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Viva a Zé Pereira! E
m meados do século XIX, inspirado em folguedos da terrinha, o sapateiro português José Nogueira de Azevedo Paredes, que passaria à História como Zé Pereira, saía às ruas do Rio de Janeiro pulando e cantando. Com seu bumbo, conclamava o povo a festejar o Carnaval. Em 2007, chega às bancas a Zé Pereira. Fazendo barulho, convidando o carioca a discutir os problemas da cidade e flertando com os seus encantos mil, de Norte a Sul e a Oeste. Nossa revista chega às bancas com um projeto jornalístico responsável, atenta à rica variedade cultural carioca. Por aqui desfilarão textos apurados com cuidado e respeito às regras da boa reportagem; as melhores fotos e um projeto gráfico atraente e informativo, que resgata o charme do preto-e-branco. Reportagens investigativas, perfis de cariocas ilustres (não confundir com os colunáveis), crônicas, contos, quadrinhos, folhetim e poesia – um verdadeiro almanaque reflexivo dos modos e costumes do Rio de Janeiro do século XXI. Para a tarefa, convidamos a nova geração de jornalistas, escritores e artistas que pintam, bordam, prosam e versam a cidade. O que a grande imprensa ignora ou distorce – por conveniência ou conivência – estará nas páginas da Zé Pereira. Finalmente, uma alternativa de qualidade ao jornalismo de pijama de todos os dias.
Conselho editorial: rdo Souza Lima, Anna Azevedo, Edua o Garavaglia, Olívia Ferreira, Pedr Roberto Ribeiro. Editor: a Eduardo Souza Lim Projeto gráfico: diografico.com.br) Radiográfico (www.ra Editor de fotografia: .com) .michaelende-brazil Michael Ende (www Colunista: mor) .gardenal.org/mauhu Arnaldo Branco (www etim: Coordenador do folh ho.com.br) ww.marcelomoutin (w ho in ut Marcelo Mo Redatores: rdo Souza Lima Anna Azevedo e Edua Revisão: Andreia Rosa Capa: Jano
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BerlinBall
vencedor do “Berlin Today” - Festival de Berlim 2006
O Homem-Livro
melhor direção (júri oficial) e melhor filme (júri popular)- Festival de Brasília 2006
Rio de Jano 5
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Aristocracia carioca: Tia Doca da Portela Receitas de vida — e de fogão — da pastora da Velha Guarda, por Anna Azevedo (texto) e Michael Ende (fotos).
Artigo: Por que não querem saber a opinião dos jovens? A atriz Leandra Leal questiona por que a sua geração só ganha pacotes embrulhados.
A rádio que toca ofertas Os incríveis reclames da Rádio Saara. Por Patrícia Rocha (texto) e Matias Maxx (fotos).
Real Gabinete Português de Sardinhas na Brasa Uma viagem histórico-sentimental-existencial à Cadeg. Texto e ilustrações de Gustal.
Conto: Ponte-aérea Um carioca exilado procura o Rio de Janeiro em São Paulo. Por Sidney Garambone.
Problema de peso Saúde pública trata obesos com descaso cavalar. Texto de Marcelle Justo, charge de Leonardo e foto-ilustração de Eduardo Souza Lima.
Poesia Poema sobre foto ou foto sobre poema de Laura Erber.
Paciente terminal Pobre Baía de Guanabara, tratada como vaso sanitário, cada vez mais ameaçada. Texto e fotos de André Vieira.
Quadrinhos: Seu Pacheco e as vozes Um dia alguém resolve reagir. Por Patati (roteiro) e Allan Alex (desenhos)
Artigo: O cinema brasileiro do Brasil O cineasta Gustavo Acioli quer saber por que é tão complicado fazer cinema no país. Para alguns.
Trilha sonora de vida fácil
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As radiolas das meninas estão globalizadas. Por Rodrigo Fonseca (texto) e Marcello Quintanilha (ilustrações).
SU MÁ RIO
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Conto: Antônia Uma senhora sem destino pelos subúrbios do Rio. Por Cristiane Dantas.
Histórias do Garage:
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A legendária casa de rock carioca testemunhou histórias que até o diabo duvida. Por Adilson Pereira.
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Criativo carioca inventa uma nova modalidade esportiva. Por Fernando Gerheim.
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Conto: Moisés, o atravessador de ruas
Folhetim: As aventuras de um Zé Pereira Com “Sujeito-homem”, Marcelo Moutinho dá início à saga de nosso herói. Outros autores continuam a história. Mês que vem é a vez de Henrique Rodrigues. Quem se habilita a escrever o capítulo III ?
Da Panelinha: Onde sonham os prédios Uma quinta-feira qualquer, uma aventura inesperada. E ainda dizem que a noite do Rio acabou. Por Luiz Henriques (texto) e Heitor Pitombo (ilustração).
Ilustre desconhecido Ele é professor e poeta alternativo, marginal, independente, performático, cênico e teatral.
Caso de polícia Eles deveriam servir ao cidadão.
O bumbo do Zé O trágico placar da guerra civil nossa de cada dia e uma estranha noção de democracia.
Mal necessário Arnaldo Branco dá dicas exclusivas para cineastas preencherem os editais de incentivo à cultura.
Aristocracia carioca: Tia Doca da Portela.
“NÃO SABIA QUE EXISTIA AMERICANO PRETO” texto: ANNA AZEVEDO fotos: MICHAEL ENDE
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Rio de Janeiro dos anos 40 vivia a época de ouro das estrelas do cinema e do rádio. Deles saíam os ícones que recheavam revistas como “O Cruzeiro” e o imaginário dos rapazes e moças. Frank Sinatra era um desses astros. A conjunção de uma bela voz com o par de olhos azuis que flertava com as fãs virou um dos símbolos de uma era marcada pelos musicais. Para a menina Doca, que morava com a mãe e os cinco irmãos na Favela do Pau Fincado, atual rabicho do cais do porto, no Caju, Frank Sinatra — cujo retrato adornava o barraco da vizinha e a voz se espalhava a partir do rádio da casa ao lado — era a síntese do gringo: todos falavam o mesmo idioma “embolado” e eram americanos de olhos azuis. Já as mulheres seriam a imagem e semelhança das bonecas que Doca via nas vitrines das lojas e com as quais sonhava. Sobretudo naqueles dias de dezembro, mês de seu oitavo aniversário e de mais um Natal. Apesar de pequena, Doca sabia que teria de dar muito duro se quisesse ter uma vida mais confortável que aquela, na favela. Miudinha, já ajudava a mãe, Albertina, a vender sopa de entulho para os estivadores do Porto, na troca do turno, de madrugada. Ao cais também voltava de dia. Era costume dos moradores do Pau Fincado aguardar o fim do horário do rancho à espera da sobra da comida dos navios, normalmente jogada ao mar. 8
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erta tarde daquele dezembro de 1940, Doca esperava os taifeiros quando um marinheiro alto e negro surge ao seu lado e inicia um papo em português desajeitado. A menina não entendeu nada daquela “língua enrolada”. Tampouco compreendeu como um negro igual a ela poderia falar o idioma do ídolo da vizinha, Frank Sinatra. — Eu nem sabia que tinha americano preto — relembra, 67 anos depois. Surpresa maior só quando o gringo se fez entender: havia uma boneca esperando por Doca, caso ela aceitasse subir com ele até o navio. — Fiquei louca quando ouvi falar na boneca. Eu era muito bobinha, então subi com o homem até o camarote. E não é que tinha uma boneca lá? Linda, parecia um sonho. Só percebi que o navio havia partido quando ouvi o apito. O cais estava longe. O camarada tava me roubando. Doca nasceu Jilçária Cruz Costa, mas a mãe, como fez com os demais filhos, tratou logo de lhe arrumar um apelido — artimanha para defender a prole de algum homônimo mal-intencionado. Cresceu e ficou conhecida como Tia Doca, pastora da Velha Guarda da Portela. A mulher cuja vida renderia um samba de enredo épico, daqueles de outrora. O primeiro verso poderia ser a frase que encerra cada uma das dezenas de histórias que Doca conta: “É, já passei por tudo nessa vida”. No refrão, o bordão que sintetiza o jeito de verdadeira dona de terreiro da tia: “Comigo, não, o que é que há?”.
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Era no quintal de Tia Doca, em Oswaldo Cruz, que a fina flor do samba de Madureira esquentava os tamborins e viu brotar sucessores. Despejados do quintal de Dona Neném pela própria, após reclamar ao marido, o compositor Manacéia, que não agüentava mais cozinhar para tanta boca, toda semana, a Velha Guarda passou a se reunir no quintal de terra batida de Doca e do marido Altair. Durante cinco anos, até 1980, a turma da Velha Guarda ensaiou debaixo da mangueira do casal. Lá nasciam os mais belos sambas, versos temperados pelas iguarias que a dona da casa trazia fumegando do fogão à lenha. Certa domingueira, porém, a Velha Guarda não apareceu. Nem Altair, que abandonara Doca com seis filhos. Os pensamentos da pastora se voltaram para o cais do porto, para as dificuldades que ela, os irmãos e a mãe passaram na vida: — Ele me largou com as crianças, me deixou a pão e laranja, arranjou outra mulher, limpou o dinheiro do banco, que era pra pagar o aluguel, e foi embora. A mesma história da minha mãe. Estou há 30 anos separada, depois de 29 anos casada. Não sou desse tipo de mulher que se separa e fica bêbada, largada. Comigo, não, o que é que há? Meus filhos não iam passar o que eu passei na infância. Sem Altair no comando da casa, a Velha Guarda enfiou a viola no saco e partiu para outro quintal. Nessa época, Doca já fazia parte do seleto grupo de guardiões das tradições musicais da Azul e Branco. A pastora fi-
cou magoada, conta que se sentiu abandonada no momento em que mais precisava de companheiros. Mas, com a ajuda de um casal amigo, transformou o que era diversão em trabalho. Logo a notícia do pagode da Tia Doca se espalhou pelo subúrbio. A receita era infalível: uma árvore frondosa, chão de terra, cerveja gelada, comida boa e músicos idem. Beth Carvalho, Marquinhos de Oswaldo Cruz, Dudu Nobre, Arlindo Cruz e os músicos portelenses batiam ponto no terreirão. Tia Doca molhava o chão para não levantar poeira. E o coro comia, conta Zeca Pagodinho, uma das crias deste quintal. — Ali o bicho pegava. A turma do juvenil esperava o intervalo da Velha Guarda para dar seu recado. Aprendi a compor nesses quintais. A gente se afastava da roda, ia pro cantinho, o samba saía. E a comida rolando... Tia Doca é esperta! — relembra o músico. — O Zeca era um menininho de boné da Kibon quando apareceu aqui pela primeira vez. Perguntei: “Sua mãe sabe que você está aqui? Tem dinheiro da passagem pra voltar?”. Era arisco que só vendo, mas muito educado. Uma vez chamei o Milton Manhães para ver ele e o Deni versando, dois molequinhos, né?, jogando lera um pro outro. Pronto, estourou! A falecida Jovelina Pérola Negra também surgiu daqui. Era um terror isso aqui. Um terror! Mulheres como Doca fazem parte de uma geração de “tias” conhecidas e respeitadas no mundo do samba pelo apego à tradição e o respeito que impõem aos mais novos; pelo dom de saber cozinhar em quantidade mantendo a qualidade e por comandar tradicionais rodas de fundo de quintal. Encontros que remontam ao século XIX, quando baianas da Praça Onze, como Tia Ciata, Tia Bebiana e Tia Perciliana — mãe de João da Baiana — abriam seus quintais para batucadas, umbigadas, capoeira e samba — ritmos que, tocados em via pública, rendiam uma prisão por vadiagem. “Pelo telefone”, aquele que é considerado o primeiro samba, foi composto por Donga no quintal de Ciata — ali, nos domínios dessa baiana arretada, freqüentado não só por músicos humildes, como também por políticos e pessoas de classe média, a polícia não se metia. Enquanto essas rodas revelam a nova geração de sambistas, não vislumbramos uma nova geração de tias. Os quintais são cada vez mais raros e as mulheres procuram seu lugar no mercado de trabalho. Tias como as portelenses Doca, Surica e Eunice são uma peça de resistência cultural. Para não deixar morrer os quintais e continuar tendo como comprar o feijão e os miúdos para as tradicionais farras gastronômicas desses encontros, o jeito foi fazer das rodas e da famosa voz de lavadeira um ganha-pão que paga as contas de casa e preserva a tradição. Com o pagode e as participações especiais em discos, Doca criou a família. Foi o produtor Rildo Hora quem sugeriu a Beth Carvalho o nome da pastora para
compor o coro de um novo disco. Depois os convites vieram de Clara Nunes, Paulinho da Viola, João Nogueira, Elza Soares, Luiz Ayrão e Grupo Fundo de Quintal. — Ainda esperei por três meses para ver se o meu marido voltava com uma compra, se a consciência doía, mas nada. O pagode da Tia Doca foi uma forma de sobrevivência para mim. Eu só sabia cantar, sambar e cozinhar. Em 2000, a Paradoxx Music lançou o CD “Pagode de Tia Doca”. A pastora, no entanto, pouco sabe sobre o que aconteceu com o disco. Ela mesma não tem mais nenhuma cópia em casa, tampouco contato com a gravadora. Com uma fraca distribuição, o CD é, hoje, artigo de colecionador, mas — para surpresa geral — ainda restam unidades no site Submarino, a R$ 17,90. — Não ganhei dinheiro. Recebi uma graninha do produtor, paguei os músicos e sobraram R$ 20,00. Enfiei no bolso e fiquei feliz. O disco deve ter vendido bem, tanto que não se acha mais. Nós da Velha Guarda só conseguimos gravar depois de velhos. Lembra até aquela gente lá de Cuba (do Buena Vista Social Clube). Que gente bacana, né? O Pagode de Tia Doca mudou de Oswaldo Cruz para um terreno maior, próximo à estação de trem de Madureira, e agora se chama Centro Cultural Tia Doca. Todo domingo, Doca acorda cedo para preparar o caldo de ervilha com azeite e bacon que é servido à noitinha, enquanto o samba, comandado pelo filho Nem, segue a regra das rodas de terreiro. Durante muito tempo, microfone não tinha. Mas o público aumentou e o grupo teve que ceder à novidade. — Paulinho da Viola me aconselhou a nunca colocar microfone porque pagode assim não existe mais em lugar nenhum. Aqui era sempre na bo-ca! Mas agora fica muito cheio, não tem jeito. Mas é samba de raiz, mesmo! Doca nasceu no Morro da Serrinha, em Madureira. A mãe foi a primeira porta-bandeira da Escola de Samba Prazer da Serrinha, gênese da Império Serrano, fundada em 1947. Passou os primeiros anos da vida ali, na quadra da escola. Tia Iaiá tomava conta da meninada da vizinhança enquanto os pais trabalhavam. E a ela cabia ensinar o bê-á-bá da batucada. — A gente comia em cuia de lata de queijo do reino, sentadinhos na quadra. De tarde, tia Iaiá organizava um bloquinho. As latas de goiabada, cobertas com papelão de cimento, eram os pandeiros. Ficava um som bom. Ela ensinou a gente a sambar no pé. Hoje em dia tenho até medo de ir ao lugar onde nasci. Vou lá e vejo os meninos com revólver na cintura. Com uma criação destas, não deu outra: aos 14 anos, Doca já era a porta-bandeira da Escola de Samba Unidos da Congonha, de Vaz Lobo. — As porta-bandeiras de hoje em dia não tão com nada, não sabem o que é ser uma porta-bandeira. Ficam
“Ali o bicho pegava. A ‘turma do juvenil’ esperava o intervalo da Velha Guarda para dar seu recado. Aprendi a compor nesses quintais” Zeca Pagodinho
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com aquela mania de mão, mão pra lá, pra cá. O negócio não é na mão. É no pé. Mas agora tudo é válido, o que se pode fazer? Doca só foi apresentada à Portela em 1953, após o casamento com Altair, filho do compositor Alvarenga, irmão de Jair do Cavaco, da Velha Guarda, e afilhado de Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela. Para nunca mais sair. Mesmo após o incidente no Carnaval de 2005, quando a ala da Velha Guarda foi impedida de entrar na Sapucaí para não estourar o tempo limite do desfile. Uma das cenas mais lamentáveis da história do carnaval carioca. — Foi horrível, muita gente passou mal. Eu fui parar no hospital, só voltei para a casa no dia seguinte. O meu coração não agüenta mais essas tristezas. Esse negócio de escola de samba acabou. Eu só desfilo porque somos um grupo e temos que manter a tradição, dar o exemplo. Tradição: eis a cartilha pela qual reza essa pastora cheia de lemas e ensinamentos, alguns indecifráveis. Quando moça, adorava ir aos bailes. Mas mulher direita, previne, tem que deixar o salão depois da antepenúltima música. E, na hora de cozinhar, nada de bater com a colher de pau na borda da panela. Queima a comida! No caso do jongo, é ainda mais radical e misteriosa. Ao ponto de brigar com o primo, Seu Darcy, mestre jongueiro falecido em 2001 e divulgador da dança além das fronteiras do Morro da Serrinha. Certa vez Doca expulsou Darcy do pagode após ele insistir em armar o jongo no terreiro da pastora. — Jongo não é para se cantar e dançar à toa, não! Só no dia de Nossa Senhora de Santana, 26 de julho, e tem que saber como se abre e se fecha. Minha madrinha era jongueira e me ensinou tudo. Minha cunha-
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da foi atrás do Darcy e se deu mal. Cantava jongo ao meio-dia na Praça da Portela. Morreu assim, da noite para o dia. Um sobrinho meu morreu, o outro sumiu e ninguém sabe onde está. Esse negócio de que jongo é cultura... Jongo é uma seita muito da perigosa! Eu não sou boba, comigo não, o que é que há? Tia Doca é esperta, já disse Zeca Pagodinho. Ainda abaixo da idade legal para trabalhar em fábricas, insistiu com o dono de uma tecelagem para lhe dar um emprego. Passou dos 14 aos 16 anos tendo que, vez por outra, mergulhar debaixo de pilhas de pano para não ser descoberta pelos fiscais do Ministério do Trabalho. Com o salário, construiu as paredes de alvenaria do barraco onde morava com a mãe e os irmãos, até então protegido por pano e madeira. Hoje, um dos maiores orgulhos dessa pastora é ter sua casa própria, em Madureira, adquirida pela Caixa Econômica. Orgulho que só não é maior que o de pertencer à Velha Guarda da Portela. Com o grupo, Tia Doca fez turnês pela França e Itália. Amou. Já o seu lado cozinheira desaprovou as proporções da nouvelle cuisine. Mas a massa italiana passou pelo julgamento da pastora que não se faz de rogada e diz que, depois de Tia Vicentina, a melhor feijoada de Madureira é a dela. Surica diz o mesmo em relação ao feijão que rola, de forma bissexta, em seu quintal. Seja lá como for, a especialidade dessas tias é, mesmo, a chamada comida de subúrbio. Ou, como define Zeca Pagodinho, comida de malandro. Lista Tia Doca: feijoada, tripa lombeira, rabada, sopa de ervilha, carne-seca, mocotó... E foi em busca de uma comida de subúrbio que certa vez uma moradora do Leblon contratou Tia Doca para cozinhar. — A madame queria uma comida de subúrbio. Eu aceitei e fui fazer um angu à baiana, mas não quis
dinheiro na mão para comprar os ingredientes, não, levei a madame comigo para o Mercadão de Madureira. Ela ficou louca com o Mercadão! No prédio, o cheiro da comida tava subindo e deixando os vizinhos com água na boca. Sabe o que a madame fez? Convidou o pessoal para comer, mas todo mundo teve que pagar na porta. Depois dizem que gente do Leblon é chique! Mas achei interessante aquele sistema. Ganhei muita gorjeta. Aos 75 anos, a tia que traz as tradições do samba na voz, nos dotes culinários e na atitude, diz que está cansada. Uma artrite anda aos poucos afastando Doca da cozinha. Mas a sua presença no Pagode é sagrada, além de garantia de um ambiente onde imperam os bons costumes herdados da época do “Seu Paulo” (da Portela). O médico proibiu a cervejinha, pecado dos pecados para a portelense! É que o músculo cardíaco cresceu. Resultado, segundo ela, de muito aborrecimento ao longo da vida. Doca tem cinco bisnetos e seis netos. Dos seis filhos, dois homens morreram, ambos assassinados por desconhecidos. Um deles, por um bate-bolas, num sábado de carnaval. No mesmo carnaval, faleceu o ex-marido, Altair.
