mais volátil do eleitorado, tornando‑os um ‘factor de oscilação’ ainda mais ansiosamente prezado pelos blocos em competição. Correndo atrás deles, antigos líderes do PCI, para não falar de ex‑radicais, caíram no fracasso ao explicar a sua sensibilidade religiosa privada, a assistência à missa desde tenra idade, a vocação espiritual oculta e outros requisitos


O QUE A IGREJA PERDEU COM A PASSAGEM DUM PARTIDO DE MASSAS DE OBEDIÊNCIA ESTRITA, GANHOU COM A DIFUSÃO DE UMA INFLUÊNCIA. COM ISTO HOUVE UMA DESCIDA A NÍVEIS DA SUPERSTIÇÃO NÃO VISTOS HÁ MUITOS ANOS: O FRUTO DA OCUPAÇÃO POR WOJTYLA DO TRONO PAPAL, QUANDO MAIS BEATIFICAÇÕES FORAM PRONUNCIADAS (798) E MAIS SANTOS FORAM FEITOS (280) DO QUE NOS DE CINCO SÉCULOS ANTERIORES TODOS SOMADOS. VÍRUS MAIO/JUNHO 2010

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de uma política pós‑secular. Com efeito, o que a Igreja perdeu com a passagem dum partido de massas de obediência estrita, ganhou com a difusão de uma influência, se porventura de temperatura mais branda, mais penetrante no conjunto da sociedade. Com isto houve uma descida a níveis da superstição não vistos há muitos anos: o fruto da ocupação por Wojtyla do trono papal, quando mais beatificações foram pronunciadas (798) e mais santos foram feitos (280) do que nos de cinco séculos anteriores todos somados, o número de milagres necessários para a santificação se cortou para metade e o culto grotesco do Padre Pio – um Capuchinho divinamente visitado por estigmas em 1918, autor dum qualquer número de feitos sobrenaturais – subiu pelos ares, chegando ao ponto da imprensa dominante poder com toda a seriedade discutir a veracidade dos seus triunfos sobre as meras leis da ciência. Uma cultura secular capaz deste grau da complacência em relação à crença não será provavelmente mais combativa em relação ao poder. Sob a Segunda República, a opinião nos órgãos centrais da cultura editorial italiana desviou‑se raramente da doxa 9 neoliberal do seu período. A maior parte da sua produção neste período não se distinguia do que se pode encontrar nos jornais neo‑tablóides da Espanha, França, Alemanha, Inglaterra ou doutro lugar. Nenhum comentarista com auto‑respeito deixou de pedir reformas que curassem os males de sociedade, para os quais o remédio era sempre a necessidade de mais competição nos serviços e no ensino, mais liberdade para o mercado na produção e consumo e um estado mais disciplinado e simplificado, com variações girando apenas quanto aos adoçantes a serem oferecidos a quem estivesse no extremo da recepção dos

ajustamentos necessários. Uma conformidade deste tipo tem sido tão universal que não teria sido razoável ter esperado que colunistas e jornalistas italianos mostrassem mais independência de espírito. A atitude da imprensa em relação à a lei é outra questão. Na vanguarda dos matizes e gritos contra a classe política da Primeira República– depois dos magistrados terem lançado ataque à sua corrupção – a imprensa revelou‑se notavelmente submissa desde que Berlusconi se estabeleceu como peça central da nova ordem, limitando‑se na sua maioria a críticas proforma, sem uma ponta da guerre à l’outrance 10 que lhe poderia realmente ter causado danos ou expulso de cena. Para isso, o seu fogo teria tido de ser dirigido não apenas contra o próprio Berlusconi, mas também contra os juízes que regularmente o absolveram, o estatuto de limitações que esvaziou as acusações contra ele, as presidências que lhe asseguraram imunidade e os partidos de centro‑esquerda que o tornaram num interlocutor de facto prezado e aceite. Nada pode estar mais longe do sentido geral da imprensa nesses anos, onde as queixas por negligência são regularmente tingidas de medo e servilismo. A debilidade deste registo é realçada pelas raras excepções. Dessas, uma destaca‑se acima de todas, a do repórter Marco Travaglio, cujas acusações implacáveis não somente das criminalidades de Berlusconi ou Previti, mas do sistema inteiro de conivências que os protegeu, e não somenos as da própria imprensa, têm pouco paralelo no mundo amansado do jornalismo europeu desses anos. Sem surpresa, Travaglio, cujos livros se venderam às centenas de milhares, é uma figura da direita liberal, exprimindo‑se com uma ferocidade e uma liberdade de tom quase desconhecidos à esquerda [†].

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Na Europa – isto não é verdadeiro, pelo menos do mesmo modo que na América – o mundo dos meios de comunicação por via de regra reflecte mais do que cria a condição duma cultura, cuja qualidade depende, no final de contas, muito mais do estado das universidades. Em Itália, notoriamente, estas permaneceram arcaicas e subfinanciadas, muitas reservatórios da intriga burocrática e da clientela baronial dos departamentos. O resultado foi uma perda constante das melhores mentes do país para postos no estrangeiro. Virtualmente cada uma das disciplinas foi afectada, como demonstra o rol de eruditos principais baseados ou a trabalhar por longos períodos nos Estados Unidos: Luca Cavalli‑Sforza na genética, Giovanni Sartori na ciência política, Franco Modigliani na economia, Carlo Ginzburg na história, Giovanni Arrighi na sociologia, Franco Moretti na literatura, a quem nomes mais jovens poderiam ser acrescentados. Não uma diáspora num sentido forte, uma vez que quase todos mantiveram as suas ligações à Itáia, a maior parte ainda participando dum modo ou doutro na sua vida intelectual, a sua ausêcia contudo enfraqueceu obviamente a cultura que os produziu. Se é provável algum recrutamento comparável provir das circunstâncias dos últimos anos, está para se ver. A julgar pela aparência, as possibilidades pareceriam fracas. Mas seria um erro subestimar a profundidade das reservas das quais o país pode sacar. Um relance pela Espanha, cuja modernização é agora muitas vezes apoiada por Italianos autocríticos como modelo do que perderam, é uma lembrança delas. Embora o seu crescimento económico fosse mais alto, o sistema de transportes mais rápido, as instituições políticas mais funcionais, o crime organizado menos espalhado e o desenvolvi-


mento regional mais igual – todos os ganhos reais em relação à Itália – a Espanha permanece em comparação uma cultura provinciana, com uma vida intelectual muito mais estreita e mais derivada, cujo relativo atraso é sublinhado pelas modernidades que a rodeiam. Com todo o mau estado do país, a contribuição italiana para as letras contemporâneas é duma ordem diferente. Nenhum país na Europa, de facto, produziu recentemente um monumento de erudição global que iguale os cinco volumes da história internacional e da morfologia do romance editados por Moretti, e publicados pela Einaudi – uma empresa de magnificência peculiarmente italiana, de cuja escala o leitor anglófono tem só um vislumbre na versão de segunda‑mão, parcimoniosa em compaixão e espírito, editada por Princeton. Nem é tão pouco difícil encontrar exemplos duma capacidade italiana incessante para abanar no estrangeiro os paradigmas recebidos. As ‘Pistas’ de Ginzburg, para não falar do seu ensaio que reconstrói Dumézil, que nenhum historiador francês tentou, seriam um caso; o livro recente do classicista eminente Luciano Canfora sobre a democracia, censurado pelo seu editor indignado na Alemanha, seria outro; a demolição da ‘justiça internacional’ do cientista político Danilo Zolo, um terceiro. Tais tradições não morrem facilmente. O que há de oposição política, além da ordem estabelecida inter‑partidos? De meados dos anos 60 em diante, o Comunismo italiano teve outro filamento, nem oficial nem operaista, que permaneceu mais autenticamente gramsciano que qualquer coisa que a sua liderança pudesse oferecer, ou por fim tolerar. Expulso em 1969, o grupo do Manifesto em torno de Lucio Magri, Rossana Rossanda e Luciana Castellina continuou a criar o jor-

nal com aquele nome que permanece, até hoje, o diário genuinamente radical da Europa. Ao longo dos anos, foi esta corrente que produziu de longe a análise estratégica mais coerente e incisiva dos problemas que a esquerda e o país no seu conjunto enfrentam – descendente de Hegel, sem surpresa, fornecendo melhor equipamento para a tarefa do que a fascinação com Heidegger. Hoje o seu legado está no equilíbrio, as suas três figuras principais compondo memoriais da sua experiência, cada um dos quais será significativo. O primeiro a aparecer, a Ra‑ gazza del secolo scorso cuidadosamente elegante de Rossanda, tem sido um sucesso de vendas nacional. Mas em 2005 o seu jornal foi fechado, e o diário está agora, no meio do aperto do crédito, em risco de desaparecer. MicroMega, o espesso bimensal editado pelo filósofo Paolo Flores d’Arcais, não está em semelhante perigo, sendo parte do império editorial cujas peças de exibição são o diário romano La repubblica e a revista de notícias semanal L’espresso. Sob a Segunda República, Flores tornou o seu jornal o organizador da frente mais inflexível e eficaz da hostilidade a Berlusconi na Itália, desempenhando um papel político único na UE para uma publicação intelectual deste tipo. Um ano depois da vitória do centro‑direita em 2001, foi daí que uma onda de protestos de massas contra Berlusconi impressionante foi lançada, de fora e contra a passividade do centro‑esquerda. Entre esses, duas outras figuras desempenharam um papel central. Uma foi Nanni Moretti, o actor/realizador mais popular do país, cujo cinema tem seguido a pista da dissolução do PCI e das suas partículas por mais duma década de modo crítico, se bem que muitas vezes encantador. O outro foi o historiador Paul Ginsborg, autor de duas das mais preponderantes histórias da Itália

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do pós‑guerra, um Inglês a dar aulas na Florença distinguido não só como erudito mas agora como cidadão no seu país adoptivo. Na segunda das suas histórias, cobrindo o período de 1980 a 1996, publicada em inglês com o nome Italy and Its Discontents (e nesta edição chegando apenas em 2001), Ginsborg avançou a hipótese de que, com todo o egoísmo e ganância do seu estrato yuppy – os ceti rampanti que floresceram sob Craxi – existia a seu par na classe média italiana um sector de profissionais mais atenciosos, com consciência cívica e de empregados públicos (ceti medi riflessivi) quem eram capazes de acções altruístas e que formaram uma fonte potencial de renovação da democracia italiana. A proposta encontrou algum cepticismo quando a desenvolveu. Mas em 2002 tornou‑se realidade. Uma vez que foi a camada que ele identificara que essencialmente forneceu as tropas para as manifestações contra Berlusconi desse ano. Nisso, contudo, também residia a sua limitação. A forma distintiva que assumiam – manifestantes dando‑se as mãos em volta de edifícios públicos – foi rapidamente alcunhada como girotondi na imprensa, ou canção de vai‑de‑roda ‘O Anel’. Pretendendo simbolizar o espírito pacífico, defensivo do movimento, o resultado foi dar‑lhe o ar demasiado fácil dum jogo de crianças. Os partidos de centro‑esquerda, não só não gostando da repreensão que lhes era feita, mas temendo a competição política, fizeram pouco para esconder a sua hostilidade. Os girotondini não responderam na mesma moeda. Determinados em evitar qualquer acções tempestuosas do tipo da que fora ao encontro do G7 em Génova e esperando em vão por uma aliança com líderes sindicais penhorados ao centro‑esquerda, o movimento viu‑se inibido de montar qualquer ofensiva mais dura contra o


governo, menos ainda contra os seus cúmplices da oposição e, por fim, desfeito pela sua auto‑imagem de bon enfant, não se pôde sustentar. Quando, para fúria de Veltroni, o MicroMega corajosamente apelou a outra manifestação de massas contra o regresso de Berlusconi ao poder na Piazza Navona no Verão passado, as contradições subjacentes dos giroton‑ dini irromperam de forma visível, Moretti e metade da plataforma dissociando‑se dos oradores mais radicais, que esta vez não pouparam Napolitano, o PD ou a Rifondazione Comunista. Tal como as circunlocuções impenetráveis da Primeira República tardia produziram como reacção as cruezas calculadas da Liga do Norte, também nesta ocasião o puritanismo da maior parte da retórica dos girotondi, mais dados a implorar do que atacar ferozmente, fez detonar o seu contrário, uma rudeza exibicionista em imagem e idioma – as gabarolices de quarto de Berlusconi virtualmente convidam a isso – desde comediantes famosos por detestarem a classe política, ao embaraço agudo dos que pareciam os mais bem comportados da praça, mas aparentemente não, a ajuizar pelas sondagens de opinião, até à maior parte do próprio eleitorado de centro‑esquerda. Politicamente falando, o episódio pode ser lido como uma micro‑versão da polarização dos anos 70, ansiosas propiciações de cima mais uma vez provocando explosões iradas a partir de baixo. No Outono, tais tensões dissolveram‑se na torrente de protestos estudantis contra os cortes no financiamento do ensino e a compressão da escolaridade, aprovada pela votação do centro‑direita e uma – mais limitada – mobilização de sindicatos contra a resposta económica do governo à recessão global. As concessões ganhas são de menos significado do que a escala dos próprios

movimentos. Mas esse padrão de retiradas tácticas de Berlusconi e de vagas temporárias de ira popular contra ele não é novo. Como isto se poderia alterar, à medida que pioram as condições económicas, está para se ver. Deixando para trás os perigosos instrumentos do carpinteiro e do agricultor, a esquerda italiana adoptou um símbolo após outro, do reino vegetal ou saído do nada – a rosa, o carvalho, a oliveira, a margarida, o arco‑íris. Sem algum lampejo de metalurgia, parece pouco provável que faça muito progresso. TRADUÇÃO DE PAULA SEQUEIROS

NOTAS [*] o termo italiano não tem a conotação anti‑intelectual de workerism em inglês, ou ouvriérisme em francês [N.T.: ou ainda de obreirismo em português]. [†] L’odore dei soldi, de Marco Travaglio e Elio Veltri (Editori Riuniti, 2001); La scomparsa dei fatti (Il Saggiatore, 2006); Mani sporche, de Marco Travaglio, Gianni Barbacetto e Peter Gomez (Chiarelettere, 914 p., €19.60, 2007, 978 88 6190 002 8); Il bavaglio, de Marco Travaglio, Peter Gomez e Marco Lillo (Chiarelettere, 240 p., €12, 2008, 978 88 6190 062 2). NOTAS DE TRADUÇÃO: 1 – Mais papistas que o Papa 2 – o pior inimigo de uma pessoa, normalmente alguém ou algo que é exactamente o oposto de si mas que é, também, de algum modo muito semelhante a si. […] algo como o seu arquiinimigo, algo que o anula, mas nutre‑lhe um grande respeito e admiração. apud Wikipedia 3 – a título pessoal 4 – pontos de honra 5 – esquerda invertebrada 6 – A «enquête ouvrière» (inquérito operário), é uma obra de Marx escrita em 1880 e publicada pela Revue Socialiste; pode saber mais em http://bataillesocialiste.wordpress.com/2008/07/28/lenquete‑ouvriere‑de‑marx‑rubel‑1957/ 7 – no original workerism, equivalente inglês de operaismo 8 – o meio certo, entre extremos 9 – crença comum ou opinião popular, apud Wikipedia 10 – guerra total

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“I LIKE GODS, I UNDERSTAND THEM” JORGE CAMPOS

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“I LIKE GODS, I UNDERSTAND THEM”

JORGE CAMPOS | DOCUMENTARISTA, PROFESSOR DA ESMAE

3 declinações e outras tantas derivas em torno da cultura do poder e do poder da cultura seguidas do esboço de um quadro de referências sobre políticas culturais eventualmente reversível a favor de uma ecologia política.

1. ESTA HISTÓRIA, NA QUAL SE FALARÁ DE CULtura e eventuais declinações dela, começa na Universidade de Salamanca no Dia da Raça em 12 de Outubro de 1936. O episódio é conhecido e recorrentemente evocado. Os protagonistas são José Millán‑Astray e Miguel de Unamuno. O primeiro, fundador e comandante da Legião Estrangeira Espanhola, de quem se diz ter derrotado durante as sublevações filipinas dois mil rebeldes à frente de apenas 30 homens, façanha bastante para dele fazer um herói de guerra coberto de louvores e de medalhas, prenúncio do mito fascista em que a circunstância de ter perdido o braço esquerdo e o olho direito em combate em Marrocos o viria a transformar: el glorioso mutilado. O segundo, escritor e filósofo, autor de um célebre ensaio intitulado O Sentido Trágico da Vida, no qual procurou lidar com o conflito existencialista do homem perante a incerteza trazida pela presença da morte – afinal, tal como no Quixote, uma tentativa de conferir sentido moral à vida – que, sendo embora basco, trocou, a partir de determinada altura, o internacionalismo pelo nacionalismo, para logo após se insurgir contra o generalíssimo Franco e a sua ordem negra. Seja então este o ponto de partida para a nossa primeira declinação e correspondente deriva sobre a cultura do poder e o poder da cultura. Reza a História, que aqui terá revertido em lenda sem, todavia, deixar de ser História, que nesse Dia da

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Raça, expressão oblíqua e, porventura, suspeita, entendeu um tal professor Maldonado fazer um discurso incendiário no qual a Catalunha e o País Basco eram vistos como os cancros do corpo da nação que o feitiço do fascismo, palavras dele, Maldonado, haveria de extirpar para expor sem falso sentimentalismo a carne viva das gentes dessas terras. Alguém de entre a multidão rejubilou gritando Viva la muerte! ao que Millán‑Astray de olho vendado e prótese de luva branca respondeu España!, dando início ao ritual falangista da saudação romana como se a ginástica do braço levantado conferisse irrefutável evidência à razão da vozearia levantada. Quando finalmente se fez o silêncio conveniente à solenidade da ocasião, como previsto, levantou‑se para falar Miguel de Unamuno, Reitor da Universidade de Salamanca. O seu olhar terá, porventura, embaraçado o Bispo, por sinal um catalão, inquietado a turba inflamada de legionários e até, talvez, quem sabe, causado um imprevisto estremecimento na sorridente Carmen Polo, La Señora, mulher de Franco, como sempre devota e enrolada num colar de pérolas. Disse Unamuno: “Por vezes ficar em silêncio é mentir porque o silêncio pode ser interpretado por consentimento. O general Milllán‑Astray é um inválido. Não há necessidade de o comentar em segredo.


