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ALÍVIO NECESSÁRIO A Zé Pereira número 3 chega às bancas com vários motivos para celebrar. Em nossa versão virtual, estreamos na cobertura diária acompanhando o maior festival de cinema da América Latina, o Festival do Rio. “Um necessário alívio” à seriedade da crítica atual, observou o cineasta e crítico Eduardo Valente, editor da revista online Cinética. Foi mais um sinal verde para o fortalecimento do site da Zé Pereira, um veículo pensado para levar ao leitor algo mais do que uma simples versão digital da edição em papel. Neste número, a Zé Pereira online exibe quatro curtas-metragens, entre eles o premiado “Batuque na cozinha”, e o lançamento mundial da versão pirata definitiva de “Tropa de elite 5”! Exclusividade da Zé Pereira. Nem os vendedores ambulantes tiveram acesso à cópia. E, ainda, o filme que deu origem à série do Urubucamelô. Já o blog ganhou mais fôlego. Além das contundentes observações sobre o caos nosso de cada dia, ele traz agora reportagens sobre a vida cultural do Rio de Janeiro e arredores. Atenção: vida cultural! Por falar em caos… o nosso antiquado e caótico sistema de transporte público é um flagelo esmiuçado nesta edição. E para deixá-lo, caro leitor, com água na boca, publicamos um capítulo de “O Dia Mastroianni”, novo livro do escritor e colaborador da Zé Pereira, João Paulo Cuenca. O nosso aristocrata do mês é o cangaceiro mais carioca do cinema nacional: o montador Severino Dadá, cidadão emérito do bairro da Glória. Vai um biscoito Globo aí?
foto: RODRIGO LINARES
CONSELHO EDITORIAL
Anna Azevedo, Eduardo Souza Lima, Olívia Ferreira, Pedro Garavaglia, Roberto Ribeiro. EDITOR
Eduardo Souza Lima PROJETO GRÁFICO
Radiográfico (www.radiografico.com.br)/ Olívia Ferreira e Pedro Garavaglia, COLUNISTA
Arnaldo Branco (www.gardenal.org/mauhumor) COORDENADOR DO FOLHETIM
Marcelo Moutinho (www.marcelomoutinho.com.br) REDATORES
Anna Azevedo, Bruno Porto e Eduardo Souza Lima REVISÃO
José Figueiredo CAPA
Flávia Carneiro de Carvalho, por Pedro Garavaglia COLABORARAM NESTA EDIÇÃO
Adriana Nolasco (www.atequaseperto.blogspot.com), Alessandro Ferreira, Carla Andrade, Denise Lopes, Dimmi Amora, Eloar Guazzelli, Eric Garault (www.ericgarault.com), Flávio Izhaki (http://bohemias.blogspot.com), Fernando Gerheim, Leonardo (http://rasuralivre.blogspot.com), Luiz Henriques (http://arsgratiars.blogspot.com), João Paulo Cuenca (http://oglobo.globo.com/blogs/cuenca), Marcello Monteiro, Marina Gonçalves (www.marinag.blogger.com.br), Michael Ende (www.michaelende-brazil.com), Ratão Diniz (www.flickr.com/people/rataodiniz), Rodrigo Linares (www.cadernosbrancos.blogger.com.br), Rodrigo de Oliveira e Rogério Durst.
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Os textos assinados também refletem, necessariamente, a opinião da revista. TIRAGEM DESTA EDIÇÃO
10.000 exemplares
A revista ‘Zé Pereira’ é uma publicação mensal da Hy Brazil 2001 Filmes e Livros Ltda. (www.hybrazilfilmes.com) número 3/ano I/outubro de 2007
ARISTOCRACIA CARIOCA: Severino Dadá
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DA PANELINHA: Cu Velho
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O OUTRO LADO DA RUA:
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SUMÁRIO
O cangaceiro da moviola na terra de São Sebastião. Por Rodrigo de Oliveira (texto) e Michael Ende (fotos).
...E o sangue semeou a terra na Leopoldina. Por Luiz Bello (texto) e Marcello Monteiro (ilustração).
Um passeio pela Dias Ferreira que não está na novela das oito, guiado por Rogério Durst (texto) e Pedro Garavaglia (foto).
CONTO: O Amarelo
Diante da peixeira. Por Dimmi Amora.
QUADRINHOS: 666
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FOLHETIM: As aventuras de um Zé Pereira
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CANJA
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ILUSTRE DESCONHECIDO
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BUMBO DO ZÉ
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MAL NECESSÁRIO
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O sussurro do Apocalipse. Por Eloar Guazzelli.
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SINFONIA DE BISCOITOS:
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“33” diz Flávio Izhaki, dando a deixa para Adriana Lisboa, que escreve no número 4.
O CAOS SOBRE RODAS
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Um capítulo de “O Dia Mastroianni”, o novo livro de João Paulo Cuenca.
Um ensaio fotográfico de Eric Garault acompanhado por Anna Azevedo.
O carioca é refém das empresas de ônibus. Charges de Leonardo, texto de Alessandro Ferreira e Carla Andrade.
SÉRIE: Urubucamelô em
“Que cheiro inominável é esse que vem da Barra da Tijuca?”. Uma história de Fernando Gerheim ilustrada por José Aguiar.
A MARCHA SEM VOLTA DOS CINECLUBES
Maza tem foto até no Irã.
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Denise Lopes radiografa o movimento que tomou conta da cidade.
POESIA:
Adriana Nolasco vomita tudo o que não é.
O OLHAR FOTOGRÁFICO DA MARÉ
Ratão Diniz fala de suas impressões sobre o Nordeste a Marina Gonçalves.
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aristocracia carioca: Severino Dadá
texto: RODRIGO DE OLIVEIRA fotos: MICHAEL ENDE
“NÃO EXISTE
CINEMA SEM
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UM BOTEQUIM”
Como boa parte dos que vivem no Rio, Severino Dadá é um carioca nascido na rodoviária. Foi no começo de 1969 que Dadá aportou por estas bandas, na condição de “elemento de alta periculosidade”. Vinha fugido da perseguição política em sua terra natal, Arcoverde, no interior de Pernambuco, onde era radialista e militava nos movimentos de resistência à ditadura. Este segundo parto, depois da longa viagem de ônibus, não marcou apenas o início da relação com a cidade pela qual Dadá se apaixonou imediatamente. O desembarque na rodoviária define também o começo da carreira de um dos mais importantes montadores do cinema brasileiro. 7
Dos primeiros tempos na cidade, vivendo
de favor na casa de conterrâneos e empregado num terminal de petróleo da Ilha do Governador, Dadá se lembra com uma alegria pouco comum nos relatos daqueles que chegam sozinhos e sem dinheiro numa cidade estranha. — Meus amigos me disseram: “Venha pra cá, aqui você não vai passar fome, não...”. Pô, eles comandavam uma churrascaria lá na Ilha, eu ia passar fome de que jeito? – brinca. A chance de subir na empresa petrolífera, no entanto, foi logo sustada. Sua jornada carioca tinha outro objetivo. — Eu descobri que o pessoal de cinema fazia ponto no Beco da Fome, na Cinelândia, ali na Rua Álvaro Alvim e suas transversais. Trabalhava muito na quinta pra ser liberado na sexta, às duas da tarde. Aí, com grana e solteiro, eu me mandava pro Beco, pra ver as pessoas. “Porra, ali é o Wilson Grey!”.
Numa das bebedeiras de sexta, Dadá esbarrou com o cineasta Fernando Coni Campos, que se preparava para rodar um documentário sobre o Campo de Santana, com filmagem já no dia seguinte. Dadá não pensou duas vezes antes de aceitar o convite para participar da tal filmagem. Saíram da cervejada direto para o set. — Voltei pra Ilha na segunda, numa ressaca fodida, pra pedir demissão. “Me cortaram da rádio, mas agora meu nome vai aparecer é na tela do cinema de Arcoverde!”. Era uma coisa infantil, mas era um amor.
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A memória cinematográfica de Dadá chega até sua primeira infância. No pequeno povoado de Pedra, onde vivia com a família, o menino se encantou com a invenção trazida por um grupo de ciganos. Instalados no armazém de um tio seu, o espetáculo noturno incluía um grande lençol branco estendido no fundo do salão, um projetorzinho barulhento e as cadeiras que cada espectador trazia de casa. O cardápio? Buster Keaton, Charles Chaplin, O Gordo e o Magro, além de uma das inúmeras versões de Tarzan. Mais tarde, com a mudança para Arcoverde, veio o deslumbre do 35mm e dos 1.100 lugares do Cinema Bandeirante, “o gigante da Praça da Bandeira”. A cinefilia explode na juventude, quando passa a trabalhar no serviço de alto-falante do cinema concorrente, o Rio Branco. Dadá era o locutor dessas transmissões, e quem trabalhasse num cinema podia entrar de graça no outro. Esse foi seu equivalente a um curso universitário:
— Passei uns quatro anos vendo um filme por dia, às vezes até mais que isso, sem pagar nada. Nas mesas de bar da cidade, Dadá era tido como o cinéfilo-mor. E o status de “especialista” se amplia quando cai em suas mãos uma edição de “O Cinema: sua arte, sua técnica, sua economia”, livro clássico do historiador francês George Sadoul. — Aí vem a minha grande transação de descobrir o cinema mesmo, o enquadramento, a geometria, a decupagem, a linguagem. Ainda em Pernambuco, fez parte da equipe que rodou a primeira versão cinematográfica
de “O auto da Compadecida” (“A Compadecida”, 1969). Foi esse conhecimento que lhe garantiu os primeiros empregos no começo da carreira. Numa temporada de dois anos em São Paulo, foi assistente de direção de Ozualdo Candeias e de José Mojica Marins. Impressionado com sua habilidade para decupar os roteiros (transformar uma frase escrita numa imagem produzível), Victor di Mello o convoca para participar da continuação das filmagens de seu “Quando as mulheres paqueram”, agora no Rio. E assim, de 1971 em diante, Dadá se estabelece definitivamente em terras cariocas. O salto decisivo para a carreira que o consagrou vem com o convite para trabalhar com o lendário Nelo Melli, argentino radicado no Brasil, responsável pela montagem de obras-primas como “Porto das
que montou, para cá, foram mais de 300 filmes realizados, entre as funções de montador e editor de som, num espectro de realizadores que vai de Neville D’Almeida a Paulo Thiago, do cearense Rosemberg Cariry ao boliviano Jorge Sanjinés, do cinema marginal à pornochanchada. E todos estes trabalhos podem ser resumidos numa experiência inusitada à frente das câmeras. Foi em “Tenda dos milagres”, adaptação de Nelson Pereira para o romance de Jorge Amado. O diretor chega um dia para Dadá e diz que tem um personagem para ele interpretar: “É você mesmo, ora!”. Criando a estrutura do filme-dentro-do-filme, Nelson fizera com que o jornalista do romance decidisse filmar a história do sociólogo baiano Pedro Archanjo. Hugo Carvana faz o jornalista e, em diversas inserções ao longo de “Tenda”, o
Caixas” e “Vidas secas”. As lições do velho Sadoul e o cinema consumido avidamente nas telas pernambucanas reverberavam até este momento, e chegam aos ouvidos de Melli: — “Tengo la información de que usted domina a linguagem, e tiene una intuición cinematográfica muy forte”. Porra, além de dominar a linguagem, eu também sou intuitivo, é? — diverte-se Dadá, imitando o sotaque de seu primeiro mestre. É Melli também que o apresenta a Nelson Pereira dos Santos, com quem formaria uma parceria definidora de sua vida. De 1974, de “O Amuleto de Ogum”, primeiro longa-metragem
vemos discutir com Dadá, diante de uma moviola (a pesada máquina onde se editavam os filmes antigamente), que rumos dar ao trabalho que estão montando. Nelson criou ali a imagem-símbolo do montador brasileiro. Não à toa, o Archanjo da ficção é chamado de Ojuobá, que significa “os olhos de Xangô”. Dadá, nordestinamente paciente, ouve as confusões do jornalista/cineasta, recebe aquele monte de imagens filmadas sem muito sentido, e faz o trabalho de organização desse olhar. É o condutor destes olhos de Xangô. E também dos olhos de Nelson Pereira e de
“Porra, além de dominar a linguagem, eu também sou intuitivo, é?”