— Minha fantasia já estava prontinha. Estragou o meu carnaval! Dor da mãe durona. Disfarçada em dor de pierrô que perde a sua colombina. Dor imensa que inunda e afoga o coração, que, inchado, cansa a pastora. E que ela, como filha, sentiu o quão devastadora esta dor poderia ser quando Albertina era só desespero no cais, angustiada com a possibilidade de ter perdido a filha caçula para sempre, no navio que ia longe. Ao escutar o apito do vapor, Doca gritou. Logo o comandante apareceu e quis saber o que aquela criança fazia a bordo. O marinheiro, na verdade um caboverdiano, explicou que queria levar a menina consigo, pois ela lembrava muito a filha que morrera. O navio retornou. Doca seguiu pra casa com a mãe e com a sua primeira boneca debaixo do braço. Nunca mais voltou ao cais.π
Receita da Tia Doca Sopa de ervilha
INGREDIENTES 5 kg de ervilha seca 1,5 kg de lombo salgado 1,5 de lingüiça calabresa 1,5 kg de costela de porco 1 cabeça e 1/2 de alho Azeite extra virgem Sal a gosto REFOGADO 1 lata de azeite de oliva 1 cabeça de alho picado sal a gosto.
Modo de fazer Deixar a ervilha de molho, na água, durante 12 horas. Cozinhar a ervilha num caldeirão até formar um mingau. Ao formar espumas na fervura, retire-as. Não tampe a panela totalmente. Mexa de vez em quando, sobretudo o fundo da panela. Quando as ervilhas estiverem desmanchando, parta para o refogado. Deixar dourar o alho. Cortar as carnes em pequenos pedaços. Passe-as por uma fervura para retirar o excesso de sal. Juntar as carnes ao alho e azeite, nesta ordem: o lombo, deixar cozinhar por cinco minutos. A lingüiça e a costela. Lançar o refogado na sopa de ervilha e mexer bem.
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opinião
Por que não querem saber a opinião dos
jovens?
LEANDRA LEAL
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uando me chamaram para escrever nesta revista, eu fiquei feliz que só, já imaginando falar sobre um monte de coisas que ninguém nunca me pergunta. Seria um texto longo e terminaria em aberto porque eu não paro nunca de formular idéias e teorias, porque eu ainda me assusto muito com o mundo. Tanta coisa me incomoda e sinto que faço pouco, portanto, qualquer oportunidade de fazer alguma coisa já causa ânimo. Também porque meu sonho era parar de dar entrevistas e ficar escrevendo em algum lugar sempre que julgasse necessário. Vida boa! Antes que eu escrevesse qualquer coisa, me chegou por e-mail um tema que, mais ou menos, pelo que eu entendi, seria para eu escrever sobre a minha geração, tentando pensar porque a gente não se posiciona tanto ou porque não temos voz nos meios de comunicação e porque as figuras públicas que têm essa voz não aproveitam esse fato. Bom, começo então pelo que acho ser anterior a essa conclusão apressada de que nós nos alienamos e que vivemos a era das celebridades fast-food. Na minha opinião, a maior crise do nosso tempo não é a econômica nem a social, é a moral. Sem papo careta. Falo de ética, de valorização da vida e de sentimentos profundos. Não sou de abraçar árvore, mas acho que precisamos falar um pouquinho mais de amor. Hoje em dia, somos capazes de trocar tudo por um bem-estar financeiro e um reconhecimento social, e acabamos, assim, banalizando a nossa história. Hoje, tudo se resolve no caixa. Qualquer corrupção ou violência vale a pena por dinheiro. Cada vez mais é o “cada um por si”; cada vez mais nos ausentamos das discussões públicas e da troca de idéias. Assistimos a uma fabricação em série de celebridades, a pessoas fugindo da sua realidade e buscando a sua existência por meio do reconhecimento público; a pessoas que fazem de tudo pela fama e depois parecem não se importar em ter que se comportar como manda o figurino, servindo à mídia sem impor sua personalidade e opinião. A banalização do “qualquer um pode ser famoso” criou celebridades sem nenhuma preocupação com o seu discurso, que desperdiçam seu poder de formadores de opinião e se ausentam de um possível papel social. Parece que nos esquecemos ou nem aprendemos o nosso direito de questionar e acabamos por acreditar nessa idéia de impotência que nos foi vendida: “não temos como resolver os problemas do mundo”, “só posso cuidar de mim e da minha família”, e, no entanto, vivemos em sociedade, modificamos e somos modificados por ela. Até quando o sujeito consegue viver assim? Até ser assaltado? Seqüestrado? Até ter câncer de pele por causa do aquecimento global? Só quando formos atingidos iremos começar a questionar e debater? O mundo anda muito chato, muita coisa está errada pra gente ficar calado.
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Ao contrário do que muitos dizem, isso não é um debates e suas opiniões são menos procuradas. Com problema de geração. Não vejo uma postura tão dife- isso, acabamos dando entrevistas sobre assuntos inorente nas outras gerações que também estão fazendo fensivos, como relacionamentos, cabelos e roupas. o mundo atual. Acredito que em todas as gerações há Eu nasci famosa, não que isso me cause orgulho, pessoas alienadas e outras engajadas. Essa imagem da pois ser famoso não é nenhuma qualidade, é uma congeração dos anos 60, livre e politizada, se tornou um seqüência de algo. No meu caso, minha mãe era atriz, fardo para a nossa geração. Nós sustentamos a cul- já fazia teatro, TV e filmes, e na sua, ou melhor, na mipa pelo caos do mundo, levamos fama de alienados e nha gravidez fez campanha pela amamentação e pelo acomodados, e até somos, mas peraí, o mundo de ho- parto natural (coisa que eu infelizmente não obedeci, e je é também governado pelos jovens de 68. São eles acabei nascendo de cesária, depois de 24 horas de trana maioria que estão editando os jornais, dando aulas, balho de parto). Volta e meia alguém me entrega um criando leis. E onde foi parar a revolução? Nem eu nem recorte da época com uma foto minha de cara amassada meus amigos somos bobos ou acomodados. Vivemos ainda na maternidade. Com 12 anos, fiz minha primeinuma sociedade com a ilusão da liberdade, que diz dar ra novela. Apesar de ter esse tempo todo de exposição e voz a todos, mas que na prática é bem diferente disso. ocupar uma posição de certo destaque na mídia, poucas Custa muito caro ter uma opinião. O direito de ir e vir é foram as vezes em que pude falar o que realmente me restrito aos que têm condições financeiras, e essa cons- interessa numa entrevista. O espaço que eu ocupo é, na ciência destrói qualquer tentativa de ação de um sujeito. maioria das vezes, relativo ao meu visual e a minha viPara tudo é preciso ter dinheiro e um comportamento da particular (regimes, estilo, se eu sou ciumenta etc.). social “adequado”. Quero ver você ser livre sem dinhei- Tudo muito interessante se não fosse só esse o foco. Às ro e sem educação nesse país. Quero vezes invejo artistas plásticos, hisver a liberdade de sair de qualquer Nós sustentamos a culpa toriadores e diretores, que são enperiferia sem ter tido isso. Ninguém trevistados por alguém interessado mais é proibido de nada, só que a li- pelo caos do mundo, levano trabalho que estão divulgando, berdade não está disponível a todos, e não apenas esperando meia hoela está à venda e custa muito caro. mos fama de alienados e ra de entrevista e a conquista de Eu tenho que ter casa, ter salada no uma suposta confiança para atacar acomodados, e até somos, “aquela” almoço, computador, internet, plano pergunta sobre a minha vida pessoal. Adoraria que me perde saúde, ter chope no Baixo Gávea, mas peraí, o mundo de hoje guntassem algo que vá além desse ter ingresso, ter mente, ter foto, ter básico. Realmente espero um dia opinião. Eu tenho que ter muita coisa é também governado pelos para me dizer livre. Esse “ter” aprisioconquistar o espaço de falar coisas jovens de 68. mais pertinentes e não ter mais nou nossa geração. que comprimir minhas opiniões O modelo de comportamento “politicamente correto” que resolvemos adotar e valori- nas perguntas dignas de um concurso de miss, como zar para as nossas celebridades também impõe barrei- “o que você acha do Brasil?”, ou “o que você espera dos ras para a livre expressão de idéias na mídia. As cele- políticos?”. É impossível responder a isso com profunbridades, que poderiam gerar exemplos não só de corte didade e qualquer resposta acaba ficando demagoga de cabelo, acabam evitando opiniões que possam ser numa página de jornal. Esse espaço não é suficiente polêmicas a fim de não correrem o risco de serem mal- para você se posicionar, é um lugar de manutenção. Ele interpretadas e, principalmente, de serem rotuladas a não questiona, não espera uma sinceridade, nem muito partir dessas opiniões, dificultando assim o debate de menos a formulação de um pensamento que mire uma assuntos relevantes para a sociedade, como aborto, le- real tentativa de mudança. Isso não é ser politizado, isgalização das drogas, eleição, corrupção etc. A nossa so- so não é questionar pessoas públicas sobre o que elas ciedade não propõe mais um olhar real para as pessoas acham do seu país, não é contribuir para a discussão. Não sei o porquê desse tratamento por parte da e seus pensamentos. Vivemos uma febre de prateleira. A mídia está só esperando para escolher o melhor rótu- mídia, não sei quem nasceu primeiro, o ovo ou a galilo para o seu discurso e assim colocá-lo à venda. Suas nha: se esse espaço de fofocas e futilidades existe porque idéias podem ser editadas à vontade, porque, no fim, tu- vende ou se vende porque está lá. Eu, particularmente, do pode e deve ser vendido. Existe uma impossibilidade corro atrás do espaço que não ocupo. Essa mídia fictícia, de sustentar um pensamento sem torná-lo uma mer- designada a artistas da minha geração, interessa pouco, cadoria, que seja uma simples opinião, uma divagação. e vejo apenas como ponto de partida para outras discusNão podemos discutir um tema, temos que ter opiniões sões, uma brecha para uma futura inundação. Nós tecurtas e bombásticas, prontas para serem mastigadas mos responsabilidades e méritos individuais, cada um nas manchetes. Ter seu pensamento à venda, conver- tem o poder de mudança, precisamos só nos recuperar tido numa marca de um produto ideológico, assusta e desse nada, dessa herança de um sonho despedaçado inibe a discussão. Talvez por isso cada vez mais figuras de revolução e decidir logo: estamos ou não à venda?π públicas da minha geração e de outras se ausentam dos
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A rádio que toca ofertas texto: PATRÍCIA ROCHA fotos: MATIAS MAXX
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xiste uma região no Centro do Rio que mantém ares de Oriente Médio, onde comerciantes judeus e árabes, seguranças cariocas, donas de casa da Zona Sul e popozudas suburbanas coabitam pacificamente em 11 ruas. A região da S.a.a.r.a. (Sociedade dos Amigos e Adjacências da Rua da Alfândega) garante seu clima de feira de rua graças à freqüência de segunda a sábado de 150 mil pessoas a 1.850 estabelecimentos, 1.250 lojas e sobrados e 650 escritórios que vendem toda sorte possível e imaginável de utilidades e bugigangas. Como boa feira que se preze, o convite ao consumidor que passa em frente ao ponto de venda é a arma no sucesso do negócio. No caso deste oásis dos preços populares, o chamamento é feito pela Rádio Saara.
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som se impõe nas ruas através de caixas alto-falantes de tamanho médio e bom alcance. A cada viela, a cada lado de quarteirão, existem de duas a quatro delas, mais o sistema de som dentro das próprias lojas. Nas ondas da rádio, o texto popular e debochado dos spots desperta a atenção dos ouvintes que passam pelas ruelas — por bem ou por mal. Longe de ser uma rádio comunitária, a programação diária deste sistema de som é composta por uma grade publicitária que anuncia seus próprios estabelecimentos, das 8h às 20h. Os reclames trazem diálogos do povão, imitações cara-de-pau de figuras populares e vozes completamente fora de qualquer padrão radiofônico — às vezes até propositalmente irritantes. Não existe som ambiente: ser for discreto não vende.
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comerciante que for à Avenida Passos, 91 e procurar Elaine, contato publicitário da rádio, vai ser atendido numa saleta de paredes verde-água, cujas janelas têm como vista as ruas antes do Mercado Popular da Uruguaiana e também as que ficam antes da Praça Tiradentes, sentar num sofá antigo coberto por uma manta, ficar sob a guarda de um São Jorge e um símbolo da maçonaria, e receber um copo de água gelada oferecido pela atendente Fátima. Por um mínimo de R$ 1.700 se compra um pacote que inclui a criação do texto, a gravação do spot e a veiculação de dez chamadas de uma peça de quase um minuto. A empresa afirma que produz uma média de 15 por mês. O antigo diretor da rádio, Beto Salóes (morreu em janeiro de 2007) costumava defender o produto da casa: “nunca fica bom quando querem fazer fora daqui e temos sempre que fazer novamente”.
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uis Antônio Bap, que assumiu a diretoria da rádio após a morte de Salóes, define a empresa como “não bem uma rádio, é um nome fantasia”: — Somos um sistema de alto-falantes direcionados e metidos a besta.
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s mensagens, que marcam pelo humor (ou gosto duvidoso), anunciam os pontos citando sempre a rua e o número da loja, que é para o freguês saber como chegar lá.
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o outro lado do alto-falante, está sujeito a ser convocado para a gravação qualquer um dos dez funcionários da empresa: do office-boy à recepcionista da rádio. Para Renato Alves, coordenador de programação da rádio, “o grande segredo é o número de vozes, pois não dá pra imaginar mais de oito horas com o mesmo tom”: — Bastou trabalhar na rádio para entrar na programação — diz Bap. — Uma vez nós fizemos aqui... cadê o Allan, hein Cíntia? — (Voz do corredor) O Allan tá aqui! Tá fazendo a “utilidade”! — Chama o Allan — continua Bap. — Nós uma vez montamos aqui um curso de locução. Aí nós aprovamos todo mundo, só ficou um reprovado. Foi o Allan. Aí a gente falou: é esse que a gente precisa.
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llan Zetune está há seis anos na rádio, é bem magro, tem pouco mais de 1,70m e um timbre que lembra muito o que seria um Silvio Santos aos 10, 12 anos. Ele afirma nunca ter imitado o apresentadorpatrão do SBT, mas sim “o Maguila, o Lula...”.
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omo os anunciantes formam uma comunidade composta em sua maioria por árabes e judeus que já passaram dos 50 anos de idade, trotes ao vivo interrompendo a programação e dando conta da suposta morte de um ou outro lojista são recorrentes. Diariamente, às 18 horas, Bap entra ao vivo para fazer o “Momento de Fé”, rezando a Ave-Maria para seus ouvintes. A rádio também presta serviço de utilidade pública, anunciando crianças e documentos perdidos, campanhas de vacinação e data para declaração do imposto de renda.
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o Orkut, comunidades a favor e contra a inventividade da rádio — que existe desde os anos 70, mas que completa 10 anos com esta programação inovadora — vivem momentos acalorados entre boatos sobre seus funcionários e relatos ressentidos da desafinada locutora que entoa o jingle de Natal de uma casa de cristais. Na vida real, a rádio foi usada como referência para núcleo popular de novela da Globo e angariou mais Ibope com a segunda edição do concurso Garota da Laje — que premiou as gatinhas que exibiram as “melhores belezas comunitárias” com um carro usado, uma piscina de fibra de vidro, uma laje pré-moldada e um destaque no “Sabadaço”, da TV Bandeirantes.