É um inválido de guerra. Tal como Cervantes. Mas, infeliz‑ mente, em Espanha há hoje demasiados inválidos. E, se Deus não nos ajudar, em breve haverá muitos mais. Atormenta‑me pensar que o general Millán‑Astray possa ditar normas de psicologia de massas. Um inválido, a quem falta a grandeza espiritual de Cervantes, espera encontrar alívio aumentando o número de inválidos à sua volta.” Fora de si, Mlillán‑Astray gritou: “Muera la inteligencia! Viva la muerte!” A vozearia, agora ameaçadora, só a custo foi em parte serenada pela intervenção de alguns sábios de togas esvoaçantes em sobressalto pela aparência das coisas que, pela sua natureza, deviam dar‑se à aparência do respeito. Antes tivessem logo ali dado o acto por terminado porque Unamuno prosseguiu, dirigindo‑se ao maneta: “Vencereis porque tendes a força bruta. Mas não conven‑ cereis. Para convencer é necessário persuadir e para persuadir é necessário ter algo que a si lhe falta: a razão e a justiça. É inútil pedir‑lhe que pense na Espanha.” Não sei se o relato é rigoroso. Segundo alguns, a enormidade sobre os bascos e catalães terá sido não do infeliz Maldonado mas do excêntrico general, algo, aliás, de todo compatível com os dados constantes da sua aterradora biografia. Seja como for, no plano simbólico, independentemente das questões de pormenor, o episódio não deixa de ser exemplar. Em Unamuno a cultura é insurgente, inseparável da prática da cidadania. Millán‑Astray protagoniza a cultura de um poder

cego e castrador, tal como aquele outro inválido, Joseph Goebbels, que um dia proclamou: “Quando ouço falar de cultura, puxo do revólver.” Unamuno, para quem sabedoria e poética convergiam no mesmo propósito de amadurecimento existencial, iria morrer dois meses depois da peculiar celebração na Universidade de Salamanca. Ao cabo de mais de 40 anos a ensinar Filosofia afirmava, nessa altura, não estar certo sobre o que seria exactamente a cultura. O mesmo aplicar‑se‑ia ao ensino, paradoxalmente visto como um desígnio e uma ameaça. Olhando para os manuais escolares fica‑se com a ideia, dizia ele, de que as crianças são vistas como uma espécie de cobaias dos psicólogos, podendo ser amestradas como os animais. E reportando à cultura e à função de ensinar, acrescentava: “Sócrates não era um professor, mas um vagabundo. De‑ ambulava pelas ruas de Atenas falando com toda a gente. É isso a cultura.” Ao longo do percurso da sua vida – durante o qual produziu uma obra reflectindo, no essencial, a ideia do primado da consciência moral do indivíduo como condição de uma humanidade responsável – Unamuno teve seguidores, críticos e detractores. Alguns, consoante as circunstâncias, foram tudo isso numa mesma pessoa, o que é razoável. Com Millán‑Astray foi diferente. Sempre teve ou serventuários fanáticos ou inimigos implacáveis. Certo, a determinada altura tornou‑se incómodo até para os seus correligionários, mas na altura do episódio de Salamanca o seu elevado padrão de pensamento

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dando vivas à morte e proclamando a morte da inteligência já lhe tinha garantido o lugar de responsável falangista da Imprensa e da Propaganda. Asseguram múltiplos testemunhos que impôs uma disciplina de caserna nos meios de comunicação e que bastava‑lhe assobiar para ter à sua volta uma corte de jornalistas que tratava como aos seus legionários nas campanhas de África. No seu meio, este homem, sempre pronto a gabar‑se dos actos de bravura e das proezas sexuais, era considerado imensamente culto, admirador de clássicos japoneses e indefectível da violência como forma de dirimir conflitos. A sua noção de cultura não seria certamente a de alguém deambulando pelas ruas falando livremente com toda a gente. 2. A CULTURA, SEJA QUAL FOR DELA O ENTEN‑ dimento, resulta naturalmente do pensamento do homem e, assim sendo, pode ser encarada de múltiplos ângulos e suscitar diferentes interpretações. Em todo o caso, será sempre uma ideia. Numa das suas versões mais consensuais, de carácter antropológico, corresponde a um conjunto de práticas e acções sociais, as quais conferem identidade própria a um grupo humano e, nessa medida, remetem para uma espécie de cosmologia social. Aí cabem as manifestações artísticas, a língua, as crenças e os mitos, a religião, usos e costumes, instituições, a organização social, enfim, tudo quanto nas sociedades humanas possa dizer respeito à sua composição, estrutura e evolução. Assim sendo, é inevitável inferir que as práticas e acções sociais não são exclusivamente conformadoras. Sendo dinâmicas, são também agentes da mudança, eventualmente em conflito com a ordem estabelecida, o que nos conduz a uma segunda declina-


ção e a uma outra deriva sobre a cultura do poder e o poder da cultura. Sócrates, para além de se recusar a receber dinheiro dos seus discípulos ousara questionar a ordem dos deuses, o que punha em causa a ordem da cidade. Os deuses gregos eram tolerantes, mas a justiça foi cega e Sócrates, entendendo dever respeitar as leis de Atenas, em consciência, bebeu a sicuta, ele e os seus discípulos. O sacrifício, sendo um gesto de protesto, tal como o do monge vietnamita ou do estudante checo que se imolaram pelo fogo, num caso para denunciar a brutalidade da guerra levada a cabo pelos Estados Unidos no Vietname, no outro em sinal de repúdio pela entrada dos tanques do Pacto de Varsóvia em Praga, foi um acto de cidadania. Ou seja, a cultura tem um lado insurgente e todo o acto de cidadania – como todo o acto político – tem ressonância cultural. Em O Desprezo (1963), filme de Jean‑Luc Godard baseado no romance homónimo de Alberto Morávia, que trata da mercantilização das relações humanas e do valor de uso atribuído aos bens culturais, é isso mesmo o que está em causa. Por forma a problematizar o sentido da arte e da vida Godard imagina o cineasta Fritz Lang a realizar uma adaptação de A Odisseia de Homero para um produtor americano deslumbrado com o cinemascope e que acha que o filme deve ter tudo quanto ele possa pagar. Explorando uma variedade de subtextos consequente de hipóteses semânticas e narrativas contidas no universo dos deuses gregos e das suas mitologias, O Desprezo acaba por reverter num argumento favorável à liberdade de criação questionando o exclusivo do mercado para decidir sobre a legitimidade das politicas da produção cinematográfica.

EM O DESPREZO, POR FORMA A PROBLEMATIZAR O SENTIDO DA ARTE E DA VIDA, GODARD IMAGINA O CINEASTA FRITZ LANG A REALIZAR UMA ADAPTAÇÃO DE A ODISSEIA DE HOMERO PARA UM PRODUTOR AMERICANO DESLUMBRADO COM O CINEMASCOPE E QUE ACHA QUE O FILME DEVE TER TUDO QUANTO ELE POSSA PAGAR.

Para tanto, Godard serve‑se de alguns artifícios a começar pela escolha dos actores: Brigitte Bardot, provavelmente o maior símbolo sexual do cinema dos anos 60; Michel Piccoli, um dos actores fétiche da nouvelle va‑ gue; Fritz Lang, figura de culto dos cineastas, mestre dos estúdios de Weimar e, mais tarde, realizador problemático na indústria de Hollywood; e Jack Palance, vilão cínico das fitas de série B americanas. Todos eles correspondem a uma determinada iconografia do cinema, território propício à criação de mitos. Daí o primeiro artifício de Godard: Bardot, ainda que represente Camille, nunca deixa de ser Bardot; Piccoli, sendo Paul Laval, é, na verdade, Piccoli; Fritz Lang faz de Fritz Lang ainda que, como e verá, possa não ser exactamente Fritz Lang; Jack Palance chamar‑se‑á Proshock, mas será sempre igual à imagem que o público tem de Jack Palance. Ao proceder deste modo Godard joga com as expectativas ou pré‑disposições de um público à partida, pelo menos, com um mínimo de informação sobre as múltiplas faces do cinema, as quais, no filme, aparecem metaforicamente identificadas com os rostos dos protagonistas. O segundo artifício de Godard é corolário do primeiro: se na Odisseia de Homero prevalece uma certa

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ideia da viagem de Ulisses, herói de Tróia, e de todos os perigos que ela encerra porque os deuses que comandam o destino dos homens são dados a caprichos e não se entendem, em O Desprezo o sentido da viagem consiste em explorar dialecticamente a deterioração e degradação das relações humanas no contexto de uma ordem de produção simbólica baseada no poder do dinheiro o que, eventualmente, conduz à prostituição. Vejamos. Prokosh, o produtor americano, assiste à projecção de alguns rushes de A Odisseia na companhia de Fritz Lang, de uma pragmática colaboradora para todo o serviço e do dramaturgo Paul Laval chamado para alterar o argumento que não agrada ao produtor. No ecrã vêem‑se imagens de estátuas das divindades gregas recortadas contra o azul intenso de um céu sem mácula. Prokosh reclama mais acção e só manifesta agrado quando surge uma mulher nua, aliás, uma sereia, a nadar em águas transparentes. Tudo o mais lhe parece inadequado, apesar do cinemascope deslumbrante que Lang, de resto, desvaloriza, procurando, antes, defender o direito ao ponto de vista do cineasta, para o caso a luta do homem contra circunstâncias adversas, ou seja, Ulisses desafiando os deuses com o apoio de Minerva e a oposição de Poseídon.


QUANDO LANG SUGERE QUE OS DEUSES SÃO UMA CRIAÇÃO DO HOMEM E NÃO O CONTRÁRIO, PROKOSH, DANDO SINAIS DE UMA IRRITAÇÃO CRESCENTE, SOBE AO PALCO E ASSUMINDO A POSIÇÃO DO DISCÓBOLO LANÇA VIOLENTAMENTE A LATA DE UM ROLO DE FILME FAZENDO‑A VOAR SOBRE A CABEÇA DOS PRESENTES. DIZ: “QUANDO OUÇO FALAR DE CULTURA PUXO DO LIVRO DE CHEQUES.”

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Quando Lang sugere que os deuses são uma criação do homem e não o contrário, Prokosh, dando sinais de uma irritação crescente, sobe ao palco e assumindo a posição do discóbolo lança violentamente a lata de um rolo de filme fazendo‑a voar sobre a cabeça dos presentes. Diz: “Quando ouço falar de cultura puxo do livro de cheques.” Apoiado nas costas da colaboradora servil assina um cheque que é entregue a Laval com uma pergunta exigindo resposta imediata: “Aceita ou não reescrever o argumento?” Que quer isto dizer? Pois bem, se o cinema for encarado como um desafio cultural, transportando consigo alguma marca no sentido de problematizar a vida, então é legítimo puxar do livro de cheques para impor a funcionalidade sedativa do entertainment que dá colorido à evasão. Laval dobra o cheque, guarda‑o no bolso do casaco e sai da sala acompanhado das palavras sibilinas de Prokosh: “I like Gods, I understand them.” Se necessário, portanto, Prokosh corrompe. Godard opera assim, no plano simbólico, a metamorfose em função da qual o produtor toma o lugar de Poseídon, o deus caprichoso, e ele próprio, Godard, através do seu alter ego Fritz Lang, é levado a identificar‑se com Ulisses, o viajante que ousara desafiar os deuses. Mas, não será esse, justamente, o papel dos criadores, retirar aos deuses o exclusivo da criação? Dito isto, esclareça‑se: o entertainment não é necessariamente negativo, eticamente reprovável ou artisti-

camente irrelevante. Numa conversa entre Fritz Lang e Jean‑Luc Godard gravada para a televisão francesa algum tempo após a estreia de O Desprezo o cineasta alemão, recordando a sua passagem por Hollywood, dizia nada ter contra a filosofia da indústria cinematográfica americana. O problema, segundo ele, é que todos os filmes produzidos nesse contexto se assemelhavam e, por isso, depois de ver, por exemplo, Cleópatra, não sentia grande curiosidade em voltar a ver filmes semelhantes – estávamos nos anos 60 e só na década seguinte, na América, haveria um movimento com Bogdanovich, Cassavetes, Scorcese e Coppola, entre outros, a reclamar o primado do director. De qualquer modo, o entretenimento – utilizo agora, propositadamente, a palavra portuguesa cujo sentido é mais lato – também faz parte da cultura sendo, como tal, tão legítimo quanto as manifestações artísticas mais eruditas. O que poderá ser inquietante, numa visão actualizada do que Prokosh representa, é a aceitação da legitimidade do entretenimento como forma cultural dominante e preferencialmente exclusiva em nome de uma pós‑modernidade caracterizada pela fragmentação do espaço e do tempo e de uma exacerbação do individualismo e do consumismo que exige tudo fazer reverter em espectáculo porque tudo é mercadoria e a mercadoria deve vender. A ser assim, há, evidentemente, uma pedagogia do consumo de tal forma hegemónica que caberá perguntar se ainda sobra lugar, e onde, para algum tipo de pedagogia da cidadania? 3. ESTA PÓS‑MODERNIDADE, PARA ALGUNS equivalente à lógica cultural do capitalismo tardio, para outros expressão das tendências e políticas neo‑conser-

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vadoras, encontra na televisão talvez a sua expressão mais acabada. Na televisão, com efeito, o entretenimento alinhado pelo menor denominador cultural comum parece ter tomado conta de tudo. Haverá certamente excepções, mas a verdade é que a pedagogia do consumo associada à sociedade do espectáculo ocupa a esmagadora maioria da programação, mesmo na televisão dita de serviço público. Nem o telejornal e outros espaços noticiosos escapam a essa tendência dominante. Danny Schechter – o autor do documentário Weapons of mass deception, filme sobre a opção pela propaganda da televisão americana durante os primeiros tempos da guerra do Iraque – escreveu a esse propósito um livro com um título revelador: “The more you see, the less you know” E assim chegamos à nossa terceira e última declinação e uma nova deriva. Em primeiro lugar importa reter que esta perversão do sistema democrático, aliás, sempre justificada em nome da liberdade de informação, tem antecedentes. A partir dos anos 80, a transformação da paleo‑televisão, com o seu contrato de comunicação espelhado na delimitação dos géneros e numa divisão específica dos públicos, em neo‑televisão com a sua perspectiva participativa e de segmentação, entre outras múltiplas consequências, alterou radicalmente o modo de fazer os telejornais. A televisão passou a operar com base essencialmente em três pressupostos: a pretexto daquilo que seria a sua natureza, teria de apelar fundamentalmente à emoção; o seu enfoque centrou‑se mais na esfera privada – o termo gossip utilizado por alguns analistas é esclarecedor – do que na esfera pública e daí


a fulanização da vida politica; a sua missão inclinou‑se a favor da frivolidade com prejuízo do esclarecimento plural para efeito de formar opinião ou tomar decisões. Perante estes pressupostos, dos quais releva como corolário, segundo os programadores, uma maior eficácia na competição pelas audiências, o dispositivo semiótico do telejornal concentrou‑se na criação de uma atmosfera de entropia, na qual os protagonistas se multiplicam em desempenhos e se opera a metamorfose do espaço do estúdio em metáfora do mundo. Superfícies arrojadas, cores quentes, silhuetas humanas activas em sucessivas escalas da profundidade de campo, múltiplos ecrãs supostamente ligados às várias partidas do mundo e a figura totémica do apresentador sobre quem o plano médio faz incidir todas as atenções e de quem se espera venha introduzir alguma ordem discursiva e narrativa no caos do mundo. As reportagens, por via de regra, são previsíveis: texto off, entrevista, repórter em campo. Em muitos casos, a mediação jornalística é minimal obedecendo à perspectiva do go between, embora o jornalista mensageiro possa alcançar notoriedade e tornar‑se numa espécie de oráculo falando sobre tudo e todos como ironicamente demonstrou Alain Woodrow. Dada a sua notoriedade, pode até substituir‑se facilmente à notícia. Concebida para ser exibida num contexto de ruído, tendo de conviver com informações variadas que passam ininterruptamente em rodapé, ocupando um espaço saturado de signos, a reportagem tende, enfim, a tratar os assuntos como faits divers, sem preocupações de ordem sintáctica ou sintagmática no plano da imagem e quanto á ética, bom, como afirma Hartley a necessidade de alcançar o máximo de audiência obriga o jornalismo a servir dois donos, “info’ and ‘tainment.”

OS GÉNEROS JORNALÍSTICOS PASSARAM A ADOPTAR PROCEDIMENTOS DE FORMATOS NÃO JORNALÍSTICOS, PODENDO, POR VEZES, CULMINAR PURA E SIMPLESMENTE NA INVENÇÃO DE NOTÍCIAS COMO ROBERT GREENWALD FEZ PROVA NO SEU DOCUMENTÁRIO OUTFOXED AO DESMONTAR AS MÚLTIPLAS MÁSCARAS DA FOX NEWS DE RUPERT MURDOCH

Neste contexto, os géneros jornalísticos passaram a adoptar procedimentos de formatos não jornalísticos, podendo, por vezes, culminar pura e simplesmente na invenção de notícias como Robert Greenwald fez prova no seu documentário Outfoxed ao desmontar as múltiplas máscaras da Fox News de Rupert Murdoch – por cá também não faltariam exemplos edificantes, mas evitemos o melindre. A Fox News, cuja maior estrela dá pelo nome de Bill O’Reilly, nos meses subsequentes à invasão do Iraque, apesar dos milhares de mortos e dos atentados diários, procurou fazer passar a imagem de um País em vias de reconciliação consigo mesmo e cheio de gente feliz. Quanto a O’Reilly trata‑se de um entertainer peculiar. Nas suas entrevistas supostamente jornalísticas não tem qualquer problema em julgar publicamente os seus convidados, insultá‑los, mandá‑los calar e até chamar os serviços de segurança para os pôr fora do estúdio como fez com o filho de uma das vítimas do ataque terrorista às torres gémeas em 11 de Setembro. A história conta‑se em meia dúzia de linhas. Por qualquer razão o apresentador soube da participação de Jeremy Glick, assim se chamava o jovem, em manifes-

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tações contra a guerra. Entre outras coisas, exaltado e de dedo em riste, perguntou‑lhe se não sentia vergonha, tendo perdido o pai naquelas circunstâncias, de se manifestar contra o presidente Bush, e comentou: “espero que a tua mãe não esteja agora a ver‑te em casa porque és uma vergonha, são pessoas como tu que estão a dar cabo deste país”. Como Glick argumentasse que era justamente por ser um patriota que entendia ser necessário denunciar a politica belicista da administração americana, considerando‑a até co‑responsável pela morte do pai, O’Reilly torpedeou‑o com insultos e deu ordem para o porem imediatamente na rua. Abriu o programa seguinte com uma explicação: “Se um convidado vosso fosse a vossa casa para vos cuspir na cara, vocês tomariam uma atitude dife‑ rente?” Acredite‑se ou não, onze meses volvidos a estrela televisiva da Fox News ainda falava do assunto. O caso meteu advogados, foi comentado de diversas maneiras por especialistas de todos os tipos, a favor e contra, mais contra, diga‑se, mas depois de ter sido considerado mentiroso compulsivo, paranóico, a nódoa do jornalismo e outras coisas mais o justiceiro O’Reilly viu, naturalmente, digo eu, dadas as circunstâncias, a sua popularidade


FELIZMENTE, HÁ UMA TRADIÇÃO RECORRENTE NA DEMOCRACIA AMERICANA DE ESCRUTÍNIO DA COISA PÚBLICA, TAL COMO ACONTECERA NO TEMPO DA “CAÇA ÀS BRUXAS” DO SENADOR JOSEPH MCCARTHY, TEMA, ALIÁS, RECICLADO POR GEORGE CLOONEY EM GOOD NIGHT AND GOOD LUCK COM O INTUITO DE, INVOCANDO O EXEMPLO DO MÍTICO JORNALISTA DA CBS EDWARD R. MURROW, CHAMAR A ATENÇÃO PARA O ESTADO ACTUAL DO JORNALISMO TELEVISIVO AMERICANO. VÍRUS MAIO/JUNHO 2010

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aumentar. Como reagiram a este episódio, bem como à cobertura da Fox News da guerra do Iraque, as principais estações americanas de televisão? Pois, sentindo as suas audiências ameaçadas, com maiores ou menores cuidados, trataram de proceder mimeticamente. Até a insuspeita CNN passou a ter, durante algum tempo, uma emissão diferente para os Estados Unidos, mais “patriótica”, e outra para o exterior, mais “liberal”. Felizmente, há uma tradição recorrente na democracia americana de escrutínio da coisa pública a qual, uma vez mais, permitiu abrir um debate sobre a qualidade da programação televisiva, tal como acontecera pela primeira vez de uma forma consistente ainda no tempo da “caça às bruxas” do senador Joseph McCarthy, tema, aliás, reciclado por George Clooney em Good Night and Good Luck com o intuito de, invocando o exemplo do mítico jornalista da CBS Edward R. Murrow, chamar a atenção para o estado actual do jornalismo televisivo americano. Este descrédito em relação ao telejornalismo bem poderá ser, por outro lado, uma das explicações para uma produção de documentários sem paralelo, uma vez que neles se encontrarem respostas, obviamente obedecendo a diferentes pontos de vista, para questões em relação às quais os espaços informativos convencionais ou nem sequer encontram lugar ou se revelam simplesmente improcedentes. Quanto a mim, tenho‑o dito reiteradamente, a melhor explicação sobre a lógica da programação televisiva – comercial, generalista e, cada vez mais, pública – foi há muito formulada num encontro de publicitários em Cannes por Sílvio Berlusconi:

“A televisão não tem de fazer programas para o público. A sua função é vender público aos anunciantes.” De novo, todo o acto cultural tem ressonância politica. 4. EM FUNÇÃO DO CONJUNTO DE DECLINA‑ ções e de derivas proposto – dizem, afinal, respeito ao nosso mundo, foram estas, poderiam ter sido outras – não será excessivo inferir que a cultura, seja qual for o ângulo de observação, está vinculada à cidadania e, como tal, é indissociável da ideia de democratização social. Por outro lado, mesmo não sendo isso imediatamente perceptível, os episódios elencados prendem‑se igualmente com a imaginação criadora ou a falta dela. Mal iria o mundo se os seus protagonistas deixassem de ser capazes de o imaginar diferente e se o pêndulo da mudança se inclinasse irremediavelmente para o lado das fantasmagorias de Millán‑Astray, dos desvarios de Prokosh ou do estertor patético das vedetas da televisão. Feito o comentário, que é subjectivo e opinativo, estas notas ficariam incompletas sem uma brevíssima tentativa mais formal, digamos assim, de balizar a questão das políticas da cultura, embora reiterando, sem ambiguidade, o pressuposto segundo o qual as práticas culturais produzem efeitos políticos, do mesmo modo que os actos políticos têm ressonância cultural. Evitando cair num registo meramente académico, tomarei como referência textos de Diane Crane, de mim próprio e sobretudo de José Madureira Pinto. Em primeiro lugar, parece‑me razoável ponderar a elaboração de uma tipologia da cultura e elaborar sumariamente uma grelha de classificação das práticas cul-

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turais. Seguidamente, procurarei fazer uma combinação de ambas por forma a que dela possa resultar a possibilidade de identificação de princípios cujo valor instrumental seja aplicável a hipóteses de políticas culturais. Comecemos então pela questão da tipologia. De entre as diversas tentativas de arrumação uma das mais pragmáticas será a de Diane Crane. Contrapõe ela à dicotomia cultura popular/ cultura de elite ou alta cultura três tipos de organização cultural, abreviadamente, a saber: um núcleo de cultura global (core domain), disseminado pela comunicação em larga escala, nomeadamente pela televisão, e ao qual estão expostos todos os cidadãos; a um nível intermédio situa‑se uma cultura de base nacional (peripheral domain), cujos destinatários podem ser diferenciados de acordo com diversos critérios, entre os quais, por exemplo, a idade, o género e o estilo de vida; a um terceiro nível encontra‑se um núcleo de cultura urbana, muito presente e com características muito próprias, para públicos locais específicos (urban culture). Perante este quadro, Crane sustenta que a principal característica das dinâmicas culturais contemporâneas é a existência de uma tensão entre, por um lado, a tendência dos core media para dominarem todo o sistema de comunicação e cultura e, por outro, a constante proliferação de organizações culturais novas nos domínios periférico e local. Sendo este um ponto de partida, cuja pertinência é evidente para efeito da classificação das práticas culturais, importa fazer seguidamente o levantamento de duas questões: uma respeita aos modos de relação com os bens culturais; outra contempla o reconhecimento dos espaços sociais de afirmação cultural com diferentes graus de institucionalização e, como tal, com níveis


desiguais de legitimidade. No primeiro caso, avalia‑se a maior ou menor interacção do indivíduo com os bens culturais. Essa interacção pode variar entre um máximo de participação – nomeadamente, com reflexos no saber fazer e no saber reconhecer, bem como naquilo a que Barthes chamou o prazer do texto – e uma relação mais ou menos passiva com os bens simbólicos em circulação. No segundo caso, os espaços de afirmação cultural são muito diversificados posto que passam pelo espaço doméstico, pelo espaço colectivo, no qual tem lugar um conjunto de práticas culturais que se confundem com as vivências, rotinas e solicitações do quotidiano, pelo espaço das sub–culturas emergentes e das indústrias culturais e, naturalmente, pelo espaço da cultura erudita ou alta cultura. O passo seguinte respeita ao cruzamento do modo de relação com os bens culturais e o grau de institucionali‑ zação dos espaços culturais operação essa que, não sendo de ciência certa, permite, ainda assim, identificar questões em função das quais é possível pensar estrategicamente a democratização da cultura. Dada a diversidade e conflitualidade das variáveis em jogo seria um erro adoptar uma linha de prescrições fechadas sobre si próprias, eventualmente constrangedora da iniciativa dos principais protagonistas, os cidadãos. Só a flexibilidade e abertura dos enunciados possibilita, com efeito, a participação plena tantas vezes associada à descoberta de percursos criativos insuspeitados. Concluída esta base preliminar, na qual se agrupam as variáveis nucleares de qualquer política cultural, resta apontar os seus três princípios basilares, todos eles compaginados por critérios que relevam, essencialmente, do bom senso democrático.

O SEGUNDO PRINCÍPIO CONSAGRA A NECESSIDADE DA NÃO EXCLUSÃO DE DETERMINADOS SEGMENTOS POPULACIONAIS, SOBRETUDO AS CAMADAS POPULARES, DO CONTACTO COM OBRAS MAIS EXIGENTES A PRETEXTO DE UMA ALEGADA INCAPACIDADE DE DESCODIFICAÇÃO E, PORTANTO, DE FRUIÇÃO.

O primeiro princípio remete para a indispensabilidade de criar e salvaguardar infra‑estruturas básicas, os espaços naturais onde possam desenvolver‑se todas as formas de produção e criação artística, sejam elas quais forem: das mais eruditas e esteticamente mais exigentes até às expressões mais ou menos espontâneas de competências simbólicas e comunicacionais, como sugere Madureira Pinto, passando por intervenções de grau intermédio com diferentes níveis de elaboração. Para efeito da optimização dos recursos, parece vantajoso, neste caso, optar por um sistema em rede com conexões seja no plano dos saberes, infra‑estruturas e equipamentos, seja no plano institucional articulando, por exemplo, o poder local e as associações culturais, seja, ainda, promovendo o envolvimento das políticas da cultura e do ensino numa base de complementaridade e de abertura à comunidade. Este princípio será tanto mais estimulante quanto melhor souber dar acolhimento a dinâmicas descentralizadoras por forma a permitir a afirmação das vocações criativas dos diversos parceiros num contexto de progressiva autonomia. O segundo princípio consagra a necessidade da não exclusão de determinados segmentos populacionais, so-

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bretudo as camadas populares, do contacto com obras mais exigentes a pretexto de uma alegada incapacidade de descodificação e, portanto, de fruição. A observância deste princípio requer uma atitude iconoclasta porque passa pela dessacralização de uma produção simbólica cujo estatuto, as mais das vezes, sendo legitimado por mediações especializadas, resulta de um processo objectivo de fetichização concorrendo, nessa medida, para o aparecimento de círculos fechados sobre si próprios e, portanto, sem potencial de democratização. Complementarmente, uma vez que os produtos das indústrias culturais, acessíveis quer no espaço doméstico, nomeadamente através dos meios audiovisuais, quer no espaço público destinado ao lazer consumista, desempenham um papel de substituição e até de compensação a essa cultura erudita que intimida, justificar‑se‑ia uma profanação controlada, mas deliberada, dos lugares institucionais da criação de modo a gerar empatia onde antes havia recusa e rejeição. Numerosas experiências testemunham o êxito do envolvimento de pessoas habitualmente proscritas da esfera da criação artística em iniciativas onde acabam por ter uma intervenção autónoma e auto‑enriquecedora com efeitos no processo de


democratização cultural. O Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura foi exemplar nessa matéria. Quanto ao terceiro princípio, limito‑me a citar Madureira Pinto: “Procurar, através do apoio ao associativismo e da multiplicação de estudos culturais mobilizadores de energias comunicacionais e da participação dos cidadãos, que o tempo de não‑trabalho e as actividades de lazer contribuam, no seu conjunto, não só para contrariar as tendências da evasão e demissão cívicas (associadas, nas sociedades contemporâneas, à encenação mediática da política e à individualização/ privatização das práticas sociais), como ainda para permitir a sobrevivência e/ ou afirmação das culturas dominadas (populares ou marginalizadas) e emergentes”. Como resultará claro, ainda que sumariamente desenvolvido, este modelo de actuação, dada a sua flexibilidade, permite uma série operativa de combinações e recombinações das diferentes variáveis contrariando preconceitos e subvertendo barreiras artificiais com reflexos no quotidiano e na qualidade de vida dos cidadãos, Tratando‑se de um modelo aberto promove a participação e, nessa medida, exige o escrutínio porque a necessidade de ser permanentemente avaliado é condição mesma da sua vitalidade. Também deve ficar claro, apesar da simplicidade aparente, que não se fazem projectos deste tipo sem vontade politica, sem massa critica qualificada e muito menos com políticos incultos.

Perante os sinais de desagregação de um sistema económico‑social provavelmente em vias de deixar de fazer sentido tal como o conhecemos pensar será, com toda a certeza, um acto violento, mas indubitavelmente necessário. Pensar é um acto de cultura. Cultura é cidadania. Cidadania é democracia. Por isso, quando o entretenimento subsidiado e adjudicado ao mercado da evasão se afirma por vontade politica como exclusivo das práticas culturais bom será que apareça alguém a dizer, sensatamente: “Quando ouço alguém falar da legitimidade do exclusivo do mercado do entretenimento como referência da produção simbólica tenho a obrigação de puxar do livro de cheques para investir em cultura.”

Agustina Bessa Luís tem um aforismo magnífico a fazer lembrar Sócrates, o filósofo: TEXTO REDIGIDO PARA A SEMANA INTERNACIONAL ISMAI/ EXTENSÃO CULTURAL, 2 DE JUNHO DE 2009.

“Pensar é o acto mais violento que há.”

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NANO‑AMIZADES

PERIGOSAS MANUEL GARÍ

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NANO‑AMIZADES PERIGOSAS

MANUEL GARÍ | ECONOMISTA, MEMBRO DA REDACÇÃO DA REVISTA VIENTO SUR

Ideias‑força para suportar e atacar a turbulenta tempestade do século XXI, muito úteis para orientar o rumo do eco‑comunismo: “ir à raiz das coisas, atacar o disco duro do capital” “ruptura com o despotismo anónimo dos mercados” “a lógica de longo prazo da ecologia enfrenta‑se com o curto‑prazismo do preço das acções” “conseguir a subordinação da lógica económica ao imperativo social” “resistir ao irresistível da ordem estabelecida” Daniel Bensaïd

Obrigado Bensa ESTAMOS ÀS PORTAS DE UMA NOVA REVOlução industrial pela mão da nanotecnociência cujas consequências são impossíveis de prever em pormenor. Mas já intuímos que os seus efeitos serão, muito provavelmente, de maior alcance do que as tecnologias da informação e comunicação (TIC), que deram origem ao conceito de Nova Economia nos noventa. É certo, como assinalam Hope Shand e Kathy Jo Wetter (2006)1 que “... a cada dez anos ou menos nos bombardeiam com notícias sobre as maravilhas de uma nova tecnologia que promete ser a solução definitiva para todos os males da sociedade (...) A nanotecnologia é o último desses milagres tecnológicos e os seus promotores prometem a revolução industrial mais importante e mais verde de sempre”. Mas, embora não seja verde nem proporcione soluções mágicas para os problemas da humanidade, a nanotecnociencia pode supor uma mudança radical nas condições materiais de produção do modelo produtivo, mudança não isenta de problemas e questões 2 .ao optimismo tecnológico do cientificismo positivista hegemónico no mundo científico e nas sociedades industrializadas, que mantém uma atitude acrítica e desprevenida com respeito aos efeitos sociais e ambientais da tecnologia, à qual atribui uma capacidade de resolver

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problemas que se demonstrou falsa à luz da experiência, é necessária uma análise crítica, objectiva, independente, holística e prudente perante cada questão. O escasso debate público até agora desenvolvido sobre as nanotecnologias tem‑se centrado em quatro aspectos: a) o seu potencial, entre outros, em áreas como o armazenamento de energia, as aplicações médicas e as TI; b) o desconhecimento dos eventuais riscos que podem comportar para quem trabalha com nanomateriais ou para utilizadores dos produtos que os contêm; c) a inexistência de um quadro regulamentar sobre investigação, desenvolvimento, aplicação e libertação ambiental dos nanomateriais, e d) os importantes ganhos económicos antecipados que já se estão a gerar para os investidores e o montante dos futuros benefícios de uma heterogénea gama de aplicações possíveis. Apesar da opacidade da indústria e da escassa informação pública, podemos concluir que a nanotecnociência é um novo desafio social, ético e político de grande envergadura, um novo nicho de negócio e uma possível mudança no paradigma científico 3. NATUREZA MATERIAL DAS NANO Um bom ponto de partida para abordar duma perspectiva económico‑social o fenómeno das nano, sem imiscuir‑se no campo científico‑técnico que especialistas


na matéria abordam nesta mesma obra, é a definição feita no relatório da Royal Society and Royal Academy of Engineering4 que entende por nanotecnologias o campo abrangido por “... a concepção, caracterização, produção e aplicação de estruturas, mecanismos e sistemas controlando a forma e tamanho numa escala nanométrica.” Para Ana Cremades (2008)5 nanotecnologia não é uma mera continuação da microtecnologia, já que ao reduzir o tamanho se modificam ou aparecem novas propriedades físicas próprias da nanoescala: surgem efeitos quânticos, a termodinâmica altera‑se, a reactividade química modifica‑se e a superfície ganha tanta mais importância quanto menor se torna o material 6. Neste ponto surge o primeiro e mais grave problema do mundo nano para Dehmer7 que afirma que a pesquisa em curso consiste fundamentalmente em “pegar em diferentes tipos de nanoestruturas em que a natureza não pensou, pô‑las juntas em diversas formas, de modo a podermos fazer coisas que a natureza não fez e, em particular, que sejam mais robustas do que os sistemas naturais”. Enfrentamos, portanto, uma realidade não só desconhecida cognitivamente por ser novidade como também inexistente na biosfera até agora, o que coloca consequências inéditas e questões inevitáveis. Antes de se indagar sobre os riscos da nanoprodução passou‑se do âmbito da investigação científica às suas aplicações industriais e nisso radica o segundo grande problema. As nano deixaram o laboratório e entraram em pleno no mundo da produção social e portanto na esfera das relações sociais e no meio natural. Como assinala José Manuel de Cózar (2003) 8, a separação entre uma ciência pura, que só visa um melhor conhecimento do

imensamente pequeno e o que seriam as suas aplicações tecnológicas não é sequer assim tão clara. Para este autor a nanotecnociência é a expressão que sintetiza a investigação e o desenvolvimento à escala nanométrica, independentemente de serem conduzidos por cientistas, engenheiros ou tecnólogos já que “... de facto, do ponto de vista da política científica e do lucro empresarial, a investigação científica ‑ a nanotecnologia não é excepção ‑ é claramente voltada para a obtenção de conhecimentos, capacidades e procedimentos que resultem em produtos de valor estratégico ou comercial ou para a segurança do Estado: vigilância, controle, espionagem, ‘defesa’ ...”. Pelo que se não pode falar de ciência e tecnologia à margem dos negócios e do poder. Até aqui isto é comum no mundo nano, mas a nanotecnologia abrange uma ampla gama de conhecimentos, materiais, tecnologias e ferramentas, pelo que é mais apropriado falar no plural e usar o termo nanotecnologia para tratar dessa realidade, uma tão heterogénea realidade. A CADEIA DE VALOR DAS NANO Não constituem um sector industrial como poderia ser a electrónica ou as telecomunicações, mas um leque de técnicas para manipular a matéria na escala nanométrica. No entanto, do ponto de vista do mercado, as nanotecnologias têm um tratamento geral único que não faz distinção entre as muito diversas áreas de conhecimento que confluem para o fenómeno. No entanto, para avançar na compreensão das vantagens, oportunidades, riscos e perigos das nanotec, conviria começar a fazer análises e avaliações sectoriais diferenciadas segundo os processos e as aplicações. Dado que na escala nano a constituição da matéria é comum a todas as ciências

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(física, química, biologia, etc.) produz‑se uma convergência tecnológica de “nano‑bio‑info‑cogno‑neuro” que dificulta a sua classificação disciplinar e industrial. Trata‑se de uma plataforma tecnológica que alguns autores qualificam de “tecnologias invasivas” porque podem alterar o desenvolvimento, as características e o futuro de todos os sectores industriais. Do ponto de vista económico, podemos diferenciar neste momento quatro estádios bem distintos na cadeia valor: 1) nanomateriais são estruturas de escala nano não transformadas ou transformadas de forma limitada para uso imediato, tais como nanopartículas, nanofios, nanotubos, pontos quânticos, os fulerenos, dendrímeros e materiais nanoporos. 2) produtos nanointermédios entre os materiais de base e os produtos acabados, definidos precisamente como elementos à nanoescala necessários para obter outros bens, podem incorporar‑se encapsulados numa matriz ou fazer parte da estrutura massiva em superfície ou volume (nanoestruturas). Exemplos de produtos nanointermédios: tintas, revestimentos, têxteis, chips de memória, meios de contraste, componentes ópticos, materiais ortopédicos, ou cabos supercondutores. 3) produtos nano acabados são bens que incorporam as nanotecnologias por incorporação de nanomateriais ou de produtos nanointermédios. Uma relação não exaustiva de nanoprodutos acabados: protectores solares, vidro auto‑limpantes, medicamentos, alimentos pré‑cozinhados, recipientes plásticos, electrodomésticos, veículos, roupa, aviões, computadores ou aparelhos electrónicos. 4) ferramentas nano são instrumentos para investigação ou para a produção à nanométrica que compõem


tanto o equipamento como o software aplicados para visualizar, manipular e dar forma à matéria na escala nano, como os microscópios de força atómica, equipamentos de impressão ou aplicações para a modelagem molecular que podem intervir tanto na produção de nanomateriais como de nanointermédios ou nanoacabados por sua vez. A National Science Foundation, a agência americana que apoia a investigação científica não médica, estimou em 2001 que em 2015 o mercado nano alcançaria a cifra de 1 milhão de milhões, cifra que desde então se reviu anualmente em alta 9 . Segundo a Lux Resaearch Inc., o valor do negócio nano em 2008 foi de 238 milhares de milhões de dólares americanos. Para 2015 estima‑se que o negócio vai chegar aos 3,1 milhões de milhões de dólares americanos, dos quais os produtos acabados representarão 2,7 milhões de milhões de vendas, os nanointermédios 432 milhares de milhões e os nanomateriais 3 milhares de milhões10. Portanto, o valor financeiro atribuído nessa projecção aos nanomateriais é ínfimo comprado com o valor estimado para bens finais. A investigação científica centra‑se nos nanomateriais, o negócio nas suas aplicações comerciais. Sem pretender oferecer uma classificação exaustiva das áreas de aplicação das nanotec que se apresentam como positivas pelos seus defensores, podemos assinalar com Serena (2002) 11 as seguintes: 1) aplicações estruturais, novos materiais: cerâmicas e materiais nanoestruturados, nanotubos e revestimentos com nanopartículas; 2) processamento de informação: nanoelectrónica, optoelectrónica e materiais magnéticos; 3) nanobiotecnologia e nanomedicina: encapsulado e dosagem direccionada de fármacos, reconstrução das partes danificadas;

APESAR DOS POSSÍVEIS BENS E BENEFÍCIOS QUE DA MINHA PERSPECTIVA PODEM REPORTAR AS NANO, O RESULTADO DA ORIENTAÇÃO ACTUAL DA CIÊNCIA ‑ COMO PODE COMPROVAR‑SE NA LISTA – ESTÁ GUIADO PELOS GANHOS COMERCIAIS E OS DECISORES TÊM COMO PRIORIDADE COLOCAR NO MERCADO RAPIDAMENTE PRODUTOS DE ALTA RENTABILIDADE.

4) sensores; 5) processos catalíticos e electroquímicos; e 6) aplicações a longo prazo: sistemas para computação quântica, a auto‑assemblagem molecular e a interacção de moléculas orgânicas com superfícies. Apesar dos possíveis bens e benefícios que da minha perspectiva podem reportar as nano, o resultado da orientação actual da ciência ‑ como pode comprovar‑se na lista – está guiado pelos ganhos comerciais e os decisores têm como prioridade colocar no mercado rapidamente produtos de alta rentabilidade. Não há que alegar ignorância sobre o rumo das aplicações, tal como questiona Foladori (2006): descoberta e aplicação andam de mãos dadas.12 A CIÊNCIA COMO NEGÓCIO, O ESTADO COMO GARANTE As nanotecnologias movem‑se na intersecção da engenharia, química, física e biologia, e aproveitam os suportes informáticos, mas constituem uma nova dimensão tecno‑científica. O desenvolvimento das aplicações nano exige o contributo de milhares e milhares de trabalhadores com uma alta qualificação profissional, técnica e científica.