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tantos outros com quem trabalhou. Nascido Severino de Oliveira Souza, Dadá assinava no início de carreira Severino de Oliveira. O nome artístico definitivo também lhe foi dado por Nelson: — Dadá é um apelido de infância. Quem me deu foi minha avó. Um belo dia ao assistir “O Amuleto de Ogum” eu vejo Severino Dadá nos créditos. Fui perguntar o motivo para o Nelson, e ele me disse: “Pô, mas todo mundo te chama assim!”. Já o apelido de “cangaceiro da moviola” parece bastante justo ao vermos a imagem de Dadá diante dos batoques e manivelas. Sua dimensão sertaneja é inegável. Costuma dizer que foi apadrinhado pelo piauiense José Medeiros, grande fotógrafo com fama de antipático, por conta de uma certa “máfia nordestina” que opera entre os que de lá vieram. Talvez seja por essa mesma relação que, circulando pela Glória, onde vive hoje, Dadá reconheça cada um dos nordestinos que passam por ele. O atendente do bar não precisa falar mais de uma frase para que Dadá reconheça imediatamente seu estado de origem, e talvez até a cidade. E a figura expansiva, em todo seu encolhimento e pouca altura, segue risonha pelas ruas do bairro que biografou em “Memórias da Glória”, média-metragem de 2005. Dadá, casado há 32 anos com dona Socorro, fala do Rio de Janeiro com uma propriedade invejável. Conhece, com precisão de “Guia Rex”, suas ruas e bares — sobretudo os bares. — Não existe cinema sem um botequim. No histórico Botequim da Líder, na esquina da Álvaro Ramos com a Rua da Passagem, em Botafogo, que ficava em frente ao maior laboratório de cinema da cidade, era obrigatório o trajeto entre a sala onde se projetavam os copiões dos filmes e a mesa em que seriam avidamente discutidos — e bebidos. Quando a Líder se muda para Vila Isabel, onde Dadá vivia desde 1974, a coisa fica ainda mais intensa. Na Vila, Dadá passou quase 20 anos, e es-
teve próximo do melhor do samba carioca. Conta que o amigo Rogério Sganzerla tinha duas grandes obsessões: Orson Welles e Noel Rosa. Da primeira, Dadá deu conta ao montar “Nem tudo é verdade” e “A linguagem de Orson Welles”, filmes do diretor que comentam a passagem do cineasta americano pelo Brasil, nos anos 40. Da segunda, bastou apresentar a Vila Isabel ao amigo. A formação musical dos dois os aproximou ainda mais. Dadá e Sganzerla dividiam um passado no rádio, escolados na música popular brasileira. Noel era figura obrigatória nas conversas, e se o grande musical imaginado por Sganzerla, que narraria a história deste e de outros baluartes do samba, nunca se realizou, temos pelo menos o belo “Isto é Noel Rosa”, média-metragem de 1990. Este, Dadá não montou, mas certamente as “visitas guiadas” à Vila influenciaram bastante sua realização. Essas visitas renderam, no mínimo, ótimas histórias: — O Rogério levava umas pessoas diferentes lá pra Vila. Uma vez apareceu lá no Boteco do Souza com o Waly Salomão, completamente louco. O Waly com aquela boca enorme, gesticulando, recitando e interpretando os sambas todos. O Martinho da Vila teve uma crise de riso, e riu tanto que se mijou todo. Ouvir Dadá contando estes casos de sua vida deixa a impressão de que ele sempre esteve nos lugares certos na hora exata em que alguma coisa entrava para a História. Mas, a onda da “retomada”, este bonde Dadá não pegou. É uma politicagem que não lhe interessa, que vai contra os seus princípios. — Eu não vou fazer nunca um filme comportado — sentencia. Os tempos mudaram, de fato, e Dadá soube se adaptar a eles sem perder a ternura, jamais. De um lado, não consegue entender como a tecnologia transformou em montadores aquilo que chama de “apertadores de botão de computador que pensam que ritmo cinematográfico é bati-
“O Waly com aquela boca enorme, gesticulando, recitando e interpretando os sambas todos. O Martinho da Vila teve uma crise de riso, e riu tanto que se mijou todo.”
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cum de axé-music no liquidificador da linguagem televisiva”. Do outro, juntou-se a uma turma jovem que sabe apertar o botão sem esquecer de pensar naquilo que faz. Com a ajuda de seu filho André Sampaio, premiado curta-metragista e um dos diretores de “Conceição – Autor bom é autor morto”, vira-se bem na condição de cangaceiro da moviola que precisa se transformar, de uma hora para outra, em cangaceiro do mouse. — A dinâmica de trabalho com meu pai é bastante natural, e a minha presença ali do lado dele garante essa passagem do analógico para o digital — diz André. — Mas não existe essa coisa de “papai” e “filhinho” quando estamos na ilha de edição, não. Ele me esculhamba, vive dizendo “joga essa merda fora, isso aí não diz nada!”, e aí corta fora uma seqüência. O trabalho com Dadá parece ser mesmo assim, movido a paixões e arrebatamentos. O jornalista Luís Alberto Rocha Melo foi seu parceiro na realização dos dois únicos filmes que o montador dirigiu até aqui, além de “Memórias da Glória”, também o documentário “Geraldo José — O som bem barreira”, sobre o mais requisitado sonoplasta do audiovisual brasileiro.
— Ele, filmando, ficava numa alegria danada. — recorda Luís Alberto, que prepara neste momento uma cinebiografia de Severino Dadá. — Às vezes ele se emocionava mais com uma história do que o próprio depoente que a contava. Isso sem falar que nos trechos ficcionais do “Geraldo José”, onde Dadá prova que tem um talento extraordinário pra dirigir comédia. Um talento que esperamos ver materializado em breve. O projeto de cabeceira de Dadá, sua primeira incursão pela ficção, é uma comédia musical chamada “Oxente, my love”. O roteiro, escrito em parceria com André e Luís Alberto, conta a história de um pequeno cortiço localizado na sua querida Glória, que em determinado dia é tomado por dois pivetes fugindo da polícia. — Ali dentro vivem um ex-policial que tortura um boneco só para não perder a prática, uma vedete aposentada, a Dona Rosinha Fuqui-Fuqui, um negão intelectual militante do antigo Partidão, os filhos do policial, um viado e uma travesti que faz ponto na Augusto Severo. É o escracho total. π
No site: Severino Dadá em ação no cinema
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da panelinha O Zé diz que eu quase matei o cara, mas acho que não. Estávamos no Cu Velho, com Arquiduque e um gringo que havíamos trazido para conhecer aquele pedaço da Cidade Maravilhosa, à beira do Canal do Mangue e ao lado da passagem sob os trilhos da Central do Brasil, ao lado da Leopoldina, onde a Wenceslau Brás desemboca no Trevo das Forças Armadas, acho eu. Ali, vários botecos abertos 24 horas por dia recebiam uma fauna intergaláctica, incluindo malucos da ECO egressos de alguma loucura e ávidos por algumas saideiras. Pouco antes, no intrépido Fiat Elba do Arquiduque, enquanto escutávamos alguma coisa do Men At Work, vendemos ao gringo (detestava Men At Work) a idéia de que aquele era um programa imperdível. Dez minutos depois, enquanto discutíamos algo sobre o Mural Porco ou coisa assim, ele se evadia, puto da vida, em um daqueles táxis vindos da rodoviária (perto dali), onde deve ter deixado o couro para poder voltar à Zona Sul. Reza a lenda que Bagá, Marinho, Johnny e outros, em uma das suas mil madrugadas de libação, encontraram uma velhinha bebendo naquele antro e puseram-se a conjeturar sobre seus atributos sexuais. Não disseram quem texto: LUIZ BELLO ilustração: MARCELLO MONTEIRO comeu, mas o nome pegou. E no Cu Velho a conversa estava muito séria entre eu e o Zé (Arquiduque já se fora), enquanto o dia clareava, o trânsito vociferava e um esquálido bebum nos pedia qualquer coisa com insistência. A tática de ignorá-lo não funcionou, pelo contrário. O ralo cavanhaque e algo que já fora um blazer marrom davam a ele uma certa solenidade para continuar nos pedindo grana para mais uma. Solene, irado, clérigo, algo intimidatório e me catucando. Nada do que ele falava era inteligível e, aparentemente, fazia muito tempo que nem ele mesmo notava isso. A ressaca já começava a se misturar com o meu porre. O próprio Zé deu uma de suas peculiares transbordadas (ele não vomita) antes de retomar a discussão. Mais meia hora ouvindo o bebum e o meu saco também transbordou. Virei-me e lhe dei um empurrão, pelos ombros. Na verdade, toquei num fantasma, pois debaixo das roupas não havia quase nada que agüentasse um tranco. Mas a cabeça fez um ruído muito sólido, quase oco, ao bater no chão de cimento do Cu Velho, onde o corpo ficou estendido, mantendo um silêncio reconfortante. Em seguida, no maior cavalheirismo, o maître arrastou os restos do infeliz até a porta, para garantir que não mais fôssemos interrompidos. Não houve protestos de outros fregueses, terminamos o papo e a ressaca do dia seguinte não foi maior do que as outras, embora eu jamais vá me lembrar do que é que a gente estava falando. Praga do bebum.
CU VELHO
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casa 21
editora
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LA NÇ
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LA N Ç A M
O OUTRO LADO
DA RUA
texto: ROGÉRIO DURST fotos: PEDRO GARAVAGLIA
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Nem s贸 de restaurantes chiques e artistas globais vive a Dias Ferreira, um dos pontos mais badalados da Zona Sul do Rio.
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Situada
lá no finalzinho do bairro, de extrema-zonassul, do Leblon, entre as avenidas Ataulfo de Paiva e Bartolomeu Mitre, fica a Rua Dias Ferreira. A primeira via a ser aberta no bairro, no século XIX, como Rua do Sapé ou, sem segundas intenções, Caminho do Pau, é hoje endereço de comércio de luxo, passarela de artistas e acontecidos da vez e local de trabalho dos fotógrafos que os perseguem. Abriga 15 restaurantes da moda, incluindo quatro dos mais caros (no sentido de queridos, claro) japoneses da cidade. O caro leitor já pode ter ficado sabendo que o local é, segundo uma celebridade, “a roliúde carioca”. Mas certamente não sabe que a mesma rua era “o nosso cantinho” para o espanhol de Málaga Julio Miguez, de 82 anos, e sua esposa, brasileira e falecida há três anos, Maria. — A gente se conheceu aqui — lembra ele. — Ela era doméstica num dos prédios no início da rua, e eu tinha um botequim na Humberto de Campos. Seu Julio, até hoje morador da Dias Ferreira, conta que os dois viveram ali felizes 40 anos, desde uma época em que os movimentos de pescoço, para ver se a roupa está ajeitada, se alguém está olhando para você, para olhar para alguém famoso, ainda não eram marca registrada da rua. — Esse negócio de gente famosa não é novidade. Antigamente, viviam aqui pela rua o Vinicius, o Tom Jobim, o Carlinhos de Oliveira. Uma vez esteve em meu botequim, em 1968, o maior dos artistas brasileiros, meu conterrâneo Oscarito, que falou com todo mundo e deu autógrafos. O diferente hoje é a empáfia desses meninos que trabalham em novela. E este que vos digita nunca tinha, na vida real, ouvido alguém falar “empáfia”. Há algo de meio ridículo em alguém de camiseta colorida, bermuda estampada e sandálias andando cercado por dois caras enormes de terno escuro e gravata. É o que acha o Anderson, 18 anos e engraxate na Dias Ferreira desde os 10. — O que me garante aqui é a freguesia fixa
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Tem gente que a gente só sabe que é famoso por causa dos “armários” do lado. de quem trabalha na rua e alguns moradores. Artista está sempre cercado de segurança e nem dá pra chegar perto. Aliás, tem gente que a gente só sabe que é famoso por causa dos “armários” do lado. As meninas Ana Cláudia e Juliana, de, respectivamente, 5 e 4 anos, nunca reconheceram um artista na rua. Elas moram no Jardim de Alá e vão para a Dias Ferreira no fim de semana pedir esmola, mas o máximo que conseguem é mesmo uma quentinha, como a refeição de feijão, arroz, macarrão, farofa e frango, por R$ 6,00 no Embalo Bar, que esse repórter garantiu numa tarde de sábado. — A gente vê televisão só de tarde em bar e nunca viu ninguém que aparece lá. Atrás do balcão do Embalo, que funciona no número 105 da rua desde 1968, Seu Ivan serve uma porção de costelinha de porco para o freguês Agenor Nunes, que fala pelos cotovelos e diz freqüentar o bar desde sempre. Com 51 anos,
formação em Geografia, mas carreira de gerente de banco, ele diz que encontra as duas meninas na calçada praticamente todo sábado. — Elas nunca pedem dinheiro, e sim uma quentinha, que levam pra comer ali na Azevedo Marques. E quem paga é sempre alguém aqui no botequim, madame e artista nem olham. Agenor mora no Alto, na Aperana, num apartamento grande que foi dos pais. — O engraçado é que antigamente se vinha na Dias Ferreira, tomar uma Antarctica Pilsen no Embalo ou comer uma costeleta à mineira no (extinto restaurante) Final do Leblon, para fugir da muvuca do que a gente chamava de “esquina do ridículo” no Baixo. Sessão-nostalgia: ele fala do cruzamento de Ataulfo de Paiva e Aristides Espinola onde faziam ruidoso sucesso noite adentro nos anos 1980 o restaurante Real Astória, o bar Diagonal e a Pizzaria Guanabara. Agenor conclui que “agora a tal da muvuca é toda aqui.” Como já foi dito, ele fala pelos cotovelos: — Hoje no Leblon é só rua fechada com cancela e fotógrafo correndo atrás dos famosos de plantão. A única sensação de normalidade que eu tenho por aqui esses dias é ver o João Ubaldo de bermudão e chinelo de dedo lá no Tio Sam conversando com o Chico. Não, não é o Buarque e nem da Hollanda, e
sim o Francisco Simões, de Portugal, responsável pelo bar há 30 anos. E Agenor continua explicando que o Leblon era originalmente uma ilha, ou, em suas palavras, “uma restinga, um recife, uma pequena ilha”, cercada de água por mar, Lagoa e dois canais. E que já foi quilombo e sede da empresa de pesca de baleias do francês Charles Le Blond. Em que ordem ele só saberia algumas cervejas atrás. — Acho que o sonho das madames é no futuro tirar todo o aterro e ilhar isso aqui de novo. Só que o futuro já chegou na Dias Ferreira. No térreo do Edifício Dora funciona um complexo reunindo a Sapataria do Futuro, a Costura do Futuro e a Engraxataria do Futuro, que prometem solução imediata de alta tecnologia para seus problemas de roupa e calçado. Quem andar um pouco mais chega ao número 521 da mesma calçada onde fica o passado, o armarinho Mini Bazar Ltda, tocado por seu Joaquim de Jesus desde 1970. Dentro de sua discreta loja de uma porta, seu Joaquim não sentiu o tempo passar na Dias Ferreira. — Artista eu só vejo quando tem gravação de novela e tumultua a rua inteira. As mudanças ele só sentiu no movimento da loja: — Tá fraquinho, essas moças novas não sabem nem pregar um botão.