RECLAMES DA SAARA:
se for
discreto não vende
— (Voz de um cara bem debochado) Oi, Heloísa!, oi Zilda! Vocês estão vestidas iguais, parece um par de jarras! — (A voz desafinada) O que que eu faço?! O que que eu faço?! O que que eu faaaaçooo?! — (A voz do “muy amigo”) Pare de comprar em qualquer loja! — (Vinheta) Conheça a loja Tural, Senhor dos Passos, 198: roupas belíssimas, do PP ao Extra-G, desenhadas por estilistas e produzidas com tecidos e aviamentos de alta qualidade a preços acessíveis. Parcelamos no cheque e no cartão sem juros!
— (A voz mais desafinada do mundo!) Swarovski, Swarovski, comprei meu Swarovski na Rua dos Andradas, número 29!, sobrelojas 205 e 206! — (Locutor) A voz não é de boa qualidade, mas os cristais Swarovski da rua dos Andradas, 29, sobrelojas 205 e 206, ah!, esses sim!
—Arlete, Arlete, como você está bonita, Arlete! Parece uma rainha! — (A voz mais desafinada do mundo, a mesma dos cristais Swarovski) É porque eu estou num palácio, Agnaldo! No Palácio dos Cristais! Senhor dos Passos, 81, aqui na Saara! — E quem é esse marmanjo que está ao seu lado, Arlete? — É o diretor Fabinho Swarovski, que mais entende de cristais Swarovski no mundo! Ele é tão atencioso... — Arlete, Arlete! — Não fique com ciúme, Agnaldo!
No site: ouça os anúncios da rádio. — Estamos nas ruas da Saara fazendo uma reportagem com a seguinte pesquisa: qual é o melhor restaurante do Centro do Rio? — Ah! dona repórti (sic), é o Macedônia Grill. No Macedônia Grill tem um super ar-condicionado! — Minha Nossa Senhora, é o Presidente! Vamos dar um furo! O Lula está na Saara! Presidente, presidente: qual é o melhor restaurante do Centro do Rio? — (Voz imitando o Lula) É o Macedônia Grill! Lá tem uma gastronômica, ou, desculpe, uma nutricionista. — Lula, e o mensalão? — O melão de lá é uma delícia, tchau! — (Locutor) Restaurante Macedônia Grill, agora, sem balança! 19
REAL GABINETE
PORTUGUÊS DE SARDINHAS NA BRASA
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uma festa de luz: o beco é coberto por plásticos de tonalidades vivas, como o vermelho e o amarelo lusitanos, que filtram os raios do sol e alteram as cores do que vemos — aumentando um pouco a temperatura do ambiente, de quebra. É uma festa gastronômica: sardinhas assadas na brasa, bolinhos de bacalhau, tiras de carne de porco; são porções servidas com vinho verde e cerveja. E é uma festa musical com sentido histórico: as apresentações de música portuguesa no Beco das Concertinas, na Cadeg de Benfica, sempre aos sábados, mostram todas as influências sofridas pela cultura lusitana de árabes, romanos e outros invasores. E como ela influenciou, mais do que se admite, a música brasileira. Depois do meio-dia, o comércio dos armazéns da Cadeg começa a fechar as portas: as flores que ainda não foram vendidas já estão meio murchas, é hora de proteger as outras plantas, a maior parte dos compradores foi embora. Ao mesmo tempo, inicia-se em um beco, entre dois destes armazéns, uma reunião de concertinas, violões, castanholas, tambores e um cavaquinho, tocado por um jovem instrumentista. Um sinal de que a tradição não está restrita aos mais idosos imigrantes portugueses, apesar de eles estarem presentes: a tradição musical vai ser sustentada, espera-se, depois que os mais velhos se forem, naquele beco, nas tardes de sábado. Se houvesse uma gaita de foles — um instrumento que na mão dos portugueses produz melodias de influência árabe muito mais agradáveis do que as dos escoceses — esse texto seria uma peça de merchandising da revista. Porque aí teríamos um típico Zé Pereira, nome dos conjuntos formados na região de Coimbra, em Portugal, que muito contribuíram para a forma de como se celebra o carnaval no Rio. Na primeira metade do século XIX, um comerciante português, José Nogueira Paredes, começou a sair pelas ruas da cidade tocando bumbo para imitar na corte brasileira o hábito lusitano de animar o carnaval com instrumentos de percussão.
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texto e ilustrações: GUSTAL
Provavelmente, a forma como Paredes batia o seu bumbo está mantida na percussão do grupo de concertinas: é um ritmo mais “duro”, constante, soa quase militar. E nos faz lembrar de como Portugal foi campo de batalha durante séculos entre lusitanos, romanos, visigodos, vândalos, árabes, espanhóis, até ganhar a sua forma atual. Tanta incerteza histórica ajuda a explicar as melodias lamentosas e as letras celebrando lugares portugueses como o Minho, cantadas pelo cavaquinista, que toca seu instrumento em um estilo “rasgado”, sem o dedilhado típico do chorinho, o estilo que nasceu também entre portugueses, na Cidade Nova. A influência árabe é evidente na melodia, com mudanças sutis de semitons que dão a sensação, a quem não a escuta atentamente, de ser uma nota só, em vibrato. Existe uma outra influência muçulmana menos perceptível: a tolerância com os judeus. Os árabes que
dominaram a Península Ibérica a partir do século VIII jamais converteram à força fiéis de outras religiões — como fizeram os reis espanhóis e portugueses que os expulsaram. Assim, a cultura judaica pôde florescer, inclusive na música. No período medieval em que floresceu o movimento chamado de trovadorismo, enquanto que a música de influência católica só falava disso, catolicismo, as letras das canções judaicas refletiam sobre a vida, o amor, a morte — material do qual até hoje são feitas as letras da música brasileira. Há também uma influência da repressão católica que veio depois nesta história toda: Pereira, o sobrenome desta revista, foi um dos adotados por judeus obrigados a abandonar sua antiga fé e suas tradições, durante as conversões forçadas pelos reis e pela Igreja Católica Portuguesa na virada da era medieval para a moderna, ao mesmo tempo em que começava a expansão marítima que criou o Brasil.π
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conto
ponte E
le era carioca. Meteu-se numa encrenca tipicamente carioca. E foi morar em São Paulo. Exilado porque não podia voltar para o Rio. Seria morto. Conheceu Suelen numa roda de samba em Santa Teresa. Logo Santa Teresa, cortada por bondes e rodeada por morros. Bondes do bem. Bondes do mal. Apaixonou-se. Que nada, queria apenas uma noite com a oxigenada de cintura obscena e tatuagem no rego. Não tirou o olho a noite toda daquele gingado indecente. Meia-dúzia de mentiras, dois quilos e meio de bobagens e foram parar num motel a caminho do Catete. Noite inesquecível. Madrugada suspeita ao deixá-la em casa. Morava no morro. E daí? Namorava no morro. E aí... Aí ele percebeu tudo. De manhã, enquanto comprava uma ponte aérea via internet, recebia um e-mail curto, grosso e cheio de chavões do submundo. Era hora de ir embora. E rápido. Mora em São Paulo há 20 anos. Mora na Vila Madalena porque contaram para ele ser o bairro mais parecido com o Rio. Botecos, chinelos de dedo, pseudões e moças com saias coloridas. E dói na alma a saudade carioca. Mas, se voltar, morre. Já tentou e nem embarcou. Avisaram antes. Restou à sua alma amar a boemia paulistana. E nas horas vagas. Bem, nas horas vagas, ele burla o coração. Passeia na calçada da rua Haddock Lobo, nos Jardins, imaginando paquerar doces tijucanas de batom e unhas vermelhas. Dirige até o bairro do Grajaú, na Zona Sul de São Paulo, e nos barracos imagina casarões rodriguianos. Pega um táxi e pede Alto da Boa Vista. Mas lá chegando não sente frio.
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aérea SIDNEY GARAMBONE
Depois do trabalho, ruma para a Avenida Paulista e dobra na Frei Caneca. Mas não há presídio, só mundo gay. Aos domingos, sempre passeia na Atlântica, nos Jardins, imaginando-se num quiosque à beira-mar. Mas desperta frustrado quando olha as placas e se vê na esquina da Atlântica com a Avenida Brasil. Atravessa Pinheiros na direção da Lapa. Mas não acha samba nem arcos. Apenas grandes prédios e alguns sobrados. Na Marquês de São Vicente, sonha beber no Baixo Gávea, mas acaba comprando pequenas latas de cerveja num grande Wal-Mart. A Borges de Medeiros não é na Lagoa, é na Vila Prudente e não tem ciclovia. Vila? Vila Isabel é apenas uma rua no bairro do Tucuruvi, estação terminal da Linha 1 do metrô paulistano. Nunca foi até lá. Seu périplo nostálgico também inclui a Vieira Souto, que não é avenida, e sim uma travessa na Vila Medeiros de metro quadrado bem baratinho. A Rua do Ouvidor também é no centro da cidade! Mas não atravessa a Avenida Rio Branco, a alguns minutos dali. Dia desses, ele, que é carioca, morou em Botafogo e estudou no Humaitá, pegou um mapa e foi para a rua Humaitá. Viu-se na Liberdade, rodeado de japoneses. Aproveitou para comer sushi. O sushi do Humaitá. E assim passou seus últimos 20 anos. Morando em São Paulo, mas vivendo no Rio. Ontem mesmo foi visto bebendo cachaça no balcão de um boteco da rua Mem de Sá. Só que na Mooca. O dono do bar, um italiano palmeirense, entabulou uma conversa sobre futebol. E não resistiu à clássica pergunta: – Então, carioca. Para que time torces aqui? Pensou alguns segundos. Suficientes para uma analogia lógica. Tão mentirosa, ilusória e surreal quanto todas as outras. – Portuguesa, claro. Pediu mais uma branca, bebeu, pagou e seguiu seu caminho. Tinha um compromisso sentimental com uma bela paulistana na rua Rio de Janeiro. Mas não a achou. Afinal, existe uma rua Rio de Janeiro em Higienópolis, outra no Jabaquara, mais uma no Parque do Carmo, uma quarta em Parelheiros e ainda umazinha no Jardim Ângela. Aliás, existem centenas de Rios de Janeiros no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Brasil e no Mundo. E milhares dentro de cada um de nós.
PROBLEMA DE PESO MARCELLE JUSTO
foto: Eduardo Souza Lim
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esde que o ponteiro da balança ultrapassou 120kg, a artista plástica Irma Serra tem sofrido dias e mais dias de humilhação. Cansada de se sentir constrangida por seu excesso de peso, ela decidiu fazer uma operação de redução de estômago. Mal sabia Irma, porém, que essa decisão causaria mais embaraço ainda. No caminho dela havia literalmente um batalhão disposto a fuzilar sua auto-estima: os funcionários do Hospital Central do Exército, em Triagem, onde a artista plástica fazia os exames pré-operatórios. Eles davam gargalhadas toda vez que Irma era encaminhada para a balança de cargas do hospital, a única capaz de suportar seus 150 kg. A falta de estrutura para obesos no Rio de Janeiro veio à tona quando o Graco (Grupo de Resgate à Auto-estima e Cidadania do Obeso) decidiu denunciar que pacientes estavam sendo encaminhados para ao Jockey Club Brasil. Lá, teriam aparelhagem ideal para sua estrutura: a mesma utilizada em cavalos. Com o bafafá causado, doentes ressentidos passaram a pedir sigilo sobre identidade. Mas não deixaram de relatar a batalha diária dos gordinhos. Um deles foi salvo na última hora pelo plano de saúde que liberou 23
LEONARDO
uma tomografia dos rins, em uma clínica particular. No cidade, Cachoeirinha, no Rio Grande do Sul, para saber Rio, apenas dois hospitais, o da Ilha do Fundão e o de com quantos quilos estava. A despeito do sofrimento, Ipanema, têm esta estrutura na rede pública. A fila de ele hoje divulga a causa pelo Brasil. No dia 2 de janeiro, espera, no entanto, pode durar anos. Depois da denún- o ex-gordo saiu da cidade gaúcha e passou 175 dias na cia do Graco, a Secretaria Estadual de Saúde anunciou estrada até chegar a Brasília com um único objetivo: enque fecharia convênio com uma rede de hospitais parti- tregar ao governo um ofício em que fica estabelecido o culares para atender a obesos sem plano de saúde. credenciamento de mais hospitais da rede pública para — Mas está sendo feito em escalas mínimas — diz a cirurgia bariátrica e a implantação de um plano nacioo ex-gordo Cristiano Pinto dos Santos. nal de combate à obesidade. Na caminhada, Cristiano Outra vitória foi a inclusão do Hospital Universi- sensibilizou o ministro da Saúde, José Gomes Tempotário Clementino Fraga Filho ao Sistema Único de Saú- rão, que o encontrou dia 28, assinou as portarias com de (SUS). Agora o Hospital do Fundão está autorizado a os pedidos das ONGs de apoio a obesos e decidiu aurealizar cirurgias e não apenas diagnóstico de doenças. mentar a verba destinada ao problema de R$ 7 milhões Moradora de Vista Alegre, Emanuelle Santa Bárbara, para R$ 12 milhões. 27 anos, não esconde a identidade, apesar da vergonha. Além disso, Cristiano ficou noivo de Irma Serra. Ela decidiu reduzir o estômago, depois de ser encami- O casamento será até o fim do ano. nhada para o aparelho de animais. — Vamos coroar esta história de amor — diz ele. — Estava fazendo um acompanhamento em MaEngana-se quem acha que a guerra está ganha padureira e me passaram uma série de exames, inclusive ra quem tem dinheiro e se interna em clínicas privadas. uma tomografia. Marquei no Centro de Medicina Nu- Os soldados atentos ao ataque a obesos se plantam tamclear da Guanabara, na Rua Buenos Aires. O funcioná- bém nos aviões, onde os freqüentadores têm a conta rio disse que quase quebrei o aparelho e da próxima vez bancária em dia. deveria fazê-lo no Jockey — conta a técnica em enfer— Geralmente precisamos das extensões dos cinmagem, que diz ter vivido ali o ápice de sua via-crúcis: tos. Se as aeromoças têm alguma sensibilidade, trazem — Me senti podre, ridícula, humilhada e culpada por sem alarde. Mas há as que gritam lá da frente: “Você quase quebrar um aparelho hospitalar. precisa da extensão?”. Dá vontade de dizer: “Não, eu Não só na hora de fazer um procedimento médico a vou é me enforcar com ela” — conta, entre risos, a sensação de humilhação vence quem tem quilos extras. médica Lúcia Ferreira, 52 anos, que tem pânico dos — Me sinto como um cavalinho preso em casa — compromissos em prédios, estopim de uma nova crise: desabafa Carmen Sheyla Paes Silva, 45 anos, atualmen- — Entrar em elevadores já com algumas pessoas tamte com 130 kg: — Não caibo em cadeira de cinema e bém pode ser um constrangimento. Geralmente, elas também não passo nas roletas de ônibus -— enumera. se entreolham e se espremem como se dissessem: “Pô, Cristiano Pinto dos Santos, que liderou uma espé- pega o próximo. Se você entrar, o elevador vai para o pocie de Coluna Prestes em prol dos direitos dos obesos, ço” — ri, sinalizando que nem tudo na vida dos obesos dependia dos favores do revendedor de bananas de sua é derrota.π
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poesia
poema e fotografia: LAURA ERBER
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hegamos ao mesmo tempo à ponte onde a luz mudava as formas da cidade. Hoje é fácil sorrir e dizer “profanações”. Antes existia um aviário, um espelho triste, o azul cruel, a palavra sublime. Lembra do acampamento? Andei me informando, há uma Lei para o refúgio à beira-rio. Tudo isso de repente soa tão falso mas ainda penso nos frustrados, nos aflitos, no lixo funerário, nos escafandristas do Sena. Penso na solitária que era você, spleen e tédio atravessando a mesma a ponte. O medo de voltar e o medo de ficar e as coisas que escreveu no pique da viagem. Penso na Exposição Universal, na Brigada Fluvial, penso nas rimas pobres e nos corpos podres e penso ainda em Ghérasim que me dá tantas provas de sua respiração e outras difíceis marcas de sua passagem. Mas não consigo ler. O sotaque diz o que as palavras não conseguem dizer. E ainda seria preciso entender o que se passa entre o espadachim e o muro, o apaixonado e a torre, o castelo e a solidão, a tarefa de viver… Mas penso em você, em você mesmo.
No site: “Poemas com fundo” de Laura Erber 25
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Florian贸polis
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PACIENTE TERMINAL texto e fotos: ANDRÉ VIEIRA
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Séculos de descaso, um plano de despoluição inadequado, corroído pela corrupção e que mal saiu do papel: tratada como um vaso sanitário, a Baía de Guanabara agora é ameaçada pela construção de um novo pólo petroquímico.