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O que por sua vez levará a um crescimento acelerado da produtividade média do trabalho. A confirmar‑se essa tendência, verificar‑se‑ia novamente uma das hipóteses mais desconhecidas, antecipadora e extemporânea (em relação à sua época) de entre as avançadas por Marx nas Teorias sobre a Mais‑Valia (História Crítica da Mais‑Valia). Para compreender o impacto e a dimensão do fenómeno da nanotec é preciso pô‑lo em relação com o tempo que decorre entre o momento da invenção técnica e o da fabricação generalizada com a consequente realização de ganhos. De acordo com Gutierrez Espada, a fotografia levou 112 anos (1727‑1839) entre a descoberta e a sua comercialização; o telefone 56 anos (1820‑1876), a rádio 35 anos (1867‑1902), o radar 15 anos (1925‑1940), a televisão 12 anos (1922‑1934) e o transístor 10 anos. E, desde 1972, vem‑se aplicando a Lei de Moore, segundo a qual a cada 18 meses se duplica a capacidade dos microprocessadores. Richard Feynmann colocou em 1959 a possibilidade teórica da nanotecnologia. Desde a invenção em 1981 do primeiro nanoscópio, o microscópio “efeito de túnel”, no início da investigação maciça com apoio estatal nos EUA, até criar‑se, em


O RISCO PARA OS GANHOS DO CAPITAL INVESTIDO EM INVESTIGAÇÃO É MAIOR DO QUE NO CASO DO INVESTIDO NA PRODUÇÃO DE BENS E SERVIÇOS. ESTA É A EXPLICAÇÃO DE PORQUÊ SEREM AS GRANDES CORPORAÇÕES A INVESTIR EM I&D COMO NO CASO DA IBM, FUJITSU E INTEL QUE DEDICARAM GRANDES SOMAS À INVESTIGAÇÃO NANO. MAIS DE 70% DAS CERCA DE 9000 PATENTES EM NANOTECNOLOGIA, EM 2006, PERTENCIAM A GRANDES CORPORAÇÕES.

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2001, a National Nanotechnology Initiative, decorreram 20 anos e quatro anos depois, em 2005, os investimentos privados em I&D ultrapassaram os fundos públicos; o que é um indicador de que as empresas que operam em nanoaplicações consideram um facto que as suas investigações se vão transformar em mercadorias realizáveis no mercado, com a consequente recuperação do capital investido e obtenção de ganhos substanciais. Tudo isso levou o Center for Responsible Nanotechnology (CRN, na sigla), a afirmar num relatório em 2006 que o desenvolvimento das nanotecnologias pode ser “comparável talvez à Revolução Industrial, mas comprimido nuns quantos anos”. Como assinala Ernest Mandel (1972) 13 a aceleração da inovação tecnológica é um corolário da aplicação sistemática da ciência à produção e, por sua vez, a redução do tempo de rotação do capital fixo está intimamente relacionada com o ritmo da inovação. Mandel conclui que as rendas tecnológicas se tornaram a principal fonte de ganho extraordinário sob o capitalismo tardio. Invenções, portanto, convertem‑se num “ramo” da actividade económica e a aplicabilidade da ciência à produção torna‑se um factor de discriminação das prioridades no esforço investigativo. Esta ideia que podemos já encontrar em forma embrionária em Marx14 materializou‑se na economia da globalização capitalista. A evolução da monetarização e rentabilização da ciência tem sido analisada desde a Segunda Guerra Mundial por vários autores, como Silk e Leontief. Numa economia de mercado o capital que se investe na produção gera uma produção contínua de mercadorias e uma valorização quase garantida de antemão. Contudo, não há tanta segurança no capital investido

nas invenções, enquanto não se traduza na produção de novas mercadorias ou em alterações às qualidades das existentes, pelo que o risco para os ganhos do capital investido em investigação é maior do que no caso do investido na produção de bens e serviços. Esta é a explicação de porquê serem as grandes corporações a investir em I&D como no caso da IBM, Fujitsu e Intel que dedicaram grandes somas à investigação nano. Mais de 70% das cerca de 9000 patentes em nanotecnologia, em 2006, pertenciam a grandes corporações.15 Mas também é a explicação para a decidida intervenção do Estado na investigação no campo investigativo nos países industrializados. O Estado tem como funções, para garantir a reprodução ampliada do capital, juntamente com a repressão das ameaças ao sistema e a integração das classes dominadas, esforçar‑se por conseguir as condições gerais de produção que a actividade económica privada não proporciona. Esta terceira parte do papel do Estado tem três componentes: as que se relacionam com os premissas sociais gerais (ordem social, construção do mercado e sistema monetário), as materiais gerais (infra‑estruturas, rede de transportes e comunicações...) e as de reprodução científica, cultural e intelectual. Nem sequer os mais acérrimos neoliberais da equipa de Bush prescindiram desta última das funções básicas do Estado: investir dinheiro público em assuntos de interesse privado que não captam os capitais privados durante um tempo. O orçamento da National Nanotechnology Initiative (NNI / EUA) foi de 1 351,2 milhões de dólares americanos em 2006, 1392,1 milhões em 2007 e 1444,8 milhões para executar em 2008. Convém comparar o valor gasto pelo mesmo governo em meio ambien-

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te e saúde e em segurança laboral: em 2006 foram 37,7 milhões de dólares, em 2007 a cifra foi de 45,8 milhões e em 2008 o orçamento é de 58,6 milhões. Entre 1997 e 2006, os governos dos países industrializados investiram quase 6 milhares de milhões em nanotecnologias. Daí o interesse no tema por parte da OCDE a qual constituiu uma importante Comissão de Acompanhamento das nano. Como assinala o Prémio Nobel de economia Joseph E. Stiglitz (2003) 16 referindo‑se ao sector que durante anos foi conhecido como Nova Economia (Internet, a pesquisa básica em medicina e biologia e as chamadas novas tecnologias), nas nanotec o principal gasto em I&D durante um longo período nos países foi do Estado, particularmente nos EUA, que apostaram em desenvolver a investigação básica e aplicada. Os números e percentagens referidos do investimento público e privado na contribuição para as nano proporcionados pela Lux Research e Cientifica17 não coincidem, mas ambas as entidades mostram a mesma tendência: no momento em que começa a rentabilidade cresce o contributo privado das empresas, mas também de capital‑de‑risco, e diminui o peso relativo do contributo público. Em resumo: o esforço de investimento na altura de marcar pontos sem aplicação, mercado ou ganho veio das mãos da investigação pública. Isso constitui um dos cínicos paradoxos do neoliberalismo do Estado mínimo: com dinheiro público se aplana o caminho ao grande negócio privado. A DIMENSÃO ECONÓMICA DO FENÓMENO NANO Se no princípio do século, o horizonte se centrava


nas oportunidades tecnológicas 18, em 2010, centra‑se nas do mercado. Muitos dos estudos económicos sobre as nano centraram a sua atenção não tanto sobre a realidade das mesmas no momento em que elaboravam sobre um valor futuro atribuível às mesmas, ou sobre os benefícios derivados do investimento na investigação de alguma das suas aplicações. Os valores e as hipóteses ‑ que frequentemente não coincidem nos diferentes relatórios disponíveis – estão ao serviço de diferentes grupos de investidores privados que esperam gerar o clima social e económico favorável aos seus interesses. Apesar disso podem servir‑nos de referência. Em 2006 comercializavam‑se no mundo mais de 350 produtos à base de nanotecnologias, uns 201 no campo da “saúde e do desporto”, 34 na do “lar e jardinagem, 33 no da “Electrónica e Informática”, 29 no da “alimentação e bebidas”, 22 no de “multifuncionais”, 15 no do”automóvel”, 14 no dos “electrodomésticos” “e 5 no de “produtos infantis”. Num só ano, o aumento foi tal que, em fins de 2007, se identificaram mais de 580 produtos com a presença de nano no mercado 19. A UNESCO qualifica a situação como uma “corrida para a comercialização” de aplicações 20. Entre 2015 e 2030 espera‑se que os nanoprodutos hegemonizem campos tão diversos como o dos materiais resistentes e leves, os componentes electrónicos informáticos de alta velocidade, os fármacos mais eficazes pela rápida actuação sobre a corrente sanguínea ou as memórias magnéticas de alta capacidade. Diversos cálculos situam o negócio das nano para o ano de 2015 em 340 000 milhões de dólares em ma-

teriais, 300 000 em electrónica, 180 000 em produtos farmacêuticos, 100 000 em químicos, 70 000 no aeroespaço, 45 000 no meio ambiente, 30 000 em saúde, etc. Se em 2004 as nano representavam menos de 0,1% dos rendimentos da produção industrial, um estudo estima que até 2014 este será de 14% 21. Infelizmente, os dados sobre investigação em nanotecnologia militares já são uma realidade, que de 70 milhões de dólares em 2000 atingiu a cifra de 436 milhões em 2006, aplicados à miniaturização de satélites e aviões de reconhecimento, microrrobôs soldados, materiais de equipamento para os soldados humanos, micro‑fusão nuclear, guerra química e bacteriológica. A preponderância dos EUA nesta corrida é evidente constatando o número de empresas que trabalharam em nanos em 2005: 430 norte‑americanas comparadas com 110 em japonesas, 94 alemãs, 48 britânicas, 20 chinesas, 19 francesas, 18 canadianas, 14 israelitas e suíças, 11 australianas, 10 holandesas, 9 taiwanesas, 7 austríacas e suecas, 6 coreanas e finlandesas, 5 russas e 3 respectivamente italianas e espanholas. Em 2009, de acordo com a Científica, o aumento dos investimento russos e chineses em nanotecnologias tem sido notável. Os EUA continuam a levar a dianteira pelo crescimento vertiginoso de patentes norte‑americanas entre 1997 e 2006. Como aconteceu no caso da introdução na produção industrial da energia eléctrica, catalisadora no seu tempo da sincronização do trabalho fabril, ou da expansão das denominadas novas tecnologias, a incipiente fabricação de nanoprodutos ou o uso de nanomateriais em bens convencionais está a favorecer a concentração de capital e a integração horizontal e vertical das empresas E, como aconteceu nos casos citados, o investimen-

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to em aplicações industriais das nanotecnologias e na comercialização dos nanoprodutos de capitais ociosos excedentes, está a representar uma importante tábua de salvação face às oscilações da taxa de lucro resultante da crise e da queda tendencial da mesma nos sectores industriais tradicionais e maduros. O grande aumento de investimentos e ganhos no campo nanotec, anterior à crise financeira e produtiva originada em 2008, muito provavelmente consolidar‑se‑á como uma das vias de fuga do capital na actual situação. TEMERIDADE E RISCOS O paladino das nanotecnologias, K. Eric Drexler (1992), 22 reconheceu que “... há muitas pessoas, inclusive eu, que vêem com considerável inquietude as consequências futuras desta tecnologia (...) é muito alto o risco de a que sociedade não as use devidamente por falta de preparação”. Mas a sua capacidade para prevenir as consequências do uso das nano viu‑se sumamente limitada por não se questionar sem preconceitos sobre os riscos inerentes à tecnologia e ao controle social da mesma, já que situou a causa do risco no mau uso das nanotecnologias parte da sociedade devido à falta de preparação. A possível vítima é responsável pela possível desgraça causada por terceiros. Um autêntico tratado em três linhas de externalização de responsabilidades e uma prova mais de desarmamento perante o risco por incumprimento do princípio da precaução. As propriedades destas novas nanopartículas e nanoestruturas são contudo, em grande parte, desconhecidas, mas a exposição dos trabalhadores nas suas empresas e dos consumidores está a crescer de forma descontrolada, embora todos os especialistas concordem que a


matéria em nanoescala tem propriedades e efeitos muito diferentes dos das escalas micro, meso e macro. A tudo isto há que acrescentar que, com a produção e comercialização, se libertaram para o ambiente nanomateriais e nanoprodutos à margem de toda a racionalidade: sem avaliação prévia dos efeitos e impactos, sem constar a capacidade e metabolização da biosfera e, assim, sem considerar os processos bioenergéticos da natureza23 . Lançaram‑se no mercado cosméticos de uso diário e universal, remédios para a impotência sexual masculina, raquetes de ténis, vidros de automóveis auto‑limpantes, vidros reforçados com nanometais, tecidos de roupas, panos de limpeza repelentes de água e/ou pó e brinquedos para crianças com licenças concedidas para material no seu estado “normal” sem provas específicas dos efeitos do material nano sobre os utilizadores. Mais de dois milhões de trabalhadores e trabalhadoras estiveram expostos às nanopartículas em 2006, concretamente a 39 variantes de nano de carbono, 41 de prata, 16 de SiO2, TiO2, 16 de ZnO e 1 CeO2, sem a mediação de prevenção ou regulamentação específicas. A Lux Research, no citado relatório de 2008 estima que até 2014 se criem no mundo 10 milhões de postos de trabalho directamente nas diversas áreas da nanotecnologia 24. O relatório Nanotechnology: small matter, many unknowns da companhia de resseguros Swiss Re, publicado em 2004, perguntava se os desastres do amianto não seriam um ponto de referência adequado. Como as fibras de amianto, diz o relatório, as nanopartículas poderiam causar problemas simplesmente por causa do seu nano tamanho. As nanopartículas podem penetrar através dos poros, onde outras partículas seriam retidas, uma vez no organismo humano efectivamente, podem

ACTUALMENTE NÃO EXISTE NENHUM MODO DE MEDIR A PRESENÇA DE NANOPARTÍCULAS NO LOCAL DE TRABALHO, MENOS AINDA, DE REALIZAR TESTES DE EXPOSIÇÃO A ELAS. NÃO EXISTEM EQUIPAMENTOS DE PROTECÇÃO INDIVIDUAL FIÁVEIS PARA PROTEGER AS PESSOAS DA EXPOSIÇÃO A NANOPARTÍCULAS NÃO‑ENCAPSULADAS.

atravessar a barreira hemato‑encefálica que evita que substâncias potencialmente tóxicas na corrente sanguínea entrem no cérebro. A superfície altamente reactiva dos nanomateriais e a sua capacidade de atravessar membranas convertem esses produtos em substâncias com alto potencial de toxicidade segundo o relatório de 2004 de The Royal Society. Segundo diversos estudos toxicológicos, os nanomateriais podem penetrar profundamente nos pulmões dos mamíferos, chegar ao cérebro através dos nervos olfactivos, penetrar as suas defesas e causar danos oxidativos. Estudos com peixes indicam que pelo menos uma classe de nanopartículas (os fulerenos C60) pode causar danos significativos ao cérebro. O relatório Swiss Re indica que as nanotecnologias apresentam riscos “revolucionários” porque os cientistas não podem recorrer à experiência do passado para avaliá‑los. Actualmente não existe nenhum modo de medir a presença de nanopartículas no local de trabalho, menos ainda, de realizar testes de exposição a elas. Não existem equipamentos de protecção individual fiáveis para proteger as pessoas da exposição a nanopartículas

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não‑encapsuladas. Mas os problemas não terminam nem nos utilizadores dos produtos nem nos trabalhadores expostos. O sociólogo Paulo Roberto Martins 25, coordenador e pesquisador do RENANOSOMA e investigador da Agência IPT assinala as seguintes questões éticas e políticas: os efeitos ambientais irreversíveis, a divisória científica e tecnológica entre o Norte e Sul, os efeitos sobre a divisão social e internacional do trabalho, as tendências para a privatização do conhecimento (patentes e outras formas de protecção da propriedade intelectual), o secretismo e a opacidade na era da “guerra global contra o terrorismo”, as aplicações militares (já citadas anteriormente) e o futuro da natureza humana (“trans‑humanismo”) se se realizar a simbiose, ou melhor dizendo, a síntese nano‑bio. Por isso coloca as muito pertinentes perguntas: Quem controlará a nanotecnologia? Quem será beneficiado, quem sairá a perder? Isso vai implicar novos riscos para a saúde humana e o meio ambiente? Os problemas de coesão social, exclusão e desigualdades colocam‑se hoje à escala mundial e nas palavras de Shand e Wetter: “Continuando a actual tendência, a nanotecnologia irá aumentar o abismo entre ricos e


NÃO EXISTEM REGULAMENTOS E NORMAS APLICÁVEIS AO MUNDO DA NANOMATÉRIA. O PRIMEIRO E TÍMIDO PASSO QUE SE DEU NA UE É A DIRECTIVA RELATIVA AOS PRODUTOS COSMÉTICOS, APROVADA EM JUNHO DE 2009 E QUE ENTRARÁ EM VIGOR 42 MESES DEPOIS (SIC!) PARA O CONJUNTO DOS PRODUTOS E 36 MESES (RESIC!) PARA OS PRODUTOS QUE CONTENHAM NANOMATERIAIS, MAS AS INFORMAÇÕES SOBRE A TOXICIDADE PERMANECERÃO NAS MÃOS DOS INDUSTRIAIS. VÍRUS MAIO/JUNHO 2010

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pobres e consolidará o poder económico das empresas multinacionais” 26. RISCOS E PRECAUÇÕES Não existem regulamentos e normas aplicáveis ao mundo da nanomatéria. O primeiro e tímido passo que se deu na UE é a directiva relativa aos produtos cosméticos (76/768 CEE), aprovada pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho em Junho de 2009 que entrará em vigor 42 meses depois (sic!) para o conjunto dos produtos e 36 meses (resic!) para os produtos que contenham nanomateriais, mas as informações sobre a toxicidade permanecerão nas mãos dos industriais como assinalou o Comité científico dos riscos sanitários emergentes e novos em A Risk Assesment of Products of Nanotechno‑ logies, Direcção‑Geral de Saúde e dos Consumidores, Comissão Europeia, 2009. O motivo para esta ausência foi explicado por Shand e Wetter (2006): “Convencidos de que a convergência tecnológica à escala nano ‘é o futuro’, os países que lideram este sector ‑ em particular os EUA, Japão e alguns países europeus ‑ entregaram‑se a uma corrida para garantir uma posição vantajosa, relegando para segundo plano as considerações sanitárias e ambientais deixando para mais adiante as questões sócio‑económicas. A legislação, se não se conseguir evitá‑lo, pretendem que seja voluntária, para não prejudicar o desenvolvimento comercial de I&D da nanotecnológica” 27 . Portanto, apesar das posições interessadas em insistir em convencer‑nos de que o REACH pensado para as substâncias químicas é o regulamento de aplicação às nano, só podemos responder com a explicação acima feita: a natureza dos nanomateriais com propriedades e

efeitos distintos dos materiais originários impede a aplicação das normas sobre substâncias químicas, redigidas para o mundo micro e meso e não para o nano. Portanto, não é aceitável que os nanomateriais e nanoprodutos entrem nas hipóteses de isenções de registo dos anexos IV e V e não se lhes pode aplicar a norma das 10 TM. Se na nanoescala aparecem propriedades novas, como se pode defender que não é necessária uma regulamentação específica? Enquanto não existir um “NANO‑REACH”, como regulamento específico e com responsabilidades explícitas para os fabricantes, há que aplicar o princípio da precaução “no data, no market”*. Das corporações aduz‑se que a Responsabilidade Social das Empresas bastaria para auto‑regular a produção nano. Nada mais longe da realidade sob o desregulamentado neoliberalismo. O argumento não vale para quem está exposto na produção nem para quem o está a consumir. A Organização de Consumidores e Utilizadores da UE foi contundente: “Os códigos de conduta voluntários não são a solução numa área tão controversa e sensível. A falta de ambição por detrás destas medidas é patente”. Após a crise financeira dos mercados desregulamentados e donos do mundo não há lugar para nenhuma confiança no bem fazer sem norma nem controle dos interesses privados minoritários quando o que está em jogo são os interesses públicos da maioria social. Não há investimento em segurança nem em avaliação de riscos laborais, ambientais ou sociais, nem se realizaram estudos do ciclo de vida dos produtos nano. Andrew Maynard, no início de 2006, estimou que dos 9000 milhões de dólares gastos anualmente no mundo em nanotecnologia em I&D, apenas entre 15 e 40 milhões se destinam à investigação sobre riscos28. Apenas

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um dólar em cada 300 investidos se destina a investigar os riscos das nanotecnologias. Javier Echeverría, do Instituto de Filosofia do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC), propõe dedicar obrigatoriamente 5% dos projectos de I&D públicos a estudos de impacto, de avaliação de riscos, investigação toxicológica. Por seu lado, a Confederação Europeia de Sindicatos (CES) propõe 8%. Seja qual for a cifra óptima pode‑se concluir que é necessário aumentar a investigação sobre segurança, toxicidade, riscos ambientais, efeitos sobre a saúde, problemas éticos e impactos sócio‑políticos das nanotecnologias. Face ao desprezo pelos riscos por parte de corporações e administrações uma coligação de 44 organizações sindicais, ambientais e de defesa da saúde pública e partidárias da necessidade de legislação pública ‑ incluindo a UITA, CSI e a AFL‑CIO, BCTGM e United Steelworkers dos EUA ‑ fez um apelo a favor duma regulação ampla e enérgica a os níveis da nanotecnologia e seus produtos. A tecnologia, diz a coligação, impõe riscos específicos que requerem regulamentação específica, transparência e participação da sociedade nas decisões. Também a UITA adoptou em Março de 2007 uma importante resolução que pretende mobilizar as organizações afiliadas para debater com o resto da sociedade e os governos as possíveis consequências e reclamar aos governos e organismos internacionais correspondentes a aplicação do princípio da precaução, proibindo a venda de alimentos, bebidas e forragens, assim como de todos os insumos agrícolas que incorporem nanotecnologia, até que se prove que são seguros e se aprove um regime regulador internacional especificamente concebido para analisar esses produtos.


