Revista Zé Pereira # 2

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revista

R$ 2,00

mensal setembro de 2007


TELEFONES e E-MAILS úteis A Zé Pereira número 2 abre suas páginas

pedindo desculpas a Patati e Allan Alex, dois artistas que respeitamos e admiramos muito. Por erro nosso, a história em quadrinhos da dupla, “Seu Pacheco e as vozes”, publicada na edição 1, saiu com as pranchas 2 e 3 invertidas. Para quem quiser lêla na ordem correta, estamos republicando a obra em nosso site (www.revistazepereira.com.br). Aproveitando a deixa, informamos ao leitor que até o fechamento desta edição nem o secretário estadual do Ambiente, Carlos Minc, nem a Petrobras retornaram nossos telefonemas para falar sobre as acusações feitas na reportagem “Paciente terminal”, de André Vieira, pelo superintendente do Ibama no Rio de Janeiro, Rogério Rocco, e pelo geógrafo Elmo Amador. Segundo os dois ambientalistas, que estão entre os mais respeitados do país, não foi feito um estudo de impacto ambiental adequado para a implantação da Refinaria de

Itaboraí. A reportagem também está em nosso site. Caso algum cidadão queira pedir esclarecimentos, os telefones do gabinete do secretário são (21) 2299-2402/2403/2404, e o da assessoria da Comperj, órgão da Petrobras responsável pela refinaria, é 0800-728-9001 (opção 4). Quem sabe alguém tem mais sorte do que nós. Finalizando, queríamos lançar uma campanha. Como estamos na era da internet, nada mais anacrônico do que fazer passeata. Hoje, há um método bem mais eficaz de se fazer ouvir. Que o diga o prefeito do Rio, que não faz outra coisa além de mandar suas elucubrações políticas para jornalistas, políticos e outros formadores de opinião. Por isso, sugerimos aos leitores que enviem mensagens para Sua Excelência, propondo que saia da frente do computador e comece a cuidar da cidade. Os e-mails são cesar.maia@terra.com.br e blogdocesarmaia@gmail.com. ANDRE DAHMER

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CONSELHO EDITORIAL

Anna Azevedo, Eduardo Souza Lima, Olívia Ferreira, Pedro Garavaglia, Roberto Ribeiro.

ARISTOCRACIA CARIOCA: Marcos Palito

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OPINIÃO: D. João e as origens do bacanismo carioca

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COORDENADOR DO FOLHETIM

Terêncio Porto lembra que nem tudo é para ser festejado no bicentenário da vinda da Família Real Portuguesa. Ilustração de Andre Dahmer.

REDATORES

NEGÓCIO CABELUDO

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EDITOR

Eduardo Souza Lima PROJETO GRÁFICO

Radiográfico (www.radiografico.com.br) COLUNISTA

Arnaldo Branco (www.gardenal.org/mauhumor) Marcelo Moutinho (www.marcelomoutinho.com.br) Anna Azevedo e Eduardo Souza Lima REVISÃO

Andréa Rosa CAPA

Joaquim José Pereira, por Gustavo Stephan COLABORARAM NESTA EDIÇÃO

Allan Sieber (www.allansieber.com), Ana Silvia Mineiro (http://diariodevivencia.blogspot.com), Andre Dahmer (www.malvados.com.br), Beto Roma (www.betoroma.com.br), Erick Grigorovski, Estevão Garcia, Gustavo Stephan, Henrique Rodrigues, João Ximenes Braga, Luís Pimentel, Luiz Bello, Marcelo Campello (www.mombojo.com.br), Michael Ende (www.michaelende-brazil.com), Ota (www.ota.com.br), Patrícia Evans (http://patevans.blogspot.com), Patrícia Rocha (http://palavrascustomizadas.blogspot.com), Sergio França, Tiago Carvalho (http://tiagocilustracoes.blogspot.com), Toinho Castro (www.overmundo.com.br/ overblog/rubber-vall-1), Waine (www.otutamelda.blogspot.com), Zaira Brilhante (www.re-vista.info). SITE

Marcos Gurgel (programação), Radiográfico (design) e Eduardo Souza Lima (edição)

www.revistazepereira.com.br CORRESPONDÊNCIA

Rua Senador Euzébio 6/4, Flamengo Rio de Janeiro/RJ CEP 22250-080

O microcosmo do comércio de cabelo humano na Praça Tiradentes. Por Patrícia Rocha (texto) e Beto Roma (fotos).

CRÔNICA: O dia em que conheci um saci de verdade

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CONTO: Vida Interior

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O CAMINHO DE SANTA TERESA

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Amor e diarréia. Uma história inédita de João Ximenes Braga ilustrada por Tiago Carvalho.

Vinte e quatro minutos de problemas entre a Candido Mendes e a Paula Matos. Por Michael Ende.

PERTO DO ÚLTIMO ATO

TELEFONE E-MAILS

POESIA: Férias

CORRESPONDÊNCIA cartas@revistazepereira.com.br DEPARTAMENTO COMERCIAL comercial@revistazepereira.com.br

Os textos assinados também refletem, necessariamente, a opinião da revista. TIRAGEM DESTA EDIÇÃO

Ou Dodô, para os íntimos. Uma HQ inédita de Allan Sieber.

A revista ‘Zé Pereira’ é uma publicação mensal da Hy Brazil 2001 Filmes e Livros Ltda. (www.hybrazilfilmes.com)

OPINIÃO: Tiro pela culatra

10.000 exemplares

número 2/ano I/setembro de 2007

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Patrícia Evans tem sangue de grife.

QUADRINHOS: Hitler no Leblon

Guitarrista do Mombojó responde a “Veja”.

SÉRIE: Maracatron

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DIÁRIO DA RECONQUISTA

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PUTA CONTO

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FOLHETIM: As aventuras de um Zé Pereira

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DA PANELINHA: Cachaça de encruzilhada

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ILUSTRE DESCONHECIDO

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BUMBO DO ZÉ

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MAL NECESSÁRIO

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Os subterrâneos do estádio Mario Filho abrigam a mais louca experiência científica brasileira. Texto de Antônio Castro e foto de Erick Grigorovski. Continua em www. revistazepereira.com.br.

Patrícia Rocha conta como a UNE retomou o terreno de sua sede no Flamengo.

Ota cara a cara com um folclórico personagem.

Sai este mês a decisão da Justiça que pode devolver o Canecão à UFRJ Por Luiz Bello.

(21) 2553-5910

SU MÁ RIO

O humor do subúrbio pede passagem. Por Eduardo Souza Lima.

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Uma troca de papéis. Por Luís Pimentel (texto) e Waine (ilustração).

Com “Angústia”, Henrique Rodrigues dá continuidade à saga de nosso herói e passa a bola para Flávio Izhaki, que continua a história no próximo número.

É melhor pedir licença antes. Por Ana Silvia Mineiro (texto) e Sergio França (ilustração).

Seu Matias foi amigo de Noel Rosa, lutou na Segunda Guerra e caçou Lampião.


aristocracia carioca: Marco Palito

“EXCLUÍDA É A ZONA SUL” texto e fotos: EDUARDO SOUZA LIMA

Marcos Guimarães, o Marco Palito, ou simplesmente Marcão, pode ser ainda um ilustre desconhecido na Zona Sul, mas no subúrbio é o rei do humor. Seus leais súditos estão nas lonas culturais da prefeitura, em especial na Hermeto Pascoal (em Bangu), na Gilberto Gil (na Capelinha) e na Carlos Zéfiro (em Anchieta); no Ponto Cine, em Guadalupe; e no Shopping Madureira, onde atua como uma espécie de consultor artístico e se apresenta há dois anos no talk-show ao vivo “TV no Bar”, no restaurante Blumenau Grill. O Bonequinho Vil, sua mais famosa criação, e o “Conversa Fiada”, seu programa de auditório, têm sete comunidades no Orkut. Cada lona tem 350 lugares, mas em suas apresentações é comum ver até 800 pessoas se espremendo nas arquibancadas e sentadas no chão. Fora as duas mil que ficam do lado de fora tentando entrar.

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— Tem um amigo meu, o Adil, que costuma

dizer: “Não dá nem pra entrar lá fora” — brinca o humorista. Certa vez, Marcão e sua trupe foram se apresentar na Praia de Copacabana, num evento patrocinado por uma fábrica de biscoitos. E ele aproveitou para dar o seu recado: — Cheguei pra rapaziada e disse: “Excluída é a Zona Sul. Nós já somos 4,5 milhões, vocês, só 1,5 milhão. Vocês nem tem trem! Isso é um absurdo! E nem ônibus direto para Madureira! A cidade precisa se integrar e nós vamos ajudar vocês.” O Hans Donner viu e se amarrou. Disse que a gente conseguiu inverter a mão. Nascido e criado em Pilares, há 41 anos, Marcão preferiu que esta entrevista fosse feita em Madureira e não em seu bairro natal: “É que lá é

“Tenho influência de tudo, mas o bar é minha universidade” a capital do subúrbio”, argumentou. Quem é da região, bem o sabe. Mas este não foi o único motivo. Madureira também é o seu quartel-general e a sua musa maior. O humor de Marcão é genuinamente suburbano, e não apenas na certidão de nascimento. Ele anda para lá e para cá nas movimentadas ruas do bairro, conversando com todo mundo, buscando inspiração para novos tipos e esquetes. — Quando você é do subúrbio, quer olhar para a Zona Sul. Quando olhei pro subúrbio, vi a bananada, o kichute, o sacolé de manga. Comecei a sortear bananada no “Conversa Fiada” e foi o maior sucesso. As pessoas gostam de se sentir retratadas, de ouvir quem fala a língua delas. No Shopping Madureira, por exemplo, convenceu os donos de grifes locais a trocarem o

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Marcão e o Bonequinho Vil

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“Hoje, eu sobrevivo de minha arte. Espero um dia poder viver dela”

sa. É o único com pendor artístico na família. Mas foi em casa que começou a ter interesse por arte. — Meu primeiro encontro com a arte foi uma pintura numa telha que minha irmã fez — conta. — Não sei por que aquilo me impressionou. Acho que por ver que era possível fazer. Depois vieram o tio piadista — toda família do subúrbio tem pelo menos um — e os discos de humor do Agildo Ribeiro e do Costinha, cujas anedotas o menino decorava para deleite de uns e horror de outros. Quando estava na sétima série da Escola Municipal Souza da Silveira, em Piedade, participou da montagem da peça “Deus lhe pague”, de Joracy Camargo, feita por sua professora Regina Célia. E a partir daí não parou mais: cursou CAL, Martins Pena, fez oficina de palhaçaria com Marcio Libar.