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ogério Rocco, superintendente do Instituto Brasileiro de Engenharia do Meio Ambiente (Ibama) no Rio de Janeiro, era um jovem ativista do movimento ambiental carioca quando a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a Rio-92, transformou a cidade na capital mundial do meio ambiente durante 11 dias do mês de junho. Ser ambientalista, naquela época, era pecha de quem cuidava das árvores e dos passarinhos. Mas no Rio a coisa começava a ser desenhada com traços diferentes, mais fortes. Seis anos antes, em 1986, os cariocas escolhiam o primeiro representante do recém-fundado Partido Verde para uma vaga na Câmara dos Deputados, hoje secretário estadual do Ambiente, Carlos Minc. E ainda colocariam Fernando Gabeira, candidato a governador pelo PV, agora deputado federal, no terceiro lugar na eleição. A campanha dos verdes levou cem mil pessoas a darem as mãos em torno da Lagoa Rodrigo de Freitas, iniciando a era dos abraços na militância nacional e elevando o ambientalismo à esfera das atitudes da moda. Pelo menos no Posto Nove, na Praia de Ipanema — catapulta dos modismos cariocas e quartel-general dos verdes. Depois de um início titubeante, procurando aqui e ali uma causa que tivesse mais apelo junto aos brasileiros do que a importação da luta contra as usinas nucleares, o movimento verde rapidamente encontrou a bandeira capaz de mobilizar a população do estado: a despoluição da Baía de Guanabara, aquelas águas que descortinam a cidade, a mais deslumbrante baía do Planeta, espaço de êxtase dos viajantes que por aqui aportam, desde o século XVI, fonte inspiradora de fotógrafos e poetas, sempre. — A Baía de Guanabara foi uma grande causa como símbolo político. Na defesa dela se podia englobar questões importantes que afetavam a sociedade, como a pobreza, a ocupação do solo, o saneamento básico — explica Rogério Rocco. Ao longo de sua existência, a Baía e seus afluentes foram se transformando num grande vaso sanitário. Poder público, indústrias e ocupantes de suas margens — cada qual tem a sua parcela de responsabilidade. Uns menos, outros mais, muito mais. Hoje ela é uma espécie de depósito de tudo o que se rejeita por motivos vários. Valendo, assim, a máxima do extinto Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS): “Joga no rio, que o rio leva pro mar”. O volume de esgoto que chega à Baía é de 470 toneladas por dia, o equivalente a um Estádio do Maracanã transbordando de dejetos. Um terço do espelho d’água original desapareceu, cedido para aterros que desfiguraram o traçado original das suas margens. Durante 450 anos, a intensidade da beleza da Baía de Guanabara foi proporcional à capacidade de driblar as agressões sofridas. E aquele recôncavo, que os índios tamoios chamavam de “o seio de onde brota o mar”, reagiu levando para o oceano tudo o que de não-biodegradável nela atiravam. A partir da década de 50, no entanto, as agressões aumentaram radicalmente e a baía começou a dar sinais de cansaço. A área ao longo da Avenida Brasil, por exemplo, sofreu um rápido processo de industrialização, tornando-se o segundo maior pólo industrial do país. Uma década depois, a construção da Refinaria de Duque de Caxias, a Reduc, transformou o município da Baixada Fluminense no segundo maior pólo petroquímico brasileiro. A quantidade de sujeira, desde então, superou a capacidade da baía de assimilá-la. E as águas, outrora “límpidas e serenas”, como descreveu Machado de Assis em 1857, tornam-se seriamente poluídas.
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Hoje, apenas quatro das 52 praias da baía são consideradas próprias para o banho. E não há visitante que chegue à cidade pela Linha Vermelha — ou seja, todos os que aterrisam no Aeroporto Internacional -— que não sinta horror diante da imagem semelhante a de um mar de piche fétido e pestilento que é o Canal do Cunha, que separa a via expressa da Ilha do Fundão. Bem-vindos à Cidade Maravilhosa. A escolha da baía como principal bandeira do movimento verde teve um elemento de pragmatismo político, já que o assunto consegue mobilizar a sociedade como um todo. No entorno da Baía de Guanabara e às margens dos rios que formam sua bacia hidrográfica, ou seja, uma área que se espalha por 16 municípios, moram cerca de dez milhões de pessoas: dois terços da população fluminense. Essa população, que em sua maioria vive em municípios com problemas de infraestrutura de todas as ordens, lança por dia nas águas
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da Guanabara, além do famoso “Maracanã de esgoto”, outras seis toneladas de lixo sólido. Apenas um terço desses cidadãos é servido por rede de esgoto. E menos ainda por coleta regular de lixo. Segundo Rogério Rocco, qualquer proposta de despoluição da Baía de Guanabara teria que ter como ponto de partida a solução desses problemas. O resultado seria a melhoria da qualidade de vida dessas regiões. Com isso, ficaria muito mais fácil atrair para a causa não apenas os simpatizantes do meio ambiente, mas também os movimentos sociais, fortalecidos com o fim da ditadura militar mas que, nesta época, ainda consideravam a defesa do meio ambiente uma questão menor. — Chegamos a pensar em criar o Movimento dos Povos da Baía de Guanabara, inspirado no movimento dos seringueiros do Acre, liderado por Chico Mendes. Saímos da bolha ambiental e procuramos a sociedade — lembra Rocco.
O governo do Rio já tinha em suas gavetas um estudo sobre a despoluição da baía, orçado em US$ 4 bilhões, inviável para os cofres do estado. Mas com os olhos do mundo deslumbrados — e preocupados com a Baía de Guanabara, durante a Rio-92, que fincou suas tendas no gramado do Aterro do Flamengo, de cara para o estonteante conjunto água, verde e montanha que forma a Guanabara, a coisa mudava de figura. A Rio-92 foi o primeiro evento de dimensões mundiais a focar exclusivamente a questão ambiental. Aquecimento global, por exemplo, não passava de um assunto restrito a alguns meios acadêmicos e a Guerra Fria, já em seus estertores, ainda apresentava uma ameaça muito mais concreta do que o fim da vida na Terra por desastre natural provocado pelo homem. Das reuniões da conferência, que contaram com a presença dos mais importantes líderes mundiais da época, saíram as bases para o que viria a ser o Protocolo de Kyoto. Nela foram assinados os primeiros grandes acordos sobre o
meio ambiente da História da Humanidade. A Rio-92 marcou a entrada definitiva da questão ambiental na pauta das relações internacionais. Neste contexto, o governo do estado anfitrião precisava de alguma proposta de peso para se apresentar em sintonia com o que era discutido naquele megaencontro. Anunciar a intenção de tratar daquelas águas que agonizavam diante das estelares personalidades do mundo político, cultural, religioso, acadêmico e midiático presentes na Conferência soava como uma ótima idéia. Ainda mais com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o governo japonês, por meio de sua agência de cooperação internacional, dispostos a assumir boa parte da conta. O plano anunciado seria inspirado no bem sucedido programa de despoluição da Baía de Tóquio, que já foi das mais poluídas do mundo. Avaliado em US$ 793 milhões, ao Governo do Estado caberia desembolsar apenas US$ 206 milhões. O BID alocaria US$ 350 mi31
lhões. E o Banco Japonês de Cooperação Internacional (JBIC) mandaria para o Rio US$ 237 milhões. A previsão era a de que a baía estivesse limpa no ano 2000. Estamos em 2007. Se você mora às margens da Guanabara, abra agora a sua janela. — Nós festejamos muito o anúncio da despoluição, tomamos como uma grande vitória do movimento — relembra Rocco. O principal guru da mobilização pelo salvamento da baía foi o geógrafo Elmo Amador, professor do Departamento de Geociências da UFRJ, hoje aposentado, o maior especialista brasileiro no tema. Amador, de 63 anos, nasceu em Santa Catarina. Aos 3, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro e aos 7 já aprendia a nadar em meio aos caranguejos das então límpidas águas do Canal de Meriti, em Duque de Caxias. Elmo Amador concluiu a graduação na década de 60 e desde então vem estudando a Baía de Guanabara. Em 1992, criou o Baía Viva, movimento que durante uma década foi de vital importância na defesa do seu ecossistema. — Tudo começou como interesse científico. Depois foi afetivo, foi o carinho e a urgência de se cuidar dessas águas que me envolveu nessa luta — recorda El-
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mo Amador, autor do livro “Baía de Guanabara e ecossistemas periféricos: o homem e a natureza”. Para o geógrafo, o salvamento da baía, para ser realmente bem- sucedido, exigiria um leque de providências, entre as quais tombar uma boa parte da margem e dos meandros dos rios evitando, assim, a expansão populacional desordenada. A Baía de Guanabara perdeu 30% de seu espelho d’água para os aterros — como o do Flamengo, sede da Rio-92. Outras ações seriam: recuperar e preservar os 82 km2 de manguezais que ainda resistem na baía — 68% já desapareceram. Os manguezais são uma espécie de filtro natural das águas e seu ecossistema é essencial para a renovação da vida ali. Frear o assoreamento, que atinge 60 km2, ou seja, 15,7% da superfície, o equivalente a 50 Aterros do Flamengo, ou a metade de Niterói. Dragar áreas problemáticas, estimulando a circulação de água e a recuperação dos 55 rios que compõem a bacia hidrográfica que nutre — agora, também de sujeira — a Baía de Guanabara. O rol de providências é extenso, assim como a vastidão do estrago: acabar com as 64 toneladas de lixo industrial e com os 300 kg de metais pesados despejados a cada 24 horas pelas cerca de 12.500 indústrias plan-
tadas no entorno da baía. Estancar as sete toneladas de óleo que vazam diariamente de navios, dos estaleiros e postos de gasolina e, principalmente, das instalações daquela que detém o pouco honroso título de maior poluidora individual da baía, a Petrobras. Trabalho concluído, ainda teríamos que esperar cerca de 20 ou 30 anos para que se pudesse considerar as águas da Baía de Guanabara próprias para o banho. Só na próxima geração. Quando o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG) foi anunciado, em 1994, não demorou muito para a euforia inicial começar a empalidecer. — O nome era uma mentira. Era um programa de saneamento básico, no máximo. Ele não tratava de várias questões ambientais que considerávamos importantes. E percebíamos que nem o saneamento ele resolveria. Em nossa avaliação, mesmo que o programa fosse bem-sucedido, ele diminuiria em apenas 30% a carga de material orgânico despejado na baía. Um observador leigo veria pouca diferença hoje — afirma Elmo Amador. E isso tudo, claro, se o projeto tivesse sido feito como o planejado. A realidade do PDBG é desapontadora. Quinze anos depois da Rio-92, a sucessão de erros, de falta de planejamento e de malversação dos recursos é de fazer o carioca sentar no meio-fio e chorar — por se sentir ludibriado.
As obras foram iniciadas em fevereiro de 1995, no governo Marcello Alencar. Ao invés de começar pela base, e isto significaria a implantação da rede coletora de esgoto, optou-se por iniciar justamente pelas obras mais caras, as Estações de Tratamento de Água (ETA), cujas construções deveriam ser, na opinião dos especialistas, as últimas a serem realizadas. É como se a obra tivesse sido feita de trás pra frente. Ergueram estações colossais e não havia esgoto para lá ser tratado, por falta da rede de dutos de coleta. Quem entrou pelo cano foram os contribuintes que continuaram sem ter seus esgotos tratados, apesar das estações prontas para cumprir a tarefa. — Eram obras gigantescas! Um modelo que agradou em cheio, mas somente à construção civil. A Estação de Tratamento de Alegria, no Caju, é a maior da América Latina — ironiza Rogério Rocco, empostando a voz em tom solene ao título. Mesmo sem receber o esgoto que movimentaria as suas engrenagens, fazendo jus à existência delas, as estações de tratamento seguiram sendo inauguradas com fogos e fanfarras. Gerando episódios políticos dignos do inescrupuloso prefeito Odorico Paraguassu, personagem da novela “O bem amado”, de Dias Gomes.
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A ETA de São Gonçalo teve a sua fita inaugural pagar cerca de US$ 6 milhões de multa ao banco por cortada em duas ocasiões, apesar de até hoje não fun- não cumprimento de contrato. cionar com sua capacidade total. A primeira, no goverEm 12 anos, o Governo do Estado consumiu os reno Alencar. Para não deixar que fotógrafos e cinegrafis- cursos investidos pelo BID e pelo JBIC sem ter concluítas saíssem do evento sem as engrandecedoras imagens do a primeira fase, deixando os investidores nada, nada de mais uma obra do Programa de Despoluição da Baía, satisfeitos. O recado já foi enviado: só voltam a abrir o o governo deu um jeitinho bem brasileiro: um gato na cofre após a conclusão das redes coletoras e o fim exitorede de água para que algo jorrasse das tubulações no so das obras de base do Programa de Despoluição. ponto alto da inauguração — a abertura dos registros Ao tomar posse em janeiro, o governador Sérgio que, por falta de rede de coleta de esgoto, pouco tinha Cabral nomeou Carlos Minc secretário de Ambiente e para esguichar. prometeu retomar o PDBG. As obras, no entanto, não O nó da fita foi refeito para que, gestão seguinte, ficariam a cargo de Minc, mas sim de seu vice, que tamAnthony Garotinho a cortasse. De novo. E como da vez bém acumula o cargo de Secretário Estadual de Obras, anterior, o gato foi convocado para salvar a festa. Luiz Pezão, político ligado ao casal Anthony e Rosinha A gestão do Programa de Despoluição da Baía da Garotinho. A primeira medida anunciada foi a dragaGuanabara foi considerada catastrófica. O prazo para gem do Canal do Cunha, aquele ali às margens da Liconclusão dos trabalhos foi adiado cinco vezes. O último nha Vermelha, ao custo de US$ 60 milhões. O projeto é venceu em dezembro de 2006 e ninguém é capaz de da prestigiada Coordenação de Programas de Pós-Graacenar com uma projeção para o fim dos trabalhos. Vá- duação em Engenharia da UFRJ (Coppe) e será bancado rias etapas tiveram que ser refeitas, outras tantas foram pela Petrobras. abandonadas por erro de avaliação, como na Estação Mas o projeto parece ser o boi de piranha do novo de São Gonçalo, cujo tanque de tratamento secundário governo. A boiada, no caso, é a anunciada construção — que remove 90% dos poluentes — foi abandonado do Pólo Petroquímico de Itaboraí, obra apresentada em depois de pronto, após se concluir que a manutenção, de junho do ano passado como o grande presente do Gotão cara, seria inviável. E uma nova teve de ser executa- verno Federal para Rio, o suposto início do fim da decada. Erros se sucederam amiúde. E o dinheiro escorrendo dência econômica do estado. — mas não em direção à Baía de Guanabara. Parte da Os ambientalistas, no entanto, estão amedrontaEstação de Alegria foi construída dentro de terreno par- dos com a obra. Inicialmente, o Pólo seria construído ticular. Quando este “detalhe” foi descoberto, já era tarde na cidade de Itaguaí, localização ideal, segundo estudos e o dono teve de ser indenizado. técnicos. O terreno chegou até a ser desapropriado para Os descalabros na condução do Programa de Des- início das obras. Já o casal Garotinho queria levar o Pólo poluição da Baía de Guanabara foram tão acintosos que para Campos, curral eleitoral da dupla. Itaboraí era o até mesmo a Assembléia Legislativa do Estado do Rio grande azarão do páreo. de Janeiro (Alerj), talvez uma das casas legislativais — Nós fomos pegos de surpresa. Tecnicamente, os deste país mais refratárias a investigar escândalos, ins- órgãos ambientais não dispõem de nenhum diagnóstitaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre co sobre os impactos ambientais possíveis naquela reo PDBG. A CPI constatou que 70% das obras tiveram gião -— afirma Rogério Rocco. acréscimo em seus orçamentos iniciais, apesar de pratiO medo de que o presente do governo federal poscamente nenhuma funcionar como deveria. Várias ou- sa vir a se transformar em uma espécie de presente de tras obras foram tocadas sem licitação e algumas sequer grego tem origem na localização do Pólo, na área da chegaram a ser iniciadas. Empresas ganhadoras de li- baía que é a que está em melhores condições, o chamacitações faliram durante suas respectivas obras e não do fundo da Baía de Guanabara. A pobreza da região devolveram o dinheiro recebido, gerando um prejuízo e a baixa taxa populacional acabam ajudando na prede cerca de US$ 6 milhões ao programa. Em uma visita servação do ecossistema local, quadro que deve mudar dos integrantes da CPI à Usina de Tratamento de Sara- com a construção do pólo. A especulação imobiliária já puí, em Belford Roxo, uma das principais do programa começou. e supostamente pronta, os parlamentares constataram — Em menos de um ano os preços por lá multique o esgoto das casas vizinhas à usina ainda corria a plicaram. E não vão duplicar ou triplicar. Vão aumentar céu aberto. em 10, 15, 50 vezes — garante Rocco. A lista de crimes descobertos pela CPI foi longa: O ambientalista fala com conhecimento de cauimprobidade administrativa, prevaricação, condescen- sa. Uma das Áreas de Proteção Ambiental (APA) mais dência criminosa, malversação de dinheiro público e bem conservadas do estado, a de Guapimirim, está sob desrespeito à Lei 8.666 (das licitações). O relatório final responsabilidade do órgão que administra, o Ibama. Ela pediu o indiciamento de apenas 15 pessoas, o que até fica bem próxima da área da construção do novo pólo hoje não aconteceu. petroquímico e abriga um verdadeiro paraíso de manAno passado, o Tribunal de Contas do Estado di- guezais e água limpa, que ainda lembram a baía conhevulgou um relatório informando que US$ 600 mil da cida pelos primeiros viajantes que aportaram por aqui. verba cedida pelo BID havia sido perdido por não uti- É graças a essas reservas de manguezais que a Baía de lização dentro do prazo estabelecido. E pior: teria que Guanabara ainda consegue respirar. Um grande vaza34
Em 2004, o Ministério Público colocou sob susmento de petróleo por ali seria a assinatura do atestado de óbito desse ecossistema tão frágil, uma espécie peita 1.200 autorizações para a instalação de postos de de paciente terminal. Vazamentos, infelizmente, são combustível concedidas por técnicos da Feema. É nas mais comuns do que deveriam, na Baía de Guanabara. mãos desse corpo técnico em que pode estar depositado O mais grave ocorreu em 2000, quando um duto da o futuro da Baía de Guanabara. Petrobras se rompeu, derramando 1,3 milhão de litros O governo espera poder iniciar as obras do Pólo de óleo nas águas. Petroquímico ainda em 2007. O investimento previsto Mesmo temeroso quanto à implantação do Pólo é de R$ 14,3 bilhões, o maior já feito pela Petrobras em em Itaboraí, o Superintendente do Ibama no Rio nada um único empreendimento. Será o maior pólo petropode fazer. Pela legislação, a autorização ambiental para químico da América Latina. O complexo deverá ocupar a obra cabe justamento ao principal interessado em sua uma área de um milhão de metros quadrados e gerar construção: o Estado do Rio. A apreensão é geral entre os cerca de 200 mil empregos em sua construção. Depois ecologistas ligados às questões da Baía de Guanabara. de pronto, 50 mil pessoas trabalharão ali. Há uma es— Eu tô agoniado, é o golpe de misericórdia nessas timativa de que o funcionamento do pólo estimule o águas — lamenta Elmo Amador, que vê um elo entre a aumento da população local em até quatro milhões de escolha do secretário estadual do Ambiente, um respei- habitantes. tado nome entre os defensores da causa ambientalista, Procurado pela reportagem da Zé Pereira, o secree o anúncio da construção do pólo: — O Minc tá ali para tário estadual do Ambiente, Carlos Minc, disse, através ajudar o Lula a implantá-lo — suspeita. de sua Assessoria de Imprensa, não ter tempo para dar A pressão política para a concessão da autorização a entrevista. A Petrobras também não respondeu as é brutal. A obra é uma das estrelas do Plano de Acele- perguntas encaminhadas pela revista.π ração do Crescimento (PAC) do Governo Federal e tem um enorme potencial de dividendos eleitorais para o governo do estado. Negar a licença para tal empreendimento é arrumar encrenca grande. Caso o licenciamento estivesse a cargo do Ibama carioca, um órgão relativamente bem aparelhado e com um corpo técnico renovado por uma série de concursos públicos recentes, Rocco crê que o processo levaria cerca de três anos para ser concluído, após vários estudos de impacto ambiental. No estado, no entanto, o licenciamento cabe à Fundação Estadual de Engenharia do Meio Ambiente (Feema), o primeiro órgão estadual de meio ambiente criado no país e que já foi considerado um centro de excelência. Hoje, no entanto, a realidade da Feema é outra. Administrada nos últimos anos por políticos sem nenhum vínculo com a questão ambiental, foi assolada por uma série de escândalos de venda de licenças ambientais.