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Falar mal dos belos tipos faceiros que circulam pela rua parece ser um esporte local. Praticado por um funcionário de mercado que trabalha na Dias Ferreira, não quer ser identificado e a quem chamaremos doravante pelo codinome de Zé José. — Só tem dois mercados nessa rua, e se você escreve meu nome aí e alguém lê, eu levo esporro ou até demissão. Segundo Zé, que trabalha entregando compras, o maior problema da rua é a indolência do leblonense. — É engraçado que elas chegam aqui carregadas de bolsas de butique ou então com roupa de ginástica depois de pegarem peso na academia. Aí mandam entregar qualquer compra, mesmo que seja uma sacolinha de nada. Andar na rua com saco de mercado é coisa de pobre. Nem todo mundo reclama de carregar os pesos da rua mais sofisticada do Leblon. O Chico, “só Chico, sem sobrenome nem endereço, que quem precisa sabe onde me encontrar”, tem seu serviço de transportes, uma van que substituiu a kombi caindo aos pedaços, na área há mais de uma década.
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— Levo velhinhas pro teatro, pego adolescentes em festa de madrugada, o que for... O problema aqui é só pra encostar, tem sempre três filas de carros estacionados, duas do lado ímpar e uma do par. O engraçado é que nunca aparece nem guarda e nem guincho. Como tantos outros freqüentadores da área, o maior orgulho de Chico é sua carreira artística, que começou, e acabou, na obscura produção para televisão a cabo “Emmanuelle in Rio”, de 2003, assinada por um certo Kevin Alber. — Tinha acabado de comprar a van e passei duas semanas levando mulher boa de lá pra cá. Elas até trocavam de roupa na viatura, na maior cara-de-pau. Acabei participando de uma cena que é uma sessão de fotografia num barco que acaba na maior sacanagem, claro que não sobrou nada pra mim — diz batendo no barrigão. Para Chico, ver toda essa badalação sobre a Dias Ferreira é coisa estranha. — Estou sempre aqui e não vejo nada de tão diferente assim, é como se alguém que você conhecesse a vida inteira ficasse famoso na televisão. Nem tudo que se escreve sobre a rua parece estranho para ele. — Vi no jornal outro dia que aqui tem os melhores restaurantes da cidade e é verdade. O bolinho de aipim com carne moída lá do Jaime (no Bar Marisqueira) quando sai quentinho é o melhor que eu já comi. Há o que reclamar dessa rua podre de chique. Este repórter, por exemplo, em pleno cumprimento do dever, enfiou o pé num buraco numa ensolarada tarde de sábado, bem em frente ao Boteco Belmonte, e passou uma semana com o tornozelo imobilizado. Foi socorrido por um passante chamado Robson, vindo do Morro da Mangueira para fazer um serviço de encanamento na vizinhança. — Esquenta, não, professor, isso acontece. Chato é vir de longe pra cair num buraco no Leblon — disse enquanto ajudava o acidentado a se sentar num banquinho de esquina. Nada que uma tortinha, bem pequenininha, de R$ 10,00 no Garcia e Rodrigues não resolvesse. O repórter comeu a torta no táxi pensando nas palavras do Agenor:
— Tão tentando transformar isso aqui numa Barra mais perto e elegante. Afinal, a Dias Ferreira, apesar de todas as mudanças, ainda vale a pena? Quem responde é o Seu Julio Miguez, veteraníssimo da área. — Freqüento o La Mole quase desde que inaugurou — diz ele se referindo à tradicional rede de restaurantes carioca cuja primeira casa foi aberta na Rua Dias Ferreira em abril de 1958 e tem até placa comemorativa na calçada. — Outro dia minha filha mais nova me levou num japonês aqui, e eu nem achei ruim, só fiquei pensando qual o motivo de se pagar tanto por tão pouco e com tanta frescura. Não tem problema de as coisas mudarem, eu acho, só que ninguém pode te obrigar a mudar também. Depois que eu vendi o botequim e minha mulher morreu, fiquei pensando em voltar pra Málaga e deixar isso aqui. Nesses anos já fui duas vezes para a Europa, mas sempre voltei para os filhos, netos e amigos. Acabei decidindo que agora sou muito mais carioca do que espanhol. π
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conto
O AMARELO O
Amarelo pegou a peixeira e era enorme. Novinha, a lâmina brilhava mesmo naquele lugar onde o sol só entrava pelas beirolas. Só não brilhava mais que os olhos dele. Nunca tinha visto aquilo. Já vi doido trincado botar a cara pra polícia sozinho. Um contra vinte. Gritando e soltando pipoco pra todo lado. Mas igual ao do Amarelo, não. Eu não sou de peidar, mas recuei. Acho que foi isso que fez ele vir pra cima. Acho que eu também encarava quantos fosse, trepado ou não, se tivesse me acontecido o que se passou com ele naquela sala. Ele era sujeito quieto, não se metia com ninguém. Não tinha amigos, e ninguém na favela freqüentava a casa dele, que tava sempre com a porta fechada. Aliás, ele foi o primeiro que eu soube que tinha ar-condicionado em casa. Não bebia, não fumava e ia na igreja, a do padre, só no domingo de manhã. Foi numa manhã dessa que alguém viu que a Aparecida, única filha dele, já tinha botado peitinho. Na hora que ela ia e voltava da escola, ela tava sempre com o caderno na frente. Desde pequenininha que a gente queria ficar olhando para a Aparecida. Ela era muito, muito branca e parecia que tinha uma luz só em cima da cabeça da menina o tempo todo que fazia o cabelo dela brilhar. Eu pensava que era uma luz só dela mesmo. Era o único jeito de me explicar como só o cabelo dela ficava claro, brilhando daquele jeito, no meio de um monte de criança tudo igual. Acho que nós pequenininho sonhava com ela. Depois, já crescidos, a gente apostava quem ia dar um beijo na boca da Aparecida. Mas ela não deixava ninguém chegar perto. Era muito calada, igual ao pai. Só tinha uma colega, a Jéssica, com quem conversava o tem-
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texto: DIMMI AMORA ilustração: RADIOGRÁFICO
po todo. E elas não falavam com mais ninguém. Nem com as outras meninas na escola, nem na favela. Também a Jéssica era a única que o Amarelo deixava entrar na casa dele. Dizia que a menina era filha de gente decente. Mas o Careca, pai dela, tinha vacilado na favela e foi pra vala. Todo mundo achava que tinha sido os alemão. Mas o pessoal do contexto sabia que o patrão da época mandou passar ele porque era xisnove. Como ele foi parceiro do patrão quando garoto, ninguém falava disso. Até uns nove anos assim, a dona Ritinha ainda deixava ela ir para a rua de vez em quando com a Jéssica, mesmo contra a vontade do Amarelo. Mas isso acabou no dia que ele chegou do trampo e viu a menina olhando de longe o movimento da boca com a coleguinha. Ele agarrou a Aparecida pelos cabelos e foi gritando até em casa que não tinha criado filha pra ser mulher de bandido. — Quero você mulher de gente importante. Vagabundo, não! — berrava o Amarelo. Com o tempo, as roupas iam crescendo, e a Aparecida passou a usar um lenço pra tampar o cabelo que já nem era tão louro quanto na infância. O Amarelo chegou a matricular ela num cursinho de inglês que abriu na favela. A gente soube depois que ela tinha até computador em casa para aprender a mexer na Internet. E correu o boato de que o Amarelo pagaria escola particular pra filha. No fim daquele ano, duas meninas da sala dela estavam grávidas. As outras tinham uma vida normal: ficavam com um e outro nos bailes, sem contar a Pâmela, que a boca inteira tinha pas-
sado. A Jéssica tinha namorado firme do grupo jovem da igreja. E a Aparecida era a única bv da favela. Aquilo instigava os caras todos. Teve um maluco que botou o nome da peça de Cida. Uma vez um otário cheirou uma máquina de fotografar digital, e nós pegamos ela pra tirar uma foto da Aparecida na rua. Conseguiram um ângulo que dava para ver a batata da perna toda. Imprimiram a foto e colaram numa parede boca, do lado de um monte de foto de mulher pelada. Ela era a única vestida. E ninguém olhava para as outras. Era um desespero para todo mundo ver ela crescer linda daquele jeito e ninguém, ninguém, conseguir chegar nem perto. Se alguém se aproximava, ela continuava andando no mesmo passo e, sem mudar o ar sério do rosto, respondia a todas as pergunta. Mas nunca olhava no olho. De nenhum garoto. Já tinha neguinho querendo pegar ela em casa e levar pra boca pra esculachar. Diziam que tinha que fazer aquilo antes que viesse um playboy babaca e descabaçasse pra depois tirar onda com todo mundo na favela.
O patrão caiu num tiroteio com os verme pertinho do Natal. Os mais velhos não quiseram botar nenhum cria para gerenciar o negócio porque era todo mundo muito novo e escolheram um tal de Ditão pra ficar de frente. O cara chegou de outra favela, e a primeira ordem dele é que tinham que arrumar cinco casas pra ele na favela. E queria só casa boa. Era tudo pra mulher. Cinco é foda. Tava difícil pra gente arrumar. Tirar quem? Teve gente que reclamou na cadeia que ele tava pior que alemão. Levaram uma idéia, e o Ditão acabou ficando só com três casas. Deixou duas famílias no morro de onde ele veio. Todo mundo pensava por causa disso que ele colocaria o terror, mas o patrão acabou se mostrando um cara sangue. Deu um ritmo legal pra boca. Não esculachou ninguém da favela. Os moradores resolviam qualquer parada direto com ele, que até acabou com uns arranca-rabos antigos dando decisão em certas pessoas que ninguém tinha tido coragem de dar até ali. Uma das casas que arrumamos pro Ditão era a de um vizinho cachaceiro do Amarelo. O Pezinho tava sempre nas biroscas mesmo, e a gente deu uma idéia para ele ir pra um barraco menor que a gente mandou levantar perto da endola. Ele aceitou por um crédito em cachaça. Dizem que novo vizinho fez o Amarelo começar a procurar casa pelo morro. Mas ninguém tinha o dinheiro que ele queria pela dele, que era uma boa. O Amarelo era um mestre-de-obra caprichoso. Todo mundo conta que o Ditão nem gostava muito da mina que ele botou nesta casa. Só tinha trazido ela, que já estava gordinha, porque foi a primeira a dar um menor pra ele. Mas foi saber da história da Aparecida, e ele não saía mais de lá. Teve um tempo que ficava mais na casa que na boca, mesmo sendo ela um lugar não muito seguro. Ditão era pintoso. Nem chegava a ser moreno. Mais pra branco. Tinha quase um metro e oitenta e um rosto bem talhado. Mandava comprar as roupas em shopping, e o perfume dele chegava junto com a carga de farinha. Gostava de andar de calça e sem camisa para mostrar o peitoral malhado dos tempos que era vigilante. Foi assim
O Amarelo era um mestre de obra caprichoso.
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O Amarelo, que gritava que eu encontrei ele num início de tarde na varancomo um da da casa preferida. Tava também com uma glock louco, ficou na cintura. Eu fui levar um recado, mas ele nem ouviu. em silêncio. A Aparecida tava chegando naquela hora. Ele cumprimentou ela com um sorriso e ela fez um aceno com a cabeça, olhando com aquele jeito sério, sem mexer o lábio. O recado que eu fui dar era importante. Os alemão queriam invadir naquela noite. Depois que a Aparecida entrou, o Ditão desceu comigo e fomos montar um plano. Mesmo a gente sabendo da parada, foi foda segurar. Os caras tinham colado com os verme e o tiro comeu a noite toda. Eu, o Ditão e mais dois chegamos a ficar meia hora numa vala só se defendendo. Sorte nossa que tinha muito peidão do outro lado, e eles resolveram sair fora quando amanheceu. Passaram dois dias sem os cu vermelho voltar. A gente fez uns contatos por telefone e conseguimos comprar os vermi que eles tinham contratado. Depois que eles pegaram o arrego, o morro voltou a ficar tranqüilo. Eu tava com o Ditão na hora que ele saiu do chuveiro, pegou uma cerveja do freezer, abriu, colocou devagar no copo, deu uma golada e mandou eu ir buscar a Cida. Eu fiquei bolado. A parada não podia ser assim. Disse para ele que aquilo não era costume do morro, que só tinha tido cria como patrão até ele chegar, e que poderia pegar mal com os chefes. Ele respondeu seco, sem olhar pra mim, depois de mais um gole:
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— Faz o que eu tô mandando. O Amarelo não queria abrir a porta quando chegamos. Achou que era invasão. Quando eu disse quem era, ele abriu uma frestinha e perguntou o que eu queria. Eu disse que tinha que entrar pra falar com a Aparecida e ele mandou eu embora. Eu podia até tentar trocar uma idéia com ele, explicar a situação e que não tinha jeito, como eu pensei em falar com a Cida. Mas achei que não adiantaria. Engatilhei a pistola e dei um pé na porta que jogou o Amarelo longe. A dona Ritinha gritava chorando da porta do quarto, na frente da Aparecida, que mantinha o olhar de sempre. Ao me ver, ela saiu de trás da mãe e fez ela sentar. O pai gritava para ela ir para o quarto, mas a menina, em vez disso, ajudou ele a levantar. Eu lembro que ela segurou ele nos dois braços e falou só uma vez: — Eu vou. A mãe deu um berro e rebentou de chorar sem parar. O Amarelo, que gritava como um louco, ficou em silêncio. Foi perdendo as forças e caindo sozinho enquanto ela tentava segurar o pai pelo braço. Quando o Amarelo sentou na mesinha de centro, ela virou as costas para eles e saiu andando, com passos largos e a cabeça erguida, sem se incomodar com a multidão que já se aglomerava nas vielas, janelas e lajes ao redor. Sem entender nada, eu já me preparava para sair quando ouvi o grito do Amarelo vindo com a peixeira e o tal olhar que me paralisou. Por sorte eu não estava sozinho, e os irmãos queimaram o Amarelo quando ele já tava quase baixando a peixeira em mim. Eu fiquei com sangue dele no corpo todo, que lavei depois. Mas aquele olhar nunca saiu de mim, mesmo lavado com o sangue de um monte de outros que caíram nestas quebradas.