UMA QUESTÃO DEMOCRÁTICA CENTRAL Em 1962 o economista Ernest Mandel afirmou referindo‑se à libertação de energia nuclear e aos avanços na electrónica “... a terceira revolução industrial pode conduzir à abundância ou à destruição das liberdades, da civilização e da humanidade” 29. anos depois os cientistas Farmer e Aletta, referindo‑se às nano afirmaram que o seu “...impacto sobre a humanidade e a biosfera poderia ser enorme, maior do que a revolução industrial, as armas nucleares ou a contaminação do meio ambiente” 30. dilema face às nano é ainda mais radical e complexo do que os anteriores – aos quais se soma ‑ e uma vez mais enfrenta‑se a lógica a longo prazo da ecologia e as pessoas com o curtoprazismo das acções. A natureza da nanociência abre importantes questões sobre os limites éticos da investigação e, por sua vez, a experiência em relação às consequências das aplicações da ciência e da técnica sob o capitalismo tardio obriga‑nos a uma aplicação decidida e a uma aplicação consequente do princípio da precaução. O razoável, afirma Jorge Riechmann, 31 seria avançar com cautela e “... as decisões políticas no momento de proteger o meio ambiente (e com isso os interesses do bem‑estar das futuras gerações) deveriam ser tomadas adiantando‑se à certeza científica. Uma das formulações mais simples do princípio da precaução: a incerteza científica não é motivo para evitar a acção preventiva”. Actualmente os actores do escasso debate são cientistas e empresários. A importância e o alcance do tema exigem um debate público e colectivo sobre o mundo nano porque estão em jogo transformações radicais nos sistemas sociais e económicos e, mais tarde, a própria

redefinição da condição humana. As perguntas são relevantes: Que bens satisfazem as necessidades humanas? Que mudanças tecnológicas melhoram a vida das pessoas? A que se devem dedicar hoje os recursos e a criatividade humana? Por isso continuam vigentes as grandes questões clássicas sobre a deliberação e a participação social nos processos democráticos de decisão: O que fazer? Quem participa? Como se escolhe? A quem serve a conclusão? A questão agora, como sempre, não é fundamentalmente técnica ou económica, é política, pelo que é útil a reflexão de Mandel 32: “Para evitar o pior, é preciso submeter o seu emprego à direcção consciente dos homens”. Em definitivo, um problema de democracia, nas palavras de Daniel Bensaïd 33 materializar‑se‑á se se conseguir “mobilizar a força social capaz de conjurar os perigos, acabar com a ditadura dos mercados e se conseguir a subordinação da lógica económica ao imperativo social”. TRADUÇÃO DE PAULA SEQUEIROS

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NOTAS

em “Nanomundos, multiconflictos” em Daphnia, nº. 46, Verano 2008. Madrid.

1 – Shand, Hope y Wetter, Kathy Jo “La ciencia en miniatura: una introducción a la nanotecnología”, em Worldwatch Institute: La situación del mundo 2006, Icaria, Barcelona 2006, p. 163.

8 – Cózar de, José Manuel. “Nanotecnologías: promesas dudosas y control social”, em Revista de la OEI, núm. 6, maio‑agosto de 2003.

2 – Para um melhor conhecimento destas questões pode consultarse Porrit, J. (2003): Actuar con prudencia: ciencia y medio ambiente, Blume, Barcelona. 3 – A envergadura dos problemas éticos em relação com a ciência e a técnica é grande, pode consultar‑se: Engelhardt, H.T., Los fundamentos de la bioética, Paidos, Barcelona, 1995. En el caso de las nano puede consultarse UNESCO, The ethics and politics of nanotechnology, Paris, 2006. 4 – Royal Society and Royal Academy of Engineering, 2004, Nanoscience and Nanotechnologies: Opportunities and Uncertainties, , www.nanotec.org.uk/finalReport.htm 5 – Cremades, Ana (2008) “Introducción a la nanociencia y las nanotecnologías”, no curso “Nanotecnologías: sociedad, salud y medio ambiente”, Faculdade de Ciências Químicas da UCM, 3 al 5 de de 2008. www.istas. ccoo.es 6 – Cremades, Ana. (2008) “Una nueva ciencia” em Daphnia, núm. 46, Verano 2008. 7 – A doutora Dehmer é membro do Office of Basic Sciences do Departamento de Energia dos EUA (US Senate, Roundtable on Health Technology, 23 de Setembro de 2003) e o texto é citado por Jorge Riechmann

9 – Berger, M., Debunking the trillion dollar nanotechnology market size hype, Nonowerk, 2007, www.nanowerk.com/spotlight/spotid=1792.php 10 – Lux Resaerch Inc. é uma das consultoras de referência na Europa e EUA nos estudos de mercados que elaborou indicadores ad‑hoc para o acompanhamento do negocio das nanotecnologias. No presente trabalho contribui‑se com dados obtidos dos The Nanotech Report. Investment Overview and Market Research for Nanotechnology que periodicamente os publica e os de 2008 de Nanomaterials State of the Market Q3 2008: Stealth Succes, Broad Impact. 11 – Serena Domingo, Pedro Amalio: “Nanociencia y nanotecnología: aspectos generales”, Encuentros multidisciplinares 12, UAM, Madrid, septiembre‑diciembre 2002, p. 8. 12 – Foladori, Guillermo. “La influencia militar estadounidense en la investigación de las nanotecnologías en América Latina”, en Rebelión, de noviembre de 2006. Ver: www.rebelion.org 13 – Mandel, E. (1972). El capitalismo tardío. Ediciones Era SA, México DF, 1979 14 – Marx, Karl (borrador 1857‑1858). Elementos fundamentales para lacrítica de la economía política. 2 Vol. Siglo XXI. Madrid, 1972.

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15 – Datos fornecidos por Guillermo Foladori na entrevista “La nanotecnología ya esta aquí y puede cambiar radicalmente el mundo” en SIREL 1.273, 2 de Junho de 2006. Pode encontrar‑se em www.rel‑uita.org 16 – Stiglitz, Joseph E. (2003) Los felices 90. Taurus, Madrid, 2003 17 – Cientifica Ltd 2008, Nanotechnology Opportunity Report‑3 rd , Executive Summary, www.cientifica. euCientifica LTd 209, Nanotechnology takes a deep breath... and prepares to save the world, 20/05, www. cientifica.eu 18 – Torres Cebada, Tomás. “Nanoquímica y nanotecnología”, Encuentros multidisciplinares 12, UAM, Madrid, septiembre‑diciembre 2002, p. 20. O autor afirmou premonitoriamente “…todo este desenvolvimento (das nano) promete um impacto social e económico maior em varias ordens de magnitude que o proporcionado pela tecnologia ‘submicrométrica’ que é la base da electrónica moderna e de las amplas capacidades de telecomunicação que existem actualmente”. 19 – http://cenamps.blogspot.com/2006/11/nanotechnology‑consumer‑.html. Para mais informação vaja‑se www.nanotechproject.org. 20 – UNESCO: The ethics and politics of nanotechnology, Paris 2006, p. 12. 21 – UNEP GEO YEARBOOK 2007. Entre as projecções existentes para o caso espanhol veja‑se o Plan Nacional de Investigación Científica, Desarrollo e Innovación Tecnológica 2008‑2011. 22 – Drexler, K. Eric (1992). “Introducción a la nanotecnología” en Krummenacker, M. e Lewis, J. (coords.).


Prospects in Nanotechnology, Toward Molecular Manufacturing. Wiley, Nueva York. 1992. p. 21. 23 – Para conhecer melhor a relação actividade produtiva/natureza, veja‑se Blount, E.; Clarimón, L.; Cortés, A.; Riechmann, J.; Roamno, D. (coords), Industria como naturaleza. Hacia la producción limpia, Los Libros de la Catarata, Madrid, 2003. 24 – O relatório não pormenoriza quantos postos de trabalho serão criados de novo ou não; mas o relevante é o número de pessoas expostas laboralmente. Para o caso europeu pode‑se consultar Hullmann, A. The economic development of nanotechnology: An indicator based analysis, Comisión Europea, Dirección General de Investigación, 2006.

30 – Farmer, J. Doyne y Aletta, dA. Belin (1992), “Vida artificial: la evolución futura” em Artificial Life II, Santa Fe Institute of Studies in the Science of Complexy, vol. X, Addison‑Wesley, Redwood City, 1992, p. 815. 31 – Ver as suas contribuições en “Nanotecnologías: para ir avanzando en nuestra reflexión” no curso “Nanotecnologías: sociedad, salud y medio ambiente”, Faculdade de Ciências Químicas da UCM, 3 a 5 de Marçode 2008, www.istas.ccoo.es“Nanomundos, multiconflictos” em Daphnia nº 46, Verano 2008. 32 – Mandel, Ernest (1962).Tratado de Economía marxista, Ediciones Era, México DF, 1969, Tomo II. 33 – Bensaïd, D. Cambiar el mundo, Los libros de la Catarata, Madrid, 2004.

25 Ver as suas contribuições em Nanotecnologia, sociedade e meio ambiente, Xamá, Sao Paulo, 2006; “Nanotecnología y sociedad: un desafío para todos” em Daphnia nº 46, Verano 2008 e nas comunicações “Impactos sobre países y sectores económicos” e em “Riesgos y beneficios para la salud humana”, no curso “Nanotecnologías: sociedad, salud y medio ambiente”, Faculdade de Ciências Químicas da UCM, 3 a 5 de Março de 2008. www.istas.ccoo.es 26 – Shand, Hope y Wetter, Kathy Jo. op. Cit. p. 166. 27 – Shand, Hope y Wetter, Kathy Jo, o.p. cit, , p. 188. 28 – Veja‑se “Nanodollars”, New Scientist, 25 de Fevereiro de 2006; e “Nano safety call”, New Scientist, 11 de Fevereiro de 2006. 29 – Mandel, Ernest (1962).Tratado de Economía marxista, Ediciones Era, México DF, 1969, Tomo II, p. 215.

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NOTA DE TRADUÇÃO: * “não há dados, não há mercado”


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ORGANIZANDO PARA A LUTA ANTICAPITALISTA DAVID HARVEY

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ORGANIZANDO PARA A TRANSIÇÃO ANTICAPITALISTA

DAVID HARVEY | GEÓGRAFO MARXISTA, PROFESSOR DA CITY UNIVERSITY OF NEW YORK

A HISTÓRIA GEOGRÁFICA DO DESENVOLVImento capitalista está em um ponto de inflexão no qual as configurações geográficas de poder estão rapidamente mudando ao mesmo tempo em que a dinâmica temporal está enfrentando sérias restrições. Três por cento de crescimento composto (geralmente considerada a taxa mínima aceitável para uma economia capitalista saudável) está se tornando cada vez menos possível de sustentar sem recorrer a toda sorte de ficções (como aquelas que caracterizaram os mercados de acções e negócios financeiros nas últimas duas décadas). Há razões para crer que não existe alternativa para a nova ordem mundial de governança, que eventualmente terá que administrar a transição para uma economia com crescimento zero. Se isto precisa ser feito de maneira equitativa, então não há alternativas que não o socialismo ou o comunismo. Desde o fim dos anos 1990, o Fórum Social Mundial tornou‑se o centro de articulação do tema “um outro mundo é possível”. E agora deve assumir a tarefa de definir como um outro socialismo ou comunismo são possíveis e como a transição para estas alternativas deve ser realizada. A actual crise oferece uma oportunidade de reflexão a respeito do que pode estar envolvido. A crise actual foi originada nas medidas tomadas para resolver a crise dos anos 1970. Estas medidas incluem:

(a) o bem sucedido ataque ao trabalho organizado e suas instituições políticas enquanto mobilizavam o excedente da mão de obra global, instituindo mudanças tecnológicas para economizar mão de obra e aumentando a competição. O resultado foi a diminuição dos salários em nível global (uma parcela em declínio dos salários no total do produto interno bruto em quase toda parte) e a criação de uma reserva de trabalho descartável ainda mais vasta vivendo em condições marginalizadas. (b) o enfraquecimento das estruturas prévias de monopólio de poder e a substituição do estágio anterior (Estado nação) de monopólio capitalista ao abrir o capitalismo para uma competição internacional muito mais feroz. A intensificação da competição global traduziu‑se em lucros corporativos não‑financeiros mais baixos. O desenvolvimento geográfico desigual e a competição interterritorial tornaram‑se peças chave no desenvolvimento capitalista, abrindo caminho em direção a uma mudança hegemónica de poder particularmente, mas não exclusivamente, na Ásia. (c) a utilização e o empoderamento das formas mais fluidas e altamente voláteis de capital – dinheiro – para realocar globalmente recursos de capital (eventualmente através dos mercados eletrónicos) incentivando assim a desindustrialização em regiões fundamentais tradicio-

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nalmente e novas formas de (ultra opressiva) industrialização e extração de recursos naturais e matéria prima agrícola em mercados emergentes. A proposta era melhorar o potencial lucrativo das corporações financeiras e encontrar novas maneiras de globalizar e supostamente absorver riscos através da criação de mercados de capital fictícios. (d) No outro extremo da escala social, isso significou uma maior credibilidade do “acúmulo por espoliação”, como meio de aumentar o poder da classe capitalista. Os novos ciclos de acumulação primitiva contrários às populações indígenas e camponesas foram intensificados por perdas patrimoniais das classes mais baixas nas economias centrais (como testemunhado pelo mercado imobiliário sub‑prime nos EUA que impingiu uma perda enorme de activos particularmente por parte das populações de afroamericanos. (d) O aumento da demanda efetiva, anteriormente flácida, ao pressionar a economia da dívida (governamental, empresarial e doméstica) até o seu limite (especialmente no EUA e no Reino Unido, mas também em muitos outros países da Letónia a Dubai). (e) A compensação pelas anémicas taxas de retorno da produção com a construção de toda uma série de bolhas no mercado de activos, que tiveram um caráter Ponzi, culminando na bolha imobiliária que estourou em


2007‑8. Essas bolhas de activos apoiaram‑se no capital financeiro e foram facilitadas por grandes inovações financeiras tais como os derivativos e as “obrigações de dívida colateralizada”, também conhecidas como “obrigações de dívida com garantia” As forças políticas que se uniram na mobilização por trás dessas transições tinham um caráter de classe distinto e vestiram‑se com as roupas de uma ideologia distinta chamada neoliberal. A ideologia repousava sobre a ideia de que os mercados livres, o livre comércio, a iniciativa pessoal e o empreendedorismo eram os melhores fiadores da liberdade individual e da liberdade como um todo e que o “Estado‑babá” deve ser destruído para o benefício de todos. Mas a prática implicava na ideia de que o Estado estivesse por trás da integridade das instituições financeiras, introduzindo assim (começando pela crise da dívida mexicana e dos países em desenvolvimento de 1982) o “risco moral” de maneira acentuada no sistema financeiro. O Estado (local e nacional) também se tornou cada vez mais empenhado em proporcionar um “bom ambiente de negócios” para atrair investimentos em um ambiente altamente competitivo. Os interesses do povo eram secundários em relação aos interesses do capital e na eventualidade de um conflito entre eles, os interesses do povo teriam que ser sacrificados (prática que se tornou padrão nos programas de ajuste estrutural do FMI do início dos anos 1980 em diante). O sistema criado equivale a uma verdadeira forma de comunismo para a classe capitalista. Estas condições variaram consideravelmente, como era de se esperar, dependendo de qual parte do mundo a pessoa morasse, das relações de classe lá predominantes, das tradições políticas e culturais e de como o equilíbrio

de poder político‑económico estivesse se movendo. Então, como poderá a esquerda negociar a dinâmica desta crise? Em tempos de crise, a irracionalidade do capitalismo torna‑se clara para todos. Excedentes de capital e de trabalho existem lado a lado sem uma forma clara de uni‑los em meio a um enorme sofrimento humano e necessidades não satisfeitas. Em pleno verão de 2009, um terço dos bens de capital nos Estados Unidos permaneceu inactivo, enquanto cerca de 17 por cento da força de trabalho estava desempregada, trabalhando involuntariamente em regimes de meio período ou era formada por trabalhadores “desencorajados”. O que poderia ser mais absurdo que isso! Seria o capitalismo capaz de sobreviver ao presente trauma? Sim. Mas a que custo? Esta pergunta encobre outra. Poderia a classe capitalista reproduzir seu poder face ao conjunto de problemas económicos, sociais, políticos e geopolíticos e dificuldades ambientais? Novamente, a resposta é um sonoro “sim” Mas a massa terá de entregar os frutos do seu trabalho para quem está no poder, ceder muitos dos seus direitos e activos (de todos os tipos desde habitação à previdência) e sofrer degradações ambientais em abundância sem falar nas sérias reduções em seus padrões de vida, o que significa a fome para muitos daqueles que já lutam para sobreviver no fundo do poço. As desigualdades de classe aumentarão (como já vimos acontecer). Estas questões podem exigir mais do simplesmente um pouco de repressão política, violência policial e controle militarizado do Estado para reprimir a desordem. Uma vez que boa parte destes fenómenos é imprevisível e os espaços da economia global são tão variáveis, as incertezas quanto aos resultados são intensificadas