O humorista em ação na lona de Bangu

cenário dos desfiles de moda que promovem no local: saiu a praia com palmeiras, típica da Zona Sul, e entrou um trem sobre trilhos, bem suburbano. As modelos do bairro ficaram orgulhosas com a nova passarela. Adaílton Medeiros, criador do Ponto Cine, conheceu Marcão quando era diretor da Lona Cultural Carlos Zéfiro e foi um dos primeiros a apostar em seu talento e na originalidade de seu trabalho. Hoje, o comediante se apresenta nas manhãs de sábado no cinema de Guadalupe, antes da sessão “Diálogos com o cinema”, que exibe filmes brasileiros seguidos de debates com seus realizadores. — O Marcão é o que há de mais novo no mercado do humor, tanto no Rio quanto no Brasil — diz Adaílton. — O seu humor é muito rico e é o da crônica diária. As pessoas se enxergam nos personagens do Marcão porque eles falam em uma linguagem simples e acessível. Esses personagens apresentam as características próprias da cultura do subúrbio, mas vão, além disso. É um humor que se torna universal justamente porque é local. A carreira de humorista começou há 20 anos, com o “Respondeu Bebeu”, uma gincana de conhecimentos gerais que apresentava em bares das zonas Oeste e Norte. O “Conversa Fiada” foi criado em 1996 e até hoje é um sucesso absoluto no circuito das lonas culturais. Foi em um de seus quadros, “Diário de um magro” — no qual satirizava a obra do escritor Paulo Coelho com trocadilhos do gênero “Nas margens do Rio Piegas eu sentei e gostei” — nasceu o Bonequinho Vil. O boquirroto personagem, visualmente inspirado no Bonequinho das críticas de cinema do jornal “O Globo”, comenta, de modo singular, as principais notícias da semana. Curiosamente, Marcão é coadjuvante no quadro: como o personagem fala de forma incompreensível, ele interpreta o seu tradutor. Quem dá vida ao Bonequinho é Marcus Vinícius de Oliveira, o Marcus Saúva. — O Saúva era percussionista de uma banda chamada Didi Subiu no Cristo — conta Marcão. — Mas eu rolava de rir vendo o cara tocar. Ele estranhou um pouco quando o convidei para fazer o personagem, mas já estamos juntos há 11 anos.

— Achei estranho até porque nunca havia feito teatro na vida, mas embarquei, e descobri que o Marco tem um olho bom para descobrir novos talentos — diz Saúva. — E descobri que havia encontrado uma razão na vida, adoro fazer as pessoas rirem. O sucesso do Bonequinho Vil não é brinquedo não: seu esquete acabou virando a última atração do “Conversa Fiada”, porque muita gente ia embora depois que a dupla deixava o palco. Mas criar tipos é a especialidade de Marcão. Tem, por exemplo, a americana Ema Grace, líder da seita do Santo Diet — um chá alucinógeno que faz a pessoa acreditar que emagreceu ­— e Dali de Salvador, pintor surrealista baiano que tem entre suas obras o quadro “Clodovil no harém”. Marcão é o caçula de cinco irmãos, filho de um representante de vendas com uma dona de ca-

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— O universo do palhaço foi a minha última descoberta. Com ele, eu aprendi a perder. Tenho influência de tudo, mas o bar é minha universidade — diz Marcão. O humorista também tentou cursar Jornalismo, mas teve que abandonar a faculdade ainda no primeiro período, por falta de dinheiro. Ainda assim, deu um jeito de entrar para o meio jornalístico: atualmente ele participa das transmissões de futebol da Rádio Transamérica FM (101,3 MHz) com o personagem Armando Furtado, exjuiz ladrão e comentarista de arbitragem, além de apresentar a “Agenda do Marco Palito”, resenha esportiva na qual dá os resultados de partidas de esportes populares como sueca, queimado e porrinha. A família nunca entendeu direito esse negócio de viver de inventar histórias, mas sempre o apoiou. — Quando você passa da metade do caminho, não tem mais volta. Hoje, eu sobrevivo de minha arte. Espero um dia poder viver dela.

Não deu no “RJTV”, mas em 2003 Marcão ganhou o Prêmio Governo do Estado, como empreendedor de cultura popular. Além do seu trabalho como humorista, ele coordena projetos sociais, à frente da ONG Alimento Cultural. — Eu me considerava um desnutrido cultural. A primeira vez que fui ao cinema foi para ver um filme de Tarzan em sessão dupla com “A vida de Cristo”. No subúrbio você não tem muitas opções. A Barra tem 90 mil habitantes e só num shopping tem 18 cinemas. Bangu tem 500 mil e só uma sala. Em seus talk-shows e gincanas de humor, Marcão sempre faz questão de falar de cultura e de política — “porque o povo não pode esquecer do Juiz Nicolalau e dos Anõezinhos do Orçamento”, diz. Ultimamente, tem pensando numa nova forma de cobrança de entrada para seus espetáculos. — O ingresso seria uma frase. Mas não qualquer frase, tem que ser uma frase boa. Sei que isso geraria discussão e acabaria levando as pessoas aos livros. Mas criaríamos também um banco de frases para não deixar ninguém constrangido. Aí é só o cara pegar uma emprestada. Por meio de projetos como o Cesta Básica Cultural (no site www.marcopalito.com. br tem todos), ele distribui livros para pessoas carentes. — Estamos criando um conselho de nutrição, formado por professores, jornalistas, sociólogos e artistas, para fazer o cardápio. Não dá para dar um Guimarães Rosa logo de cara. Tem que acostumar o estômago aos poucos. Às vezes você dá uma feijoada para um cara que está cheio de fome e ele morre de indigestão. O sujeito nunca foi ao teatro e pode nunca mais ir dependendo do que ele for ver. Marcão tem três filhas, Thainá, de 19 anos, Thuanni, de 18, e Anna Luiza, de 11, e duas ex-mulheres — “eu sempre fui bem casado, elas, não”, brinca. E hoje, diz com orgulho que sua carteira de trabalho só tem duas assinaturas: — A minha e a do funcionário do Ministério que a emitiu. π

“Eu me considerava um desnutrido cultural”

WWW.HYBRAZILFILMES.COM

BerlinBall

vencedor do “Berlin Today” - Festival de Berlim 2006

O Homem-Livro

melhor direção (júri oficial) e melhor filme (júri popular)- Festival de Brasília 2006

no site: A PALHINHA DO ARMANDO FURTADO 10

Rio de Jano

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opinião

D. João e as origens

do bacanismo carioca

texto: TERÊNCIO PORTO* ilustração: ANDRE DAHMER

Aponta no horizonte o bicentenário da chegada do Clã Português dos Bragança ao

Rio de Janeiro — a Corte Joanina, seu séquito e todo aparato cênico e burocrático que a seguiam —, e com ele uma série de comemorações vêm sendo promovidas pela prefeitura desta cidade. Uma agenda de eventos e publicações, que “muito além de reabilitarem (?) a figura de D. João, reafirmam o significado ímpar do gesto político”. Ápice prometido pra 2008. Essa Família Real, e tudo o que ocorreu a partir de sua fuga de Portugal, parece algo realmente digno de ser rememorado, na medida em que desencadeou nosso paradoxo fundador, fato que muito determina o que somos hoje, essa multidão de contradições. De um lado, uma corte européia de primeira grandeza, misturando os pedigrees Bragança, Bourbon, Habsburgo, tudo classe AA. De outro, uma economia escravocrata das mais sórdidas, violentas e estúpidas de todos os tempos. Tudo isso misturado nessa mesma cidade, capital da Belíndia. A Bélgica do trocadilho havia chegado. Mas rememoremos distantes dessa eterna reafirmação de que a cidade “lucrou indiscutivelmente com os progressos materiais empreendidos por D. João”, porque isso é coisa que não se pode discutir; ou de que o episódio “trouxe ao Rio de Janeiro inquestionáveis benefícios materiais e culturais”, porque isso não se pode questionar. Isso é retórica de quem não quer discutir nada, quer impor comemorações ritualísticas idiotas, naturalmente desprovidas de qualquer senso crítico. Uma ação panegírica. D. João, sua corte e toda sua máquina administrativa, além dos livros e dos tesouros da coroa, vieram para cá fugidos das Guerras Napoleônicas, como é sabido. Com a proteção inglesa, como é sabido. Abandonou seu povo, que ficou “a ver navios” (daí a expressão). Abandonou sua terra, um dos mais antigos estados da Europa, que ficou quase 15 anos ao Deus dará, como se diz. E a suposta proteção inglesa, como não se diz, foi mais uma tomada de Portugal como refém, em troca de acordos comerciais que muito favoreceram a posição de potência da Inglaterra. Esta já havia bombardeado o porto de Copenhague, não por acaso capital da Dinamarca, país neutro e fraco como Portugal no contexto europeu da época. D. João chegou e abriu os Portos aos produtos estrangeiros, mas taxou todos, inclusive os brasileiros, com aliquotas de 16%, e o ingleses com alíquotas de apenas 15%. Isto é, a Inglaterra não ajudou Portugal em sua fuga, assim como se ajuda a um amigo em situação periclitante, mas sim como um filho da puta oferece ajuda a um amigo em situação de perigo para depois obter uma vantagem dele! “Mas que vantagem eu levo em te ajudar?”, ele diz àquele a beira do abismo…