“(...) aos toques da luz do sol parecia que esta baía magnífica se elevava no seio da natureza com os seus rochedos de granito, as suas encostas graciosas, as suas águas límpidas e serenas” José de Alencar, em 1857
“Deparamos com a mais sedutora paisagem do mundo: um lago, com umas 20 milhas de extensão, todo salpicado de ilhas verdejantes de diversos tamanhos” Richard Flecknoe, poeta inglês, em 1655
“Guanabara, seio, braço de a-mar: em teu nome, a sigla rara dos tempos do verbo mar” Carlos Drummond de Andrade 35
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esta hist贸ria estar谩 no pr贸ximo 谩lbum da dupla Patati e Allan Alex.
quadrinho
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A CIÊNCIA DA CRIAÇÃO Toda obra de arte é tida como uma resultante do “never more” — escolhas que, sem exceção, partem de talento do artista — o que tem sua parcela de verdade. Mas é preciso levar em conta que a arte não é unicamente composta de uma intuição criativa, ela se constitui também, e fundamentalmente, o domínio dos elementos de se que dispõe para a expressar — guardadas as especificidades de cada forma de arte. Essa constituinte material e elementar da arte tem sido omitida ao longo da história, como se lhe roubasse a nobreza do ato de criação. A importância da razão na construção artística é mais visível na pintura ou na escultura — é imediata a percepção de que Rodin não esculpiria “O pensador” sem o mais absoluto domínio racional das ferramentas, tanto físicas (espátula) quanto acadêmicas (o profundo conhecimento da anatomia humana). Menos perceptível é a necessidade dessa instrumentalização quando se pensa em literatura ou cinema, cujas componentes (narratividade) parecem estar mais ao alcance de todos — e estão. Há resultados incríveis em trabalhos puramente intuitivos — como a pintura naïf ou as imagens do inconsciente. Mas o fato é que, salvo exceções, o aproveitamento do talento se potencializa quando aliado à consciência do uso dos instrumentos intrínsecos ao trabalho artístico — a literatura é mais precisa quando consciente das ferramentas de construção da escrita; a pintura, através do domínio da perspectiva, das nuances de cor e luz; o cinema, através da escolha de seus elementos lingüísticos e dramatúrgicos. Edgar Allan Poe, no ensaio “A filosofia da composição”, rompe o histórico silêncio relativo ao lado obscuro da arte, ao nos revelar o processo racional através do qual compôs o poema mais lido da História — “O corvo” — e sem dúvida um dos mais emocionantes. No ato de atribuir a si próprio a objetividade e a racionalização, desmistifica a idéia do poeta ébrio (o que ele era) e sonhador (ele que era habitado por demônios) cuja criação é apenas oriunda de suas tristezas, abstrações, delírios. O poeta nos descreve passo a passo a razão de suas escolhas — da duração das estrofes à sonoridade do refrão
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objetivos claramente definidos, e resultam num poema milimetricamente calculado, a arte planejada e executada a régua e compasso, “com a precisão e a seqüência rígida de um problema matemático” — palavras suas. Ao explicitar a consciência de seu ato de criação — e, em particular, aplicando a aparente frieza do raciocínio, ao mítico universo da poesia — Poe nos força a aceitação da renegada componente racional na obra de arte. Damásio, em seus estudos sobre o cérebro humano prova, de forma insofismável, que a razão não se organiza sem a emoção — e que o vice versa, em que Poe se apoiou nos idos de 1842, nada mais era que um corolário que a moderna neurologia ia comprovar. Respeito — diria mais, admiro — os cientistas, não só pela sua razão, mas pelo exercício da sua loucura: equilibrando-se nas pontes abstratas dos matemáticos dão carne e osso a intrincados labirintos ficcionais. Na minha mais santa ignorância me encanto com a loucura desses poetas do raciocínio, que inventam a realidade — e nos convencem da sua existência —, semelhantes em tudo aos poetas de carteirinha, com suas vidências certeiras, a palavra justa como uma prova dos nove. Qual o mais racional? Qual o mais louco? Qual o mais preciso? Qual a matéria mais inventada: a palavra ou o número? Somos herdeiros de uma cultura que venera a ciência, mas resgata a sua ignorância na dádiva divina do talento, como se ele não fosse feito da mesma amálgama de experiências. Gosto de pensar (e sentir), que a indizível matéria da poesia e a do saber, vem desse cruzamento entre a razão pura e a lama, que se cozinha, num caldeirão de realidades, símbolos, e imaginação. O cinema — que eu amo — mergulha as suas raízes nessa paçoca e renega as fronteiras entre ciência e poesia. Ruy Guerra Cineasta e Diretor do Curso de Cinema da Universidade Gama Filho
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opinião
A M E N I RO
I C l E i L s O ASI o Bra BR
GUSTAVO ACIOLI
d
Dizem que existem várias estratégias para o lançamento de um filme nos cinemas: lançamento em plataforma, lançamento por capital, grande lançamento, pequeno lançamento... Atualmente, a maior parte dos filmes brasileiros tem à sua disposição apenas uma estratégia: o lançamento em abismo. O cineasta se atira no abismo gritando o nome do seu filme: se alguém escutar e se interessar, pode ser que vá assistir.
E
m entrevista recente, Fernando Collor admitiu ter sido um erro o confisco das cadernetas de poupança. Depois de abraçar o Sarney e se perfilar entre os apoiadores do Lula, bem que poderia, mais adiante, também admitir ter sido um erro nocautear o cinema brasileiro com uma só canetada. Não faria diferença nenhuma; mas faria. Jáá por duas vezes, estava eu no cinema, quando percebi que, atrás de mim, estava sentado Ipojuca Pontes, o artífice “collorido” do desmantelamento do cinema nacional. Morro de medo de que isto aconteça pela terceira vez! Será que nunca mais filmarei? Terei também a chance de uma retomada? Muita água já rolou e o cinema brasileiro há muito virou essa página. Mais do que isso. A cinematografia produzida nesses pouco mais de dez anos é interessante, pujante, criativa e de grande qualidade técnica. Tivemos alguns êxitos artísticos, alguns êxitos comerciais, alguns filmes e diretores muito bemsucedidos internacionalmente e temos uma nova geração muito talentosa chegando. Existe, porém, um grande problema: o povo brasileiro não sabe nada disso. A parcela da população que freqüenta as salas de cinema é mínima: 80% das cidades do país não têm sala de cinema e os ingressos são muito caros para a maioria das pessoas. 42
Para efeitos de comparação, vale dizer que o maior fenômeno de público recente, “2 filhos de Francisco”, de Breno Silveira, atraiu cinco milhões de espectadores às salas de cinema enquanto todos os filmes brasileiros somados, que são entre 50 e 70 por ano, fazem em torno de dez milhões de espectadores. Já o maior sucesso brasileiro de todos os tempos, “Dona Flor e seus dois maridos”, de Bruno Barreto, fez 12 milhões de espectadores nos anos 70, quando a população era de 90 milhões em ação, menos da metade da atual. O cinema brasileiro, em seu conjunto, não está sendo visto por seu povo, não ecoa, não tem repercussão. O que é grave, pois significa que uma manifestação artística está impedida de se transformar num fenômeno social e cultural relevante. O que se chamaria de público cativo do cinema brasileiro, hoje, representa um traço estatístico. Refiro-me àquele espectador que acompanha a carreira de seus diretores e atores preferidos, que faz comparações estéticas e de abordagem temática entre filmes, que está atento às novidades etc. Sem este tipo de espectador, a arte não se realimenta, os artistas passam a produzir apenas para a própria classe, para os festivais e para a crítica. A única maneira de um filme ter chances de dar um bom resultado é ser lançado pela associação entre
a Globo Filmes e as grandes distribuidoras americanas, as chamadas majors. Valendo-se dos altos índices de audiência da maior caixa de ressonância do país, a TV Globo — que promove os filmes não apenas nos intervalos comerciais, mas também com menções nos mais diversos programas —, e do domínio das empresas americanas sobre a rede de salas de exibição, os filmes pertencentes a este casamento fazem juntos 90% da bilheteria de todo o cinema brasileiro. Os filmes não-pertencentes a esse sistema são lançados com poucas cópias e uma reduzida verba publicitária. É como se nascessem destinados ao fracasso de bilheteria. É como se fossem sistematicamente jogados aos leões e ainda tivessem que ouvir o seguinte comentário: “Os brasileiros, realmente, não se dão bem com os leões!” Nas leis da natureza, os mais fortes prevalecem sem que haja a necessidade de um discurso que os justifique. Com o homem é diferente. Assim como George W. Bush e Tony Blair necessitaram da farsa das armas químicas no Iraque, os tubarões do cinema brasileiro, com o objetivo de preservar seu território, começam a questionar esteticamente e tematicamente os filmes que fazem poucos espectadores, acusando-os de não saber dialogar com o público. Ora, em primeiro lugar, não há embasamento empírico para este tipo de afirmação, simplesmente porque estes filmes não estão sendo submetidos ao público em escala suficiente para que se tenha medida do seu nível de aceitação. Segundo, os próprios tubarões, com todo o sistema a seu favor, também amargam seus fracassos de bilheteria, porque, se existisse fórmula de sucesso na arte, os donos do dinheiro dispensariam os artistas. Ademais, cai-se no histórico vício de questionar a legitimidade do cinema brasileiro toda vez que as peças parecem não encaixar perfeitamente. Não quero dar a entender que esteja responsabilizando a Globo Filmes pela falta de público do restante dos filmes brasileiros. A situação, antes da criação da empresa, era pior, pois o cinema brasileiro ocupava apenas 5% do mercado, e hoje oscila entre 15 e 20%. Mantenhamo-nos fiéis à crença de que quanto mais filmes brasileiros, melhor. As Organizações Globo apenas perceberam a oportunidade de ocupar um espaço que o mercado oferecia. Como não há regulamentação que reforce o caráter público das emissoras, é natural, dentro da lógica da empresa, que ela faça publicidade apenas dos seus filmes e que apenas estes sejam transmitidos por ela. Sua existência, inclusive, ajuda a derrubar o argumento falacioso de que o brasileiro prefere os filmes americanos. Não só as novelas obtêm altos índices de audiência; os filmes brasileiros, quando exibidos, também os obtêm. Na verdade, este é só mais um exemplo da força da televisão e de como ela é fundamental para a viabilização do país como nação, pois é a grande mediadora do diálogo entre os diversos setores da sociedade.
O Brasil está implodindo. O sistema de desigualdades, de exclusão, de concentração de oportunidades nas mãos de poucos não tem mais como se sustentar. A tarefa que se impõe a todos os brasileiros é a superação de práticas instituídas nessas terras desde os tempos coloniais e que estão nos destruindo: o cunhadismo, a sesmaria, o coronelismo, o patrimonialismo etc. As emissoras de rádio e televisão são as novas capitanias hereditárias, as novas sesmarias, os latifúndios dos ares. São negócios familiares. Sempre ligados a políticos por caminhos mais ou menos tortuosos. As concessões de rádio e TV espalhadas pelo Brasil têm como prioridade apenas duas atividades: fazer política e vender anúncio. As redes nacionais têm controle sobre a transmissão e a produção de conteúdo. Há pouquíssimo espaço para a produção local, para a produção independente e para o filme brasileiro. As manifestações artísticas e culturais estão estranguladas pelo cartel do sistema de comunicação de massa. O diálogo nacional está interditado pelos latifúndios da comunicação. É preciso olhar com outros olhos para a indústria do entretenimento. Não se trata apenas do circo para o povo, mas também de onde muitos poderiam tirar seu pão. A introdução da TV digital no Brasil poderia ser a oportunidade para a reavaliação de toda a estrutura do sistema de comunicação de massas. No entanto, este debate não está em pauta. O cinema é a atividade mais nobre do audiovisual. O cinema brasileiro tem uma história de encontros e desencontros com a sociedade brasileira: já conheceu momentos de grande popularidade e já foi muito questionado; já viveu o sonho de ser indústria e conheceu a derrocada econômica. Ao que parece, esta fase foi superada. A sociedade brasileira entende o valor do cinema, quer que o cinema brasileiro exista e seja cada vez mais forte. Mas a combinação de financiamento público e bilheterias baixas pode ser explosiva. Vivemos um impasse que não encontrará solução na atual estrutura. Não bastam cotas de tela, vale-ingresso, cinema a um real em DVD. A causa do cinema brasileiro é a causa do Brasil. Assim como a sociedade brasileira não pode mais funcionar para poucos à custa do sofrimento de todos os outros, assim como o Brasil vive aos tropeções, nunca se realizando como o país dos nossos sonhos porque não consegue superar sua estrutura excludente, o cinema brasileiro também não pode funcionar para tão poucos, também nunca se realizará em toda a sua plenitude enquanto não for o cinema de todos os brasileiros, essa é a única e verdadeira solução.π
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TRILHA SONORA REAL GABINETE DE VIDA FÁCIL
PORTUGUES DE SARDINHAS NA BRASA
texto: RODRIGO FONSECA ilustrações: MARCELLO QUINTANILHA
Gustal
Música de zona costumava ser sinônimo de choro de corno. No imaginário popular, o gênero que fez carreira nos inferninhos, ao lado de muito enlatado americano da era disco, serviu de ninho para toda uma Uma festa de luz:rouxinóis, o beco é coberto por plásticos de tonalidades como o vermelho e geração dos indo de Carlos Albertovivas, a Wando, passando por Perla e Maro amarelo lusitanos, que filtram os raios do sol e alterando as cores do que vimos (e aucus Pitter. Odair José então, com seu refrão “Pare de tomar a pílula/ Ela não deixa mentando um pouco a temperatura do ambiente, de quebra). É uma festa gastronômica: nosso filho nascer”, era umdearroz-de-festa em qualquer sardinhas assadas na brasa, bolinhos bacalhau, tiras de carne de porco, sãoponto servidasde meretrício com a ambição dee lotar setefesta dias da semana. Tradicionalmente, com vinho verde cerveja.nos E é uma musical com sentido histórico: as apresenta- o filão viveu décações de música portuguesa no Beco das Concertinas, na Cadeg de Benfica, sempre aossou cachorro não”, das associado a Carlos Alexandre e seu “Feiticeira”, ao “Eu não sábados mostram todas as influências sofridas pela cultura lusitana de árabes, romanos de Waldick Soriano, e ao “Sorria, meu bem! Sorria... da infelicidade que você proe outros invasores. E como ela influenciou mais do que se admite a música brasileira. curou”, eternizado no gogó de Evaldo Braga. Zé Geraldo, bardo mineiro famoso Depois do meio-dia, o comércio dos armazéns da Cadeg começa a fechar as portas: as pelos versos “Nas cacetadas destes anos todos eu fiquei mais velho que meu próflores que ainda não foram vendidas estão meio murchas, é hora de proteger as outras prio pai”, batia em seus showsEpelo interior paísem para dizer: “Sempre plantas, a maior parteno dos peito compradores já foi embora. ao mesmo tempo,do inicia-se quebeco euentre rododoispróximo a algum bordel,deaconcertinas, cafetina violões, me chama e diz ‘Zé, quando eu um destes armazéns uma reunião castanholas, tambores e um cavaquinho, tocado por um jovem instrumentista. Um sinal de que a boto disco seu na vitrola, a casa enche, e vai todo mundo dançar’”. Foi assim nos tradição não está restrita aos mais idosos imigrantes portugueses, apesar de eles estarem anos 70, quando a revista “Veja”, que então tinha o crítico Tárik de Souza em seu presentes: a tradição musical vai ser sustentada, espera-se, depois que os mais velhos se time de editores de cultura, encomendou a seus repórteres um rastreio do que o forem, naquele beco, nas tardes de sábado. se ouvia nas casas de perdição do Brasil afora, sempre que a noite caía. Tudo para Se houvesse uma gaita de foles - um instrumento que na mão dos portugueses produz levar à classe média aquilo que era pop em um underground sem glamour. melodias de influÊncia árabe muito mais agradáveis do que as dos escoceses - esse texto seria uma peça de merchaindaising da revista. Porque aí teríamos um típico Zé Pereira, nome dos conjuntos formados na região de Coimbra, em Portugal, que muito contribuíram para a forma como celebra-se o carnaval no Rio. Na primeira metade do século XIX, as os tempos são outros... “evitar resfriado”, sussurra uma das moças da um comerciante português, José Nogueira Paredes, começou a sair pelas ruascomo da cidade Corta para os anos 2000. Zona Norte. Fronteira entrada até o ambiente da “casa” de onde se escuta o tocando bumbo para imitar na corte brasileira o hábito lusitano de animar o carnaval entre os bairros de Ramos e Bonsucesso. Henry Car- martelar de “Can you feel it”, de Jean-Roch. com deestudante, percussão.21 anos, freqüenta pela dosoinstrumentos (pseudônimo), A canção é uma releitura remasterizada, recauprimeira vez uma forma dos points concorridos da raree um tiquinho cafona da trilha sonora que Bill Provavelmente, comomais Paredes batia o seu bumbochutada está mantida na percussão feita vida de noturna da região: o clube Queen, Contisoa compôs, 1976,Epara do grupo concertinas: é um ritmoCaribbean mais “duro”, constante, quase em militar. nos “Rocky, um lutador”, com atração quatro das casasfoi noturnas ao ra-durante aquele “tanananan-nanan-nanan-nanananan” caractefaz lembrar emestrelas como Portugal campoligadas de batalha séculos, entre lusitanos, mo de “atividades para maiores de 18 anos” da cidade. rístico. Mas na Caribbean Queen, ninguém pensa em romanos, visigodos, vândalos, árabes, espanhóis, até ganhar a sua forma atual. Tanta Chega às 23:55h, cercado de mais três amigos, para ce- Sylvester Stallone de luvas de boxe nos punhos quando incerteza histórica ajuda a explicar as melodias lamentosas e as letras celebrando lugares lebrar o aniversário. Troca o jeans, a camiseta e o tênis Jean-Roch começa a se esgoelar. Até porque a mulata portugueses como o minho, cantadas pelo cavaquinista, que toca seu instrumento em pelo roupão perfumado a Omo situados no armário de com ares de Halle Berry que rebola nua sobre o palco um “rasgado”, semdo o dedilhado típico do chorinho, o estilo também ferroestilo no andar superior vestiário da termas. Deixa da boate que não nasceu dá muito espaço para a imaginação circuentre portugueses, na calça Cidade Nova. as roupas no gavetão, fofas, pantufas brancas para lar. Nem a trupe de beldades vestidas em microscópicos