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SINFONIA DE
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BISCOITOS fotos: ERIC GARAULT
texto: ANNA AZEVEDO
A sala, quadrada, tem pé direito de quatro metros de altura e, à primeira vista, parece um cofre forte. Dentro dela, sacas e mais sacas em pilhas de tamanhos variados, com bom respiro no teto. E um pulsar de estalos, aqui e acolá, em andamentos intermitentes.
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A porta ficou entreaberta. O gato, lân-
guido, instala-se sobre uma das sacas, morninha. Logo é expulso. Felix é da casa. Mas os domínios do felino terminam naquela porta, entrada do depósito dos biscoitos Globo, a rosquinha de polvilho que caiu nas graças do carioca, galgando o altar dos ícones da cidade praia-Maracanã-engarrafamento: pontos-chave da logística de distribuição da mercadoria. E por falar no gato, os irmãos Ponce, proprietários das rosquinhas, tiveram astúcia digna do bichano. Em 1965 era inaugurada, no Rio de Janeiro, a TV Globo. Um ano depois e alguns anos antes de a marca Globo ser associada a um dos maiores negócios de comunicação do mundo, uma padaria em Botafogo registra a patente para produtos alimentícios. Hoje, seria um case de marketing analisado nas faculdades de administração. E recentemente serviu de modelo para o primeiro concorrente à altura do Globo: o Extra, que invadiu a praia dos Ponce disposto a dividir o Ibope com as famosas rosquinhas que nasceram na Record, uma panificação no bairro do Ipiranga, em São Paulo. Mas nada que ameace a liderança do Globo no mercado dos biscoitos de polvilho. Sucesso absoluto nos horários nobres das praias, dos engarrafamentos das vias expressas e do Maracanã, a marca, um boneco palito com um globo na cabeça, está na moda. Nas festinhas da Zona Sul, o biscoito é servido com toques de requinte, como em taças de
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Aqui, com o sol forte, as rosquinhas torravam mais um pouco, ficavam mais moreninhas e crocantes.
sorvete, e que em nada lembram aquele monte de farelo espalhado pelo rosto e que deixa de lembrança uma camada branca na roupa e que todo carioca que se preza já experimentou ao comer as tais rosquinhas. O logo também foi parar nas coleções de roupas de praias e em artigos de decoração assinados por designers descolados. Isso tudo sem os Biscoitos Globo jamais terem investido em publicidade e marketing ao longo de mais de 50 anos na cidade. Por outro lado, não cobram um tostão sequer para os licenciamentos: — Propaganda pra quê? Quer outdoor melhor do que os meninos com uns sacos de 70 por 90 centímetros andando de lá pra cá, todo dia, nos engarrafamentos da Linha Vermelha, Linha Amarela e Ponte Rio - Niterói? E o licenciamento é bom para nós, divulga. Mas também não assino papel algum — ensina Milton Ponce, espécie de relações públicas do grupo. E tudo começou em São Paulo. Os irmãos Milton, Jaime e João Ponce foram morar nos fundos de uma padaria no bairro do Ipiranga e, lá, aprenderam a receita. O ano era 1953. Em julho de 1955, acontece no Rio o 36º. Congresso Eucarístico Internacional e os vendedores do biscoito desceram a Via Dutra para tentar a sorte no, hoje, Aterro do Flamengo. Nunca venderam tanto. E foi sob o sol do Rio que perceberam o pulo do gato: aqui, com o sol forte, as rosquinhas torravam mais um pouco, ficavam mais moreninhas e crocantes. A embalagem de papel cristal permite que o biscoito respire, sem reter umidade, o que o deixaria com textura de velho.
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Diante dos fatos, o dono da padaria Record fez as malas e se mudou para o litoral carioca com a receita debaixo dos braços e acompanhado dos Ponce. Viraram sócios. Hoje, na padaria dos Ponce, associados ao “português” — como se referem, com graça, ao sócio — só se fabrica biscoitos de polvilho. No verão, filas se formam de madrugada em frente à pequena fábrica, na Rua do Senado, Centro da Cidade. Lá, 62 assadeiras a 200 graus Celsius despejam 40 rosquinhas, cada, em intervalos de 15 minutos. Não dá vazão: 200 senhas são distribuídas ainda antes de o sol raiar e cada vendedor pode levar, no máximo, 100 saquinhos. É claro que ali mesmo se forma um mercado negro de biscoitos Globo, que chegam a ser revendidos, para os retardatários, por 3 vezes o valor inicial, que é de R$ 0,50. E com uma marca de tanto valor como esta em mãos, será que os Ponce nunca ouviram o canto de alguma sereia? — Tenho até medo de receber proposta de compra da marca. Isto aqui é o futuro dos nossos filhos. Se a gente vende, como eles ficarão, com que estabilidade? — diz Milton. O negócio, segundo ele, é pequeno, mas rentável. “Deu pra criar os filhos”, resume. E o segredo da receita crocante? Ah, este, sim, revela com uma resposta decorada, mas no fundo sem revelar nada: “ingredientes frescos. Eles ficam mais crocantes”. Bem, a julgar pelos estalos que se ouve lá no depósito... π
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O CAOS ANDA SOBRE RODAS
texto: ALESSANDRO FERREIRA E CARLA ANDRADE charges: LEONARDO
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A analista de sistemas Carla Tavares não está entre os cariocas que não abrem mão da boemia. Apesar disso, as suas noites são sempre, digamos, animadas. Carla trabalha das 18h à meia-noite e, para não mofar à espera do ônibus, costuma sair correndo pela Avenida Presidente Vargas até a Central do Brasil, onde passa o 484 (Copacabana-Penha). A região é bastante perigosa, os assaltos são constantes. E sempre que Carla perde um ônibus tem de esperar mais de uma hora até que outro passe. Ela lembra que, algumas vezes, o coletivo passa lotado e toma a outra pista da avenida, deixando na mão ela e outros tantos passageiros. 31
chegar em casa. Podia usar o tempo que perco esperando ônibus fazendo outras coisas. Não é só quem mora em Ipanema que trabalha na Zona Sul — reclama. Carla é um dos milhões de moradores do Rio que sofrem diariamente com o caos que é o sistema de transporte coletivo da cidade. Um caos que, infelizmente, está longe de ter fim. Para uns, o setor é refém de empresários gananciosos, que prestam um péssimo serviço à população e que volta e meia são denunciados por irregularidades. Já outros, lembram que a concorrência do chamado transporte alternativo (as vans e Kombis que infestam as ruas da cidade) é desleal: afinal, os donos desses veículos roubam passageiros dos ônibus sem, no entanto, pagar impostos e oferecer passagens gratuitas. No meio disso tudo está o poder público, que pouco fez até hoje para resolver tamanho desgoverno. Enquanto isso, filas de ônibus praticamente vazios atravancam o trânsito na Zona Sul, e quem mora no subúrbio perde horas no ponto à espera de condução. Sem contar que a frota de veículos que circula em
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nossas ruas seria considerada ilegal em qualquer cidade civilizada do mundo: os ônibus daqui nada mais são do que uma carroceria montada sobre um chassi de caminhão, que não oferecem nem conforto nem segurança. Some-se a isso a falta de preparo e de educação dos motoristas, que acreditam que sinal vermelho foi feito para ser desrespeitado e que o passageiro é seu inimigo. O pior é que, numa cidade que há décadas cresce sem qualquer planejamento urbano de longo prazo e penaliza seus habitantes ao não oferecer um sistema de transporte ferroviário eficiente, o papel das empresas de ônibus é crucial: elas empregam mais de 40 mil pessoas, que trabalham para que os 7.532 veículos das empresas filiadas ao sindicato da categoria, o Rio Ônibus, transportem mais de 2,1 milhões de passageiros por dia, contra cerca de 400 mil nos trens da Supervia ou os 450 mil do metrô, que opera perto do limite de sua capacidade. Observa-se, com base em dados fornecidos pelo próprio Rio Ônibus, o acentuado declínio experimentado pelo setor, cujos resultados minguaram em proporção inversa aos investimentos feitos na ampliação do serviço. Um exemplo? A frota das empresas filiadas ao sindicato é, hoje, praticamente 60% maior do que era em 1987, quando havia 4.594 ônibus em circulação. Tal aumento da frota acompanhou o incremento do número de linhas, que eram 286, há 20 anos, e hoje são 966. Em contrapartida, a média mensal de passageiros transportados caiu 39%: de 105.627.537 para 64.660.198. Vale ressaltar que os números dizem respeito apenas aos passageiros pagantes, que são os que sustentam economicamente o serviço. De acordo com o vice-presidente do Rio Ônibus, Otacílio Monteiro, a queda no número de passageiros encontra explicação até nos avanços da vida moderna, que reduziram a necessidade de deslocamentos. — Vimos o crescimento da frota de carros particulares e a expansão dos serviços de telefonia. Ambos afetaram o setor. Antes o sujeito ia
Motoristas são obrigados a espremer 120 pessoas dentro da cada veículo
— O pior é que não existe outra maneira de
ao banco. Hoje faz transações bancárias pelo telefone ou via internet — argumenta, ressaltando que parte da queda no número de passageiros é também devida à sucessiva expansão da política de gratuidades. Segundo ele, 34% do total de passageiros transportados pelos ônibus não pagam passagem. Monteiro reconhece que a concorrência das vans e Kombis tenha potencial para, a longo prazo, exterminar as empresas de ônibus. Ele cita a Ilha do Governador e bairros da Zona Oeste como regiões em que a “morte” das empresas deverá ocorrer primeiro, dada a feroz concorrência. — Sem a regulamentação do poder público, o transporte alternativo, aos poucos, vai dominar toda a região metropolitana — diz ele, do alto de seus 16 anos como executivo do sindicato. — Na década de 60, aconteceu processo semelhante: as empresas estabelecidas na cidade até essa época sucumbiram ante a concorrência dos lotações, que eram, guardadas as proporções, as vans da
época — relembra Monteiro, ressaltando que a implantação da tarifa única na cidade, no início dos anos 90, favoreceu ainda mais o avanço de vans e Kombis, ao acabar com a possibilidade de as empresas oferecerem passagens mais baratas aos passageiros nas linhas menos rentáveis. O transporte coletivo é uma das atividades mais regulamentadas de que se tem notícia. Itinerário, frota, preço da passagem, tipo de veículo apropriado a cada linha, direito à gratuidade, treinamento dos profissionais, tudo é regulado, controlado, definido, detalhado e, dizem, fiscalizado pelas autoridades responsáveis. À Prefeitura cabe “organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, o transporte coletivo urbano”. No Rio, essas atribuições são da Subsecretaria de Transportes Urbanos (Subtu), ligada à Secretaria Municipal de Transportes. Para o secretário municipal de Transportes, Arolde de Oliveira, o sistema viário da cidade só pode ser manejado, hoje, de maneira integrada
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Vereadores não apresentam projetos para o setor
com as malhas de outros municípios da região metropolitana, que contribuem com boa parte do fluxo de passageiros que circulam nos ônibus municipais. — Parcerias com outras prefeituras e o governo do estado são a única saída para o gargalo do transporte de massa — diz ele, lembrando que a distribuição atual das linhas que cobrem o Rio é baseada em concessões datadas de 1958. O que permite absurdos como o que acontece em Realengo, do lado da Avenida Santa Cruz, que tem apenas uma linha de ônibus, a 393, ligando o bairro ao Centro. Os coletivos, que saem de Bangu e fazem ponto final perto do Palácio Gustavo Capanema, estão quase sempre cheios, não importa a hora. Segundo motoristas da linha — que pediram para não ser identificados —, em hora de rush eles são obrigados pelos donos da empresa a espremer até 120 pessoas dentro de cada veículo. Depois de 23h, eles simplesmente somem. Embora representantes da Prefeitura periodicamente venham a público, quando solicitados, para reiterar que os ônibus têm que manter frota mínima em circulação à noite, na prática qualquer passageiro sabe que, em muitas linhas, “se perder o último, só amanhã”. Apesar de as zonas Norte e Oeste da cidade serem contem-
pladas com o maior número de linhas (são 540 linhas regulares, contra 346 linhas com ponto final na Zona Sul e no Centro), não há dúvida de que os moradores dessas regiões têm menos alternativas de transporte público. Marilene Pacheco, moradora de Brás de Pina, conta que, depois de meia-noite, a possibilidade de pegar um ônibus no bairro é mínima. Também reclama da falta de opções: depois das 22:30h, ela precisa pegar outra condução via Avenida Brasil, atravessar uma passarela e cortar uma favela, a pé, para chegar a seu destino: — Na Zona Sul não é assim. Em Copacabana, tem ônibus a toda hora. Sei disso porque trabalhei lá por um tempo. Mudei de emprego e sofro com a falta de opções, principalmente na volta para casa. Otacílio Monteiro reconhece nesses horários um calcanhar-de-aquiles das empresas e afirma, categórico, que o subsídio público é fundamental na equação: — De fato, o transporte enfrenta problemas para ser viável durante a madrugada. O custo do ônibus rodando é o mesmo, mas em muitas linhas há apenas quatro ou cinco passageiros por viagem, o que as torna deficitárias. Nesse caso, só o subsídio resolve. Sabemos que o empresário brasileiro raramente sobrevive sem subsídios. Mas Arolde de Oliveira exclui esta possibilidade: — Da parte da secretaria, o que pode ser feito é aumentar a fiscalização para que as empresas cumpram o determinado em lei,
que é garantir o direito de ir e vir do cidadão. Estamos preparando operações de fiscalização para breve, mas reafirmo que só uma mudança mais profunda no sistema de transportes, que inclua também os trens e o metrô, poderá solucionar de vez esse problema. Subsídio às empresas, ao menos por enquanto, está fora de questão. Cabe aos passageiros rebolarem para não perder a condução. A secretária Luciana Moraes Antunes, moradora de Olaria, gosta de ir ao Centro ou à Zona Sul aos sábados, para encontrar amigos e se divertir, o que ocasionalmente deixa de fazer por falta de transporte. Luciana conta que, para chegar aos seus points favoritos, precisa sair cedo de casa e pegar um ônibus que a deixa longe de seu destino. A maior reclamação é com a volta, já que ela nunca sabe a que horas sua condução vai passar: — É chato sair com hora de voltar. Acabo não aproveitando. Depois de uma semana de trabalho, preciso me divertir. Se for pensar só na dificuldade de condução, não saio mais de casa. Acabo ficando na rua até o dia nascer. Para o deputado federal Edson Santos (PT), que exerceu cinco mandatos de vereador no Rio e conhece bem o setor — ele comprou brigas históricas contra as empresas nos anos 80 —, os problemas do transporte rodoviário começam na atuação deficiente do poder público.