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em períodos de crise. Todos os tipos de possibilidades localizadas surgem para que os novos capitalistas em algum espaço novo aproveitem as oportunidades para desafiar os mais antigos e as hegemonias territoriais (como quando o Silicon Valley susbstituiu Detroit a partir dos anos 1970 nos Estados Unidos) ou para que os movimentos radicais desafiem a reprodução de um poder de classe já desestabilizado. Dizer que a classe capitalista e o capitalismo podem sobreviver não quer dizer que eles estão predestinados a isso nem que seu caráter futuro está determinado. As crises são momentos de paradoxo e possibilidades. Então, o que vai acontecer desta vez? Se quisermos voltar para o crescimento de três por cento teremos encontrar novas e lucrativas oportunidades de investimento global para US$1,6 trilhão em 2010 subindo para perto de US$ 3 trilhões em 2030. Isto contrasta com o investimento de 0,15 trilhão de dólares necessários em novos investimentos em 1950 e 0,42 trilhão de dólares necessários em 1973 (os valores em dólar foram reajustados de acordo com a inflação). Problemas reais para se encontrar saídas adequadas para o capital excedente começaram a aparecer depois de 1980, mesmo com a abertura da China e o colapso do bloco soviético. As dificuldades foram, em parte, resolvidas pela criação de mercados fictícios onde a especulação dos valores dos activos poderia decolar sem impedimentos. Para onde irá todo esse investimento agora? Deixando de lado as restrições indiscutíveis nas relações com a natureza (o aquecimento global sendo de suma importância), as outras potenciais barreiras para a demanda efetiva no mercado, para as tecnologias e para a distribuição geográfica/geopolítica serão prova-


velmente profundas, mesmo supondo, o que é improvável, que nenhuma oposição activa séria para o contínuo acúmulo de capital e posterior consolidação do poder de classe se materialize. Que espaços são deixados na economia global para novas correções espaciais para absorção do excedente de capital? A China e o antigo bloco soviético já foram integrados. Sul e Sudeste Asiático estão se abastecendo rapidamente. África ainda não está totalmente integrada, mas não há nenhum outro local com capacidade para absorver todo este capital excedente. Que novas linhas de produção podem ser abertas para absorver o crescimento? Pode não haver soluções capitalistas eficazes a longo prazo (além da volta às manipulações fictícias de capital) para esta crise do capitalismo. Em algum ponto, as mudanças quantitativas levarão às mudanças qualitativas e precisamos levar a sério a ideia de que estejamos exactamente neste ponto de inflexão na história do capitalismo. O questionamento a respeito do futuro do próprio capitalismo como um sistema social adequado deve, portanto, estar na vanguarda do actual debate. No entanto, parece haver pouco apetite para tal discussão, mesmo entre a esquerda. Em vez disso, continuamos a ouvir os mantras convencionais de sempre sobre o potencial de perfeição da humanidade com a ajuda dos mercados livres e do livre comércio, da propriedade privada e da responsabilidade pessoal, dos impostos baixos e do envolvimento minimalista do Estado na provisão social, ainda que tudo isso soe cada vez mais vazio. Uma crise de legitimidade se avizinha. Mas as crises de legitimação normalmente se desdobram em um ritmo diferente do ritmo dos mercados de acções. Passaram‑se, por exemplo, três ou quatro anos antes que o crash da

PRECISAMOS LEVAR A SÉRIO A IDEIA DE QUE ESTEJAMOS EXACTAMENTE NESTE PONTO DE INFLEXÃO NA HISTÓRIA DO CAPITALISMO. O QUESTIONAMENTO A RESPEITO DO FUTURO DO PRÓPRIO CAPITALISMO COMO UM SISTEMA SOCIAL ADEQUADO DEVE, PORTANTO, ESTAR NA VANGUARDA DO ACTUAL DEBATE.

bolsa em 1929 produzisse o movimento social massivo (tanto o progressista quanto o fascista) depois de 1932. A intensidade da actual busca do poder político por meios para sair da actual crise pode ter algo a ver com o medo político de iminente ilegitimidade. Os últimos trinta anos, no entanto, assistiram ao surgimento de sistemas de governança que parecem imunes a problemas de legitimidade e despreocupados, até mesmo com a criação de consentimento. A mistura de autoritarismo, corrupção monetária da democracia representativa, a vigilância, o policiamento e a militarização (particularmente através da guerra contra o terror), controle de mídia e produção sugere um mundo no qual o controle dos descontentes através da desinformação, fragmentação de oposições e da concepção de culturas de oposição através da promoção de ONGs tende a prevalecer com muita força coercitiva para apoiá‑lo, se necessário. A ideia de que a crise teve origem sistémica é pouco debatida na mídia prevalente (mesmo que alguns economistas como Stiglitz, Krugman e até Jeffrey Sachs para tentar roubar a cena histórica da esquerda, confessem uma epifania ou outra). A maioria dos movimentos go-

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vernamentais para conter a crise na América do Norte e Europa levou a perpetuação da situação de sempre que se traduz em apoio à classe capitalista. O “risco moral” que foi o estopim para os fracassos financeiros está ultrapassando novos limites nos resgates a bancos. As práticas atuais do neoliberalismo (ao contrário de sua teoria utópica) sempre implicaram claro apoio para o capital financeiro e para as elites capitalistas (geralmente com base na teoria de que as instituições financeiras devem ser protegidas a todo custo e que é dever do poder do Estado criar um clima agradável para os negócios, o que resultaria em um maior lucro). Fundamentalmente, nada mudou. Tais práticas são justificadas pelo apelo à proposição duvidosa de que uma “maré crescente” do empreendimento capitalista “levantaria todos os barcos”, ou seja, que os benefícios do crescimento composto traria, como em um passe de mágica, benefícios à toda população (o que nunca acontece, exceto sob a forma de alguns migalhas caídas das mesas dos mais abastados). Então, como a classe capitalista sairá da actual crise e em quanto tempo? O recuo dos valores nos mercados acionários de Xangai, Tóquio, Frankfurt, Londres e Nova York é um bom sinal é o que nos dizem, mesmo


A ALAVANCAGEM QUE NOS LEVOU À CRISE RETORNOU COMO SE NADA TIVESSE ACONTECIDO. INOVAÇÕES EM MATÉRIA DE FINANÇAS USADAS COMO NOVAS FORMAS DE EMPACOTAR E VENDER DÍVIDAS DE CAPITAL FICTÍCIO ESTÃO SENDO REINVENTADAS E OFERECIDAS ÀS INSTITUIÇÕES (COMO OS FUNDOS DE PENSÃO), DESESPERADOS POR ENCONTRAR NOVOS MERCADOS PARA O CAPITAL EXCEDENTE. AS FICÇÕES (ASSIM COMO OS BÓNUS) ESTÃO DE VOLTA!

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que o desemprego por toda parte continue a aumentar. Mas notem o viés de classe dessa medida. Somos intimados a regozijar‑nos com a recuperação dos valores das acções para os capitalistas, porque esta sempre precede, dizem, uma repercussão na economia “real”, onde os postos de trabalho são criados e os salários pagos. O fato de que a recuperação do último recuo das acções nos Estados Unidos após 2002 revelou‑se uma “recuperação de desempregados” parece já ter sido esquecido. O público anglo‑saxão, em particular, parece ser seriamente atingido por essa amnésia. Ele esquece e perdoa com grande facilidade as transgressões da classe capitalista e os desastres periódicos que suas acções precipitam. A mídia capitalista tem o prazer de promover essa amnésia. China e Índia ainda estão crescendo, o primeiro aos trancos e barrancos. Mas no caso da China, o custo equivale a uma enorme expansão dos empréstimos bancários em projetos de risco (os bancos chineses não foram apanhados no frenesi especulativo global, mas agora estão dando continuidade a este movimento). O superacúmulo da capacidade produtiva, que promove investimentos em infraestrutura graduais e de longo prazo, cuja produtividade não será conhecida por vários anos está crescendo (inclusive nos mercados imobiliários urbanos). E a crescente demanda da China está envolvendo também essas economias fornecedoras de matérias‑primas, como a Austrália e o Chile. A probabilidade de um choque subsequente na China não pode ser descartada, mas pode levar algum tempo para sabermos (uma versão de longo prazo de Dubai). Enquanto isso, o epicentro mundial do capitalismo acelera seu deslocamento primordialmente para o leste da Ásia.

Nos centros financeiros mais antigos, os jovens tubarões financeiros pegaram os seus bónus do ano anterior e, conjuntamente, abriram pequenas instituições financeiras para continuarem a circular em Wall Street e City of London (centro financeiro de Londres) peneirando os restos deixados pelos gigantes financeiros de outrora e recolhendo as partes suculentas para recomeçarem tudo novamente. Os bancos de investimento que permanecem nos EUA – Goldman Sachs e JPMorgan – embora reencarnados como holdings bancários ganharam isenção (graças ao Federal Reserve) de requisitos regulamentares e estão conseguindo lucros enormes (e deixando de lado enormes quantias para os seus próprios bónus) ao especularem perigosamente com o dinheiro de contribuintes em mercados derivativos ainda não regulamentados e em plena expansão. A alavancagem que nos levou à crise retornou como se nada tivesse acontecido. Inovações em matéria de finanças usadas como novas formas de empacotar e vender dívidas de capital fictício estão sendo reinventadas e oferecidas às instituições (como os fundos de pensão), desesperados por encontrar novos mercados para o capital excedente. As ficções (assim como os bónus) estão de volta! Os consórcios estão comprando propriedades cujo direito de resgate à hipoteca encontra‑se anulado esperando que o mercado mude seu rumo antes de cancelá‑los definitivamente ou ainda guardando propriedades de alto valor para um futuro momento de volta ao desenvolvimento activo. Os bancos normais estão estocando dinheiro, boa parte colhida em cofres públicos, também com a intenção de voltar ao pagamento de bónus compatíveis com o estilo de vida que levavam anteriormente, enquanto um conjunto de empresários

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paira ao seu redor à espera de aproveitar este momento de destruição criativa, apoiados por uma enxurrada de dinheiro público. Enquanto isso, o poder do dinheiro exercido por poucos prejudica todas as formas de governança democrática. Os lobbies farmacêutico, de seguro de saúde e de hospitais, por exemplo, gastou mais de US $ 133 milhões no primeiro trimestre de 2009 para se certificar que as coisas sairiam como eles querem na reforma da saúde nos Estados Unidos. Max Baucus, chefe do comité de Finanças do Senado, que formulou o projeto de lei referente aos serviços de saúde recebeu US $ 1,5 milhões por um projeto de lei que oferece um vasto número de novos clientes para as companhias de seguros, com poucas proteções contra a exploração cruel e o lucro excessivo (Wall Street está encantada). Outro ciclo eleitoral, legalmente corrompido pelo imenso poder do dinheiro, logo se avizinhará. Nos Estados Unidos, os partidos de “K Street” e de Wall Street serão devidamente re‑eleitos enquanto trabalhadores americanos são exortados a encontrar uma saída para a confusão que a classe dominante criou. Nós já estivemos em situação igualmente precária antes, e em todas as vezes os trabalhadores norte‑americanos arregaçaram as mangas, apertaram os cintos, e salvaram o sistema de algum mecanismo misterioso de auto‑destruição, pelo qual a classe dominante se exime de qualquer responsabilidade. Responsabilidade pessoal é, afinal, para os trabalhadores e não para os capitalistas. Se este é o esboço da estratégia de saída, então quase certamente estaremos em outra confusão antes de cinco anos. Quanto mais rápido sairmos desta crise e quanto menos capital excedente for destruído agora,


menor será o espaço para revivermos o crescimento activo a longo prazo. A perda de valor dos activos nesta conjuntura (meados de 2009) é, fomos informados pelo FMI, pelo menos de US $ 55 trilhões, o que equivale a praticamente toda produção anual mundial de bens e serviços. Já estamos de volta aos níveis de produção de 1989. Podemos estar frente a perdas de US$400 trilhões ou mais antes do fim. De fato, em um surpreendente cálculo feito recente, sugeriu‑se que os EUA estavam em maus lençóis por terem que garantir sozinhos mais de US $ 200 trilhões em valor de activos. A probabilidade de que todos os activos estejam “podres” é mínima, mas a ideia de que muitos deles possam estar é bastante realista. Só para dar um exemplo concreto: Fannie Mae e Freddie Mac, agora resgatadas pelo Governo dos EUA, têm ou ofereceram garantia para mais de US$5 trilhões em empréstimos de habitação, muitos dos quais estão com profundas dificuldades (perdas de mais de US$150 bilhões foram registradas apenas em 2008). Então, quais são as alternativas? Há tempos o sonho de muitos no mundo é que uma alternativa para a ir(racionalidade) capitalista possa ser definida e concluída racionalmente por meio da mobilização das paixões humanas, na busca coletiva de uma vida melhor para todos. Estas alternativas – historicamente chamadas socialismo ou comunismo – foram tentadas em diferentes épocas e lugares. Antigamente, como em 1930, a visão de um ou outro deles funcionava como um farol de esperança. Mas nos últimos tempos ambos têm perdido seu brilho, ignorados, não apenas por conta do fracasso das experiências históricas com o comunismo em cumprir suas promessas e a propensão dos regimes comunistas para encobrir os erros cometi-

dos pela repressão, mas também por causa de seus pressupostos supostamente falhos sobre a natureza humana e do potencial de perfeição da personalidade humana e das instituições humanas. A diferença entre o socialismo e o comunismo é digna de nota. O Socialismo visa democraticamente gerir e regular o capitalismo de modo a acalmar seus excessos e redistribuir seus benefícios para o bem comum. Trata‑se de espalhar a riqueza através de acordos em torno de uma tributação progressiva, enquanto as necessidades básicas – como educação, saúde e até mesmo de habitação – são fornecidas pelo Estado, fora do alcance das forças de mercado. Muitas das principais conquistas do socialismo redistributivo no período após 1945 não só na Europa, mas em outros locais, tornaram‑se tão socialmente incorporadas que estão praticamente imunes ao ataque neoliberal. Mesmo nos Estados Unidos, a seguridade social e o Medicare são programas extremamente populares que as forças de direita encontram enorme dificuldade para exterminar. Os Thatcheristas na Grã‑Bretanha não puderam encostar em nada que dissesse respeito à saúde nacional, exceto marginalmente. As provisões sociais na Escandinávia e na maior parte da Europa Ocidental parecem ser uma camada indestrutível da ordem social. O comunismo, por outro lado, pretende deslocar o capitalismo através da criação de um modo completamente diferente da produção e distribuição de bens e serviços. Na história do comunismo realmente levado a cabo, o controle social sobre a produção, troca e distribuição significava controle estatal e planejamento estatal sistemático. No longo prazo, estas medidas se mostraram mal sucedidas, porém, curiosamente, sua

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conversão na China (e sua adoção anteriormente em locais como Singapura) tem se mostrado muito mais bem sucedida do que o modelo neoliberal puro na geração de crescimento capitalista, por tantas razões que não poderiam ser desenvolvidas neste texto. Tentativas contemporâneas de reviver a hipótese comunista tipicamente evitam o controle estatal e procuram outras formas de organização social coletiva para suplantar as forças do mercado e a acumulação de capital como base para organizar a produção e distribuição. Em rede horizontal, ao contrário dos sistemas de coordenação comandados hierarquicamente entre coletivos de produtores e consumidores autonomamente organizados e autogovernados estão previstas no cerne de uma nova forma de comunismo. Tecnologias contemporâneas de comunicação fazem um sistema como este parecer viável. Podem ser encontrados por todo o mundo experiências de pequena escala em que tais formas económicas e políticas estão sendo construídas. Há nisto uma convergência de algum tipo entre as tradições marxista e anarquista que remonta à situação amplamente colaborativa entre elas na década de 1860, na Europa. Ainda que não tenhamos certeza é possível que 2009 marque o início de uma prolongada reviravolta em que a questão ao redor de alternativas ao capitalismo que sejam grandiosas e de longo alcance irão passo a passo borbulhar até a superfície em uma parte ou outra do mundo. Quanto mais prolongadas forem a incerteza e a miséria, maior será o questionamento em torno da legitimidade do actual modo de fazer negócios e maior será a demanda para se construir algo diferente. Reformas radicais ao contrário das reformas estilo band aid são necessárias para se consertar o sistema financeiro.


O desenvolvimento desigual das práticas capitalistas ao redor do mundo tem produzido movimentos anticapitalistas em toda parte. As economias Estado‑cêntricas de grande parte da Ásia Oriental geram descontentamentos diferentes (como no Japão e China) em comparação com a agitação antineoliberal das lutas que ocorrem em boa parte da América Latina, onde o Movimento Revolucionário Bolivariano pelo Poder Popular encontra‑se em uma relação peculiar com os interesses da classe capitalista que ainda têm que ser verdadeiramente confrontados. Diferenças a respeito de táticas e políticas em resposta à crise entre os Estados que compõem a União Européia estão aumentando ao mesmo tempo em que uma segunda tentativa de chegar a uma constituição unificada da UE está em curso. Movimentos revolucionários e resolutamente anticapitalistas também podem ser encontrados, embora nem todos eles sejam do tipo progressista, em muitas das zonas marginais do capitalismo. Espaços foram abertos dentro dos quais algo radicalmente diferente em termos de relações sociais dominantes, modos de vida, capacidades produtivas e concepções mentais do mundo pode florescer. Isto se aplica tanto para os talibãs e para o regime comunista no Nepal, como para os zapatistas em Chiapas e os movimentos indígenas na Bolívia, os movimentos maoístas na Índia rural, ainda que sejam muito diferentes entre si em termos de objectivos, estratégias e táticas. O problema central é que, no total, não há movimento anticapitalista suficientemente unificado e decidido capaz de desafiar adequadamente a reprodução da classe capitalista e a perpetuação do seu poder no cenário mundial. Da mesma forma não há nenhuma maneira

A FAMOSA PERGUNTA DE LENIN “O QUE FAZER?” NÃO PODE SER RESPONDIDA, CERTAMENTE, SEM ALGUMA NOÇÃO DE QUEM É QUE PODE FAZÊ‑LO E ONDE. MAS É POUCO PROVÁVEL QUE UM MOVIMENTO GLOBAL ANTICAPITALISTA SURJA SEM UMA VISÃO INSPIRADORA SOBRE O QUE ESTÁ POR SER FEITO E PORQUÊ.