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Mas D. João trouxe consigo mudanças, melhorias, teatros, óperas, cultura (de Primeiro Mundo! Foram trazidos castratti italianos, que já caiam em desuso na Europa…). Isso bem é verdade, até certo ponto, mas o que não se fala é que ele trouxe consigo todo um gigantesco arcaísmo que aqui foi recebido como uma benção, meio que condenatória à uma puta herança pérfida de corrupção e burocracia. Criou a Imprensa Régia, pra no dia seguinte criar a censura. Fundou o Banco do Brasil, que ficou insolvente e foi a bancarrota anos depois devido a irresponsabilidade da corte portuguesa no uso do dinheiro público. Como hoje em dia, passou-se a poder freqüentar um bom teatro, uma boa ópera, comprar produtos do mundo inteiro, mas baseado numa economia totalmente escravocrata e corrupta, onde trabalhar era feio, e onde os negros eram tratados como seres sem alma. Um nobreza que teve de se impor através da imagem, da etiqueta, visto que chegaram aqui maltrapilhos, aos farrapos, decadentes. Família real, como a loucura da Rainha de Portugal, o desprezo de Carlota Joaquina pelo Brasil, a crônica indecisão de D. João, que não só veio pra cá fugido, como foi embora também. E que só foi Rei porque seus irmãos mais velhos morreram antes dele, i.e., não foi preparado para ser Rei. E que cultivava hábitos antigos, medievais, como o de não tomar banho — dizem que tomou apenas um em toda sua vida — e o de receber visitas em aposentos onde mantinha vasos parcialmente cheios de urina, exalando aquele odor típico. Seu filho, D. Pedro I, tinha o hábito de defecar diante da tropa, e perpetrou um massacre na Bolsa Comercial do Rio, atirando contra uma porrada de gente desarmada, mas isso a Prefeitura não vai rememorar. Tinha como ídolo Napoleão Bonaparte, o homem que havia posto seu pai pra correr. Um perfeito Édipo sem culpa. Teve a educação negligenciada e tinha uma tara militarista. Promoveu a amante e matou a mulher de desgosto, pra depois casar novamente com a Princesa da Baviera, um broto de uns 15 anos. Além disso, no presente histórico, dado o atual estado das coisas, não há nada, nem de longe, que justifique esses eventos panegíricos como prioridade para nossa cidade. Tampouco um Panamericano, mas é bom pra imagem do Rio, e é isso que importa. Não importa o estado da saúde pública, a educação calamitosa, não importa

os miseráveis apodrecendo nas ruas, comendo lixo, não importa os grupos armados controlando áreas da cidade onde vive gente pobre. Qualquer semelhança com o passado, com a demanda por imagem de uma corte européia em terras tropicais, há de ser mera coincidência. Parece mesmo que pouca coisa mudou. Continuamos baseados numa economia escravocrata, onde uma pequena parcela usufrui do bacanismo carioca. O doce deleite de ser nobre, fidalgo, irreverente, e achar normal pedir um ovo mexido pro mordomo às 11 da noite. Em suma, uma mentalidade frívola, mimada, de quem se acha mais importante que os outros (“Você sabe com quem está falando?”), dá porrada em puta ou empregada, taca ovo no andar de baixo e pronto. Quer privilégios, pois é VIP. Uma sociedade de novos ricos, desajeitados, deselegantes, mal-educados, na vida pública ou privada. Farinha pouca meu pirão primeiro. π *Terêncio Porto é cineasta e atualmente realiza o filme “Abertura das postas”, sobre a fuga da Família Real Portuguesa para o Brasil e o legado que deixou aos cariocas.

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texto: PATRÍCIA ROCHA fotos: BETO ROMA

NEGÓCIO CABELUDO Conheça o lado oculto da zona livre de compra e venda de cabelo humano na Praça Tiradentes

Vai cabelo aí, nem? Quer cabelo, colega? 100% natural!!! Quer vender? Toma aqui ó, colocado é R$ 280. Tá na promoção só hoje, hein!

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Ao passar pela Avenida Passos, esquina com

a Rua Sete de Setembro, em frente à lanchonete Biarritz, à loja de artigos de macumba Nossa Senhora de Santana e ao prédio mais movimentado da Praça Tiradentes, o espigão número 10, um grupo de garotas de aparência simples, atitude e determinação vai tentar convencer você a fazer um implante de cabelo, mesmo que você não precise. Por uma diária de R$ 10, mais R$ 4 de passagem e outro R$ 1 por cabeça conquistada, as panfletistas são capazes de puxar a pessoa pelo braço, fazer chover anúncios coloridos em cima do pedestre e enfiá-los sem pedir licença nas mãos do passante que, já tonto, só tem uma saída para rapidamente se livrar daquela armadilha: dizer ok, obrigado, vou sim ao salão.

Um desses salões é o Stylus Africano. A recepção é um corredor. Do lado esquerdo, uma vitrine com perucas e penas coloridas; do lado direito, o balcão guardado pelos atendentes Cléber e Leandro. Atrás deles, uma imagem que se repete em muitos estabelecimentos dessa área: na parede, por mais de dois metros de largura, um arcoíris de mechas de cabelos de todas as cores, tipos e tamanhos, do louro liso claro, conhecido como estilo euro, ao enrolado castanho-escuro, passando pelas trancinhas afro em fibra sintética, pelo badalado megaplus queratinado e pelo miojo, o clássico tóin-óin-óin. Todos agrupados numa quantidade média de cem gramas, cada, e embalados por etiquetas que garantem que aquele cabelo é “from Índia”. Sobre o balcão, uma balança Filizola daquelas dos restaurantes a quilo. A bancada nunca está vazia. Em frente tem sempre uma senhora, uma dupla de garotas e travestis querendo saber “quanto é que tá?”. Porque esta é a melhor região da cidade para se pesquisar o preço de cabelo humano para implante.

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Todas as lojas anunciam com destaque que o cabelo é “100% natural”. Apesar do macabro da situação — colar no próprio cabelo um outro morto, hidratado, vá lá, mas morto —, o mercado está bem aquecido. E não existe pudor para realizar o sonho estético. O quão natural é o fio determina a cotação da mercadoria. Existe o cabelo 100% natural e o que diz que é, mas não é tanto assim. Ainda o feito com canecalon, o mesmo material usado em cabelo de boneca e em algumas perucas. Mas em geral, quem costuma procurar a Praça Tiradentes quer uma solução mais ou menos definitiva. Ou seja, um implante. Na verdade, uma emenda de fios originais com os novos, adquiridos no comércio, unidos com cola de queratina ou um finíssimo fio elástico. E para um melhor resultado, garantem, o cabelo tem que ser totalmente natural e humano. Todos os que trabalham ali afirmam que o cabelo vem da Índia. Aos fregueses que, displicentemente, querem saber “de onde vem o cabelo, hein?”, a resposta é padrão e rocambolesca: mulheres indianas realizam uma procissão anual ao seu templo de devoção e, como não têm dinheiro para ofertar ao Buda, doam suas madeixas. Em outros casos, a origem são os cabelos que, diariamente e de forma natural, caem da cabeça. E, “como as indianas são muito limpas em casa”, justificam os vendedores, catam um a um os fios do piso para, ao fim de um ano, vendê-los ou ofertá-los ao templo budista. O templo, por sua vez, negocia essa montanha de cabelos com os fornecedores e estes os submetem a um processo de pasteurização, revendendo-os mundo afora. Inclusive nos salões da Praça Tiradentes. Para quem chega ao Centro louco para renovar a auto-estima, a história sobre a origem do cabelo a ser implantado está de bom tamanho. A clientela é basicamente feminina. Boa parte dela composta de mulheres que aparecem a primeira vez para fazer o implante e acabam virando amigas das implantistas. E estas contam com orgulho que entre a clientela têm as ricas e

Todos que trabalham ali garantem que aquele cabelo vem da Índia

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famosas que bem poderiam freqüentar os salões na Zona Sul ou no exterior, onde algumas moram, mas só confiam suas melenas às profissionais da Praça Tiradentes. Tem também as nem tão mais famosas assim e que pedem desconto por ainda terem alguma fama. As “primas”, que são as garotas de programa do Hotel Paris, do Hotel Nicácio e da Vila Mimosa. As senhoras com calvície, os gays e, finalmente, os homens carecas. Na opinião dos cabeleireiros, os mais chatos, com um indisfarçável problema de identidade.