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Axé conta que MPB é raridade nas termas do Rio. biquínis que circula pelos salões oferecendo mundos e fundos sexuais aos clientes. Uma delas, que se apresen- Mesmo nas casas da Zona Sul, o repertório não é muita como Mila, até arrisca a cantar uma musiquinha no to diferente do que rola pela Caribbean Queen, calcado ouvido da freguesia, sussurrando “Meu amor é só seu/ quase que exclusivamente em dance music. seu amor é só meu/ nosso amor é assim/ Eu só sei te — Eu já consegui ouvir quase que a seleção inteira querer,/ também sei que você/ só tem olhos pra mim”, do CD da Beyoncé só entrando e saindo dos infernido jeitinho que aprendeu com o Babado Novo, de tanto nhos de Copacabana, indo do La Cicciolina ao Night ouvir a banda baiana tocar nas rádios de que mais gosta. Club Nikos, para ver qual está bombando. É a melhor E Heny Cardoso treme diante da cantoria, no vai-não- opção para quem vai com pouco dinheiro e quer se divai inseguro dos que contabilizam os trocados para ver vertir — diz Henry Cardoso, que gasta, em média, R$ 35 se resistem ou não ao assédio profissional das Rainhas quando passeia pelo bas-fond da Zona Sul. — Há borCaribenhas de Bonsucesso. déis ainda mais luxuosos do que os de Copacabana em — Foi difícil resistir — conta ele, que, antes da se- locais como Rocha Miranda, que chegam a custar mais gunda Skol já se soltava na pista, de rostinho colado barato. Você entra por R$ 10, vê um show de strip, oucom uma das meninas, ao som de “Lonely”, de Akon. ve música bacana e ainda bebe por um preço justo. Mas Preferido de Mila, o Babado Novo, representado o programa sai salgado. Tem que desembolsar uns R$ pelo veludo vocal da cantora Cláudia Leitte, não teve es- 140 para subir para um dos quartos. paço uma vezinha sequer na noite da Caribbean Queen Um dos inferninhos mais famosos de Copacaque, de brasileiros, só deu concessões a Zeca Pagodinho já na xepa da farra, lá pelas 3h da madrugada. Tocou um Latino aqui — num revival da já sepultada “Festa do apê” —, uma Kelly Key acolá — fazendo seu “Vem aqui/ que agora to mandando/ vem meu cachorrinho/ a tua dona tá chamando” ressurgir das cinzas acústicas — e foi só. De resto, só vozes americanas, em especial ligadas à cena hip-hop dos EUA, tiveram vez. Para Henry Cardoso, um adepto das festas black do Rio, foi uma festa a mais. Tanto que, após a experiência, ele fez da ida aos puteiros cariocas seu passatempo preferido, colecionando causos e lendas que integram o anedotário desse mercado. Das casas listadas em sites especializados no ramo de diversões adultas, como o “Rio by night” (www. riodejaneironow.com.br/boiteseshowseroticos.htm), um atlas nativo da putaria, ele já desbravou várias. Inclusive algumas que fecharam de um ano para cá, por total esvaziamento, motivado pela concorrência com as casas de swing, que só fazem crescer. E em todas, a velha tradição do brega como a trilha sonora obrigatória parece ter evaporado de vez. No more Márcio Greyck. Nada de Amado Batista. Mesmo a Vila Mimosa, onde ainda se ouvia “Os botões da blusa”, pelos lábios do Rei Roberto Carlos na calada da noite, mudou o repertório, hoje oriundo lotado de forrós. Nó de Caju, Asa de Águia e Calcinha Preta são as grifes mais corriqueiras a embalar o ambiente conforme a freguesia aumenta. Com cadeiras cativas para Zezé di Camargo & Luciano e Rick & Renner. — Na Vila Mimosa, o que mais toca é forro e funk. Pagode também rola, mas em menor proporção — conta o estudante Daniel Axé, um dos maiores pesquisadores do mercado do sexo pago na cidade. — Fui tantas vezes a um mesmo puteiro, na Zona Norte, que cheguei a me candidatar ao cargo de barman do lugar, para ver se conseguia entrar de graça. Não deu certo. Mas um amigo meu conseguiu. Entrou de barman numa termas de São Cristóvão, apaixonou-se por uma das moças de lá, tirou ela da vida e, hoje, está para ter seu primeiro filho com ela. Tudo o que eu sonho para mim. 46
bana, o Frank’s Bar, na Avenida Princesa Isabel, já se comando”, que mergulhou no mundo da prostituição acostumou a executar, quase que diariamente, hits in- para escrever o romance “Só por hoje”, ainda não lançaternacionais de sucesso nas discotecas, rádios jovens e do. — Quando eu era adolescente, eu descobri Peninha até nas trilhas sonoras das novelas da Rede Globo. De em vitrola de ficha de puteiro. A música de zona que mais moderninho, às vezes rola um The Killers (“So- se ouvia era aquela que falava de amores idealizados mebody told me”). Há uma quebra que um dia chegarão para deixar nacional, sempre bem-vinda, pa- Eu já consegui ouvir quase a vida azul. São amores mais conra o duo Seu Jorge e Ana Carolina cretos dos que aqueles que a gente que a seleção inteira do CD da vive em “É isso aí”, a versão brasileira no mundo real. Hoje, a múpara “Blower’s daughter”, de Da- Beyoncé só entrando e saindo sica internacional que rola nos mien Rice. Aliás, não é só lá que as dos inferninhos de Copacabana. inferninhos de Copa toca porque parcerias da dupla costumam ser é a que mais agrada ao público-alrecorrentes. Basta ficar na porta da Barbarella, vendo o vo daquelas casas noturnas: os gringos. O que toca não dream team que integra o staff da casa chegar, para ouvir é o que as prostitutas querem escutar. os vozeirões de Jorge e Ana cada vez que o porteiro abre Em sua pesquisa pelos arredores da Prado Junior, o caminho para as starlets da boate. Ludemir descobriu o bar Gata da Praia, um cantinho — O mundo conseguiu se globalizar até na putaria freqüentado pelas garotas de programa de Copacabana, — diz o escritor Julio Ludemir, autor de “No coração do que ainda serve de descanso para a boa e velha tradição
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do brega rasga-coração. Quer dizer, ninguém mais vai Há um outro comércio sexual no Rio de que pououvir Almir Rogério declarar sua paixão pelo “Fuscão co se fala, mas que lota dia e noite de usuários, que é preto” de outrora, nem escutar Vanusa batendo pé na o mercado das casas de peep show, localizadas no inteletra de “Mudanças”, e jurando: “Hoje eu vou mudar/ rior de algumas sex shops da cidade. A mais conhecida Vasculhar minhas gavetas/ Jogar fora sentimentos e/ é a Miami Show, localizada na Avenida Nossa Senhora ressentimentos tolos”. Mas há lá suas correspondências de Copacabana, funcionando das 13h às 22h, com escom aquilo que um dia foi tradição na boemia nacional petáculos de mulheres nuas, nos quais ninguém pode e que, agora, parece ter se perdido. falar a frase “Você faz programa?” para as dançarinas, — O Gata da Praia, na Prado Junior, é onde aconte- que costumam ser revezadas a cada dia de trabalho. Lá ce o happy hour das garotas de programa de Copacabana, também há trilha sonora cosmopolita, regada a muito que saem de locais como a Barbarella e arredores, e hip-hop e dance, com rescaldos de Lauryn Hill, Jennifer vão para lá para relaxar depois de uma Lopez e The Fugees. noite de batente. Ali você consegue ouO estatístico Lucio Tail vir as canções que tocam no rádio e que (pseudônimo) é um freguês caatendem melhor aquilo que as menitivo do local e conta que gasta nas escutam — diz Ludemir, lembrando R$ 10 para poder assistir a um que, ao contrário do que mostra “Parapequeno showzinho de strip-teíso tropical”, o folhetim global das 2 1h, ase, que dura quatro minutos. de Gilberto Braga, uma “profissional da — Você chega a ver as mesvida” do quilate de Bebel (Camila Pitanmas pessoas sempre que vai no ga) jamais estaria dando sopa Miami — diz. pela Avenida Atlântica, um Tail chega no Miami reduto de travestis. — As Show quase sempre uma hozonas de Copacabana se desra antes do encerramento glamurizam dia a dia. Hoje, do expediente. Olha em volno Rio, a prostituição está se ta para ver se não encontra deslocando para o centro da ninguém conhecido saindo cidade, em casas que comedo Bob’s que fica ali pertinho, çam a aparecer em ruas de abaixa a cabeça e mete as cagrande movimentação como ras no prédio adentro. Entra, a Carioca ou a Uruguaiana e, passa um tempinho analisanaté mesmo, a Rua das Marredo o acervo de fitas pornô do cas, quase no Passeio Público. lugar e pergunta ao atendente Já a cena gay, com o mercado quanto custa a ficha das cabidos travestis, passou a fervines, onde os usuários podem lhar em prédios como o 334, desfrutar, individualmente, de na Princesa Isabel. É lá que um cardápio de DVDs de sexo está a fucking life do Rio. Cerca explícito dividido por gêneros de 200 garotas de programa como DP (dupla penetração), chegaram a morar nele. Lá, Grandes Seios, Lesbianismo, a música rola alta a noite inteira. Na alta Gay, Transexual e por aí vai. O estatemporada, o verão, aquilo lá ferve. tístico sabe o preço de cabeça. Mas Ao escrever “Só por hoje”, em que aquela encenação é importante para um ex-dependente químico impotente quebrar o gelo e subir. Tail conhece se envolve afetivamente com uma garota de programa, bem a zona de prostituição de Copacabana. Ludemir descobriu que a história de prostitutas que — Já rodei pelo Nikos, pelo La Cicciolina e outros. preparam uma trilha sonora especial só para receber O Frank’s Bar é o pouso do coração. As melhores muclientes em seus apartamentos não passa de uma lenda lheres estão lá. E tem até show de strip — diz ele, que urbana, que a ficção ajudou a consolidar como um cli- incluiu o Miami Show entre seus lazeres por uma queschê romântico. tão de poder aquisitivo. — Isso só existe em livro da Bruna Surfistinha Ao subir as escadas, você é convidado a assistir ao — diz Ludemir, em referência ao best-seller “O doce ve- strip das meninas em um palco giratório. Para ver o neno do escorpião”. — No mundo real, um único som “espetáculo”, é preciso pagar R$ 1 por cada ficha, que se escuta em casa de prostituta, neste momento em que dura um minuto. As cabines são fechadas. Mas nelas, há uma enorme concorrência com as casas de swing e o ninguém se masturba. Apenas observa a dança das excesso de profissionais do sexo na praça. Este som, que beldades, que dançam numa coreografia sensual, que é a música de zona atual, é um só: “É R$ 20 por 20 mi- inclui toda a sorte de movimentos primários que o Kanutos. Topa?”. E neguinho paga. ma Sutra aconselha para se quebrar o gelo antes de
Lá também há trilha sonora cosmopolita, regada a muito hip-hop e dance, com rescaldos de Lauryn Hill, Jennifer Lopez e The Fugees.
MPB é raridade nas termas do Rio.
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“Hoje eu vou mudar/ Vasculhar minhas gavetas/ Jogar fora sentimentos e/ ressentimentos tolos” uma transa. Nesse momento, as meninas fazem de tu- cada vez mais fortes pelas casas noturnas do Rio. Princido para convencer os clientes, que, neste momento, só palmente o repertório de “Monkey business”, o CD mais conseguem se concentrar em um som: “Gostoso, vai lá popular deles. “Pump it” e “My humps” são as canções na cabine de número X. Vai lá que eu tiro a roupa pra mais executadas. Tail diz que elas são tema certo nas você. Pega uma individual comigo que você não vai se cabines do Miami. Em São Paulo, os bordéis também arrepender”. adoram Fergie e cia. Suas músicas bombam nas termas A tal “individual” oferecida pelas dançarinas con- localizadas nos arredores da Rua Augusta, como conta o siste de uma sessão de strip curtinha, que pode ser fotógrafo Helinho Reyes (pseudônimo), carioca que pealongada conforme o usuário vai gastando seu dinheiro ga a ponte área da putaria há uma década. em fichas. Tail já chegou a gastar R$ 30 por noite. Nes— Fui participar da gravação de um programa na sas cabines individuais, as meninas rebolam atrás de Praça Mauá nos anos 90 e descobri as boates da região. um espesso vidro, masturbando-se e fazendo caras e bo- Acabei tendo um caso com uma das garotas de progracas para o cliente, que está livre para “se tocar” à vontade. ma. Desde então eu vou sempre. Passei a ir em puteiros Elas até estimulam, com um “goza pra mim” repetido de todo o Brasil, com a intenção de fazer uma pesquisa até que os homens à sua frente atinjam o clímax. para um livro. Mas depois percebi que tudo não pas— Depois que a ejaculação vem, conforme a gen- sava de sem-vergonhice minha mesmo — conta Reyes. te vai acabando a punheta, elas ainda apontam para um — Teve uma coisa que essa menina, que hoje eu não vecantinho onde tem um papel-toalha, que fica na cabine jo mais me ensinou sobre a zona: depois que entrou lá só para a gente limpar as mãos — diz Tail, que já viu uma vez, aquilo vira parte da sua memória. Aquilo pasmuita dançarina rebolar no Miami Show ao som dos sa a mediar o seu desejo. A putaria me ensinou a ser Black Eyed Peas. feliz. Acho que é por isso que as músicas bregas de anAliás, desde a vinda do grupo ao Brasil, em dezem- tigamente não tocam mais nos bordéis. Ninguém quer bro de 2007, para participar do réveillon, os miados de chorar mágoa. Todo mundo quer é gozar. Em todos os Stacy Ferguson, a musa do Black Eyed Peas, têm ecoado sentidos. π
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conto
ANTÔNIA
CRISTIANE DANTAS
E
ra terça-feira, seu dia preferido. Como todas as terças-feiras, ele voltou da caminhada que o cardiologista o obrigara a fazer e a mulher não estava. Ela sempre ia ao convento de Santo Antônio às terças. Só que, daquela vez, saiu sem trancar a porta. — Tá gagá, coitada — resmungou. Limpou as gaiolas. Alimentou os passarinhos. E o gato, para evitar falação. Esquentou o almoço sem sal e sem gordura que ela deixou para ele. Comeu na frente da televisão. Fumou o que pôde, já que era o único dia em que podia fumar em casa. Lavou a louça. Tomou uma chuveirada.
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— Saiu pelada, a doida. E sorriu, imaginando a mulher sem roupa, no meio do Largo da Carioca, com um pão de santo Antônio na mão. Afastou a blusa, que escorregou e caiu no chão. Deitou e dormiu. Acordou com o telefone. Olhou o relógio. — Quatro horas?! Era a filha caçula. Se ele podia pagar a prestação do DVD aquele mês, estava enrolada. Que tudo bem, podia sim, só que o cartão do banco estava com a mãe dela, que ela ainda não havia chegado, que resolveria tudo no dia seguinte sem falta, que ficasse tranqüila, beijo nas crianças.
Foi quando viu, sobre a cama do casal, uma calcinha, um sutiã, uma calça jeans e uma blusa estampada que ele odiava, e ela sabia disso. Ainda estava zangada por causa do domingo. Mas ele é que não ia perder aquela oportunidade. Comeu torresmo, se esbaldou no coraçãozinho de galinha e bebeu chope e caipirinha ao mesmo tempo. Sabia que ela não ia reclamar na frente dos outros. Gostava quando diziam que eram feitos um para o outro.
Quatro horas... Tentou lembrar se ela havia falado algo sobre ir ao Saara depois da missa para comprar aquelas coisas que ele nunca sabia o nome, para a feirinha de artesanato. Ou se ela tinha que resolver alguma daquelas complicações da aposentadoria do estado. Nada. Não se lembrava de nada. Como poderia se lembrar de tudo que ela falava?
Ela sempre fazia aquilo. Só entrava no chuveiro depois de escolher a roupa que ia usar.
Voltou para a televisão. Dormiu no sofá. Acordou com o rabo do gato no seu nariz.