óbvia de atacar os baluartes dos privilégios das elites capitalistas ou de limitar seu desmesurado poderio financeiro e militar. Apesar de haver aberturas para uma possível ordem social alternativa, ninguém realmente sabe onde ela está ou o que ela é. Mas só porque não há nenhuma força política capaz de articular e muito menos montar um programa, não há motivos para se deter o esboço de alternativas. A famosa pergunta de Lenin “o que fazer?” não pode ser respondida, certamente, sem alguma noção de quem é que pode fazê‑lo e onde. Mas é pouco provável que um movimento global anticapitalista surja sem uma visão inspiradora sobre o que está por ser feito e porquê. Existe um duplo bloqueio: a falta de uma visão alternativa impede a formação de um movimento de oposição, enquanto a ausência de tal movimento opõe‑se à articulação de uma alternativa. Como, então, esse bloqueio poderia ser superado? A relação entre a visão do que fazer e o porquê, e a formação de um movimento político em determinados lugares tem que ser transformada em uma espiral. Uma tem que reforçar a outra, para que algo possa ser feito. Caso contrário, a potencial oposição será trancada para sempre em um círculo fechado que

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frustra todas as perspectivas de mudança construtiva, deixando‑nos vulneráveis a sofrermos no futuro perpétuas crises do capitalismo, com resultados cada vez mais mortais. A pergunta de Lénin exige uma resposta. O problema central a ser abordado é bastante claro. Obter crescimento composto para sempre não é possível e os problemas que assolaram o mundo nos últimos trinta anos sinalizam que estamos próximos do limite para o contínuo acúmulo de capital, que não pode ser transcendido exceto criando‑se ficções não duradouras. Adicione‑se a isso o fato de que tantas pessoas no mundo vivem em condições de extrema pobreza, que a degradação ambiental está fora de controle, que a dignidade humana está sendo ofendida em toda parte, enquanto os ricos estão acumulando mais e mais riqueza (o número de bilionários na Índia dobrou no ano passado de 27 para 52) para si próprios e que as alavancas dos poderes políticos, institucionais, judiciais, militares e midiáticos estão sob controle político estrito, porém dogmático, encontrando‑se incapazes de fazer algo além do que perpetuar o status quo e o frustrante descontentamento. Uma política revolucionária capaz de enfrentar o problema do interminável acúmulo de capital composto


O FRACASSO DOS ESFORÇOS PASSADOS PARA CONSTRUIR UM SOCIALISMO E COMUNISMO DURADOUROS TEM QUE SER EVITADO E LIÇÕES DESSA HISTÓRIA EXTREMAMENTE COMPLICADA DEVEM SER APRENDIDAS. NO ENTANTO, A ABSOLUTA NECESSIDADE DE UM MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO ANTICAPITALISTA COERENTE TAMBÉM DEVE SER RECONHECIDA. VÍRUS MAIO/JUNHO 2010

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e, eventualmente, desligá‑lo como o principal motor da história humana, requer uma compreensão sofisticada de como ocorre a mudança social. O fracasso dos esforços passados para construir um socialismo e comunismo duradouros tem que ser evitado e lições dessa história extremamente complicada devem ser aprendidas. No entanto, a absoluta necessidade de um movimento revolucionário anticapitalista coerente também deve ser reconhecida. O objectivo fundamental deste movimento é assumir o comando social sobre a produção e distribuição de excedentes. Precisamos urgentemente de uma teoria revolucionária explícita adequada aos nossos tempos. Eu proponho uma “teoria co‑revolucionária” derivada da compreensão de Marx sobre como o capitalismo surgiu do feudalismo. A mudança social surge através do desdobramento dialético das relações entre sete momentos dentro do corpo político do capitalismo, visto como um conjunto ou junção de actividades e práticas: a) formas de produção tecnológicas e organizacionais, intercâmbio e consumo
b) relações com a natureza
c) relações sociais entre as pessoas
d) concepções mentais do mundo, abrangendo conhecimentos e entendimentos culturais e crenças
e) processos de trabalho e produção de bens específicos, geografias, serviços ou sentimentos
f) arranjos institucionais, legais e governamentais
g) a condução da vida diária que está subjacente a reprodução social. Cada um desses momentos é internamente dinâmico e internamente marcado por tensões e contradições (imagine apenas as concepções mentais do mundo), mas todos eles são co‑dependentes e co‑evoluem em relação ao outro. A transição para o capitalismo implicou em um

movimento de apoio mútuo em todos os sete momentos. Teóricos sociais têm o hábito de tomar apenas um destes momentos e enxergá‑lo como o causador de todas as mudanças. Temos deterministas tecnológicos (Tom Friedman), deterministas ambientais (Jarad Diamond), deterministas da vida cotidiana (Paul Hawkin), deterministas dos processos do trabalho (os autonomistas), institucionalistas, e assim por diante. Eles estão todos errados. É o movimento dialético entre todos estes momentos que realmente importa, até mesmo porque há um desenvolvimento desigual. Quando o próprio capitalismo passa por uma de suas fases de renovação, ele o faz precisamente por co‑evolução de todos os momentos, obviamente, não sem tensões, lutas e contradições. Mas considere como estes sete momentos foram configurados aproximadamente em 1970, antes do surgimento da onda neoliberal, e considere como eles são hoje em dia e você verá que todos eles mudaram de uma forma que re‑define as características operativas do capitalismo visto como uma totalidade não‑Hegeliana. Um movimento político anticapitalista pode começar em qualquer lugar (em processos de trabalho, em torno de concepções mentais, na relação com a natureza, nas relações sociais, na concepção de tecnologias revolucionárias e formas organizacionais, na vida diária ou através de tentativas de se reformar estruturas institucionais e administrativas, incluindo a reconfiguração dos poderes do Estado). O truque é manter o movimento político seguindo em frente de um momento para outro, de maneira que se reforcem mutuamente. Foi assim que o capitalismo surgiu do feudalismo e é assim que algo radicalmente diferente chamado comunismo,

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socialismo ou outra coisa deve surgir do capitalismo. As tentativas anteriores de se criar uma alternativa comunista ou socialista não foram capazes de manter a dialética entre os diferentes momentos em movimento e não conseguiram abraçar as imprevisibilidades e incertezas no movimento dialético entre eles. O capitalismo tem sobrevivido justamente por manter focado o movimento dialético entre os momentos e abraçar construtivamente as tensões inevitáveis, incluindo as crises. A mudança surge, naturalmente, de um estado de coisas existente e tem que aproveitar as possibilidades imanentes dentro de uma situação existente. Uma vez que a situação existente varia enormemente do Nepal, para as regiões do Pacífico da Bolívia, ou para as cidades desindustrializadas de Michigan e as cidades de Bombaim e Xangai, ainda em desenvolvimento e os abalados, mas de nenhuma maneira destruídos centros financeiros de Nova Iorque e Londres, então todos os tipos de experimentos de mudança social em diferentes lugares e em diferentes escalas geográficas são provável e potencialmente esclarecedores como maneiras de produzir (ou não produzir) um outro mundo possível. E em cada instância pode parecer que um ou outro aspecto da situação existente é a chave para um futuro político diferente. Mas a primeira regra para um movimento global anticapitalista deve ser: nunca conte com a dinâmica de um momento em desdobramento sem considerar cuidadosamente como as relações com todos os outros estão se adaptando e reverberando. Possibilidades futuras viáveis resultam do actual estado das relações entre os diferentes momentos. Intervenções políticas estratégicas dentro e entre as esferas podem mover gradualmente a ordem social para


um caminho de desenvolvimento diferente. Isto é o que os líderes sábios e as instituições progressistas fazem o tempo todo em situações locais, por isso não há razão para se pensar que há algo particularmente fantástico ou utópico em se agir desta forma. A esquerda tem que construir alianças entre aqueles que trabalham nas distintas esferas. Um movimento anticapitalista tem que ser muito mais amplo do que grupos de mobilização em torno das relações sociais ou sobre questões da vida quotidiana. Hostilidades tradicionais entre, por exemplo, pessoas com conhecimentos técnicos, científicos e administrativos e aquelas que motivam as actividades dos movimentos sociais têm que ser resolvidos e superados. Temos agora que transmitir o exemplo do movimento das mudanças climáticas, um exemplo significativo de como tais alianças podem começar a trabalhar. Neste caso, a relação com a natureza é o ponto de início, mas todo mundo percebe que algo tem que acontecer em todos os outros momentos e enquanto houver uma política de desejos que procura a solução puramente tecnológica torna‑se cada vez mais claro que a vida cotidiana, as concepções mentais, os arranjos institucionais, os processos de produção e as relações sociais têm que estar envolvidos. E tudo isso significa um movimento para a reestruturação da sociedade capitalista como um todo e para confrontar a lógica do crescimento por trás do problema inicial. Deve haver, contudo, objectivos comuns vagamente acordados em qualquer movimento de transição. Normas gerais de orientação podem ser ajustadas. Estas podem incluir (apenas apresentarei brevemente estas normas para discussão), o respeito pela natureza, o igualitarismo radical nas relações sociais, arranjos

institucionais com base em alguma noção sobre interesses comuns e propriedade comum, procedimentos administrativos e democráticos (em oposição às ilusões lucrativas que existem hoje em dia), processos de trabalho organizados directamente pelos produtores, a vida cotidiana como a livre exploração de novos tipos de relações sociais e condições de vida, as concepções mentais que focam sobre a realização pessoal através do serviço aos outros e as inovações tecnológicas e organizacionais orientadas para o bem comum e não para o apoio do poder militarizado, da vigilância e da ganância corporativa. Estes poderiam ser pontos co‑revolucionários em torno dos quais a acção social poderia convergir e girar. Claro que isso é utópico! Mas e daí! Não podemos nos dar ao luxo de não sê‑lo. Deixe‑me detalhar um aspecto em especial do problema que surge onde eu trabalho. As ideias têm consequências e ideias falsas podem ter consequências devastadoras. Falhas de políticas baseadas em pensamentos económicos erróneos desempenharam um papel crucial para o desenrolar do desastre dos anos 1930 e na aparente incapacidade de se encontrar uma saída. Embora não haja consenso entre os historiadores e economistas sobre exactamente que políticas falharam foi acordado que a estrutura de conhecimento através da qual a crise foi entendida precisava ser revolucionada. Keynes e seus colegas realizaram essa tarefa. Mas, em meados da década de 1970, tornou‑se claro que os instrumentos de política keynesiana já não funcionavam, pelo menos não da forma como estavam sendo aplicados, e foi neste contexto que o monetarismo, a teoria da economia de oferta e a (bela) modelagem matemática dos comportamentos de mercado microeconómicos suplantaram o

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pensamento económico keynesiano. A teoria monetarista e neoliberal mais limitada que dominou após os anos 1980 está agora em questão. Na verdade ela tem falhado desastrosamente. Precisamos de novas concepções mentais para compreender o mundo. Quais poderiam ser elas e quem irá produzi‑las, considerado o mal‑estar sociológico e intelectual que paira sobre a produção e (igualmente importante) difusão do conhecimento de maneira mais geral? As concepções mentais profundamente arraigadas associadas às teorias neoliberais e a neoliberalização e corporatização das universidades e dos meios de comunicação tem desempenhado um papel importante na produção da actual crise. Por exemplo, toda a questão em torno do que fazer sobre o sistema financeiro, o setor bancário, o vínculo Estado‑finanças e o poder dos direitos de propriedade privada, não pode ser trabalhada sem deixarmos de lado o pensamento convencional. Para que isso aconteça será necessária uma revolução no pensamento, em lugares tão diversos quanto as universidades, a mídia e o governo, bem como no âmbito das instituições financeiras. Karl Marx, embora não estivesse de modo algum inclinado a abraçar o idealismo filosófico, considerou as ideias como uma força material na história. Concepções mentais constituem, afinal, um dos sete momentos da sua teoria geral da mudança co‑revolucionária. Evoluções autónomas e conflitos internos sobre quais concepções mentais passariam a ser hegemónicas, portanto, têm um papel histórico importante a desempenhar. Por esta razão Marx (junto com Engels) escreveu o Manifesto Comunista, O Capital e inúmeras outras obras. Estes trabalhos fornecem uma crítica sistemática, ainda


que incompleta, do capitalismo e as tendências de sua crise. Mas, como Marx também insistiu, apenas quando essas ideias críticas transitassem para os campos dos arranjos institucionais, formas organizacionais, sistemas de produção, vida cotidiana, relações sociais, tecnologias e relações com a natureza que o mundo realmente mudaria. Uma vez que o objectivo de Marx era mudar o mundo e não apenas entendê‑lo, ideias tinham que ser formuladas com certa intenção revolucionária. Isto significa, inevitavelmente, um conflito com modos de pensamento mais úteis e fáceis de se conviver para a classe dominante. O facto de que as ideias de oposição de Marx, particularmente nos últimos anos, têm sido alvo de repetidas repressões e exclusões (sem falar da farta bowdlerização e das distorções), sugere que suas ideias podem ser muito perigosas para serem toleradas pelas classes dominantes. Ainda que Keynes repetidamente declarasse que nunca tinha lido Marx, ele foi cercado e influenciado em 1930 por muitas pessoas (como por seu colega economista Joan Robinson) que leram. Embora muitos deles se opusessem veementemente aos conceitos fundamentais de Marx e seu modo dialético de raciocínio, eles estavam bastante conscientes e profundamente afectados por algumas de suas conclusões e previsões. É justo dizer, penso eu, que a revolução da teoria keynesiana não poderia ter sido realizada sem a presença subversiva de Marx, sempre à espreita. O problema nos dias de hoje é que a maioria das pessoas não tem ideia de quem foi Keynes e o que ele realmente defendia e para estas mesmas o conhecimento de Marx é desprezível. A repressão das correntes críticas e radicais do pensamento, ou para ser mais exacto

A ACTUAL ESTRUTURA DO CONHECIMENTO É CLARAMENTE DISFUNCIONAL E ILEGÍTIMA. A ÚNICA ESPERANÇA É QUE UMA NOVA GERAÇÃO DE ESTUDANTES COM ALTO SENTIDO CRÍTICO (NO SENTIDO AMPLO DE TODOS AQUELES QUE PRETENDEM CONHECER O MUNDO) SEJA CAPAZ DE ENXERGAR ISSO E INSISTA EM MUDAR ESTA REALIDADE. ISTO ACONTECEU NA DÉCADA DE 1960.

o confinamento do radicalismo dentro dos limites do multiculturalismo, políticas de identidade e escolha cultural, cria uma situação lamentável na academia e fora dela, que equivale em princípio a ter que pedir aos banqueiros responsáveis pela bagunça que a limpem exactamente com as mesmas ferramentas que eles usaram para produzi‑la. A ampla adesão às ideias pós‑modernas e pós‑estruturalistas que celebram o particular em detrimento do pensamento mais amplo não ajuda. O local e o particular são de vital importância e teorias que não aceitem, por exemplo, a diferença geográfica, são inúteis. Mas quando esse facto é usado para excluir qualquer coisa maior do que políticas paroquiais, então, a traição dos intelectuais e a revogação do seu papel tradicional tornam‑se completas. A actual população de académicos, intelectuais e especialistas em ciências sociais e humanidades é, em geral, mal equipada para realizar a tarefa coletiva de revolucionar as nossas estruturas de conhecimento. Eles foram, de facto, profundamente implicados na construção dos novos sistemas de governabilidade neoliberal que contornam questões ligadas à legitimidade e democracia e promovem uma política tecnocrática autori-

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tária. Poucos parecem predispostos a empreender uma reflexão autocrítica. Universidades continuam a promover os mesmos cursos inúteis sobre a teoria política da escolha racional ou economia neoclássica, como se nada tivesse acontecido e as faculdades de administração adicionam um curso ou dois sobre ética dos negócios ou sobre como ganhar dinheiro a partir da falência de outras pessoas. Afinal, a crise surgiu da ganância humana e não há nada que possa ser feito sobre isso! A actual estrutura do conhecimento é claramente disfuncional e ilegítima. A única esperança é que uma nova geração de estudantes com alto senso crítico (no sentido amplo de todos aqueles que pretendem conhecer o mundo) seja capaz de enxergar isso e insista em mudar esta realidade. Isto aconteceu na década de 1960. Em vários outros pontos críticos da história movimentos inspirados por estudantes, reconhecendo a disjunção entre o que está acontecendo no mundo e o que está sendo ensinado a eles e transmitido pela mídia estiveram dispostos a fazer algo a respeito disso. Há sinais em Teerã a Atenas e em muitas universidades européias de tal movimento. Como a nova geração de estudantes na China vai agir certamente deve ser de grande preocupa-


O QUE, DE MANEIRA MAIS AMPLA, ACONTECERIA SE UM MOVIMENTO ANTICAPITALISTA FOSSE CONSTITUÍDO A PARTIR DE UMA AMPLA ALIANÇA DE EXCLUÍDOS, DESCONTENTES, POBRES E SEM POSSES? A IMAGEM DE TODAS ESSAS PESSOAS EM TODA PARTE SE LEVANTANDO, EXIGINDO E CONQUISTANDO O SEU DEVIDO LUGAR NA VIDA ECONÓMICA, SOCIAL E POLÍTICA ESTÁ SE FORMANDO.

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ção nos corredores do poder político, em Pequim. Um movimento revolucionário juvenil conduzido por estudantes, com todas as suas evidentes incertezas e problemas é uma condição necessária, mas não suficiente, para produzir essa revolução nas concepções mentais que podem nos levar a uma solução mais racional para os actuais problemas de crescimento infinito. O que, de maneira mais ampla, aconteceria se um movimento anticapitalista fosse constituído a partir de uma ampla aliança de excluídos, descontentes, pobres e sem posses? A imagem de todas essas pessoas em toda parte se levantando, exigindo e conquistando seu devido lugar na vida económica, social e política está se formando. Ela também ajuda a focar na questão sobre o que é que eles podem exigir e o que precisa ser feito. Transformações revolucionárias não podem ser realizadas sem que no mínimo mudemos nossas ideias, abandonando crenças e preconceitos que nos são caros, confortos diários e direitos, submetendo‑nos a um novo esquema de vida cotidiana, mudemos nossos papéis sociais e políticos, reafirmemos nossos direitos, deveres e responsabilidades e alteremos nosso comportamento para estar em mais conformidade com as necessidades coletivas e com uma vontade comum. O mundo que nos cerca – as nossas geografias – deve ser radicalmente reformado, assim como nossas relações sociais, a relação com a natureza e todos os outros momentos do processo co‑revolucionário. É compreensível, até certo ponto, que muitos prefiram uma política de negação a uma política de confronto activo. Também seria reconfortante pensar que tudo isso poderia ser realizado pacífica e voluntariamente, que disporíamos de nossas posses, nos despiríamos, como

antes, de tudo o que possuímos hoje e se encontra no caminho da criação de uma ordem de Estado estável, socialmente justa. Mas seria hipócrita imaginar que isso se dará desta maneira, que nenhuma luta activa estará envolvida, incluindo um certo grau de violência. O capitalismo veio ao mundo, como Marx disse certa vez, banhado em sangue e fogo. Embora seja possível fazer um trabalho melhor ao sairmos dele do que quando entramos, é improvável pensarmos em uma passagem puramente pacífica para a terra prometida. Existem várias grandes correntes de pensamento rebelde à esquerda quanto à forma de abordar os problemas com que hoje nos confrontamos. Há, acima de tudo, o sectarismo habitual, decorrente da história de acções radicais e as articulações da teoria política de esquerda. Curiosamente, o único lugar onde a amnésia não é tão prevalente é dentro da esquerda (o racha entre os anarquistas e os marxistas que ocorreu na década de 1870, entre trotskistas, maoístas e os comunistas ortodoxos, entre os centralizadores que querem comandar o Estado e os antiestadistas autonomistas e os anarquistas). Os argumentos são tão ressentidos e tão turbulentos, que às vezes nos fazem pensar que um pouco mais de amnésia ajudaria. Mas para além destas seitas tradicionais revolucionárias e facções políticas, todo o campo de acção política sofreu uma transformação radical desde a década de 1970. O terreno da luta política e das possibilidades de política mudou, tanto geograficamente quanto organizacionalmente. Existe hoje um vasto número de organizações não‑governamentais (ONG’s) que desempenham um papel político que era pouco visível antes de meados dos anos 1970. Financiadas por interesses estatais e pri-

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vados, muitas vezes povoadas por pensadores idealistas e organizadores (que constituem um vasto programa de empregos), e em grande parte dedicadas a questões isoladas (meio ambiente, pobreza, direitos das mulheres, antiescravidão e tráfico de trabalho, etc.) elas se abstém de uma política estritamente capitalista mesmo defendendo ideias e causas progressistas. Em alguns casos, no entanto, elas são activamente neoliberais, defendendo a privatização de funções do Estado de bem estar social ou promovendo reformas institucionais para facilitar a integração de populações marginalizadas no mercado (esquemas de microcrédito e microfinanças para populações de baixa renda são um exemplo clássico disto). Embora existam muitos praticantes radicais e dedicados neste mundo das ONGs, seu trabalho é na melhor das hipóteses benéfico. Coletivamente, eles têm um registro irregular de conquistas progressistas, embora em certas áreas, tais como os direitos da mulher, saúde e preservação ambiental seja possível afirmar que fizeram grandes contribuições para o aperfeiçoamento humano. Mas a mudança revolucionária através das ONGs é impossível. Elas são muito limitadas pelas instâncias políticas e de formulação de políticas dos seus mantenedores. Assim, embora elas possam apoiar a capacitação local ao ajudar na abertura de espaços onde as alternativas anticapitalistas se tornam possíveis e até mesmo apoiar a experimentação com essas alternativas, elas são inócuas para impedir a re‑absorção destas alternativas para a prática capitalista dominante: elas até mesmo a encorajam. O poder coletivo das ONGs, nos dias de hoje é refletido no papel preponderante que desempenham no Fórum Social Mundial, onde as tentativas de forjar um movimento de justiça global, uma alternativa glo-


bal ao neoliberalismo, têm‑se concentrado ao longo dos últimos dez anos. O segundo grande grupo de oposição surge de anarquistas, autonomistas e organizações de base (GROS), que recusam financiamento externo, ainda que alguns deles se apóiem em algum tipo de base institucional alternativa (como a Igreja Católica com as “comunidades de base”, na América Latina ou patrocínio mais amplo da igreja para a mobilização política em cidades do interior dos Estados Unidos). Este grupo está longe de ser homogéneo (na verdade, existem fortes disputas entre eles, colocando, por exemplo, os anarquistas sociais contra aqueles a que eles se referem raivosamente como meros anarquistas por “estilo de vida”). Há, no entanto, uma antipatia comum à negociação com o poder do Estado e uma ênfase na sociedade civil como sendo a esfera onde a mudança pode ser realizada. Os poderes de auto‑organização das pessoas nas situações cotidianas em que elas vivem têm que ser a base para qualquer alternativa anticapitalista. A formação de redes horizontais é o seu modelo de organização preferido. As chamadas “economias solidárias” baseadas em trocas têm os sistemas coletivos e de produção local como sua forma político‑económica preferida. Eles normalmente se opõem à ideia de que qualquer direção central possa ser necessária e rejeitam as relações sociais hierárquicas ou estruturas de poder político hierárquico, juntamente com os partidos políticos tradicionais. Organizações deste tipo podem ser encontradas em todos os lugares e em alguns locais atingiram um alto grau de proeminência política. Alguns deles são radicalmente anticapitalistas na sua postura e defendem objectivos revolucionários e em alguns casos, estão dispostos

a defender a sabotagem e outras formas de desordem (as Brigadas Vermelhas na Itália, o Meinhoff Baader na Alemanha e o Weather Underground nos Estados Unidos, na década de 1970). Mas a eficácia de todos estes movimentos (deixando de lado os mais violentos) é limitada pela relutância e a incapacidade para elevar seu activismo a formas de organização em grande escala capazes de enfrentar os problemas globais. A presunção de que a acção local é o único nível significativo de mudança e que tudo o que cheira a hierarquia é anti‑revolucionário é, na verdade, autodestrutivo em se tratando de questões maiores. No entanto, esses movimentos estão, inquestionavelmente, fornecendo uma base ampla para a experimentação com políticas anticapitalistas. A terceira grande tendência advém da transformação que vem ocorrendo na organização do trabalho tradicional e nos partidos políticos de esquerda, variando desde tradições social‑democráticas até trotskistas mais radicais e formas comunistas de organização de partidos políticos. Esta tendência não é hostil à conquista do poder do Estado ou de outras formas de organização hierárquica. Na verdade, ela vê esta última como necessária à integração da organização política em uma variedade de escalas políticas. Nos anos em que a social‑democracia era hegemónica na Europa e até mesmo influente nos Estados Unidos, o controle estatal sobre a distribuição dos excedentes se tornou uma ferramenta essencial para diminuir as desigualdades. O fracasso em se conseguir o controle social sobre a produção de excedentes e, assim, realmente desafiar o poder da classe capitalista foi o calcanhar de Aquiles deste sistema político, mas não devemos esquecer os avanços que ele fez, mesmo que agora seja claramente