— Como os governantes não tomam as iniciativas necessárias para a melhor regulação do sistema de transportes, as empresas acabam se auto-regulando, o que sem dúvida dá margem a abusos e desrespeito aos usuários — diz o parlamentar. Segundo Santos, a própria distribuição das linhas entre as empresas, sem licitação, é o maior entrave à racionalização global do sistema: — Se a prefeitura não licita as linhas, não há concessões, e sim permissões de exploração dos trajetos, dadas em caráter precário. Como conseqüência, temos casos em que as empresas simplesmente desistem de algumas linhas e as devolvem à prefeitura, sem que possam ser cobradas a cumprir sua obrigação, como ocorreria se houvesse um contrato de concessão, assinado após a licitação. Arolde de Oliveira diz que a prefeitura tem um plano de redesenho da malha de linhas de ônibus da cidade, que seria implantado por meio de licitações a partir de 2009, após o fim do prazo de concessões. Contudo, os empresários, amparados por decisões judiciais que lhes garantem a renovação dos contratos, vêm impondo barreiras à “faxina” no setor. — Essa questão terá que ser decidida politicamente, com um acordo entre empresas e poder público, ou então vai parar no Supremo Tribunal
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integração de todo o sistema. — Em Guarulhos (Grande São Paulo), por exemplo, a prefeitura implantou o projeto Orca, que autorizou empresários de ônibus a usarem vans nas linhas radiais, de menor movimento. Orca é a sigla para Operador Regional de Coletivo Autônomo, projeto criado em 2003 pela Secretaria de Estado dos Transportes Metropolitanos do governo paulista, visando a disciplinar a concorrência entre transportes regular e alternativo. Mas convém lembrar que volta e meia um exemplo bem-sucedido de fora é apresentado à população carioca como o salvador da pátria para o setor. Curitiba, por exemplo, já esteve muito em voga. Só que nada foi feito até hoje. Embora seja uma área tão sensível na vida dos cidadãos, não se nota nos políticos grande disposição para promover alterações profundas no sistema. Na maior parte do tempo, vereadores — e deputados estaduais, no caso do transporte intermunicipal — dedicam-se apenas a ampliar benefícios já existentes, como as gratuidades, sempre sem apontar a fonte de custeio das viagens que deixarão de ser pagas, o que contribui para onerar o sistema. Mesmo com as histórias de bastidores, que apontam para a existência de generosas doações de empresários de ônibus para campanhas políticas (a famosa “caixinha da Fetranspor”), são pouquíssimos os projetos realmente destinados a corrigir distorções do setor de transportes. Otacílio Monteiro garante que a “caixinha” é apenas folclore: — Nunca soube de nada a esse respeito, mas não sou executivo da Fetranspor. Então não posso garantir nada — esquiva-se. O poder legislativo, representado pela Câmara dos Vereadores, conta com uma comissão de transportes, cuja função é discutir os problemas e propor soluções para o transporte coletivo na cidade. Apesar das insistentes tentativas da Zé Pereira, o vereador Jorge Mauro, presidente da comissão, não retornou nenhum dos contatos feitos. O objetivo da entrevista era mostrar por quais iniciativas os vereadores buscam melhorar as condições do serviço de transporte público na cidade. Uma pesquisa no site da Câmara não apontou nenhum projeto em tramitação para o setor de transporte público. Em compensação, havia quatro proposições benefi-
Usuários também sofrem com assaltos
Federal — explica. Sobre o transporte alternativo, ele diz que haverá processo de licitação das linhas de vans e Kombis municipais, que comporão o chamado transporte complementar especial. Oliveira lembra que a prefeitura já avançou na questão, desde as primeiras autorizações concedidas a motoristas de lotadas pela antiga SMTU (atual Subtu). Enquanto isso, o cidadão que se vire. — O que preocupa os empresários é a concorrência das vans e das Kombis ilegais, que já foge da alçada da prefeitura, porque, como ilegalidade, passa a ser problema de polícia. A intensificação da repressão, por meio das operações do Departamento de Transportes Rodoviários, com apoio da PM e da Guarda Municipal, já vem sendo feita e conta com nosso apoio — diz o secretário. Edson Santos vê com preocupação o atual estágio do sistema de transportes na cidade, em que concorrência predatória, abundância de transporte alternativo ilegal e superposição de linhas poderão transformar irremediavelmente o nosso caos diário num inferno, num futuro não muito distante. — Há espaço para vans e Kombis, desde que de maneira ordenada e integrada aos ônibus, ao metrô e aos trens. Da maneira que está hoje, o sistema pode entrar em colapso, como já ocorreu em outros países. Se você for a Durban, na África do Sul, verá que as vans dominaram o transporte público, sem a atuação enérgica do poder público. Como resultado, vê-se gente pendurada em veículos velhos e superlotados, enquanto outros tentam embarcar. O Rio corre o risco de ir pelo mesmo caminho — avalia. Mesmo com a concorrência do transporte alternativo, o representante das empresas acredita no potencial do setor, desde que devidamente regulamentado pelo poder público. A implantação de corredores exclusivos para ônibus é uma medida aguardada com ansiedade pela categoria. — Parece que agora, com o T5 (corredor que ligará a Barra da Tijuca à Penha), a coisa vai andar. É necessário que se priorize o transporte público nesta cidade, e os ônibus são a alternativa mais viável, pelo menos no primeiro momento — diz Monteiro, ressaltando que a regulamentação do transporte alternativo deve ser feita visando à
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ciando o transporte alternativo, todas de autoria do mesmo vereador, aguardando apreciação nas comissões da Casa ou em plenário. Na opinião de Monteiro, pressões políticas influenciam negativamente qualquer discussão pública sobre transportes, ao favorecer a oposição entre ônibus e vans/Kombis, que em princípio deveriam caminhar para a integração. — Infelizmente, nosso setor não tem a atuação política que deveria ter, dado seu peso na economia da cidade e do estado — diz ele, fazendo questão de frisar que as empresas de ônibus não contam com a atuação de parlamentares para defender seus interesses. A segurança das viagens é outra fonte de preocupação para os usuários. Nem é para menos: segundo dados coletados pela Secretaria estadual de Segurança Pública, ocorreram 3.068 roubos em ônibus na capital entre janeiro e agosto. Monteiro reconhece a gravidade do problema e afirma que as empresas fazem sua parte, investindo em equipamentos de vigilância, como câmeras e sistemas de rastreamento dos veículos por satélite. Segundo ele, algumas empresas, como a Real, a Tijuquinha e as cinco companhias do grupo Breda, já utilizam as câmeras, e, num futuro próximo, todos os coletivos que rodam na cidade deverão estar equipados de maneira semelhante. As imagens geradas pelos sistemas das empresas ajudariam na montagem de bancos de dados, em parceria com o poder público, sobre crimes. É o que espera um motorista da linha 497 (Penha-Cosme Velho), que trabalha durante a madrugada e teme até se identificar. — Já vi muitas coisas na madrugada e nem
sempre boas. Tenho medo de estar na rua àquela hora da noite. Meu carro já foi assaltado algumas vezes e na hora tudo o que eu posso fazer é ficar quieto e colaborar. Esse pessoal sabe o trajeto, os horários e marca a cara da gente. Agradeço por estar vivo todos os dias — diz. Além do risco de ser assaltado, o surgimento dos ônibus não convencionais — em que não há cobrador — aumenta o medo de acidentes, causados por desatenção do motorista. Alguns casos recentes na cidade, incluindo vítimas fatais, levantaram uma onda de críticas ao enxugamento do quadro das empresas. Segundo Otacílio Monteiro, a função de cobrador tende mesmo a desaparecer: — Estamos caminhando para um cenário em que todo passageiro terá seu cartão eletrônico. Assim, para que cobrador? Arolde de Oliveira concorda: — O projeto de implantação da bilhetagem eletrônica prevê que as empresas reaproveitem os cobradores como motoristas dos novos coletivos. Creio que vem funcionando, porque ainda não soube de desemprego em massa no setor. Também estamos atentos aos casos de acidentes causados pela desatenção do motorista, ao dirigir e contar troco ao mesmo tempo. Monteiro diz que o Rio Ônibus está investindo na reciclagem profissional, o que diminuiria ou extinguiria o problema, que seria de orientação profissional. O sindicato fez parceria com a Fundação Getúlio Vargas, que já teria reciclado mais de cinco mil profissionais. Espera-se que também tenha sido ensinado aos motoristas que é preciso respeitar os sinais de trânsito. π
série
texto: FERNANDO GERHEIM ilustração: JOSÉ AGUIAR
URUBUCAMELÔ “QUE CHEIRO INOMINÁVEL É ESSE EM
QUE VEM DA BARRA DA TIJUCA?” O Urubucamelô sente a característica fricção no
estômago enquanto frui os cheiros que a cidade exala. Ele gira 360 graus na mão da estátua antes de decidir seu destino. “Iguarias putrefatas, manjares purulentos, provarei os mais refinados paladares da experiência humana! Os superpoderes abriram um novo universo olfativo e mudaram minha percepção do mundo. Eu sinto o cheiro das idéias. Toda matéria tem cheiro. Logo toda matéria é uma idéia odorífera.” Nem o McDonald’s incita tanto a glândula pituitária no interior de suas fossas nasais quanto o odor que exsuda de algum lugar a oeste. “Que cheiro inominável é esse que vem da Barra da Tijuca?” Ele levanta vôo. “Com essa onda de ar quente, vou chegar lá rapidinho!” Numa ilha da Costa Verde, o empresário da Chrysler Corporation bebe caipirinha diet numa espreguiçadeira. Ele pergunta pra Bronzeada: “Você não tem medo de câncer de pele?” De biquíni fio-dental, com sua fuselagem modelada em academia de ginástica estirada na toalha sob o Sol do meio-dia, ela responde: “Não. Eu tiro minha força do buraco na camada de ozônio.” “Eu adorei essa mulher que vocês arrumaram!” O empresário sorri pro publicitário a seu lado. “Nós só trabalhamos com o melhor! He he he!” “Eu fui superexposta a raios ultravioleta! É de que sua indústria?” “Automóveis. A Chrysler comprou cotas de
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carbono. Vamos instalar indústrias no Brasil. Queremos ajudar os países em desenvolvimento a gerar empregos.” “É bom que vai aumentar o buraco. Eu tô achando o Sol tão fraquinho!” A sombra de uma nuvem escurece a praia. “Ah, o Sol...”, ela lamenta, angustiada. “E se eu fosse fazer umas compras?” O helicóptero decola pro Rio de Janeiro. “O cheiro vem daquele shopping com a réplica da Estátua da Liberdade.” O Urubucamelô pousa. “Mas aqui é tudo limpo, colorido e cheiroso.” Passeando intrigado entre as lojas, ele sente seu organismo transformar inexplicavelmente todos aqueles itens de consumo novinhos expostos nas vitrines em algum tipo de nutriente. Olhar o alimenta. “Hei, que roupa legal!” Diz um consumidor. Ele se afasta com seu elogiado disfarce secreto sem se sentir inteiramente saciado. Na base do monumento, um magricela baixinho com cara de nordestino e o dedo pronto pra apertar o botão do detonador preso na cintura sua de nervoso. “Um homem-bomba!” “Eu sou o Terror Tremor. E você?” “Um mutante com os superpoderes dos urubus. Não quero morrer com você.” “Vou matar e morrer por Alá, filho da Jahiliyyah! Em todo o mundo, muitos, como eu, estão deixando a democracia capitalista pra se tornarem mártires do Islã. Disse isso no vídeo que mandei pro As-Sahab. Amanhã estarei famoso!” Curiosos se aproximam.
“Eu transformo podridão em proteína, você é o vômito da podridão. A bulimia simbólica do mundo da imagem.” A Bronzeada também se aproxima. “É uma filmagem?” Ela larga as sacolas, tira a roupa e, de biquíni fio-dental, vai em direção ao monumento. O Terror Tremor olha pra ela com cobiça; o Urubucamelô aspira seu cheiro inebriante. “Eu tomei tanto sol que fiquei com o corpo blindado de bronze.” “Eu comi comida podre e ganhei os superpoderes dos urubus.” “Somos dois penetras no panteão dos mitos!” “Bota a burka, infiel!” Revolta-se o Terror Tremor. “Sorria, você está na Barra! Eu sou melhor do que 72 virgens no paraíso.” A imprensa chega correndo. O Terror Tremor discursa: “O Estado de Emergência é a condição do mundo, não a exceção. Não temos cidadania nem direitos, muito menos liberdade individual. Vem matar e morrer comigo por Alá, urubu mutante!” A Bronzeada sorri pros fotógrafos. “Xis!” “Pera lá, eu sou de santo! Moisés e Cristo, aqueles monoteístas geradores de Utopias, dilataram a Fé e o Império com sua Guerra Santa e humilharam os deuses afro. Agora a al-Quaeda anuncia o apocalipse do Império. A Emoção WASP é o Orgulho Bélico. Malditas Sombras Fanáticas!” A polícia chega apontando as armas. O Terror Tremor diz pro monumento. “Cópia da cópia, duas vezes Shirk!” “Olha lá o negão!”, um policial atira. A Bronzeada se joga na frente do Urubucamelô, interceptando a bala, que ricocheteia em sua pele metálica. Ela rola pra longe; o Urubucamelô levanta vôo; o Terror Tremor aperta o botão, detonando-se. A Estátua da Liberdade explode.