Baixo Cabeça As melhores lojas de venda de cabelo estão na primeira quadra da Sete de Setembro e também no prédio número 10 da Tiradentes. Special Hair, Vigo Hair, Espaço Cabelo, Hair Zone, Brilho dos Cabelos, Fashion Hair... No caminho, um batalhão de mulheres que se revezam batendo perna à procura daquela madeixa que mais combina com seu fio original — ou com o quanto ela pode pagar. No balcão, as vendedoras manuseiam as mechas sem parar, numa espécie de demonstração de força daquele material morto. Enfiam os dedos por entre os tufos e os atravessam ao longo de todo o comprimento com uma dose calculada de violência. Alguns fios caem. Ao fim do dia, o chão fica escorregadio, coberto por esse subproduto multirracial que não chegará a encontrar uma nova cabeça para ser sua dona. O balcão da Special Hair, a maior loja da Sete de Setembro, tem mais de três metros em cada um dos lados do “L” que forma no interior da casa. Em uma de suas pontas, sentado sobre um banco alto, fica um dos três seguranças; na quina do “L”, um espelho convexo do tipo de estacionamento dá ao vigia uma nova perspectiva, por vezes disforme, dos movimentos daquele amontoado de mãos e cabelos. Não raro, clientes usam faixas ao redor da cabeça, rente à testa, lenços ou bonés. Andréia, funcionária da Special Hair, explica, com um riso contido, que o adereço é sinal de que já expirou o prazo de validade do aplique. Está na hora de trocar. E é sem nenhuma cerimônia que a própria pega nos cabelos castanhos ondulados, com reflexos louros, de uma senhora negra de cerca de 40 anos e ataca:

— Cê tem pouquinho cabelo, né? — Não! — defende-se a compradora. — Mas ele parece ralo e volumoso. Para o seu cabelo trabalhar bem, você vai precisar de 200 gramas. Qual o tamanho que você quer? Meio desconcertada, mas sem muita chance de reclamar, a senhora aponta o comprimento do seu fio maior. — Mais ou menos esse aqui, ó! A vendedora desliza sobre os fios espalhados pelo chão e alcança o outro lado do balcão onde estão mechas similares ao cabelo da cliente. Enquanto volta, passa os dedos bruscamente por entre o tufo prestes a ser negociado e mais fios vão ao chão. Com o muito que ainda tem nas mãos, ela mede o comprimento em um metro afixado no balcão, como numa loja de tecidos, e aproxima os novos fios da cabeça da cliente. A senhora se olha no espelho que a atendente lhe oferece, abre um sorriso, diz que “é esse mesmo!”, a vendedora pesa as mechas na balança, tecla rapidamente a calculadora e dispara:

— Esse aqui você pode pagar em três vezes de R$ 141,12. A cliente faz uma cara de descontente e acaba levando apenas 150 gramas. Saindo de uma dessas lojas com o sonhado cabelo nas mãos, o próximo passo é ir em busca de um salão que faça o implante. Caso o cliente não tenha nenhuma indicação, vai na sorte mesmo, guiado pelos panfletos. Os salões se concentram nos 27 andares do prédio número 10 da Tiradentes e disputam clientes com os do Edifício Riqueza, na Rua da Carioca, número 9. Mas o ponto mais quente, onde acontece a guerra de panfletos de todos os salões e lojas de compra e venda de cabelo da região, é em frente ao número 14. Lá está o bem-sucedido salão Stylus Africano.

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“Espionagem industrial, cumpadi, tá de bobeira!”

Adriana, dona e garota propaganda do Stylus Africano, e sua equipe de implantistas

O melhor ponto comercial De todos os panfletos distribuídos ali, o do próprio Stylus se destaca por ser um cartão de visitas de papel durinho e brilhoso, trazendo a imagem de três lindas negras. No centro da foto está Adriana dos Santos Rodrigues, 31 anos, ladeada pelas irmãs e sócias, Mara Cristina e Elisângela. O salão é uma filial da matriz, fincada no calçadão de Nova Iguaçu. Funcionou durante quatro anos na sala 1502 do prédio 10. Antigamente, o número 14 era ocupado por uma ótica. Observando que o movimento de venda de óculos ali no 14 não ia nada bem, Mara perguntou para o dono se ele não se interessaria em passar o ponto. Proposta aceita. Numa tacada de mestre, o Stylus mudou da salinha escondida no prédio 10 para um espaço mais amplo, no 14, onde está há dois anos.

Na frente do Stylus Africano, dezenas de moças disputam espaço com a panfletista uniformizada do salão das três irmãs. Uma das mais bonitas é a que distribui a propaganda da Cris Tranças e Implantes. Conhecida como Xuxa, a morena baixinha e magrinha leva o cliente interessado em implante até o salão que ocupa a loja 801, do 10. Esse é o quarto ponto que ocupam Cristina Conceição, 33 anos, seu marido André de Oliveira, 29, e a amiga que não revela a idade, Gislaine da Silva, desde que perceberam que o trio tinha o “dom com o cabelo” e fizeram deste um ganha pão. Como manda a tradição, Cris aprendeu as primeiras técnicas com a mãe. Com os crescentes pedidos de implante, ela, intuitivamente, começou a adaptar seus pontos de amarração para atender à nova demanda. Quando a moça deu seus primeiros passos no exercício de implantista, foi nos pêlos lisos do sovaco do então namorado André que ela treinava. Ele, por sua vez, mostrou habilidade com o corte de cabelo em máquina. Cris sentiu que o rapaz também tinha o “dom

Quando a moça deu seus primeiros com cabelo”. O namoro e os negócios evoluí- passos no exercício ram, ela se mudou para de implantista, morar com ele no Colubandê, em São Gonçalo. foi nos pêlos lisos André arrancou as portas do armário do quar- do sovaco do então to, cortou-as em pequenos pedaços de madei- namorado André ra, pegou uma escada e saiu martelando plaque- que ela treinava tas pelos postes do bairro. Assim anunciou o novo salão que o casal oficializara em casa. Queixa comum entre os comerciantes da região, Cris e André dizem que o maior problema do negócio é o fiado e o cheque sem fundo. Uma situação que os persegue desde o início dos negócios, em São Gonçalo. Também foram vítimas de trambiques na sala que alugaram, no centro de Niterói. Mesmo deprimida com a grande quantidade de calote, Cris não titubeou quando se viu diante da oportunidade de negociar uma sala no quartel general dos implantes: — A minha fornecedora falou que estavam alugando boxes num shopping da Sete de Setembro. Eu vim. O André ficou com medo, o aluguel

Adriana conta que a primeira a mexer com cabelo foi Mara: — Ela tem um talento natural. Então a Mara ensinou a Elisângela. Eu fui vendo aquilo e acabei aprendendo também. Acho que é um dom de família mesmo. Todas as irmãs e também as funcionárias (menos os atendentes Cléber e Leandro) usam implante de cabelo “enroladinho, bem natural, de acordo com a nossa pele”, justifica Adriana. As três ensinam às novas implantistas a técnica desenvolvida por elas “que é para sair tudo igualzinho”. Pelo investimento feito em propaganda, os negócios vão bem. Diariamente, uma chamada de 20 segundos vai ao ar no intervalo do programa da Adriana Bombom, na TV Record. Aos domingos, tem anúncio na revista do jornal “O Dia”. Por estrelar os comerciais, Adriana é reconhecida na rua.

“Quando tem tsunami é ótimo, porque as pessoas têm que vender o cabelo pra sobreviver né, fazer o quê?”

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era caro, R$ 2.000. Dali, consegui uma sala aqui no 10, mais em conta e ponto de referência em cabelo. Eu já vinha aqui com a minha mãe quando tinha 15 anos. Outro problema dos salões da Tiradentes é o roubo de conhecimento. “Espionagem industrial, cumpadi, tá de bobeira!”, grita um André arredio, com ginga de malandro, calça e blusa sociais impecavelmente pretas ao avistar a reportagem da Zé Pereira e suas inúmeras perguntas. Por duas vezes, tentou alertar os funcionários de que éramos X-9. Na primeira, fez um “X” cruzando os dedos indicadores. Depois, sacolejou os cinco dedos da mão direita e outros quatro da esquerda. O segredo guardado a sete chaves deste tipo de negócio são os nós — cerca de seis, os mais conhecidos. É assunto corriqueiro na área os casos de cabeleireiras de outros bairros da cidade que chegam até a Tiradentes em missão de espionagem, disfarçadas de clientes. — Os pontos são feitos para durar e não soltar. Mas se a cliente volta reclamando que ele abriu e o cabelo soltou pode ser que ela esteja tentando aprender como é que se faz, nos vendo refazer. Da última vez que isso aconteceu, eu olhei bem pra cara dela e a levei para uma salinha sem espelhos, refiz o serviço, mas ela não viu como o ponto era feito. Nunca mais voltou. Era uma X-9.

Ladrões de cabeleiras O negócio com cabelos humanos tem também suas armadilhas. Cris conta que, por dia, recebe a visita de umas seis meninas interessadas em vender suas mechas. Vez ou outra, a visita é mórbida: alguém cuja mãe morrera e o cabelo, que não serviria para mais nada, foi cortado para ajudar nas despesas do funeral. Recentemente, o apresentador Gugu Liberato promoveu em seu programa de TV um leilão de cabelos humanos no qual chegou a pagar até R$ 3 mil por um bom tufo. O alto valor pago pelos fios provocou uma corrida aos salões da Tiradentes. Só que o mercado não é tão aquecido assim. — O cabelo humano à venda no Centro do Rio vale de R$ 40 a R$ 200. O importado, da Índia, é mais barato e já vem tratado — conta Adriana,

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Lucinda Miguel da Silva, 43 anos, vendedora do ramo há quatro, na Special Hair

do Stylus Africano. — Eu até pago bem, mas agora estou começando a importar e vou poder cobrar mais barato pelos fios. Quando tem tsunami é ótimo porque as pessoas têm que vender o cabelo pra sobreviver né, fazer o quê? Apesar de existir como lenda urbana há muito tempo, o negócio de compra e venda de cabelo entrou de verdade no imaginário dos cabeludos quando surgiram os casos de roubo. O Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro não possui estatísticas do delito, mas no verão passado a cidade se assombrou com o caso da vendedora Mirna Marchetti, única vítima de um assalto ao ônibus 928 (Marechal Hermes-Ramos): roubaram-lhe, com uma só tesourada, a linda e longa cabeleira castanha que cultivava há quatro anos. O caso foi registrado na 22ª DP, na Penha. Em dezembro de 2006, uma moça também teve seus cabelos roubados numa lanchonete da Ilha do Governador. Não prestou queixa. Na época, Kátia Amorim, gerente das Perucas Lady há 30 anos, disse à imprensa que o crime havia sido planejado: — Isso é encomenda. Alguém vai fazer interlace e pediu o tipo de cabelo que foi cortado. O bandido vai vender por, no máximo, R$ 50 e o cabeleireiro vai cobrar R$ 500 pelo serviço. Os fornecedores das Perucas Lady são do interior de Minas Gerais e de Mato Grosso. No Rio, afirma Kátia, os cabelos não têm qualidade por conta da exposição à água do mar e ao sol. Nadando contra a corrente, a badalada rede Fiszpan, que produz e vende perucas, não utiliza cabelo humano. A dona da rede, Solange Fiszpan, diz que usa fibra sintética por esta ser uma tendência internacional, ter melhor aceitação e caimento bonito. Sem falar que assim dá para saber com certeza a origem do material usado, pois há um golpe comum no mercado: dona Zenaide (do salão Zenaide e Filhas, que fica no Edifício Riqueza) relata ter passado maus bocados quando caiu no conto do “rabo de pônei” — pêlo de cavalo vendido como humano.