— Sai! — e deu um safanão no gato, que foi parar no meio da sala, mas, como todo gato, caiu de pé. O gato era dela. Já era noite. — Onde é que tá essa maluca? Só aí resolveu ligar para ela. Ouviu o celular tocar. Dentro do guardaroupa. Na bolsa que ela usava com a blusa estampada. Onde estavam os documentos dela. E a chave da casa. Fez outra ligação. — Tua mãe tá aí? Não estava. Quarenta e oito horas depois, fizeram um B.O. na delegacia de Jacarepaguá. Espalharam cartazes. Já ligaram dizendo tê-la visto no Jardim do Méier; não falava coisa com coisa e usava short, apesar do frio. Na casa onde passou a infância e de onde saiu para casar, apareceu um dia, dizem que de batom e bem-vestida, pedindo vinte reais emprestados. De vez em quando, aparece no sopão da igreja de Marechal Hermes. E no trem, entre a Central e Deodoro. Faz nove meses, já.
ADILSON PEREIRA
a cointe, um ane lm e v nvaria ça da B sente, i Ceará, na Pra queiros k c o r / a ro ic ua de mús casarão da R s, dois ícones tes, sim. a t s o g k se eo can oc cos ano e. Isso porqu kers e Buzzc etáculos mar ossível lisu o p e . Esp m 30 . Varu audad ma p uem te o é Garage: s s antológicos ar da graça lá de fora de u ia do espaço t o s w n -lo ho su jetór ta am do o as rante anos, s exemplo, der luxo de deixá panhou a tra o Fábio Cos n a u q u a i r s o r d m á a o , ll o d a p u c e n F , a o s e a, le ros brig nhecid os podem da z-mais. Quem ndado pelo s entrariam D sua o c deira, a e t n e a e e alme ssídu ta-de-d almente com Na lista, ant Ups, Piu Piu formundi üentadores a . n n a i i ,P trans ond orig eq Gasosa to que m palr essa i Mas fr a a e j r n i u e t r s e g pod e do Gan s nu o nom Come, s tosco ult. Second Fábio Costa é aio de grupo arage Art C s G . n : pe Banda.. estúdio de e elhante Planet Hem m e s e o m ip mou u andas de na randes, com quem g b or a p r m a a o i p r co esm orna m t o é e t s a s s a ida — com Algum conhec , quem sabe Gara— s o ao MPB rman Los He o samba ou a as, não faltam zer que r t , d le i mo r ou utro rit or estas e po órias. E aí, va as para o u e g ele o. P apen s hist referid ge boa s servem não ela mao seu p p o s os cau . O Garage, é uma s , o roqueir o sobreviveu go de m o j o neira c e retrato do d ca. espécie pico do cario m a í t te cintura a Rua Ceará d lá nem é istória . Neste caso, rte h e t n e e rec rag m fo , home A mais rreição do Ga ó j i e F mano a ressu garante é Lé apaz, que co sm o c r r e v arri .O uem não se a ória. Q tiva da cidade , t z s i i r h t a ó s s M no a ca alterna asa da jovem/ disséia e a C e ainda este a essoal e t i o n da só o p diz qu eatro O tros o T ata certa. Mas atisfazer não ais. u o e r t s da en uer m uma d a, com isso, ormar lagas. Q r ca a inf gir. Ele espe tar aquelas p sur freqüen vai res ma(va) u t s o c que
Q
fotos e ilustrações de arquivo
S do A I R Ó T HIS
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— O lugar estava caindo aos pedaços. Aquele piso não suportaria 300 pessoas... Então, precisa de uma reforma estrutural. É o que estamos fazendo. Ainda mais que esperamos fazer, na parte de baixo, uma pista de dança — informa o produtor. Pista? No Garage? Com ar refrigerado? Feijó diz que está pensando numa programação que não se limite ao metal e ao hardcore. Diz isso e o escriba/entrevistador percebe que está aí uma das histórias que cercam o lugar. Que aquilo lá não passa de uma espécie de templo do black-death-satanic-bloodygore-grind-iraq metal. Impossível dizer que os estilos, digamos, mais sombrios não encontraram no Garage um abrigo e tanto. Quase um colo materno. Mas rolou tanta música, lá, e o escriba é testemunha, que esse papo de metal é só isso mesmo: papo. No Garage, teve metal, sim, mas também teve funk-metal, rock, guitar, noise, forrocore, saravá-metal, skate punk, hardcore, rockabilly, surf, barulheira geral... Teve de tudo. Quem confirma é Leonardo Panço, atualmente guitarrista do Jason e dono da gravadora independente Tamborete (e jornalista nas horas vagas): — Geral é bem representado no Garage. O bom de lá é que o Fábio Gordo (apelido de Costa) sempre deu chances pra todo mundo. Qualquer um que tentou, em algum momento, tocou lá. Desde os mais horrorosos até os mais legais, geral teve espaço. Você sempre sabia que podia contar com o Garage pra tocar, inventar um show estranho, um tema. Para Leonardo Panço, a maior contribuição da casa com a cena musical carioca, por uns bons 15 anos, foi estar sempre lá. Histórias? Panço tem aos montes. Algumas envolvendo sua antiga banda, a Soutien Xiita. — Numa noite de show nosso, um cara brigou com um Balaio (grupo de motoqueiros) e foi jogado no carro do Cláudio (cantor do Soutien), quebrando o vidro da frente. Tipo nos filmes do Butch Cassidy mesmo. Ele apanhou de vários caras, saiu de dentro do carro limpando os cacos de vidro e foi perseguido por três dos quatro membros do Soutien, menos eu, preguiçoso, por toda a Rua Ceará. Conseguiu escapar — conta Panço, que a caminho do Garage, noutra noite, testemunhou uma espécie de milagre: uma árvore em que “nascia” gente. Ele explica: — Uma vez, eu ia andando para chegar ao Garage. Aquele caminho era horroroso. E pessoas começaram a cair das árvores, tipo em filmes de Robin Hood, para assaltar quem passava por ali. Pegaram o cara que estava na minha frente. Consegui fugir. Todas as histórias do Piu Piu e da Gangrena também são ótimas. Como aquela de quando o Piu Piu levou putas para fazerem um strip e uma delas, acidentalmente, acabou quebrando o dente da frente dele com uma garrafa de guaraná. Eu fui buscar as gatas na Vila Mimosa com a Brasília caramelo 76 do meu pai. Panço, depois de desenterrar duas referências roqueiras que os menos afeitos aos palcos alternativos podem desconhecer, dispara em profusão as referên52
cias cinematográficas que, para ele, poderiam ser uma alusão direta aos casos que envolvem o Garage e a Rua Ceará. Se Quentin Tarantino conhecesse a região, aposta o guitarrista, com certeza uma seqüência de “Pulp fiction” teria sido rodada lá. O lugar parece ser capaz de estimular a criatividade dos freqüentadores. Hora das histórias do jovem escritor João Paulo Cuenca, que já passou pelo palco (como guitarrista da banda Netunos) e integrou platéia do lugar: — Como todas as minhas memórias dessa época são meio nubladas, me lembro apenas de alguns flashes. O Garage era quente como uma sauna e escuro, muito escuro. Mas o som era bom, e muito alto. A sala tinha um reverb natural, o som batia e voltava e fazia tudo ficar ainda mais zoado. Uma vez, subi com a guitarra numa caixa lateral no meio de um solo e me joguei no palco — era o tipo de coisa que se fazia naquela época. Meu joelho ficou latejando por umas semanas. Antes de tocar, lembro que ia beber na VM (Vila Mimosa), um lugar aprazível e mais família do que 100% das boates
“No Garage, teve metal, sim, mas também teve funk-metal, rock, guitar, noise, forrocore, saravámetal, skate punk, hardcore, rockabilly, surf, barulheira geral... Teve de tudo.”
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da Zona Sul. Lembro de um dia em que chegamos cedo pra passar som e rolou um tiroteio, na porta do Garage os malucos correndo de fuzil... Acho que os melhores shows que vi por lá foram Los Hermanos, Planet Hemp no início, Autoramas e um do ...And You Will Know Us By The Trail Of Dead, quase vazio, antológico. Mas pode ser só alucinação, e nada disso ter acontecido. Por falar em Autoramas (que acabam de lançar disco novo), outro que tem histórias do lugar é Gabriel Thomaz, cantor do grupo. Para ele, é simples explicar a importância do Garage. Ela, a importância, é idêntica a que têm os outros lugares imundos e detonados do mundo inteiro que se dedicam ao rock. Gabriel acha importante colocar em caixa alta, ao falar disso, quando se refere ao rock, a palavra ESTILO. Ele faz isso em oposição à “tendência”. Com minúsculas mesmo. Quer dizer que o Garage é um lugar para quem tem estilo? Pode ser. Gabriel tem. Ele conta que entrou naquele casarão pela primeira vez em 91, para fazer um show do brasiliense Little Quail. — Foi a primeira vez que ouvi falar de Nirvana — lembra, referindo-se ao grupo que mudou a face do rock e foi o principal expoente do estilo que ficou conhecido no mundo inteiro como grunge. Uma história marcante, sem dúvida. O artista só veio morar no Rio em 1998. Mas, a partir daquela primeira noite de revelações transformadoras, passou a visitar o Garage para descobrir coisas novas sempre que vinha ao Rio ver os parentes cariocas. Não era novidade que roqueiros se embebedavam, mas ficou registrada na memória de Gabriel a apresentação do Planet Hemp em que estavam todos embriagados e completamente desencontrados no palco. E mais: — Vi os Los Hermanos de terninhos com o Marcelo Camelo explicando que “aninho” não era o diminutivo de “ânus”, vi Seaweed, vi Black Alien acompanhado só por violoncelo, vi o lançamento do primeiro CD do Cabeça com o Garage totalmente lotado e pingando, vi Wander Wildner acompanhado por Tom Capone e Mauro Manzolli, vi Acabou La Tequila tocando em trio porque metade da banda faltou ao show... Gargalhadas dadas, Gabriel acha importante falar do clima pacífico que reinava: — Sempre foi um lugar de paz total, pelo menos nas vezes em que eu fui. Paz e democracia. André Nervoso, que apesar do apelido também é um sujeito de paz, aponta o Garage como a mais democrática casa de shows dos anos 90 no Rio de Janeiro. Diz o cantor e guitarrista: — Houve uma época nos anos 90 em que o Garage era a mais democrática, talvez a única casa noturna do Rio. Não falo de um abrigo exclusivo da cena roqueira. O Fábio, sócio de lá, era um funkeiro dos melhores, apesar de curtir muito metal. Vi rolarem altos bailes de soul music...
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E o que mais será que o Nervoso viu? — Uma vez, a polícia catou todo mundo que estava de bobeira na rua, inclusive eu. Sentiram cheiro de maconha e levaram todo mundo para a 18a delegacia de polícia, na Praça da Bandeira. Chegando lá, botaram todo mundo nu e não ficaram satisfeitos enquanto não acharam o flagrante. Deram uns tapas nuns manés que queriam tirar o corpo fora e depois só liberaram a gente com a chegada do resto da turma. Enfim, o show não pôde acontecer pois os integrantes de todas as 20 bandas que iriam tocar naquela noite tinham sido presos!!! Só mesmo na Rua Ceará... Henrique Badke, cantor do Carbona, já tocou no Garage “umas 20 vezes”. No meio de um desses dias atribulados que os publicitários têm, dá para sentir que do outro lado da linha telefônica ele está rindo ao falar do Garage. Felicidade é isso aí. O jornalista fica pensando: dei um momento de alegria ao dia desse cara. Badke diz que colecionou milhares de histórias de Garage ao longo dos anos. Em algumas delas, há outras pessoas envolvidas e ele prefere não se
estender. Dá uma gargalhada quando fica sabendo que cia. O auge da carreira foi o tal episódio envolvendo as Nervoso já entregou tudo sobre aquela noite de cadeia. “meninas” da Vila Mimosa. Piu Piu não esquece daqueO Rio de Janeiro é um lugar pequeno. E a Rua Ceará é la noite. Afinal, houve um dente quebrado e um coro um universo em que se concentram vários tipos. Não cruel a ser aturado: “Brocha! Brocha!” Diz ele, hoje: é lugar para quem quer se esconder. Parece que todo — Foi tudo intriga da oposição... mundo pode aparecer lá. É certo que Piu Piu ajudou a construir a fama do Tipos se concentravam. Água, não. Volta e meia, lugar, com suas apresentações espalhafatosas. Numa dizem, faltava do precioso líquido no lugar. Isso era um delas, o artista levou nada menos do que um cabrito e problema recorrente nos primeiros anos de funciona- um ganso para o palco. mento da casa; quando ela ainda era divulgada como — O cabrito ficou todo mijado. O ganso ficou asGarage Art Cult. Um dos protagonistas mais conheci- sustado e queria dar mosh (pular do palco)... — brinca, dos daquela vizinhança, Rogério Piu Piu (do Piu Piu e antes de seguir e revelar o que parece ser uma fixação Sua Banda), aponta Fábio Costa como um idealista. por bichos: — Teve uma vez em que nós compramos — Ele às vezes enchia a caixa d’água do clube de máscaras de papelão, com figuras de animais, para que balde em balde, trazendo água da rua, para poder abrir o alguns rapazes usassem aquilo. Para começar, eles ficalugar normalmente — lembra Piu Piu, anunciando em ram sem camisa, na frente do palco, com aquelas másseguida que sua banda vai voltar em três meses e que caras. E foram fazendo um strip. Ficaram pelados. Os espera fazer shows no novo Garage. Olha aí, Leo Feijó. roqueiros foram se afastando, revoltados. Piu Piu não esconde o tom de orgulho quando Piu Piu e Garage apareceram num curta-metraouve alguém dizer que ele é um dos artistas mais co- gem de 1995, “Metal Guru”, de Flavio Colker. O filme nhecidos da geração Garage. Tudo começou por volta era sobre a Rua Ceará, ganhou prêmios e foi selecionade 1993, quando a banda foi selecionada para se apre- do para festivais na Europa. Diz Piu Piu que, na nova fasentar ao lado de outras que faziam um som parecido. se da banda que vai ressurgir agora, ainda haverá espaNa época, o que contava era o som. Logo depois daquela ço para loucuras. Mas avisa: vai ser tudo com black-tie. primeira aparição nos palcos, o visual passou a contar Se ele acha que dá para reviver o clima de antigamente? muito. Eles ficaram conhecidos por causa da irreverên- “Fácil!”π
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conto
Moisés, o atravessador de ruas N
FERNANDO GERHEIM
o alto da passarela, o juiz de largada aponta a arma As micro-câmeras captaram o acidente e foi destapro céu. A torcida debruçada sobre a Avenida Brasil ob- cado um contingente policial para coibir a ação daquelas serva os jogadores dispostos na beirada da pista. Aquele “gangues de suicidas”. O torneio foi interrompido até ponto foi escolhido pelo alto grau de dificuldade e pela uma pequena taxa ser somada à propina pelo Rubão da facilidade de observação. Ali morreu muita gente antes Maré. O chefão do tráfico era fã da Travessia da Morte. de um vereador realizar a promessa de campanha. Moisés tinha como trunfo a capacidade de anteO novo esporte radical começou em vários centros cipação. Enquanto os concorrentes sempre partiam no urbanos do mundo ao mesmo tempo sem que um sou- instante do tiro, ele podia começar a correr em função besse da existência dos outros. Depois da morte de Giga, do desenho de trajeto que tinha em mente. Moisés dea notícia vazou na imprensa, e a sociedade debatia se senhava percursos a partir da configuração dinâmica a Travessia da Morte era um lamentável desvio de de- dos carros. linqüentes com um forte componente suicida ou uma O gatilho é pressionado pelo dedo do juiz de largada. manifestação urbana legítima de jovens de baixo poder Um Honda preto vem a toda e Moisés sabe que deaquisitivo da Baixada. Os profundos conhecedores acre- ve passar na frente dele para pisar com firmeza na faixa; ditavam que aquele jogo macabro era uma expressão de só com uma base sólida resistirá ao deslocamento de nossa época. A prova era Moisés. Assim como havia fu- ar da Van que avança pela segunda “raia”, conseguindo tebol arte, ele inventara a Travessia da Morte Arte. O cra- entrar no vácuo e ganhar velocidade para fazer um paque parecia abrir caminho entre os carros como as águas rafuso voador. do Mar Vermelho se abriram para o seu xará bíblico. O gatilho aciona o mecanismo de disparo da arma. Moisés crescera numa atmosfera de fumaça, moPela terceira pista, aproxima-se um Fox popozudo; tores e asfalto quente, e começara a trabalhar criança a sorte é que atrás dele vem um Siena com a traseira vendendo refrigerante no sinal. Quando cresceu, pas- ideal para deslizamentos. Moisés sabe que terá que crusou a exibir a arte da travessia nas avenidas e ficou com zar a pista diferenciada na frente do FNM para não ser fama primeiro de maluco, depois de um tipo novo de tragado. A chegada à mureta central dependerá da coormutante com uma percepção de bicho dos carros. denação entre as manobras nas diferentes pistas. Ele trabalhava como motoboy. A bala percorre o interior do cano da arma. Um dia, na beira da pista, viu outro garoto no Agora Moisés participa do campeonato latinomeio do tráfego intenso. “Vai se matar ou sabe o jogo”, americano de Travessia da Morte e não precisa mais pensou. Ele sabia o jogo, mas não acreditou quando viu dar o sangue como motoboy. Agora Moisés agoniza no Moisés insinuando-se no meio dos carros em alta ve- asfalto, depois que seu corpo foi lançado pelos ares pelo locidade como se tivesse sebo no corpo. Giga era um FNM. Agora, do alto da mureta central, Moisés antevê o cracker grafiteiro magrela de Nova Iguaçu que passou desenho de percurso que fará nas quatro faixas da pista a se besuntar de vaselina para deslizar entre os carros em sentido contrário. Agora Moisés sente-se mais procomo Moisés. tegido no meio dos carros do que diante do sorriso de Freqüentando juntos vias perigosas, encontraram uma guria que conheceu em Quintino. Agora Moisés outros atravessadores de rua e logo surgiu a idéia de or- escuta o estampido do tiro. ganizar um torneio com rodadas nas linhas Vermelha e Moisés dispara. Amarela e nas avenidas Presidente Vargas, das Américas e Brasil. Foram estabelecidos os quesitos de avaliação: tempo de travessia; arranque e freada (seria julgada a performance em cada “raia”); deslizamento, rolagem e salto sobre capô (cada um com variedades estilísticas); aproveitamento do deslocamento de ar (manobras no vácuo valiam pontuação máxima). Moisés de Quintino vencera todas as etapas até o momento. As outras equipes eram Nova Iguaçu, São Gonçalo e Maré. Na penúltima etapa do torneio, Giga morreu atropelado. “A linha do Gol não é tão curva quanto a do Clio”, explicou Dé de São Gonçalo, ladrão de tênis aerodinâmicos da Zona Sul que achava que Giga tinha confundido os modelos dos carros. Os atravessadores deviam saber os detalhes de design de cada modelo. 57
folhetim
As aventuras de um Zé Pereira cap. 1:
Z
SUJEITO-HOMEM
é Pereira se diz sujeito-homem. Desde que entreouviu a expressão durante uma briga num boteco lá da Rua São José, é assim que apresenta suas credenciais. “Muito prazer, Zé Pereira, sujeito-homem”, e abraça o interlocutor de forma abrupta, colando a orelha no peito do sujeito, num movimento peculiaríssimo que acabou por lhe conferir o apelido de Cardiologista. Não que o tal Zé Pereira seja um desses tresloucados machistas que ameaça de pancada os gays bombados da Farme. Ele se define como sujeito-homem do mesmo modo que chama alguém de “malandro-berimbau”, ou cola na testa de um terceiro a temida alcunha de “Zé Ruela”. Pois como indivíduo típico do Rio de Janeiro — aquele que nasceu no subúrbio e se submeteu à transculturação na Zona Sul —, Antônio José Pereira da Silva é sobretudo um observador, que cata as sobras da estranha língua falada pelos cariocas para temperar o próprio vocabulário. De Cascadura, o bairro-natal, guarda a moral rígida, a paixão pela Portela e o gosto por beber em pé na calçada até que o dono do bar lhe jogue água nos pés. Em Copacabana, onde já mora há quase dez anos, aprendeu entre outras coisas a pegar jacaré — e que não fica bem ir à praia com o short do Botafogo. Mas se Zé Pereira é de fato sujeito-homem, essa macheza tão decantada derreteu como açúcar em fogo alto quando, naquela fatídica sexta-feira, ele entrou no Nova Capela. Já fazia algum tempo que não esticava a madrugada no tradicional restaurante da Avenida Mem de Sá, pelo menos desde que lá proibiram o cigarro por causa do ar refrigerado. Não, Zé Pereira não é exatamente um tabagista inveterado. Mas ele gosta de fumar quando bebe, e ter de ir para a rua quando quer inalar um pouco de nicotina é algo que o irrita profundamente. Zé resolveu tomar a saideira no Capela porque estava com saudade do Cícero. E foi seu garçom preferido que encontrou logo após empurrar a porta. Ao vê-lo, Cícero não esboçou o habitual sorriso com que recebe os clientes mais
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MARCELO MOUTINHO
queridos. Pelo contrário: seus olhos pareciam transpirar, alarmados. A explicação se deu à medida que o garçom o carregou, com certa rispidez, na direção do banheiro. Respondia pelo nome de Cláudia. Cláudia, a morena que Zé Pereira conheceu num quiosque de Copacabana no crepúsculo de um Domingo de Páscoa. Cláudia, a mulher com quem morou brigou transou durante dois anos. Cláudia, com quem não esbarrava desde o traumático final, no flagrante da moça trocando beijos com o salva-vidas dentro de um Fiat Uno vermelho. A demora fez com que Cícero fosse chamado pelo gerente. Os fregueses reclamavam sua presença, e Zé ficou sozinho no banheiro. Estaria acompanhada? Teria visto quando ele entrou? As perguntas que o garçom não soube responder conviviam com a dúvida maior: devia ou não permanecer no Capela? “Sou sujeito-homem”, disse então a si mesmo, encarando o espelho do lavabo. E decidiu ficar. Mais: iria até a mesa de Cláudia e daria boa noite, com toda a educação. Zé passou um pouco de água no rosto, secou com a toalha-papel e, com a coragem refeita na face, voltou ao salão. Assim que entrou, avistou Cláudia numa mesa de canto. As mechas do cabelo, agora louro, não impediram que a reconhecesse. Continuava bonita, apesar dos anos passados. E o semblante parecia mais sereno. A visão de Cláudia abriu sua caixa de lembranças. Foi como um alfinete que fura levemente a couraça: seu corpo começou a esvaziar-se. “Zé!”, ele ouviu alguém falar, mas continuou fechado em si. “Zé!”, a voz insistia. Era Cláudia, que acenava insistentemente com a mão esquerda. Apesar da distância, Zé Pereira pôde notar a aliança em seu dedo anular.