Fotógrafos registram o Urubucamelô fugir voando e o monumento explodindo ao fundo. A manchete amanhece nas bancas: “Terrorista explode réplica da Estátua da Liberdade e foge voando.” A polícia espalha cartazes com a foto do nosso herói: “PROCURA-SE: VIVO OU MORTO R$ 10.000” Foragido na mão do Cristo, sentindo aquela insaciável fricção no estômago, o Urubucamelô fareja a cidade: “O cheiro inominável vinha dela... Ela salvou minha vida! A fome que eu sinto só a Bronzeada pode matar.”
NO PRÓXIMO EPISÓDIO: CONSEGUIRÁ O URUBUCAMELÔ COMER A BRONZEADA?
Assista à primeira aventura do Urubucamelô em www.revistazepereira.com.br
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foto: Anna Azevedo
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A MARCHA SEM VOLTA DOS CINECLUBES texto: DENISE LOPES
Mate com Angu, Beco do Rato, Buraco do Getúlio, Subúrbio em Transe, Cachaça Cinema Clube, CineGostoso... Nomes que nem sempre lembram a tradição de contestação e resistência do movimento cineclubista dos anos 60/70 batizam os principais pontos da atividade hoje no Rio, de Japeri ao Centro, do Cosme Velho à Região dos Lagos. Segundo estimativa da Associação de Cineclubes do Rio de Janeiro (Ascine), eles são mais de 50 em todo o estado, e reúnem, em média, por mês, mais de 4.000 pessoas em suas sessões. Só filiados à entidade, criada há um ano, havia, até o fechamento desta edição, 34 cineclubes.
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— As exibições sistemáticas de filmes são
muitas, crescem exponencialmente, e não temos informações sobre todas. Se bobear, durmo e acordo amanhã com mais dois ou três associados. O número de pessoas que nos procuram em busca de informação é enorme — diz Rodrigo Bouillet, diretor-geral da Ascine. Na era digital, em que o DVD substitui, na maioria das vezes, o tradicional projetor de 16mm, a maior regra neste circuito alternativo audiovisual, que não compactua com o gosto vigente dos cinemas comerciais, parece ser, exatamente, não ter regra. Um galpão rodeado de barraquinhas de comidas e bebidas, em Duque de Caxias, onde a projeção acaba numa alucinada festa, com direito a trenzinhos funk e gente dormindo pelo chão; uma varanda de bar, em Nova Iguaçu, escurecida por cortinas pretas amarradas com barbante, onde basta um intervalo para adentrarem homens com pernas de pau, cuspidores de fogo, repentistas, poetas e toda sorte de artistas; ou mesmo um beco, no Centro, outrora histórico por ter abrigado personagens como Manuel Bandeira, Chiquinha Gonzaga e Madame Satã, ocupado por mesas, garrafas de cerveja e música. Por ali, são exibidos as últimas fornadas de curtas periféricos ou não, pré-históricos e poucos conhecidos, undergrounds, como Nilson Primitivo e Edgard Navarro, filmes experimentais, clássicos... produções raras que até há bem pouco tempo não tinham onde serem vistas.
A atividade cresceu tanto no país de uns três anos para cá que acaba de ser reconhecida institucionalmente. Uma instrução normativa da Agência Nacional do Cinema (Ancine) definiu, no início do mês, o que é um cineclube e estabeleceu normas para seu registro facultativo. A regulamentação passou por uma consulta pública e dá direito, a partir de agora, a que os cineclubes possam tirar o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) sem precisarem mais recorrer ao subterfúgio da utilização do registro de ONGs e projetos que apóiam suas exibições. Um modelo de formulário para o pedido do “Certificado de Registro de Cineclube” já está disponível, inclusive, no site da Ancine (www.ancine.gov.br). Luta antiga de quem milita na área, a regulamentação possibilita aos cineclubes captarem dinheiro através das leis de incentivo, buscarem patrocínios junto a empresas e terem editais de fomento e apoios governamentais direcionados às suas atividades. Uma verdadeira revolução no movimento cineclubista. De prática social-fantasma a sociedades civis sem fins lucrativos, voltadas para a exibição de obras audiovisuais nacionais e estrangeiras e para a realização de conferências, cursos e atividades afins, os cineclubes atraem cada vez mais atenção num “mercado” audiovisual carente de espaços para exibição. O Cine Santa, em Santa Teresa, que começou como cineclube na Igreja Anglicana do bairro, é um exemplo de como a atividade poderá evoluir a partir da regulamentação.
A regulamentação vai possibilitar aos cineclubes captarem nas leis de incentivo, buscarem patrocínios junto a empresas e terem editais de fomento e apoios governamentais
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Mas, apesar do visível upgrade, há quem critique a emancipação. — Temos medo da burocratização. Medo do dinheiro. O Mate é um movimento utópico. Tomávamos conta do bar, mas abrimos mão. Ele podia ser uma fonte de recursos. A Lira do Ouro deixou que a gente o administrasse nas noites de exibição, mas não deu. Não conseguíamos fechar as contas. No final da noite, todo mundo doidão, tomávamos era prejuízo — diz Igor Barradas, um dos responsáveis pelo Mate com Angu, cineclube que funciona toda última quarta-feira do mês, num galpão da Sociedade Artística e Musical Lira do Ouro, no Centro de Duque de Caxias. — Essa é uma discussão interminável, mas a gente teme que isso engesse o movimento. Achamos que quanto menos oficial melhor. No último Festival do Rio, um debate intitulado “Reconhecimento institucional do cineclubismo”, com representantes do Conselho Nacional de Cineclubes Brasileiros (CNC), Federação Internacional de Cine Clubes (FICC) e Associação
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Brasileira de Documentaristas e Curtametragistas (ABD&C) discutiu a idéia de auto-sustentabilidade dos cineclubes e agitou a questão. No Buraco do Getúlio, criado em julho de 2006, que funciona toda segunda segunda-feira do mês no bar do Ananias, a palavra de ordem também é não enquadrar, apesar de a regulamentação ser vista com bons olhos. Nos intervalos dos filmes, grupos de Nova Iguaçu, como Desmaio Público, de poesia, e Movimento Alternativo de Cultura e Arte (Maca) fazem intervenções culturais. Oriundo do trabalho da Escola Popular de Comunicação e Crítica da Maré, tem apoio do Observatório de Favelas e prioriza o cinema experimental e a videoarte. — Na maioria das vezes não temos tema. A idéia surgiu num bar, e não queremos perder esse clima. Mas, neste mês de outubro, as crianças terão vez, com a projeção de animações — diz Luana Pinheiro, 21 anos, que junto com Diego Bion, toca o Buraco, nome da passagem subterrânea da linha férrea na Avenida Getúlio de Moura, em frente ao Ananias, onde acontecem as sessões. Controvérsias à parte, o fato é que paralelamente ao crescimento do movimento e ao desejo de legalização, a atividade começa a sentir pressão de órgãos oficiais, como o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), que começou a cobrar pelo direito autoral das músicas executadas nos filmes exibidos nos cineclubes. — Nem os exibidores convencionais, os Cinemarks da vida, pagam, mas não tenho como fazer com que todos os cineclubes rasguem os boletos de cobrança. Não temos departamentos jurídicos e muitas vezes eles cobram direto da instituição que abriga o movimento, como aconteceu na Casa de Rui Barbosa, em Botafogo, onde funciona o cineclube da ABD&C. Isso cria constrangimentos para uma atividade que vive de parcerias — diz Rodrigo. A polêmica, que promete inflar, já está agendada para a 17ª edição do Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro, próximo Curta Cinema, que acontece de 25 de outubro a 4 de novembro, na cidade. Multiplicadores de público, formadores de opinião e guardiões
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aumentarão seus números de espectadores e paralelamente a probabilidade de aumentarem seus Prêmios Adicionais de Renda, verba repassada pela Ancine aos filmes nacionais de maiores bilheterias. A Ascine, gestada no encontro de cineclubes realizado no Festival de Cinema de Brasília de 2003, evento responsável em grande parte pelo crescimento da atividade no país, gerencia a distribuição dos mais de 3,5 mil bilhetes doados pela Riofilme, que mês passado acabaram rapidamente.
A preferência é por curtas brasileiros que contribuam para a renovação da linguagem, busquem alguma ousadia e possam dialogar entre si.
Cachaça, mate e angu
Só o Cachaça Cinema Clube, um dos mais antigos cineclubes do Rio, que completou cinco anos em agosto, leva a cada edição cerca de 500 espectadores ao Odeon, no Centro. — Passamos praticamente de 2003 a 2006 com um público de 800 pessoas. Muita gente ficava do lado de fora. Hoje deu uma acalmada e foi bom. Não queríamos status de festa. Nosso objetivo é valorizar os filmes — diz Lis Kogan, que como seus três parceiros, Karen Black, João Mors e Débora Butruce, é ex-estudante de cinema da UFF. — Sobrevivemos à base de apoios, do Odeon, da Gráfica Alves, da Cachaça
foto: Úrsula Nery
Mate com angu: sessão termina em trenzinho funk
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foto: Mazé Mixo
da chamada “diversidade cultural”, os cineclubes são vistos como poderosos termômetros e difusores de obras, em locais abandonados pelo circuito tradicional. Pensando nisso, a Riofilme (distribuidora de cinema da prefeitura do Rio) acaba de assinar acordo com a Ascine para ceder gratuitamente seus lançamentos, tão logo as estréias comerciais aconteçam, para os cineclubes. Em especial, para os da Baixada Fluminense. Filmes como “500 Almas”, de Joel Pizzini, “As tentações do irmão Sebastião”, de José Araújo, e “Conceição”, criação coletiva dos alunos do Departamento de Cinema da Universidade Federal Fluminense (UFF), já cumpriram um périplo no último mês por locais onde jamais seriam vistos. Os próximos a rodarem serão “Mestre Bimba — A capoeira iluminada”, de Luiz Fernando Goulart, e “Brasileirinho”, de Mika Kaurismäki. Os cineclubes de Japeri, Caxias, Mesquita, Vila Isabel e Lapa formam o primeiro circuito Ascine/Riofilme. Preocupada em dimensionar esse novo circuito, a Riofilme criou também o “bilhete cineclubista”. Com ele, os cineclubes podem contabilizar seus adeptos, e a Riofilme, legitimar seus números, como já faz nas exibições nas lonas culturais. Assim, o “mercado” cineclubista terá uma avaliação exata de seu público, e os filmes nacionais, lançados pela distribuidora carioca,
Velha Província e do bar Belmonte, que nos dá a batida de gengibre. Não temos nenhum patrocinador. A preferência é por curtas brasileiros que contribuam para a renovação da linguagem, busquem alguma ousadia e possam dialogar entre si. As temáticas são diversas e contemporâneas, mas podem incluir curtas da década de 20, precursores dos cineclubes na época, como “Maluco e Mágico” (1927), de William Shoucair, cinejornais, como “Rossi Actualidades”, de 1926, ou títulos como “Filme pornográfico”, de autor desconhecido. Único que cobra ingresso do circuito Ascine, R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia), o Cachaça, como outros cineclubes, tem prêmio e realiza produções coletivas, como “Acossada” (2007), feita em parceria com a produtora Cineclube Pela Madrugada, do Humaitá. Em novembro passado, foi responsável pela seleção de 30 curtas para a mostra Foco Brasil dentro do Interfilm Berlin, um dos maiores festivais de curtas do mundo. — Foi a maior responsabilidade, mas as sessões brasileiras foram bem acolhidas — conta Lis. Com cinco anos também de existência, o Mate com Angu tem mais de 15 curtas coletivos realizados e o programa “Angu TV”, só com questões urgentes da cidade. Seu idealizador, Marcio Bertoni, soldador de submarinos da Marinha, largou a farda e está hoje trabalhando numa TV, na Venezuela. O Mate, que forma gente como Bertoni, nasceu na Fundação Educacional de Duque de Caxias (Feuduc), como uma mostra de História. — Nossa primeira exibição foi para ninguém, no Campus da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), em Caxias. Começamos, então, a “exibir” os filmes pelo rádio. Chamávamos de “cinema cego”. O filme era projetado no auditório e o som ia pelos alto-falantes para todo o campus. Ao final, fazíamos debates — conta Igor. Buraco do Getúlio: circo e circo para o povo Hoje, o Mate é sucesso total. Além dos filmes, as sessões têm música, poesia, performance, provocações estéticas, grafismos, teatro... Mas o que faz o local fever mesmo é a festa com DJ ao final. O nome vem da merenda servida no passado numa escola da região. — Todo mundo pergunta se a gente tem essa combinação aqui. Um dia conseguiremos verba para montar o cardápio — brinca Igor. Mas o que mais espanta no Mate é o gosto dos espectadores, que votam nos melhores filmes, na última sessão do ano. — Aqui sempre ganha o filme mais diferente mesmo. “Fernando José, o cantor das multidões”, do Felipe Reynaud, feito na Estácio (Universidade Estácio de Sá), ganhou o prêmio do públi-
“O filme era projetado no auditório e o som ia pelos alto-falantes para todo o campus. Ao final, fazíamos debates”
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co, e “Dominação bizarra”, do Matias Maxx e Zé Colméia, ficou com o Angu de Ouro, sem nunca ter sido aceito num festival. A gente não sabe por que gosta, mas essa possibilidade de nos refrescar do que rola por aí nos agrada. Caxias é um município muito reprimido, tem estigma de antro de bandido, esquadrão da morte, Tenório Cavalcanti, foi área de segurança nacional, sofreu tentativas de guerrilhas, é visto como cidade-dormitório, sinônimo de miséria... se a gente libera essa válvula através da cultura, a coisa explode. É por isso que o Mate fica lotado — explica Igor. O estilo Mate contagia outras iniciativas próximas. No Sesc de São João de Meriti, o teatro de 350 lugares fica lotado a cada sessão do Cinema Com Batuque. Além dos filmes, a apresentação de MCs deixa gente do lado de fora circulando pelos corredores apertados. — São como as matinês dos anos 50 — conta Igor. No Cine Guandu, em Japeri, a idéia do cineclube partiu de um curso de formação em vídeo para adolescentes. — Quem comanda lá é o Pablo (Cunha), um maluco que apareceu do nada, se formou em arte e foi dar aula em Japeri. Formou um curso democrático de fazer filme com máquina fotográfica e edição em Movie Maker (um programa de computador bem simples), numa sala subocupada, montou o cineclube e já tem dez filmes realizados — conta Igor.