O “dom” do cabelo Nesse mundo onde todas sonham com cabelo, o conhecimento é prático, passado com honrarias de família e aura mística. Todos os entrevistados se referiram a seu talento como um “dom” e ele vale mais que qualquer coisa, mais que os mais bonitos cabelos à venda no mercado globalizado. Cris chama seu salão de ateliê e tem carteirinha do sindicato como artesã e tudo — “Artesão peruqueiro: a função exata é essa”, define. Mas nesse meio, onde nunca se usa a expressão “aplique”, é chamado de implantista o profissional que faz alongamento, megahair, entrelace, microtrança, fio solto, fio puxado, fio solto duplo e o que mais inventarem de técnica para colocar mais cabelo nas cabeças dos outros. Mesmo não sendo uma inserção de um bulbo de fio dentro do couro cabeludo, o nome “implante” é domínio público e dignifica a prática. Afinal, é quase uma cirurgia plástica que se opera no visual das clientes. André gosta do exemplo da menina que entra “neguinha” e que sai de lá “morena”. Cris conta que “a coisa mais comum é que as mulheres surtam quando colocam um cabelo novo”. Adriana, da Stylus, lembra de uma cliente que “fez 50 anos, colocou implante e foi pular de asa delta, até trouxe o vídeo para a gente ver!” Zenaide se emociona ao lembrar da senhora que queria arrumar o cabelo que havia sido mal implantado em um outro lugar e que após a correção e aplicação de um novo acabamento, vendo o resultado, começou a chorar e quase desmaiou. André tem até um “Guiness Book” das performances mais loucas que as mulheres já foram capazes depois de “implantadas”: a mais impressionante, diz, foi o caso de uma menina que saiu do salão tarde da noite, pegou o primeiro táxi que passou em frente ao prédio 10 e sumiu. Reapareceu quatro dias depois para terminar o casamento com o marido, pegar suas coisas e ir embora. Mudouse para a casa do taxista, seu novo namorado. π

André gosta do exemplo da menina que entra “neguinha” e sai de lá “morena”

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TO EN AM

LA NÇ

crônica

O DIA QUE CONHECI UM SACI DE VERDADE

Sim!

Sacis existem mesmo, como pude ver com esses olhos que a terra um dia há de comer. O ano era 2005. Fui encontrar uma turma na Cinelândia, no finado Carlitos, para uma despedida de umas minas que iriam viajar. Eu estava de olho em outra garota da mesma panela, por isso fui lá no ponto de encontro, encontrar os despedintes numa mesa com umas dez pessoas. Entre eles estava um cara falando sem parar, um tal de Saci, um cara que havia se introduzido na mesa meio que do nada. Eu estava com uma câmera digital vagabunda e resolvi registrar a festa, focalizando principalmente a gostosa em quem eu estava interessado. De repente o Saci me encarou furioso, perguntando por que eu estava tirando a foto daquele jeito e se levantou. Aí entendi por que chamavam ele de Saci. Ele não tinha uma perna. Pensei que ele ia partir pra ignorança, mas o Saci fez questão que eu tirasse uma foto dele de corpo inteiro. Ele dizia que, como saci, não admitia ser fotografado só da cintura pra cima. Ficou se apoiando na única perna para mostrar que era um saci pra valer. E, claro, me alugou o resto da noite, no que os meus companheiros de mesa respiraram aliviados, pois tirei o fardo deles. Seus olhos brilhavam quando ele afirmava, convicto, ser “o verdadeiro Saci original”.

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texto e ilustração: OTA

E foi desfiando sua história. Ele era um saci profissional, embora seu currículo seja bem pequeno: só conseguiu trabalhar como saci uma única vez, na virada dos anos 80, naquela versão do “Sítio do Picapau Amarelo” em que a Zilka Salaberry fazia a Dona Benta. Mas ele era só um dublê. O saci-titular era o Cosme dos Santos. Que até era um rapaz esforçado, mas tinha um grande problema: o Cosme não tinha competência pra ser um Saci de corpo inteiro. Se aparecesse atrás de uma moita, ou só em close, tudo bem, dava pra enganar. Mas, se tivesse que aparecer numa panorâmica, a perna extra denunciava tudo e a farsa acabava. Era então que entrava o meu novo amigo, feliz por ter encontrado sua verdadeira vocação. Só que alegria de saci pobre dura pouco. Quando o programa acabou, foi pro olho da rua. A Globo nunca mais chamou o nosso amigo Saci, que hoje sobrevive durante o dia trabalhando no gabinete de um vereador e de noite alugando as pessoas na Cinelândia. E, enquanto isso, indivíduos inescrupulosos como Ziraldo e os herdeiros de Monteiro Lobato até hoje faturam uma grana à custa do pobre Saci. Ou seja, sacanearam o cara. Essa desculpa de que ator de um papel só não tem futuro não cola, afinal o Zé Mayer decolou na sua carreira fazendo justamente papel de... Zé Mayer! O sol tem que brilhar para todos.

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conto

VIDA INTERIOR texto: JOÃO XIMENES BRAGA ilustração: TIAGO CARVALHO

Sábado A Marilena está me esperando lá fora, coitada. Sem nada para fazer. Ela podia ter trazido uma revista, o jornal. Mas não deu tempo de pensar nessas coisas. Quando a gente viu que minha febre não baixava por nada, ela foi firme: você vai pro hospital, agora! Gosto dela por causa disso. É uma mulher decidida, sem frescuras. Claro que a maior parte do tempo ela faz dengo, aquelas coisas de mulher que não consegue decidir nunca o que pedir num restaurante. Mas quando precisa, ela é macho paca, coitada. Chamou um táxi, checou minha carteira pra ver se o cartão do seguro-saúde estava lá e me trouxe para o hospital. Perdeu o aniversário da amiga e está lá, sozinha, na sala de espera, sem revista, nem o jornal. Eu aqui, sem revista, nem o jornal, passando o tempo a contar as gotas de soro que caem no tubo rumo à veia no meu braço. Gotas estúpidas. Insistem em cair rápido demais enquanto o tempo real passa lentamente, quase não passa, congelado. Expliquei tudo direitinho ao médico de plantão: acordei hoje passando mal, achei que era ressaca. Tive ânsias de vômito, mas nada saiu. Seja o que for que me preenchesse, escolheu a outra via. Diarréia. Gases. Mais diarréia. E gases. Diarréia aliviadora, gases aflitivos. Como

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se tudo dentro de mim fosse líqüido e gasoso e indócil. Quando deu dez da noite e nada de a febre de 38 graus passar, nem com 40 gotas (igualmente rápidas, igualmente estúpidas) de Novalgina, Marilena sentenciou que iríamos ao hospital. Ela é psicóloga, quase médica, portanto obedeci. Ofereceu-me os ombros a título de escora insuficiente, já que peso quase o dobro dela, e me arrastou até o elevador como um caçador arrastando um urso abatido: com esforço e ar vitorioso. O médico disse que pode ser uma virose. Ou uma infecção. Ou uma virose. Ou talvez uma infecção. Quase lhe propus tirar no par ou ímpar. — O senhor sabe o que é passar um dia inteiro em calafrios e cagando água? Então não quero saber se é virose ou infecção, me arruma um remédio qualquer aí que faça isso parar, caralho! Teria sido muito melhor ter dito isso. Mas aceitei o que ele tinha a me oferecer: um hemograma pra checar se tenho uma infecção e um pouco de soro para não desidratar. Uma vez que perdi a conta das gotas, um pensamento se formou: o dia não foi de todo perdido na intermitente e aquosa evacuação de coisa nenhuma. Algo de sólido se fez nele: Marilena.

Durante todo o dia, ela não saiu do lado da cama, a não ser quando necessário para me servir. Fez torradas. Saiu pra comprar água mineral no meio da chuva. Abraçava-me por cima do edredom enquanto eu tremia de febre e repetia com voz doce: “calma, Mauro, vai passar”. Acarinhava minha nuca enquanto me estendia outro rolo de papel higiênico. Ela já deu provas de dedicação muito além do socialmente aceitável para apenas três meses de namoro. Ela me viu cagar. Cagar água. E viu com olhos úmidos, não de pena, mas de real preocupação e empatia. Marilena é mulher para se partilhar uma vida. Na alegria e na tristeza, na saúde e na caganeira. Acho que soube disso desde a primeira vez que saí com ela. “É essa”, pensei. Essa é divertida, tem papo, não é fresca. Antes mesmo de comer, eu já sabia que para ela eu ligaria no dia seguinte. E olha que eu nem telefonei. Mandei flores. — Mauro, o hemograma não deu nada. O médico cortou minhas reflexões com um algodão embebido em álcool, que pressionou em meu braço enquanto tirava a agulha. — É cedo para receitar qualquer remédio. Pode ser uma infecção. Pode ser uma virose. É melhor ir para casa. Se amanhã não melhorar, você volta. Puta que o pariu!