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insuficiente a volta para tal modelo político com o seu assistencialismo social e economia keynesiana. O movimento bolivariano na América Latina e a ascensão ao poder do Estado conseguida por governos social‑democratas é um dos sinais mais promissores da ressurreição de uma nova forma de estatismo de esquerda. Tanto o trabalho organizado quanto os partidos políticos de esquerda tomaram bons golpes no mundo capitalista desenvolvido ao longo dos últimos trinta anos. Ambos foram convencidos ou coagidos a um amplo apoio ao neoliberalismo, ainda que este contasse com contornos mais humanos. Uma maneira de se enxergar o neoliberalismo, como mencionado anteriormente, é como um movimento grandioso e bastante revolucionário (liderado pela figura autoproclamada revolucionária, Margaret Thatcher) para privatizar os excedentes, ou pelo menos impedir o avanço de sua socialização. Embora existam sinais de recuperação da organização do trabalho e das políticas de esquerda (em oposição à “terceira via”, celebrada pelo Novo Trabalhismo na Grã‑Bretanha sob Tony Blair e desastrosamente copiada por muitos partidos social‑democratas na Europa), juntamente com os sinais do aparecimento de partidos de esquerda mais radicais em diferentes partes do mundo, o uso exclusivo de uma vanguarda de trabalhadores está agora em questão tanto quanto a habilidade daqueles partidos de esquerda que conquistam algum grau de acesso ao poder político a ter um impacto substancial sobre o desenvolvimento do capitalismo e lidar com a dinâmica conturbada da acumulação propensa a crise. O desempenho do Partido Verde alemão no poder não tem sido algo fora do comum em relação à sua postura política de poder e os partidos social‑democratas


perderam sua habilidade para actuar como uma verdadeira força política. Mas os partidos políticos de esquerda e sindicatos ainda são significantes e sua aquisição de aspectos do poder do Estado, como no caso do Partido dos Trabalhadores do Brasil ou do movimento bolivariano na Venezuela teve um claro impacto no pensamento de esquerda, não apenas na América Latina. Talvez não seja fácil resolver os complicados questionamentos a respeito de como interpretar o papel do Partido Comunista da China, com seu controle exclusivo sobre o poder político e sobre quais serão suas futuras políticas. A teoria co‑revolucionária anteriormente apresentada sugeria que de forma alguma uma ordem social anticapitalista poderia ser construída sem a tomada do poder do Estado, transformando‑o radicalmente e retrabalhando as estruturas constitucional e institucional que actualmente apoiam a propriedade privada, o sistema de mercado e a interminável acumulação de capital. A concorrência interestatal e as lutas geoeconómica e geopolítica por tudo, desde comércio e dinheiro até as questões de hegemonia também são importantes demais para serem deixadas para os movimentos sociais locais ou postas de lado como sendo grandes demais para serem contempladas. Como a arquitetura da conexão Estado‑finanças deve ser retrabalhada juntamente com a questão premente da medida comum de valor determinado pelo dinheiro são factos que não podem ser ignorados na busca pela construção de alternativas para a economia política capitalista. Ignorar o Estado e a dinâmica do sistema interestatal é, portanto, uma ideia ridícula demais para ser aceita por qualquer movimento revolucionário anticapitalista. A quarta tendência geral é constituída por todos os

A ACTUAL ESTRUTURA DO CONHECIMENTO É CLARAMENTE DISFUNCIONAL E ILEGÍTIMA. A ÚNICA ESPERANÇA É QUE UMA NOVA GERAÇÃO DE ESTUDANTES COM ALTO SENTIDO CRÍTICO (NO SENTIDO AMPLO DE TODOS AQUELES QUE PRETENDEM CONHECER O MUNDO) SEJA CAPAZ DE ENXERGAR ISSO E INSISTA EM MUDAR ESTA REALIDADE. ISTO ACONTECEU NA DÉCADA DE 1960.

movimentos sociais que não sejam guiados por alguma filosofia política ou inclinação em especial, mas pela necessidade pragmática de resistir a deslocamentos e desapropriações (através da gentificação, do desenvolvimento industrial, da construção de barragens, da privatização da água, do desmantelamento dos serviços sociais públicos e oportunidades educacionais e outros). Neste caso, o enfoque na vida diária na cidade, vila, aldeia ou outro local fornece uma base material para a organização política contra as ameaças que as políticas de Estado e de interesses capitalistas, invariavelmente, representam para as populações vulneráveis. Estas formas de protesto político são enormes. Novamente, há uma vasta gama de movimentos sociais deste tipo, alguns dos quais podem tornar‑se radicalizados ao longo do tempo na medida em que eles, cada vez mais, percebam que os problemas são sistémicos e não particulares ou locais. A junção de tais movimentos sociais em alianças da terra (como a Via Campesina, o movimento dos camponeses sem‑terra no Brasil, ou camponeses mobilizando contra a tomada de terra e recursos por corporações capitalistas na Índia) ou em contextos urbanos (o direito à cidade e retomada

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dos movimentos dos sem teto no Brasil e agora nos Estados Unidos) indica que o caminho esteja aberto para a criação de alianças mais amplas para discutir e enfrentar as forças sistémicas que sustentam as particularidades da gentificação, da construção de barragens, da privatização e outros. Mais pragmáticos, ao invés de impulsionados por preconceitos ideológicos, esses movimentos, no entanto, podem chegar a uma compreensão sistémica gerada por suas próprias experiências. Na medida em que muitos deles existem no mesmo espaço, como dentro da metrópole, eles podem (como supostamente aconteceu com os operários nas fases iniciais da revolução industrial) se reunir em torno de uma causa comum e começar a estabelecer, com base na sua própria experiência, a consciência de como o capitalismo funciona e o que pode ser feito coletivamente. Este é o terreno em que é muito significativa a figura do líder “orgânico intelectual”, tão presente na obra de Antonio Gramsci, o autodidacta que consegue entender o mundo em primeira mão através de duras experiências, mas formula sua compreensão do capitalismo de maneira mais geral. Ouvir as falas de líderes


camponeses do MST no Brasil ou dos líderes do movimento contra a tomada de terras por corporações na Índia é um privilégio educacional. Neste caso, a tarefa dos excluídos e descontentes educados é ampliar a voz subalterna, para que se possa prestar atenção à situação de exploração e repressão, assim como as respostas que podem ser pensadas para um programa anticapitalista. O quinto epicentro para a mudança social reside nos movimentos emancipatórios em torno das questões de identidade – mulheres, crianças, homossexuais, minorias raciais, étnicas e religiosas, todos merecem um lugar ao sol – juntamente com a vasta gama de movimentos ambientais que não são explicitamente anticapitalistas. Os movimentos que reivindicam a emancipação em cada uma destas questões são geograficamente desiguais e muitas vezes geograficamente divididos em termos de necessidades e aspirações. Mas as conferências mundiais sobre os direitos das mulheres (Nairóbi, em 1985, que levou à declaração de Pequim de 1995) e anti‑racismo (conferência muito mais controversa, em Durban, em 2009) estão tentando encontrar um terreno em comum, como é o caso também das conferências ambientais, e não há dúvida de que as relações sociais estão mudando juntamente com todas essas dimensões, pelo menos em algumas partes do mundo. Quando expressos em termos estritamente essencialistas, esses movimentos podem parecer antagónicos à luta de classes. Certamente, dentro de grande parte da academia eles tornaram‑se prioridade em detrimento da análise de classe e economia política. Mas a feminilização da força de trabalho global, a feminilização da pobreza em quase toda parte e o uso das disparidades de género como um meio de controle do trabalho fazem a

emancipação e a eventual libertação da mulher das suas repressões uma condição necessária para ajustar o foco da luta de classes. A mesma observação se aplica a todas as outras formas de identidade onde a discriminação ou a repressão podem ser encontradas. O racismo e a opressão das mulheres e crianças foram fundamentais para a ascensão do capitalismo. Mas o capitalismo na sua actual forma pode, em princípio, sobreviver sem estas formas de discriminação e opressão, apesar de sua habilidade política para fazê‑lo ser gravemente prejudicada se não mortalmente ferida, face à uma força de classe mais unida. A modesta inclusão do multiculturalismo e dos direitos das mulheres no mundo corporativo, em particular nos Estados Unidos, fornece algumas evidências da acomodação do capitalismo a essas dimensões de mudança social (incluindo o meio ambiente), enquanto reenfatiza a relevância das divisões de classe como a principal dimensão para a acção política. Estas cinco grandes tendências não são mutuamente exclusivas nem anulam os modelos organizacionais para a acção política. Algumas organizações combinam aspectos de todas as cinco tendências maneira organizada. Mas há muito trabalho a ser feito para fundir essas várias tendências em torno da questão subjacente: poderia o mundo mudar materialmente, socialmente, mentalmente e politicamente, de tal forma a confrontar não apenas o estado terrível das relações sociais e naturais nas muitas partes do mundo, mas também a perpetuação do crescimento composto infinito? Esta é a pergunta que os excluídos e descontentes devem seguir se perguntando, vezes sem conta, enquanto aprendem com aqueles que experimentam a dor directamente e

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que são tão hábeis em organizar resistências para as terríveis consequências de um crescimento composto no mundo real. Comunistas, Marx e Engels asseveraram em sua concepção original apresentada no Manifesto Comunista, não pertencerem a partidos políticos. Eles simplesmente constituem‑se em todos os momentos e em todos os lugares como aqueles que entendem os limites, deficiências e tendências destrutivas da ordem capitalista, bem como as inúmeras máscaras ideológicas e falsas legitimações que os capitalistas e seus apologistas (sobretudo nos meios de comunicação) produzem para perpetuar o seu poder de classe. Comunistas são todos aqueles que trabalham incessantemente para produzir um futuro diferente do que anuncia o capitalismo. Esta é uma definição interessante. Ainda que o comunismo institucionalizado tradicional esteja morto e enterrado, há sob esta definição milhões de comunistas activos de facto entre nós, dispostos a agir de acordo com seus entendimentos, prontos para exercerem criativamente imperativos anticapitalistas. Se, como o movimento de globalização alternativa dos anos 1990 declarou: “um outro mundo é possível”, então por que não dizer também “um outro comunismo é possível? As actuais circunstâncias do desenvolvimento capitalista requerem algo deste tipo, se realmente desejamos alcançar a mudança fundamental.

NOTAS INCLUÍDAS NO LIVRO O ENIGMA DO CAPITAL, PROFILE BOOKS, 2010. PUBLICADO NO BLOG

SEMINÁRIO 10 ANOS DEPOIS, DO FÓRUM SOCIAL MUNDIAL.

TRADUÇÃO: ADRIANA GUIMARÃES


RAPS Ó DIA

CONTO «O SONHO», POR PEDRO EIRAS | LEITURAS «A ESQUERDA RADICAL», POR HUGO DIAS

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O SONHO

PEDRO EIRAS

Uma vez, o barão sonhou com a torre de Babel. E descobriu que não era como diz o livro da Génese. Na verdade, os construtores da torre falavam as mais variadas línguas. Vindos dos quatro cantos do planeta, pedreiros, pintores, projectistas, estucadores, serventes, ladrilhadores e jardineiros usavam mil idiomas, dialectos, subtis variantes. Se um perguntava, logo outro respondia numa língua diferente. Talvez até algumas línguas novas tenham nascido na torre de Babel. Mas nem por isso se atrasava a construção. Primeiro, porque boa parte do que é preciso dizer se diz com gestos e tons, ou praticamente se adivinha; nem convém, aliás, falar demasiado, sobrecarregando a torre com conversas inúteis. Segundo, porque uma tal profusão de línguas não deixa de ser festiva; e todos se ouviam com gozo uns aos outros, saboreando as diferenças e as surpresas, o timbre exótico das linguagens mais distantes, os jogos de humor com parónimos e falsos amigos da gramática. Ninguém podia saber em que língua responderia este vidreiro, aquele calceteiro; portanto, pedir um tijolo era uma aventura. Finalmente, tal multiplicação de línguas gerava desafios de tradução, discussões filosóficas sobre a natureza da fala, a escrita de ficções, poemas, peças de teatro. Era a idade do ouro. E a torre ascendia aos céus. Mas Deus viu que isto não era bom: os homens chegariam ao paraíso, ladrando as suas palavras insolentes. Por isso, transformou aquela algaraviada deliciosa numa só língua, única, solitária, exclusiva. Os homens, usando todos as mesmas palavras, cedo começaram a bocejar, depois a discutir, e por

fim entraram em guerra, que ainda hoje continua. Ruiu a torre de Babel, e o barão acordou. Já o criado abria os cortinados, murmurando: «Bom dia, Excelência, são horas...» «Horas de quê?», resmungou o barão, estremunhado. «Vossa Excelência decerto lembra-se que marcou uma reunião com o desenhador de uniformes. Para fazer uniformes para os criados, Vossa Excelência.» «Ah, pois é», disse o barão.

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ENTRE A FESTA E O SACRIFÍCIO

HUGO DIAS

«A ESQUERDA RADICAL» TRANSPORTA-NOS para o contexto de radicalização política dos anos sessenta e setenta e para a constelação de reflexões ideológicas, práticas políticas e cambiantes organizativas que deste emergiram. Trata-se de uma obra concisa, não fosse ela parte de uma colecção intitulada «Biblioteca Mínima», mas plena de densidade e rigor histórico, que procura reconstituir a trajectória destas esquerdas, detendo-se, com particular atenção, na realidade portuguesa que antecede o 25 de Abril. O primeiro capítulo procura delinear os grandes traços característicos da esquerda radical, «anotando os veios fundamentais de um complexo ideológico que oscilou precisamente entre a festa e o sacrifício, o prazer e o ascetismo, a renovação teórica e a rigidez retórica». Não obstante a pluralidade, «um notório jogo de semelhanças agrupava esse feixe plural, suportado na crítica aos partidos comunistas tradicionais, na activação de um internacionalismo de novas cores e na tentativa de alargamento do «político» a domínios considerados pouco antes como exclusivamente privados». O restante da obra centra-se na singularidade histórica portuguesa, onde a constituição da diversidade de matizes políticos da esquerda radical se faz necessariamente no debate sobre as estratégias de luta contra o Estado Novo e (posteriormente) a Guerra Colonial, e no recrudescimento da contestação operária e estudantil; nos ecos da radicalização politica internacional e na sua tradução para o contexto nacional, cerzindo de forma singular a «tensão entre uma ambiência mais libertária

proveniente do radicalismo da época e as necessidades e virtualidades da rigidez organizativa, frequentemente transmutadas do campo da política para o campo da moral e dos costumes», o «mudar a vida» de Rimbaud e o «mudar o mundo» de Marx; na definição políticoideológica e construção organizativa, reflectindo cismas internacionais e «geografias imaginadas», em ruptura e demarcação com a tradição do Partido Comunista Português. O capítulo «O Maoísmo em Portugal» é um laborioso rastreio da diversidade das expressões públicas desta corrente, com particular destaque para três percursos específicos: o de Francisco Martins Rodrigues, com a sucessiva criação da FAP, CMLP e fundação do PCP (m-l) em 1970; do MRPP, no mesmo ano; e da OCMLP em finais de 1972. A inclusão de um diagrama das «organizações maoistas em Portugal» torna-se numa ajuda inestimável para uma melhor percepção da cronologia e das interelações existentes no turbulento complexo maoista português. Em «as outras correntes», agrupa, mais por «comodidade expositiva do que pela partilha de um substrato ideológico comum» o percurso da família política trotskista, das expressões do anarquismo, do «socialismo radical», e dos grupos adeptos da luta armada. «A Esquerda Radical» é, portanto, um livro de referência para os interessados pela temática, numa edição sensível ao pormenor da Angelus Novus.

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A ESQUERDA RADICAL MIGUEL CARDINA ED. ANGELUS NOVUS, 2010 120 PÁGINAS


FOTOS NESTA EDIÇÃO: THE CRACK

REVISTA VÍRUS #9 MAIO/JUNHO 2010

IRENE GR

“LA RIVOLUZIONE NON RUSSA”? PALMIRO TOGLIATTI

SELO EMITIDO EM 1964 NA URSS

CANCELLA PER RICORDARE THAT’S SO ‘70s

*RICCIO “IL COLORE DEL RICORDO INGANNA”

*RICCIO “IL COLORE DEL RICORDO INGANNA”

NO CONGRESSO DE 1972

DE PICASSO

EDWARD R. MURROW

WISCONSIN HISTORICAL IMAGES

CARBON NANOTUBES

ST STEV

PHOTONQ-NANO WARPDRIVE PROPULSION’S ENGINE

ANA DRAGO ANDREA PENICHE JORGE COSTA PHOTONQUANTIQUE

JOSÉ SOEIRO MANUEL DENIZ SILVA

SASCHAPOHFLEPP

IMAGEBANK #1: ANTICAPITALIST LUDWIG VAN STANDARD LAMP SOMEBODY LOVES COMMUNISM

LUÍS BRANCO CONSELHO EDITORIAL

CENA DO FILME “LE MÉPRIS” DE JEAN LUC GODARD

EXPERIMENT

JOÃO TEIXEIRA LOPES EDIÇÃO GRÁFICA

SUYENSEDAI

GIANCARLO PAJETTA, PIETRO INGRAO E ENRICO BERLINGUER GUERNICA

DIRECÇÃO

MARIANA AVELÃS NUNO TELES

ROT IST DIE FARBE DER HOFFNUNG

1º DE MAIO 2010

PAULETE MATOS

PEDRO SALES

1º DE MAIO 2010

PAULETE MATOS

RITA SILVA

OLD BOOK STARA KSIAZKA

RUI BORGES

V.MAX1978

WWW.ESQUERDA.NET/VIRUS REGISTO ERC NO 125486 || PROPRIEDADE: BLOCO DE ESQUERDA RUA DA PALMA, 268 – 1100‑394 LISBOA ESTA OBRA ESTÁ LICENCIADA SOB UMA LICENÇA CREATIVE COMMONS VÍRUS MAIO/JUNHO 2010

[66] FICHA TÉCNICA


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