— Queria me apropriar de tecnologias novas capazes de construir outras formas de pensamento e de fazer intervenções no social. Filmávamos de cinco em cinco minutos, descarregávamos e voltávamos. Tripé é cabo de vassoura. Grua, uma armação de madeira, que sobe três metros — diz Pablo. Ramos, Mesquita, Meriti, Tijuca, Lapa, Centro, Vila Isabel, Botafogo, Urca, Cosme Velho, Rio Comprido, Flamengo... por todo Grande Rio pipocam iniciativas como a de Pablo, Igor e Lis. A Companhia de Filmes Baratos, de Marcelo Yuka, mantém o Cine-Prisão, com exibição de filmes para os detentos da delegacia de Nova Iguaçu. O Subúrbio Em Transe, em Vista Alegre, um dos caçulas da Ascine, também ataca de programação alternativa. Mas há cineclubes voltados para a exibição de clássicos, documentários e até mesmo “cinemão”. O movimento se espalha também pelo interior e pela Região dos Lagos. O Cinema Na Rua, de Rio das Ostras, ajudou na organização de um encontro da atividade no último mês, em Cabo Frio, onde foram mapeados outros grupos. Só em Niterói, há quatro cineclubes com atividades regulares em operação. Tanta movimentação prova que interesse pelo audiovisual é o que não falta no Rio. Com a chegada da regulamentação do cineclube e as crescentes facilidades da era digital, a tendência é de que a atividade cresça ainda mais. — Não tem volta. Cineclube é coisa novidadeira. Não pára, não — atesta Rodrigo. π
Beco do rato: chorinho, cerveja e cinema
foto: MICHAEL ENDE
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poesia
ADRIANA NOLASCO
Então esse dia já começa. E é só noite. Um bando de malucos, dos mais saudáveis que conheço, se reúne. E eu aqui a começar alguma coisa que nem conheço. Recomeço. Coragem. Às vezes parece que não faz a menor diferença, mas que diferença há de se fazer? Conhecer. Tá esquisito escrever. Igual. É o sinal que o teclado ofereceu. Vozes vêm da sala. Que conforto ver o pensamento. Nubladas lembranças. É no masculino que se diz, embora seja feminino. Tudo ao mesmo tempo agora. Balela, traquitana irresistível, audácia da filombeta. Fui. Criança. Sou. Embora. Não saiba. Quem. Tesão da discrepância. O discernimento. Incrível e sozinho. Falta da mesma mente. Entende. Sua mãe não lhe disse. A que vim. Afinal. Barriga de história. Nula presença. Louca crispada. Enfim. Dura e realidade. Linda em que se vê. Vazia em que se sente. Veste a força motriz. Explode cuspida, densa na turbina. Sua nudez é ridícula. Fonte dura de marfim. Minha obra é tentar narrar com interrupções. Comprar comida. Fazer comida. Beber. Acordar. Trepar. Amar. Caps lock. Criar. Pagar conta. Quase sempre. Acreditar. Que tem um buraco no fim do túnel. E que existe um veículo que te leva. Você precisa descobrir qual é o seu. No momento em que me encontro. Sibilam e gritam diferentemente. Idiomas concretos. Sussurros expostos de experimentos. A correção idiomática gramatical que me obriga regras. Desfúteis. Inúteis. O pré dos fixos. Os melanócitos incrédulos. Me tragam objetos! Lindos de fora. Com rugas. Que hora. Passei daquela ponte ininterrupta. Em que tempo te encontro? Rock’in’roll will never die. Minha sonoridade importa. Você me inspira e que transpiração não seja clichê. De mente sem espaço. Ampla, duplex, cobertura. Sem ser na Barra. Que me odeie e me retire. Livre. Vomito tudo que não sou.
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fotos: RATÃO DINIZ texto: MARINA GONÇALVES
O OLHAR FOTOGRÁFICO DA MARÉ 48
MÃE foto da esquerda: estrada para Carnaubeira da Penha, no sertão de Pernambuco, na altura deSerra Talhada foto da direita: Parque Maré (onde ele mora)
Ratão Diniz, revelado na Escola de Fotógrafos Populares, do Observatório de Favelas, mostra um outro olhar sobre a periferia.
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ARQUITETURA foto grande: cidade de Vazante, no Sert達o de Pernambuco foto menor: um beco na favela Nova Holanda
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Há três anos, quando ingressou na Escola de Fotógrafos Populares, do Observatório de Favelas, Ratão Diniz não imaginaria que em tão pouco tempo de profissão teria a oportunidade de conhecer o Nordeste graças à fotografia. Morador do Parque Maré, uma das muitas comunidades do Complexo da Maré, ele conheceu a escola por meio de seu irmão, em 2004. De lá pra cá, participou de algumas oficinas, foi monitor da Escola Popular de Comunicação Crítica, até ser convidado para documentar o projeto Revelando os Brasis, percorrendo com sua máquina diversas cidades do interior nordestino. — Sempre tive um interesse específico pela fotografia documental. Mas a escola mudou minha forma de olhar o outro: detalhes que antes passavam despercebidos agora são vistos com o olhar de um fotógrafo. Assim, passei a enxergar uma outra favela, uma outra periferia. E de uma maneira que só nós vemos. Um dos detalhes descobertos em sua primeira viagem de trabalho fala das semelhanças entre a periferia das grandes metrópoles e as cidades do interior. Foram dois meses — junho e julho — que o ensinaram a ver o subúrbio como uma grande cidade pequena. A relação de informalidade entre vizinhos, que se conhecem pelo nome, a confiança que existe entre seus moradores, ao deixar, por exemplo, a chave de casa com o velho amigo da rua, é a relação que Ratão já conhecia há tempos no Parque Maré. — Os moradores das periferias, em sua maioria, vieram de pequenas cidades do interior. As favelas são formadas por essas pessoas, e seus filhos e netos, que aprenderam as características de lá — conta. Durante a viagem o fotógrafo percorreu, por 59 dias, cidades do Nordeste de até 20 mil habitantes. O Revelando os Brasis é um projeto da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, em parceria com o Instituto Marlin Azul, que tem como objetivo documentar em vídeo histórias de moradores de pequenos municípios do país. O trabalho de Ratão era percorrer as 20 cidades do Nordeste registrando as exibições dos filmes. A pedido da Zé Pereira, o fotógrafo selecionou imagens que fez de favelas cariocas e do Nordeste, formando os pares temáticos que ilustram esta reportagem.
“A escola mudou minha forma de olhar o outro: detalhes que antes passavam despercebidos agora são vistos com o olhar de um fotógrafo.”
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Conhecer o Nordeste e registrar suas periferias já era um dos muitos projetos de Ratão. Há dois anos ele vem tentando patrocínio para fotografar o fervor cultural de Pernambuco. — Estive lá no ano passado, de carona no ônibus de participantes do projeto Musicultura, da UFRJ, que foram para o II Fórum Social Brasileiro. Como não consegui entrar em muitas favelas, acabei documentando moradores da periferia que estavam no fórum. A partir daí, surgiu a idéia de fotografar as manifestações culturais nas periferias. Sem conseguir levar o projeto a Pernambuco, ele começou a documentar a periferia carioca, como alunos do Centro Cultural Pastinha e um encontro de jongueiros em Valença. A Folia de Reis nos morros da Formiga e Dona Marta, e o Jongo da Serrinha, em Madureira, são os próximos. João Roberto Ripper, coordenador da Escola de Fotógrafos Populares, é o grande mestre de Ratão. Quando teve contato com as imagens de Ripper — que é o criador do extinto projeto Imagens da Terra — no Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré, o Ratão percebeu que era isso que queria fazer da vida. — Sempre tive muita admiração por ele e pelos seus trabalhos ligados à questão agrária — conta Ratão. A forma de se aproximar dos fotografados, sempre explicando o porquê da foto, é uma das coisas que Ratão aprendeu com Ripper. E também graças ao aprendizado de registrar, na maioria das vezes, famílias populares. — Na viagem, em uma estrada para Carnaubeira da Penha, no sertão de Pernambuco, encontramos uma família na beira da estrada. Passamos direto, mas, depois de 200 metros, voltamos. Nos aproximamos e vimos que todos nos olhavam com olhar assustado. Parei, expliquei nosso projeto e disse que a imagem da família, na beira da estrada, representava o que queríamos registrar por aquelas cidades. A princípio, eles não nos deixaram fazer a foto. Mostrei mais uma vez nossa proposta, e uma das mães, com a filha no colo, deixou a porta aberta para que eu entrasse na intimidade delas. Nossa imagem é uma coisa nossa, muito íntima, não gosto de sair entrando assim na vida das pessoas. π
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OLHARES foto grande: morro do alemão, grafitagem foto menor: Icapui, no Ceará
“Mostrei mais uma vez nossa proposta, e uma das mães, com a filha no colo, deixou a porta aberta para que eu entrasse na intimidade delas.” 53
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quadrinhos: ELOAR GUAZZELLI
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folhetim
As aventuras de um Zé Pereira texto: FLÁVIO IZHAKI ilustração: OLIVIA FERREIRA
— Ô Zé, não cumprimenta mais a ex-namora-
da? Vai cuspir no prato que comeu? A naturalidade de Cláudia. A opressora naturalidade de Cláudia, o falar alto, gesticular, o sorriso de 78 dentes, jeito espalhafatoso de se vestir, de puxar conversa com todos, qualquer um, até com o ex-namorado. — Senta aí e toma um chope! – no pedido, uma ordem. Zé Pereira sentou, sujeito-homem. E esse anel no dedo, aliança na mão esquerda, casamento: quem seria o Zé Pereira depois do Zé Pereira? — Está vindo de onde tá indo pra onde? – Cláudia de novo, a mulher-citação. As palavras presas, a língua que se recusa a abrir espaço entre os dentes. O que falar, como se portar? Zé Pereira ainda calado. Quantos segundos já teriam se passado desde que sentara e não abrira a boca? O pensamento impedindo a ação, bloqueando a espontaneidade, e ele começou a contar: 28, 29, 30, 31, 32. Em voz alta o 33, sem perceber. — Trinta e três? Está me achando com cara de médica, Zé? – Cláudia dona da situação, 156 dentes de um duplo sorriso, deboche. — Não, é... 33 eu disse, não foi? Trinta e três anos está fazendo o Marcelinho hoje — conseguira remendar a tempo — estou indo lá no aniversário dele daqui a pouco. Vamos lá? Convidara Cláudia para um programa, foi isso? Ato impensado, imprensado contra os azulejos do Nova Capela. E agora a vida era apenas a espera pela resposta, uma espera que se estendia em minutos, meses, quatro, o tempo de separação entre os dois, e o olhar de Cláudia oscilando entre o rosto dele e a porta, será que ela está es-
cap. 3:
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perando alguém?, e novamente no rosto dele, no chope, último gole, 12, 13, 14, 15, 16... — Zé Pereira de novo contando. — Mas o aniversário do Marcelinho não é hoje! — Não é hoje? É sim, não é? — Cláudia me domina, ele pensa, Cláudia ainda me hipnotiza, e agora era o olhar dele que vacilava entre o rosto dela e a porta, o dedo anular e a parede azulejada, os avisos colados na parede, peça de teatro, aulas de violão, show de samba. — Mas de que Marcelinho você está falando? — Mais dois chopes? — Santo Cícero, providencial mestre de lentes embaçadas, solta dois chopes, ó mestreprático. O meu sem colarinho que sou sujeitohomem, não gosto dessas frescuras de creme. — Eu, hein, Zé, que história é essa de sujeito-homem? A mudez de Zé Pereira novamente, os lábios secos que não se desgrudavam, falta de saliva, memória de cerveja. Sujeito-homem. Isso mesmo, pensou, mas não falou, sujeito-homem, sim, mais sujeito-homem que esse aí do anel. Pensou, mas não falou. — Você está estranho, Zé! — uma afirmação, Cláudia só falava no imperativo. Se Cláudia falasse por escrito colocaria três exclamações ao final de cada frase. — Mas que Marcelinho é esse, Zé? Não é o meu Marcelinho, é? — mesmo as interrogações de Cláudia eram exclamações. A porta do Nova Capela se abriu e um sorriso veio andando em direção a mesa onde os dois estavam. Um homem, um homem no diminutivo enlaçou o pescoço de Cláudia e estalou um beijo no cantinho do lábio. Marcelinho.