Domingo Foi a primeira noite em que eu e Marilena dormimos juntos sem transar. Eu não tinha condições. E ela nem tentou. Às vezes acho que isso foi bom. Prova que nosso relacionamento vai além do tesão. Tem futuro. Às vezes fico com certo receio… E se for um sinal de que o tesão já está acabando? Ela dormindo abraçada comigo, ouvindo os roncos no meu estômago, acordando preocupada a cada vez que eu me levantava para botar água para fora do cu… Será que o tesão dela vai voltar quando eu estiver curado? Sei não. Sempre soube que mulher morre de nojo de merda, imagina de merda líqüida.

Eu presto muita atenção no que o Edson diz. Afinal de contas, ele anda muito com mulher, sabe tudo. Verdade que ele sempre reclama quando lhe peço dicas: — Porra, de um lado é mulher me perguntando como se faz um bom boquete, que eu devo saber por que conheço os dois lados da questão. Do outro vem você querendo que eu seja um espião no mundo feminino. Vocês acham que eu sou o que, um Tirésias? Ele sempre reclama. Mas sempre fala. Foi ele quem me ensinou tudo sobre os pêlos do nariz. Mulher detesta pêlo no nariz. Mas o crime maior nem é

se deixar flagrar com uma mata virgem nasal. É se deixar flagrar no desmatamento. Isso mulher nenhuma perdoa, diz o Edson. Ver o homem enfiando uma pinça narina a dentro. Ela perde o tesão na hora. O mesmo serve para cortar unhas do pé, passar fio dental… Elas perdem o tesão com cara de unha grande e dente sujo, mas querem imaginar que o cara nasceu limpinho e estará sempre limpinho. O processo para chegar até o ideal delas há de ser sempre escondido. Justo. Eu não quero ver mulher se depilando na minha frente. E por fim chegamos ao mais importante de tudo, a verdade

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“Hoje eu vou mudar/ Vasculhar minhas gavetas/ mais incontestável do universo: continuo indo lá de meia em Segunda e/hora para honrar o mundo nunca cague na frente de umaJogar fora sentimentosmeia A febre baixou. Marilena mulher. Algumas até gostam de uma pasta amarela de ressentimentos tolos” com ligou para o meu escritório ver o cara mijando – de pé, claro, aroma indelével.

quando você chega bebum em casa e acaba mijando sentado não vale. Acham másculo. Mas cagar é o último tabu. E cá estou eu, com diarréia, sendo assistido pela Marilena, que incorporou com toda força sua porção enfermeira, para não dizer maternal. Pior: hoje já não estou mais cagando água, mas uma pasta amarela que fede feito um cão sarnento morto há dois dias. O banheiro está empestado. E ela fazendo macarrão cabelo de anjo para mim, toda feliz. Ela realmente me ama muito e isso é a prova de que nosso amor sobrevive a tudo. Ou depois que eu me curar ela vai começar a inventar dor de cabeça, não vai mais querer transar e em duas semanas me aparece com aquele papo de “eu preciso de espaço”. Confesso que isso me dá medo. No primeiro dia, estava tão mal que não tinha forças para recusar sua ajuda. A esta altura, porém, eu preferia tê-la longe, para ter certeza de que ela sempre pensaria em mim como o homem que fica duro dentro dela mesmo depois de gozar. Não como um cagão imundo. Pedi para ela ir para casa, mas ela resiste. Fica desfilando por aí de calcinha e uma camiseta minha emprestada, me vendo ter arrepios de febre debaixo das cobertas.

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dizendo que eu não estava em condições de ir. Ligou para várias amigas e descobriu o melhor especialista em caganeira da cidade, mas só conseguiu marcar hora para amanhã. E, por fim, trouxe seu laptop para casa a fim de escrever enquanto tomava conta de mim. Só três meses de namoro. Se não fosse ela, não estaria comendo nada e provavelmente já teria morrido de desidratação. Meu corpo só seria encontrado meses depois. Iam me ligar do trabalho, mas insistiriam só o suficiente para concluir que enlouqueci de vez e abandonei o emprego. Meus pais telefonariam, mas sem insistir, achando que eu os evitava, como de hábito. Alguns amigos me procurariam, o Moacyr ia deixar um recado engraçado na secretária, mas eu não retornaria e eles decidiriam que eu viajara a trabalho. Ou talvez nem isso, pois até ele desapareceu depois de se casar com aquela mulher esquisita. Assim, meu corpo ia apodrecer até o vizinho do 403 perceber o cheiro. Só a Marilena para não desistir de mim. Mas, se bobear, o vizinho do 403 é bem capaz de achar que já tem um corpo apodrecendo no meu apartamento. Meu corpo parece estar apodrecendo, e o único sinal de vida é a ardência no cu. O banheiro tem um cheiro insuportável, pois

Se bem que não é o cheiro do banheiro que se apropriou da casa. Os gases fazem isso por conta própria. Pior que já perdi umas duas cuecas… Sinto um peido a caminho, deixo-o sair com um profundo alívio mas, quando vejo, maculei o algodão branco com mais gosma amarela. Fosse nos Estados Unidos, tudo seria muito engraçado. Americano acha flatulência a coisa mais engraçada do mundo. Mas, no Brasil, escatologia não tem graça nenhuma. Brasileiro se orgulha de tomar banho todo dia, de ser um povo limpinho. Por isso estou preocupado. Queria que a Marilena fosse embora. Preferia ter que me virar sozinho. Ela em nenhum momento reclamou de nada, sequer fez uma piadinha. Fico com vergonha de comentar. Mas não sei como ela está conseguindo conviver com essa fedentina na casa. Acho que extrapolamos os limites de intimidade com rapidez excessiva. Ela está descobrindo o meu interior pelo aroma e não é possível que esteja gostando. Eu mesmo estou muito decepcionado com meu eu interior, não imaginava que se desfizesse no ar desta forma, deixando esse lastro de fedor pelo apartamento. A Marilena é realmente um achado. Por isso não quero que ela termine com nojo de mim.

Terça O médico me encheu de remédios e disse que amanhã já devo estar melhor. E consegui convencer a Marilena a ir trabalhar. Foi ótimo. Consegui ficar mais tranqüilo durante o dia. Esquentei um purê de batata com carne moída que ela deixou pronto e passei o dia vendo merda na televisão. De noite ela apareceu, de banho tomado, uma maletinha com uma muda de roupa, toda cheirosinha. Deu para perceber que ela fez uma careta quando entrou no apartamento e foi tomada por este cheiro de vísceras podres no ar. Deu para perceber que ela disfarçou e abriu um sorriso e perguntou: “meu gatinho melhorou?”. Eu disse que era melhor ela não dormir aqui, que eu não tinha mais febre, já estava melhor. Mas ela insistiu que eu precisava de cuidados. Fazer o quê.

Quarta Dormir junto com a Marilena foi um inferno. Eu não podia sequer peidar em paz. Tinha que ir pro banheiro, para não incomodá-la com o cheiro, tentar preservar pelo menos o quarto. Lá pelas tantas, quando nem eu agüentava mais o banheiro, passei a ir peidar na janela da área de serviço. Mas durante o dia, melhorei. Quando cago ainda parece que estou esvaziando um tubo de mostarda estragada na privada, mas pelo menos só fiz isso duas vezes hoje. E dos gases,

melhorei muito. Peidei pouco. Os remédios começaram a fazer efeito. Benza Deus. Deixei as janelas todas abertas apesar do frio e ao longo do dia a fedentina do apartamento foi se desmilingüindo. Aquele fedor encorpado perdeu a consistência, ficou limitado ao banheiro. Aliás, da próxima vez que me mudar, vou procurar um daqueles apartamentos antigos nos quais o banheiro tem janela. Depois do trabalho a Marilena apareceu de banho tomado, uma maletinha com uma muda de roupa, toda cheirosinha. Deu para perceber que ela fez um ar de surpresa quando entrou no apartamento e não foi recebida por fetidez alguma. Deu para perceber que ela se sentia aliviada quando abriu um sorriso e perguntou: “meu gatinho melhorou?”.

Quinta Dormir junto com a Marilena foi um inferno. Ela tentava me abraçar na cama e eu fugia. Ainda estava desconfortável com meu próprio corpo. Eu me sentia bem, mas não conseguia tirar da memória a podridão interna que emergira naqueles últimos dias. De manhã, depois que ela fez uma banana amassada para mim, terminei com ela. Como ela podia ter convivido tão bem com toda aquela fedentina? Fiquei com nojo. π

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O CAMINHO

texto e fotos: MICHAEL ENDE

DE SANTA TERESA Acordo normalmente com as gargalhadas de Louro, o papagaio, bicho de estimação do meu vizinho, seu José. Acordo muito cedo. Seu José acorda de madrugada para aguar as plantas do belo jardim do casarão dele, com Louro pousado em seu ombro protegido por um pano, porque o papagaio tem uma digestão acelerada. É uma dupla folclórica, um flagrante bucólico da Rua Candido Mendes, ligação íngreme entre Glória e Santa Teresa. Turistas tiram fotos, o gentil senhor de 85 anos, de cabelo e bigode brancos, acena, e Louro ri para os gringos. Se o Louro verde fosse um pombo branco, seria a imagem-símbolo perfeita da paz.