da panelinha
Onde sonham os prédios texto: LUIZ HENRIQUES ilustração: HEITOR PITOMBO
À
meia-noite fomos contactados pelo valente editor, que exibia um mapa quase indecifrável, enquanto contava sobre as estranhas poções que ingerira para consegui-lo, sob o som de cânticos profanos. Estava vindo do Beco do Rato e nos catou para irmos a uma festa em algum lugar da Tijuca. Guiados pelo baixista que rabiscou o desenho desta página, tijucano desde sempre, subimos a Rua Uruguai e deixamos para trás o Rio dos prédios, escritórios e empregos burocráticos. A rua se transformou em um dos segredos da cidade, como a Novo Mundo e outras ladeiras, que ninguém freqüenta. Pela hora tardia, o porteiro cobrou apenas meia enquanto conjurava visões de moças seminuas, insatisfeitas com a sociedade de consumo, em busca de algo mais, de alguma orientação que homens mais velhos bem poderiam oferecer (infelizmente, não é o meu caso, já que adolesço há 25 anos). A casa era espalhada por um morro, diversas escadas estreitas levando a vários níveis e bifurcações. O show de reggae era num deck de piscina, com a platéia dentro da piscina vazia. E, fundamental, a área da dispersão, onde rola o papo e a paquera, espraiava-se pelos muitos cômodos, com esplêndida vista para distantes luzes no horizonte. E gente, muita gente, incluindo as moças seminuas que, com tantas escadas, faziam a festa de alguns sujeitos de meia-idade que observavam suas pernas por baixo (inclusive eu). Com tantos atalhos e beldades moderninhas exibindo suas saias longas, seus piercings e sua insatisfação com a sociedade materialista circulando, acabei me perdendo dos amigos. O show acabou e a piscina esvaziou. Hora de catar o povo para ir embora. O baixista conversava com um casal sobre as vantagens da Tijuca sobre Botafogo. O valente editor vangloriava-se que já bebia quando seu interlocutor ainda nem era nascido. Nosso amigo mais espiritual discutia com uma turma que a geografia da casa lembrava Escher, levando um jovem pintor a perguntar onde estavam os lagartos então. Por 5 pratas foi ótimo. A noite no Rio acabou, ninguém mais sai de casa por causa da violência, as casas noturnas estão todas fechando. Mas é que o povo que fala isso freqüenta o Rio dos escritórios, dos condomínios, da burocracia, do asfalto e do trânsito, quando na verdade a noite está, como sempre esteve, na cidade que os prédios sonham quando estão dormindo.
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Flávio Nascimento, 63 anos, pernambucano, professor e poeta alternativo, marginal, independente, performático, cênico e teatral, pai de duas filhas e avô de três netos. * inspirado no “Dicionário de pessoas desconhecidas ilustres”, de Evando dos Santos.
foto: MICHAEL ENDE
ilustre desconhecido*
De onde veio e para onde vai, cidadão? Eu nasci em Palmares, Pernambuco, terra do poeta Ascenso Ferreira, mas quando tinha 2 anos me mudei para João Pessoa, na Paraíba. Com 14 anos vim para o Rio e há 12 anos moro aqui e em Lumiar. Tenho um pequeno apartamento na Lapa e fico no Rio de terça a quinta. Estou querendo vender minha casa em Lumiar. Talvez me mude para Friburgo. Sou um andarilho mambembe. O que queria ser quando crescer? Eu estudei em colégio de freira e padre, então acho que queria ser padre. Virei profeta da poesia. Sou poeta alternativo, marginal, independente, performático, cênico e teatral formado em Português e Literatura na PUC. Abri mão da carreira universitária para ser artista de rua. O que faz para ganhar a vida? Sou professor de artes cênicas da quinta e da oitava séries do município. Minhas aulas são performáticas. E nas horas vagas? Sou poeta alternativo, marginal, independente, performático, cênico e teatral. Me apresento no Beco do Rato e, de 15 em 15 dias, no Jasmim Manga, no Largo dos Guimarães, nas noites de terça-feira. Também vou estar no Santa Teresa de Portas Abertas. Tira uma onda aí. Tiro três. Fiz o poema concreto “Efeito estufa” quando ninguém falava ainda sobre aquecimento global. Ele foi musicado pelo meu parceiro Reinaldo Vargas, inspirado no “Pierrô lunar”, de Arnold Schoenberg. Eu fui citado por Glauco Mattoso no livro “O que é poesia marginal”, da coleção Primeiros Passos, da editora Brasiliense. E escrevi em 1967, o livro pioneiro da literatura marginal, independente e alternativa, “Treva”. Ele tem prefácio do Chico Buarque e do Torquato Neto. 60
No site: o poema “Efeito estufa”
A I C Í L O P E CASO D
docusempre os , ro la C . o carr atrasamentos do , um mês u A c V o d IP u e das té um o. M . Passava segui-los a tos do carr o n e rr e u a q c m a e ri d te rua ue raram casa va numa isseram q i e eles pa ta u D s g . oltava para e e o s d u s e o , o u disse, M. E le doming uma patru s PMs me ósito da P o p d e d m 23h daque te deserta e avistei U . s o no colr desert en elo meno ssentada a , a num luga completam . Fiquei aliviada: “P rm a o à ltando, da ndo a mã está dificu tem a ê v c le o v lhinha para nto aqui”, pensei. , a i, menin me , ele não s consegu dre: “Olha tem policia s policiais militare tá nervoso lho, vi que já lo e li d a o o m ig o o de o carr Vi que o meu am om o rabo o daquele i C e tr . s ” n s e ia a zmente d c P , n . e a iê u q ita pac sozinh nhava fero u r lfi e m a g lh ram notar n u e m e a ntinuou ial s i que a p avia uma utro polic e gato. Co o d o o h popular, h pelo retrovisor, note in u e q , uação. as e, movimento - com um churr er essa sit lv m o e s re to pelos PMs s s o o p n Pe i dizer: Vam havia se do o farol. rimeiro: “ al consegu conp n M a o c . ” is trulhinha ? p , m a o la d b le minha co reais está o que sair is aqui”. E estava na o cem rea assar, tenh rapassam, Cem p h oras”. n h m te 4 re o 2 e ã u n q as eu ir num me ult e M o “ u ã q n sei: “Eles r s te le e e i já estão cê va s porque assim, ch s 24 horas o nuou: “Vo c ti n a frente. Ma stá vazia?”. Mesmo b s o re v nde tem ho li “Mas ae : “Eu sei o o o camin etruquei: u d o R c n li a já que a ru p ix e a re d i , PM os mais ão fo a direita te. Qual n chados”. O ue a gente”. Rodam letrôn fe e fr guei para m a e g e bém jo eguirem rto. Seg vi o caixa para eles s sa ao ver que eles tam am pis- um abe do carro, i c spidas s u e c D v . m a re o c u ra ais fo m pou re u 0 minha surp ara a direita. Contin 5 e , d ” o s s embora, r is nota op vam indo ão pode se ico. Duas ta n s n e , a ram o carr o b d n m re a a ra u .Q lá de dene eu p rol. “Ca a máquina Ms gritar, d uerem qu P q cando o fa s s o le , d a E “ d m a . na Lei!”. iu on crédula ê se anda ente aband a?”. ainda escute v m E pensei, in ta “ : le a p h m in inh a rua co da patrulh ulher soz aqui, ness rro. tro , uma m inteira. a e c e it it o o o n d n à a m escera Chorei d domingo is ia o c d li o ra pa Dois p ão havia Encostei. do que n n a c edindo li p p x m e a s estav le Fui logo e e u q r dindo os pensa m logo pe ra antes por fo s le e gem. E ultrapassa
V
CERDA ilustração: TIAGO LA
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o bumbo do zé •Baixas de Guerra HÁ 31 ANOS
Os que perderam entes queridos em nossa guerra civil não declarada têm razões de sobra ao reivindicar que seus casos, individualmente, não virem apenas um número a mais nas estatísticas. Mas se uma história mais escabrosa pode despertar a indignação da opinião pública vez por outra, é o seu impressionante conjunto que deveria acordá-la definitivamente. Inspirados no trabalho da ONG Iraq Body Count, que desde 2003 vem registrando o número de civis mortos no Iraque, os amigos André Dahmer e Vinicius Costa criaram o Rio Body Count (www.riobodycount.com. br). O site entrou no ar em fevereiro e contabiliza em tempo quase real a escalada da violência na cidade. O trabalho dos colaboradores é voluntário e a contagem é baseada em informações divulgadas pela imprensa — ou seja, muita coisa deve ficar de fora, o que é mais assustador ainda. No dia em que foi escrita esta coluna, o trágico placar marcava 1.214 mortos e 776 feridos.
CHAMANDO NA CHINCHA
•É lamentável a campanha de desinformação pública
da Rede Globo em relação à classificação indicativa nas TVs. Não se trata de ser contra ou a favor do dispositivo — que, é sempre bom lembrar, não foi criado pelo atual governo, mas pelo do liberal Fernando Henrique Cardoso — e sim de se revoltar com tanta má fé. Em seu programa, Jô Soares chegou a dizer que a classificação indicativa lembra o nazismo porque “as faixas etárias são indicadas por cores, assim como os judeus usavam estrelas amarelas e os homossexuais, triângulos cor-de-rosa nos campos de concentração”. Seguindo esta linha de comparação, poder-se-ia dizer que o apresentador cometeu uma maquinação digna de Goebbels — o marqueteiro de Hitler.
•Aliás, se a Globo se arvora defensora da liberdade de
expressão, por que não veicula a campanha do governo sobre o tema?
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•Continuando a cruzada anti-classificação indicativa,
também no “Programa do Jô”, a atriz Christiane Torloni pedia a volta aos currículos escolares da OSPB (Organização Social e Política Brasileira), disciplina criada pela ditadura para fazer a cabeça da garotada na época do “Brasil, ame-o ou deixe-o”. Ao seu lado, o ator Vítor Fasano chorava de emoção. Essa gente tem uma noção muito estranha de democracia.
•“O crime compensa”, parecem estampar as manche-
tes dos jornais populares quando exaltam a virilidade do cantor Belo, réu condenado por associação ao tráfico de drogas e ainda cumprindo pena. Dia sim, dia não, ele está nas primeiras páginas dos jornais, como se fosse um exemplo a ser seguido.
•O Pan vem aí e na grande imprensa é tudo alegria. Reportagens sobre o caos que a cidade pode se tornar ou sobre o estouro do orçamento são meras notas de pé de página.
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humor
A Função da Arte
H
oje em dia os melhores ficcionistas brasileiros trabalham no cinema, na área de captação de recursos. Não é nada fácil tentar explicar para algum funcionário do MinC porque o governo deveria arcar com o inevitável prejuízo monetário da sua obra de arte. Mas alguns abnegados se prestam ao trabalho quando preenchem a lacuna “justificativa” no edital de incentivo à cultura. A menos que você entenda por responsabilidade social não deixar seus amigos desempregados na mão, é mesmo complicado arrumar desculpas para descolar um financiamento - aliás, em qualquer setor, quem já tentou comprar uma casa sabe. Houve até uma época em que o ramo imobiliário e o cinematográfico experimentaram um convênio através da Embrafilme, espécie de BNH de cineasta. Nesses casos, a verdade não faz bem a ninguém, como quando se declara imposto de renda. É preciso mentir com a proficiência de um aluno relapso explicando para a professora mais uma vez porque não fez o dever de casa. Pensando nisso, vão aqui algumas dicas para o requerente driblar a natural desconfiança do mítico sujeito que libera a verba em Brasília:
1 Arte pela arte - não bom. Amor sincero pelo cinema pode ser um bom motivo (aliás, o único) para começar a rodar, mas com certeza não vai impressionar burocratas treinados para identificar utopistas com vínculos frágeis com a realidade, portanto despreparados para lidar com um mercado feito evidentemente para executivos empreendedores. Arte, não mencione a palavra.
2 Adjetivação Quando for descrever o tema do seu filme em resumo (que é a palavra chave, quanto menos puder entregar da trama melhor), enfatize o papel social de cada personagem através da adjetivação. Se houver uma dona de casa na história, por exemplo, chame-a de oprimida dona de casa. E se houver um servidor público, faça-o um consciente servidor público. Não tem erro.
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ARNALDO BRANCO
3 Geração de empregos Deixe claro que seu filme vai gerar empregos (o governo sempre fica feliz em se ver aliviado de uma obrigação constitucional, e conta com todos os setores da sociedade, o crime organizado não é uma exceção), mesmo que os beneficiários sejam seus tais amigos sem trabalho. Enumere cargos que podem ser facilmente acumulados por um só membro da equipe, mas sem mencionar esse detalhe. Isso nos leva à questão do orçamento.
4 Dinheiro não é problema Cinema é investimento e não filantropia, portanto não economize no orçamento. Você vai parecer tão mais bem intencionado quanto mais cara for a sua produção, vai dar impressão de profissionalismo e de metas mais elevadas. E é natural que suas boas intenções lhe garantam algum bônus das sobras do financiamento, mas também não mencione isso. Presto! Você está pronto para colher os recursos necessários para realizar sua obra-prima. E, quem sabe, para me encaixar como consultor executivo no elenco.