CONTINUA
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canja
10:32 texto: JOÃO PAULO CUENCA lustração: CHRISTIANO MENEZES
— Quantos foram os minutos da sua vida
em que você pôde dizer que realmente aconteceu alguma coisa? — Alô? Quem é? — Acorda que é hoje! Bateu o telefone e tentou imediatamente voltar a dormir, colando o lençol à cabeça como uma muçulmana de hijab. O aparelho não demorou a tocar de novo e, depois do quinto toque, Tomás Anselmo desistiu.
Hoje o quê? Saiu do banho gelado e vestiu-se. Ganhou a rua, a essa hora com ar amarelado, e caminhou entre batalhões de anônimos. Desviou-se de valas abertas nas rugas das mãos estendidas, filas indígenas nas portas de onipresentes lotéricas, ciganos ululando pontos de macumba, fuzileiros navais em marcha, freiras de sombrinha, caminhões paquidérmicos despejando garrafas e engarrafando cruzamentos. Depois do caminho de casebres empilhados (caixas de fósforo com janelas) e becos malcheirosos (nós, o cancro do mundo!), alcançou-me num bar de esquina. O encontro de dois palitos queimados: Tira esse focinho da cara, Tomás. Começamos agora, incontinenti! Mas ainda não deu nem onze horas. Já? — peço dois. Esvaziamos os troféus dourados num gole enquanto o garçom, sem que precisemos pedir, desliza da bandeja para nossa mesa um par de sanduíches de abacaxi e filet mignon, conforme anunciado pelo cardápio. Nas primeiras mastigadas, surge em meu amigo remoto flashback: durante os barulhentos almoços dominicais da sua infância, entre colunas ascendentes de fumaça e cínicas conversações adultas, a criança que costumava ser Tomás Anselmo mordia as bordas de plástico azul costuradas no menu desse preciso bar até a desintegração total, para irritação dos garçons e vergonha da mãe, que sempre o castigava com um tapa agudo sobre as costas da mão. E talvez fosse aquele o mesmo cardápio semidestruído que tem agora debaixo do copo, o que faz Tomás, um cavalinho xucro usando retrovisores como antolhos, pensar secretamente em cravar os dentes no menu. Mas olha para mim, relincha sacudindo a carne das bochechas e, num invisível encolher de ombros, desiste. Esvazia um paliteiro e, com os palitos quebrados, forma desenhos geométricos sobre a toalha da mesa.
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Rayo nuestro epitafio Con un escarbadientes En la mesa del café La alcantarilla sorbe Otro dia Resbalando la vida De las calles Que amanecen sin apuro Mientras canto este tango A mi amor Sea quien Sea quien sea É a letra do tango obscuro gravado em 1932 por Antonio Ratón que Tomás tenta cantarolar sem saber como acaba ou começa a estrofe: Ao meu amor Seja lá Seja lá quem for... Encerrados os murmúrios, a exploração mental sobre o cardápio e sua idílica infância de botequim, engatamos numa conversa sobre os amigos exilados com quem um dia compartilhamos cadeiras, mesas e copos desse bar — e Tomás agora imagina que os copos das boas casas, assim como os cardápios, também devem seguir os mesmos ao longo dos anos, beijados por milhares de bocas!, algumas delas repetidas em estranhos padrões, representados por equações cujos gráficos se assemelhariam aos desenhos traçados com palitos na mesa. Enquanto Tomás é um peão introspectivo, perdido em suposições inúteis com melancolia no arco das sobrancelhas, eu, bazófio, arroto escalas diatônicas, faço castelos neogóticos com as bolachas do chope, fanfarroneio sobre nossos ex-amigos: — Ah, nossos sátiros camaradas de nada! Brindemos! Aos dândis precoces, escritores sem livros, músicos sem discos, cineastas sem filmes com quem conversávamos por citações de romances inexistentes, flanando sob pontes e mesas de botecos como pândegos muito sólidos, lordes sem um tostão nos bolsos, trocando os dias pela noite e as noites por coisa alguma! Bebamos à nossa perpétua disponibilidade para vernissages inúteis, bocas-livres sem convite! Brindemos ao nosso futuro e passado, a enredar fiapos de vida dedicados ao culto do ócio, de nós mesmos e de paixões viróticas: nossa doce e irreparável adolescência. — Aos que foram! — Aos que voltaram! Muitos tentaram a vida fora, exilando-se num exterior mitológico, dedicando-se à vera arte de lavar pratos ou trabalhar de babá, limpando com diplomas universitários de ciências humanas os perfumados restos de criancinhas caucasóides de boa estirpe. A desistência do país, no início vista com inveja e deslumbre por todos, sempre era premiada por algum evento incerto que os obrigava a voltar: falta de dinheiro, acessos de pânico, envolvimento em peque nos crimes, políticas de limpeza étnica, mortes na família, ou, ainda, tornados e enchentes que destruíam as metrópoles de vidro para onde migravam — como se houvesse uma força misteriosa que os atraísse de volta à cidade perdida de si mesma, aos bares, mesas e cadeiras de todo mundo e de ninguém, aos copos e cardápios mordidos de sempre. Desembarcavam cabisbaixos, veteranos de uma guerra perdida. A única guerra que poderiam algum dia combater. Mas eu, Pedro Cassavas, jamais teria esse problema! Eu e Tomás Anselmo, periféricos eternos, à la résistance!
Capítulo do livro “O Dia Mastroianni” (Agir), de João Paulo Cuenca
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ilustre desconhecido* por EDUARDO SOUZA LIMA
Vilmar Barbosa de Souza,
o Maza, filho de Miséria, mineiro, 46 anos de idade, 30 de estrada, cantor e compositor, artista livre, toca no Largo do Machado e tem foto até no Irã.
VOCÊ É CARIOCA DE ONDE? Nasci em Muriaé, Minas Gerais, mas fui criado em Campinas, São Paulo. Fiquei sete anos tocando em Florianópolis, os turistas viviam me fotografando lá. Tenho foto até no Irã e na China. E nos Estados Unidos, França, Itália, Espanha, Holanda... e na Islândia e na Finlândia. Quando cheguei ao Rio, toquei no Posto 9 e no Largo da Carioca, mas lá tem muita concorrência.
TOCA DESDE QUANDO? Desde pequeno. Meu pai era batera, a casa estava sempre cheia de músicos. Cresci nesse ambiente, não tinha como escapar. Ele é o Miséria, foi baterista da Orquestra Leopoldina, que tocou para JK e Café Filho. Ele acompanhou o Roberto Carlos, a Ângela Maria, todos os grandes cantores do Brasil. Atualmente ele dá aula na Fundarte, em Muriaé. É muito respeitado e querido lá.
HÁ QUANTO TEMPO VOCÊ TOCA NA RUA? Há 15 anos comecei meu trabalho solo. Toquei 15 anos como músico contratado em banda de baile, no Rio, São Paulo e Minas Gerais. Hoje eu acho uma afronta ter que seguir lista de música, pedido do público. O artista tem que ser livre para poder criar. O que seria da arte se não houvesse liberdade de criação? Certa vez passei dois anos sem compor porque estava me sentindo oprimido. Toco toda tarde aqui na Arthur Bernardes, em frente ao McDonald’s, e quando chove vou para debaixo da marquise da Pacheco.
As pessoas acham que eu gosto de Djavan por causa do meu cabelo, mas eu toco mais Tim Maia. Meu repertório é baseado na MPB, principalmente o samba. Mas conheço também maracatu, jongo, frevo, reisado. Aprendi a cantar músicas em inglês por causa dos gringos, gosto politicamente do Bob Marley. Mas também canto Ray Charles, Stevie Wonder, Sting.
DÁ PRA VIVER DE CANTAR NA RUA? Eu sobrevivo porque tenho uma disposição fora do normal e viro o jogo. Dá pra tirar a minha diária, pagar o rango e a hospedaria. Sou muito grato ao povão.
QUAL O SEU
MAIOR SONHO?
Cantar só as minhas músicas. Mas no Brasil você só atinge este estágio quando a mídia diz “esse é o cara”. E isso custa dinheiro.
* inspirado no “Dicionário de pessoas desconhecidas ilustres”, de Evando dos Santos.
O QUE VOCÊ GOSTA DE TOCAR?
o bumbo do zé CASO DE POLÍCIA
A primeira vez que a Vivo me fez de otário foi quando comprei um celular, acreditando no reclame da TV que diz que ela é a única operadora que pega em todo o país. Agora, levou-me 21 reais na mão grande. Estive em São Paulo e precisei comprar um cartão de recarga para o meu aparelho. Comprei esse aí embaixo — ô Selton Mello, você é um cara legal, olha a imagem! Não me parecia lógico que você só pudesse comprar cartão para o seu aparelho em seu estado, nem fui avisado pela empresa de que o sistema funciona assim. No cartão em si não há nenhuma advertência, apenas um microscópico “SP” — que pode querer dizer qualquer coisa — escrito no canto esquerdo. Fosse a empresa honesta, haveria nele um aviso legível de “Cartão válido apenas para São Paulo”. Ou ela faria uma campanha de esclarecimento na TV. Mas a Vivo parece viver de expedientes, pequenos golpes nos clientes, tendo como armas principais contratos criptografados, impossíveis de serem lidos, e propaganda enganosa na TV — o CONAR só existe no papel? Só descobri que o cartão não me valeria de nada depois de ir a uma loja da Vivo — antes, é claro, fui submetido ao calvário do *9000. A mocinha simplesmente me disse que não poderia fazer nada por mim. Traduzindo: perdeu, playboy. O que mais me espanta nessa história toda é a total falta de consideração com o cliente, possivelmente causada pela certeza da impunidade. Eles podiam simplesmente carregar o celular e recolher o cartão. O único prejuízo seria o do papel usado para confeccionar o mesmo, já que o que importa é o código de 12 números impresso nele. E aí teriam um freguês satisfeito. Da privatização das teles para cá, o Brasil pulou de 800 mil telefones celulares para 120 milhões. Para a Vivo, são 120 milhões de trouxas.
CONTO-DA-PHILIPS
Jorge comprou uma TV Philips 29 polegadas, modelo 29PT 4635/78, que estava em promoção. Como não raro acontece, o aparelho quebrou um mês depois do término da garantia. Jorge levou a TV para consertar numa oficina autorizada. Lá, lhe disseram que o aparelho era “arquivo morto”. Traduzindo: o modelo 29PT 4635/78 tinha saído de linha e não fabricavam mais peças de reposição para ele. Jorge ficou com uma enorme carcaça inútil nas mãos. A Philips costuma tratar mal o consumidor — quem já teve que recorrer ao seu 0800 bem o sabe. Mas vender produto com prazo de validade determinado e esconder isso do comprador já é conto-do-vigário.
CHAMANDO NA CHINCHA
Em 2003, Ricardo Macieira subiu ao palco do Cine Odeon para prometer apoio da Prefeitura para o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro. A promessa não foi cumprida, a Prefeitura deixou os organizadores do evento na mão em cima da hora, mas no ano seguinte lá estava de novo o secretário das Culturas, na maior cara-de-pau, para dessa vez prometer ajuda para o Festival do Rio. Ensaiou-se uma vaia, que foi rapidamente abafada. Este ano, Cesar Maia retirou o apoio financeiro ao Festival do Rio pouco antes de ele começar, quando o material de divulgação já estava pronto, todo ele exibindo a marca da Prefeitura. Ninguém sabe de onde veio e para onde vai Macieira — que chegou a ser esculachado publicamente pelo prefeito numa reunião com produtores culturais — mas José Wilker tem nome e carreira a zelar. Porém o ator e dublê de presidente da Riofilme — distribuidora de cinema da Prefeitura — fez um papelão ao subir ao palco do Odeon dizendo que não concordava com os desmandos do chefe, mas que se calava. Papelão maior ainda fez a turma que o aplaudiu. Tivesse ele pedido exoneração do cargo, mereceria todos os aplausos. Mas parece que a galera do pires na mão não vai tirar o rabinho do meio das pernas nunca.
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humor
Nonsense and Sensibility
ARNALDO BRANCO
Existe
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“Se você divertir o público, será considerado superficial, mas se aborrecê-lo todos o levarão a sério”. Quem disse isso ou algo parecido foi Somerset Maugham, autor que tentei ler certa vez, mas larguei na vigésima página.
CENA CORTADA DE TROPA DE ELITE:
Capitão Nascimento dando na cara de um empreiteiro e apontando para TV ligada no horário político eleitoral: “é você quem financia esta merda!”
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o teste de QI, que dá a medida da capacidade de um ser humano para responder um teste de QI. Mas desenvolvi uma forma de medir outro tipo de habilidade humana: o Quociente de Sensibilidade, QS. A equação é QS = A (abstração) + T (tempo). Sendo um sujeito extremamente superficial, sempre tive dificuldade de perceber em certas obras de arte, a arte em si. E dia desses tive uma epifania quando vi um sujeito em um museu contemplando um quadro (duas linhas perpendiculares sobre tela) tomar alguns passos de distância, parar, e não satisfeito dar mais três passos para trás, como se fosse cobrar um pênalti. Não perdeu o quadro de vista por um segundo sequer, e ficou ali parado por uma eternidade. Percebi então que um indivíduo pode ser considerado mais sensível que a média quão mais abstrato é o objeto artístico em estudo e quão maior o tempo em que sua atenção recai sobre ele. Espectadores rasteiros costumam desistir de admirar obras mais complexas nos primeiros indícios de dificuldade em absorver a mensagem, o que dimuinui o Quociente de Sensibilidade pela redução do fator tempo de exposição. Eles podem, por exemplo, abandonar uma sessão de “Stalker” do Tarkovski por acreditar que nada aconteceu nos seus primeiros 20 minutos, e perder mais duas horas e meia de um nada acontecendo sensibilíssimo. Ou até podem dedicar atenção por um considerável período de tempo a um determinado produto cultural, mas este tende a perder no quesito abstração — por exemplo, uma Maratona Simpsons na Fox, que tem o risco adicional de poder representar diversão, o antônimo da Experiência Artística.