Infelizmente, não sou despertado sempre tão harmoniosamente. Várias vezes já foram gritos, palavrões, xingamentos, até tiros de espingarda que me tiraram da cama. Numa destas vezes, corri para a varanda da frente e me deparei com a cena do crime: um carro novinho em folha, com proteção de plástico nos assentos, fora fechado por uma moto com dois sujeitos aparentemente hostis. Os dois gesticulavam com revólveres 38, um desceu da moto e tirou do novo veículo o infeliz do dono. “Perdeu, cara, perdeu!”, gritou o sujeito hostil, que assumiu a direção do novo automóvel, agora seu... Os dois sujeitos se mandam em alta velocidade. O exdono ficou um tanto perplexo na calçada, mas ainda teve a presença de espírito de pelo ao menos salvar o saquinho com pão fresquinho que trouxe da Padaria das Famílias de Santa Teresa. Demoraria mais tempo para chegar em casa a pé, mas pelo menos não passaria fome. O meu vizinho gritou “ladrões!”. E da sua espingarda, que guarda desde a Segunda Guerra Mundial, disparou um tiro para o céu matinal de Santa Teresa. Ensinei ao azarado visitante o caminho para a Delegacia de Polícia, mas ele preferiu ir primeiro para casa, alimentar a família e se recompor do susto. “Este bairro não tem mais jeito!”, exclamou meu vizinho, vermelho de raiva. Louro deu gargalhadas. Para os não moradores de Santa Teresa, algumas infor-

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mações sobre o local do crime: a Rua Candido Mendes não começa nobre; mais precisamente, ela nasce na Rua da Glória, point dos travestis, tem uma sauna gay e uns hotelzinhos mal-assombrados. Com a subida em direção a Santa Teresa, vai melhorando o nível dos estabelecimentos: passamos pelo Consulado da Suíça, e a partir daí ela vira rua de paralelepípedos com casarões imponentes atrás de muros altos. Em seguida vem o clube de squash, esporte de elite, como indicam os carrões importados no estacionamento. Depois, uma leve decadência de novo — o prédio onde eu resido. Mas na próxima curva, o orgulho da rua: a residência do cônsul da Alemanha, um verdadeiro castelo com uma torre kitsch pseudomedieval, portão de ferro com a águia-brasão do meu país — sim, eu sou alemão — e guarita blindada particular. Que, infelizmente, não protege ninguém, nem mesmo uma proteção psicológica, conforme descobri dolorosamente no decorrer dos anos. E finalmente desemboca na Almirante Alexandrino, em plena orla gastronômica do bairro. Por incrível que pareça, a Candido Mendes não tem transporte público. Nem ônibus, nem van, nem metrô. Só tem ponto de moto-táxi na paralela Rua Santo Amaro — e muito assaltante saindo para trabalhar de duas rodas. Não é boato ou preconceito, é informação confirmada pelos próprios pilotos de moto-táxi. Então sou obrigado a andar a pé, pegar a via-sacra da minha humilde residência até o meu escritório, mais humilde ainda, na Rua Paula Matos. Saio por volta das sete e meia da manhã. Podia até ser uma caminhada gostosa, saudável, um exercício matinal. Mas não é. No topo da Candido Mendes, na Almirante Alexandrino, passam duas linhas de ônibus, que já substituem em quase 100% as tradicionais linhas de bonde com o mesmo destino: a 206, saindo do Centro da cidade até o Morro dos Prazeres, e a 214, indo para a Paula Matos. Até 1968, circulavam 28 bondes no bairro; hoje são dois. Segundo informa a Associação dos Moradores de Santa Teresa (Amast), o Banco Mundial liberou US$ 1 milhão para a recuperação dos bondes. Cadê este dinheiro? Ninguém sabe. Os dois bondinhos sobreviventes trafegam, digamos, esporadicamente. São usados principalmente por gringos armados com máquinas fotográficas e câmeras de vídeo. Para sentar, custa R$ 1,60; pendurado nos estribos é de graça. Normalmente, tem um PM viajando em pé no fundo do carro, para evitar perda súbita de máquinas e filmadoras. O Estado quer privatizar o sistema de bondes. A Amast receia que vire excursão fretada para turistas, proibida para moradores.

O Banco Mundial liberou US$ 1 milhão para a recuperação dos bondes. Cadê este dinheiro?

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Mas os que aqui vivem há muito desistiram de esperar o bondinho. São obrigados a embarcar nos pequenos ônibus da Transurb, que são normalmente superlotados, sem o prometido ar condicionado funcionando, mesmo assim custando R$ 2. Circulam com horários misteriosos. Passam cinco carros seguidos com destino ao Morro dos Prazeres; nenhum para Paula Matos. Às 22h cessa o serviço de transporte regular em Santa Teresa, um bairro boêmio com suposta vocação turística. Há cinco pontos de táxi no bairro, mas muitos taxistas de fora não gostam de subir suas ladeiras. Não só por causa dos assaltos. Também temem que o trilho do bonde corte os pneus dos carros. Em dia de chuva, então, nem pagando bandeira 2: paralelepípedo com chuva é mais escorregadio do que lama. Então, à noite, Santa Teresa vira um bairro isolado. Ainda não chegou ao Brasil o hábito de recolher cocô de cachorro. Os poucos cidadãos que têm esta atitude louvável normalmente viram alvo de piada de quem fica observando. Eu só vi

Perdi a conta de quantas vezes achei o meu carro (ou o carro de visitas) arrombado. Desisti de ter carro.

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uma vez em Santa Teresa. Quis apertar a mão do dono do animal pelo bom exemplo, mas desisti da idéia: ele não tinha recolhido o detrito do seu amiguinho com uma pá. Também não chegou ao Brasil (pelo menos não em Santa Teresa) o hábito de recolher carro sucateado da calçada. Depois do Largo dos Guimarães, descendo a Pascoal Carlos Magno, o bairro vira um verdadeiro cocódromo. Só não tem cocô onde tem carro abandonado. Contei entre a Candido Mendes e a Paula Matos oito carros bloqueando a passagem. Não contei os cocôs. Na Rua Progresso e na Pintora Djanira piora a situação. Sim, é possível: os pedaços de calçada não decorados com cocô ou obstruídos com veículos estão quebrados pelas raízes das amendoeiras, muitas delas já condenadas e sem galhos. Há trechos longos onde o pedestre é forçado a andar no meio da rua íngreme e de paralelepípedo. Nunca vi, em quase 20 anos morando no bairro, nem uma obrinha para melhorar a calçada. Também nunca vi ninguém — morador ou visitante — de cadeira de rodas tentando se locomover em Santa Teresa. Para mãe com carrinho de bebê é igualmente impossível a circulação. É um bairro antigo, histórico, comparado (pelos governantes) ao Bairro Alto, de Lisboa. É sonhar alto mesmo.

Chego à Paula Matos 24 minutos depois da partida. Tenho a impressão de que sou o único no bairro a fazer este percurso a pé voluntariamente. É raro encontrar outros pedestres. Morei na Paula Matos depois da minha chegada ao Rio, em 1988. Tentei me convencer que aquela rua, já na época bastante degradada, era charmosa, com as fachadas históricas pichadas, uma favelinha no meio, vários botecos péssujos e um monte de gente tomando cachaça dentro e fumando maconha fora. Por precaução, perguntei ao dono do boteco mais próximo se a rua era segura. “Aqui existe respeito!”, respondeu o velho senhor português, e eu acreditei. Deve ter sido uma piada infame do português. Perdi a conta de quantas vezes achei o meu carro (ou o carro de visitas) arrombado. Desisti de ter carro. Fui assaltado na rua só uma vez, perto do Lago das Neves, por dois sujeitos com duas facas grandes numa pequena moto. Perdi uma câmera Nikon F2 e duas lentes. Ainda tentei protestar: “Pô, não sou turista, não!”. Não convenci. Teve um vizinho que roubou a minha casa e levou tudo de valor: o meu equipamento fotográfico completo, fax, videocassete. Ele entrou pelo telhado no início da tarde e saiu pouco depois pelo mesmo caminho com as minhas duas malas de viagem. Ninguém da vizinhança viu, é claro. O vizinho-ladrão tomou gosto pelo negócio e começou a assaltar até traficante da favela da Mineira. Fui testemunha auditiva da solução do problema: dois disparos de 38 numa bela tarde ensolarada, a 20 metros da minha casa, na Ladeira Frei Orlando. Pulei da minha rede para conferir o resultado. Lá estava estendido o corpo do ex-terror da Paula Matos, de bermuda e havaia-

nas, com dois buracos na cabeça. Um parente jogou um lençol sobre o cadáver, que só foi retirado pelo rabecão na manhã seguinte. Houve pouco luto na Paula Matos, e voltou uma certa tranqüilidade à rua. Convenci-me de novo que o bairro era charmoso e me adaptei às regras de uma zona em quase guerra civil. Uma vez, cheguei a perguntar a um PM no Largo dos Guimarães que atitude deveria tomar perante a onda crescente de violência. O conselho do velho e aparentemente cansado cidadão em uniforme foi pouco confortante: “Mude de bairro, meu filho.” Fiquei muito sentido também quando a minha professorinha de chinês, Jade, visitou-me pela primeira vez para uma aula particular. Ela tinha 19 aninhos, saíra há um ano e meio da cidade de Qufu, terra de Confúcio, morava na Tijuca e nunca tinha ido à Santa Teresa. Ela chegou numa manhã de segunda-feira, amarelo-pálida de susto: “Senhol Michael, polque você mola em Santa Teleza?? É holível!!!” Tive que trocar de professora. Mas não troquei de bairro. Inventei um novo método de segurança para ser aplicado depois do sumiço do transporte público às dez horas da noite. Ando no meio da rua, assim evito os obstáculos matinais, o cocô e as carcaças de carro. Ando bem rápido, sem bolsa, mochila, e carrego a minha camisa na mão. Estou quase nu, suado, correndo como um louco por uma Santa Teresa deserta. Ninguém nunca mais tentou me parar, obviamente. Funciona muito bem este novo método. Mas não gostaria que a minha mulher o adotasse. π

no site: LARGO DAS NEVES

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texto: LUIZ BELLO fotos: EDUARDO SOUZA LIMA

PERTO D

ÚLTIMO

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O

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texto e fotos: BELLO

Uma demanda judicial de 40 anos está no Supremo Tribunal Federal (STF) e deve chegar ao fim nas próximas semanas. Estão em jogo 36 mil m2 de um belo parque esportivo em plena zona sul do Rio de Janeiro. A área faz parte do campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) na Praia Vermelha, é parcialmente ocupada pelo Canecão e totalmente reivindicada pela Associação dos Servidores Civis do Brasil (ASCB). São três dinossauros em uma batalha antológica. Por um lado, temos uma entidade remanescente do assistencialismo getulista que há 36 anos é presidida pela mesma pessoa. De outro, uma das mais bem sucedidas casas de espetáculo do país, que passou anos pagando aluguéis irrisórios para ocupar um dos pontos mais nobres da noite carioca e responde a diversos processos na Justiça. E, por último, a mais antiga universidade federal do Brasil, que, às vésperas de (muito provavelmente) vencer a guerra, pretende abandonar o campo de batalha. Em julho, a UFRJ anunciou o plano de transferência de todas as suas unidades para a Ilha do Fundão. Com isso, o terreno da Praia Vermelha seria cedido a empreendimentos imobiliários, rendendo mais de R$ 100 milhões anuais em aluguéis para a universidade. Esse valor equivale ao orçamento anual da UFRJ, e poderia tirá-la do buraco. Quem resiste a uma tentação dessas? 35


No Olimpo Às 19h de uma sexta-feira, os corredores do Palácio Universitário parecem maiores. O sofá do século retrasado é um lugar confortável para esperar pelo reitor Aloísio Teixeira, que se encontra em reunião numa sala dez metros adiante. Ele não sabe que estou à sua espera e não é antipático quando o intercepto com um sorriso amarelo e o gravador na mão. Sem parar de caminhar, se diz sem tempo, mas vai entregando a história. De cara, a novidade. A longuíssima ação judicial em torno do terreno do Campus da Praia Vermelha, que envolve UFRJ, o Canecão e a ASCB está para terminar nas próximas semanas. O STF dará um veredicto final e, para o professor Aloísio, é quase certo que a UFRJ vença. Não, ele não quer antecipar resultados para não melindrar o judiciário, mas acha difícil a universidade perder, porque o próprio Supremo já lhe dera ganho de causa no último julgamento e dificilmente costuma contradizer suas próprias sentenças. Já estamos nos dirigindo ao estacionamento e eu insisto na entrevista. Não, ele não pode me falar sobre a história do longo processo agora, mas tem documentos em casa. Recomenda o livro do professor Pedro Calmon, o reitor que restaurou o Palácio Universitário e fundou o Campus da Praia Vermelha. Sim, ele confirma o que eu já ouvira falar: não pretende mais tentar cobrar aluguéis do Canecão, mas simplesmente despejá-lo judicialmente. Não, ele não acredita que a ASCB tenha mais alguma chance de recorrer. — É uma entidade que não representa mais ninguém. Até tentaram um acordo conosco, para vender o terreno e dividir os lucros — diz.

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Não se lembra se tem agenda para me receber na próxima semana. Dá o número do celular, apertamos as mãos, boa noite.

O homem de Deus Avenida Rio Branco, nº 147, sétimo e oitavo andares: sede da ASCB. A decoração remete ao fim dos anos 70, quando parece ter havido a última reforma no local. Os papéis de parede ainda combinam com o tapete, mas essa harmonia é quebrada por um grande cartaz amarelo, tipo cardápio de pensão, com os preços de um convênio odontológico. Há também algumas desbotadas fotografias da colônia de férias em Paulo de Frontin. O endereço da entidade eu descobri na Internet e, após dois telefonemas (o primeiro caiu num fax), já estava falando com seu presidente, para quem esclareço o assunto de nossa reportagem. Embora estranhando um pouco o nome da revista, ele não parece surpreso. Educado, mas firme, disse que só conversaria comigo pessoalmente. O dr. Darcy Daniel de Deus diz ter 84 anos, mas parece que tem menos. Ex-funcionário do IBGE e ex-professor da Faculdade de Odontologia da Universidade Federal Fluminense, ingressou na diretoria da ASCB no emblemático ano de 1964. Quase onipresente nas fotografias das paredes, um Darcy 40 anos mais jovem posa ao lado dos presidentes Dutra, Médici, Geisel e Figueiredo. Em outra, segurando a bandeira nacional em uma parada militar em Brasília. Em 1974 e 1978, candidatou-se a deputado federal pela Arena, mas não se elegeu.

R. Arnaldo Quintela 106 Botafogo Rio de Janeiro T. 21 30957626 www.zenserigrafia.com.br

Outro quadro na parede mostra o dr. Darcy com seus cinco antecessores na presidência da entidade. Nenhum deles permaneceu no cargo por mais de dois anos, mas Darcy Daniel de Deus preside a ASCB desde 1971. Ligo o gravador, mas ele se levanta e sai pela sala à procura de dois livros, uma pequena biografia dele (do qual ganho uma cópia autografada) e um resumo do processo que envolve a UFRJ, a ASCB e o Canecão. E aponta uma pasta, no fundo da sala onde estariam diversos documentos sobre essa longa história.

Getúlio e Priolli

Vermelha (116.250m2), inclusive a área em litígio, para a UFRJ. É irônico que o general presidente democrata tenha favorecido uma entidade tão ao estilo da Carta del Lavoro, enquanto o general presidente golpista tenha defendido uma universidade cheia de “subversivos”. Mas, na época, as coisas ainda não estavam tão em preto-e-branco. Segundo o dr. Darcy, tudo teria ocorrido a pedido de um irmão do então reitor Muniz de Aragão, amigo de Castelo Branco desde os tempos da Academia Militar de Agulhas Negras. De qualquer forma, os dois decretos têm servido de base para a longa batalha jurídica que se seguiu. O dr. Darcy lembra que, na década de 1960, nos fundos do Campus da Praia Vermelha funcionava o Colégio da Associação dos Servidores Civis. Ao lado, havia um terreno que, inicialmente, foi cedido a um boliche. Com o movimento decaindo, o espaço foi dividido entre o boliche e um salão de danças. Aí é que entra Mário Priolli, arrendatário do Canecão? O dr. Darcy reluta em falar, mas faz referências à genitora do desafeto. Inaugurado em 23 de junho de 1967 como uma cervejaria que apresentava shows de variedades, o Canecão assinou um contrato de dez anos com a ASCB, comprometendo-se a reconstruir e ampliar a escola da associação, e a pagar um aluguel equivalente a 10% de sua arrecadação diária. Em 25 de agosto de 1971, a UFRJ entrou com uma ação reivindicando a posse do terreno ocupado pelo Canecão. A ASCB também entra na ação, como litisconsorte da casa de espetáculos. Mas Priolli tenta um acordo com a UFRJ, e deixa de pagar aluguel à associação. Com isso, a ASCB entrou na Justiça reivindicando a posse dos 36 mil m2 do Campus da Praia Vermelha, que incluíam o Canecão e toda a área da Escola de Educação Física. A guerra começava.

Um Darcy 40 anos mais jovem posa ao lado dos presidentes Dutra, Médici, Geisel e Figueiredo

“Entidade máxima dirigente das atividades sociais e desportivas dos servidores públicos em todo o País”. É o que diz da ASCB o decreto lei nº 8.012, assinado em 29 de setembro de 1945, por Getúlio Vargas, patrono da entidade e presente na parede da sala do seu presidente. Na pequena biografia do dr. Darcy também há uma longa lista de audiências com presidentes e ministros, nas quais ele teria obtido diversos benefícios para os servidores públicos. Ali também estão enumeradas as várias sedes que a entidade já teve em todo o país: um prédio de nove andares no centro do Rio (hoje pertencente a OAB) e outros em Belo Horizonte, Brasília, Porto Alegre, Salvador... Sempre negociando nos gabinetes, a “entidade máxima” também teria obtido uma importante doação do presidente Dutra, através do decreto 28.884, de 1950: 36 mil m2 do Campus da Praia Vermelha, que passariam à ASCB assim que a Escola de Educação Física e Desportos se transferisse para a Cidade Universitária, na Ilha do Fundão (o que de fato aconteceu, em setembro de 1972). Ora, mas então o terreno é mesmo da Associação? Não, pois em 28 de novembro de 1967, o então presidente Castelo Branco assinou o decreto lei 233, que doa todo o terreno da Praia

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O Canecão é alvo de diversas ações na Justiça

sor lembra que, apenas numa tarde, o salão do Canecão costuma ser alugado para festas de formatura, a R$ 10 mil. Somando-se isso aos shows e aos patrocínios, a soma pedida era mais do que razoável. O perito indicado pela Justiça acatou os argumentos. Embora bem sucedido, o professor Osvaldo apenas ajudou as coisas a voltarem ao que eram em 1967. Naquela época, a própria ASCB usava esse critério para o aluguel que recebia do Canecão que, mais uma vez, deixou de pagar o aluguel, meses depois. Uma rápida pesquisa nos sites do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (www.tj.rj.gov.br) e da Justiça Federal (www.trf2.gov.br) mostra que o Canecão é alvo de diversas ações na Justiça. Entre elas, uma do governo do Estado do Rio de Janeiro, por sonegação de impostos, e outra do Ministério Público Federal, por ter e deixado de pagar R$ 226 mil ao INSS. Nesta ação, a mais recente, o Canecão é acusado de ter cometido 22 vezes o crime de apropriação indébita de contribuições previdenciárias. Apesar disso, continua contando com o patrocínio da Petrobras, mantendo, inclusive um site em parceria com a estatal (www. canecaopetrobras.com.br), onde somos informados sobre o projeto de uma nova fachada com os respectivos logotipos. Tentamos uma entrevista com Priolli, mas a assessoria de imprensa do Canecão informou que “por enquanto”, ele não gostaria de falar.

Lucro presumido A guerra começava e a UFRJ levava uma surra. O primeiro a me mostrar isso foi o professor Osvaldo Luiz de Souza, da Faculdade de Arquitetura, que entrou na história em 2005, quando foi chamado pela reitoria para ajudar um perito judicial a estabelecer o novo valor do aluguel pago pelo Canecão. Um detalhe interessante: tudo era parte de uma ação revisional movida pelo próprio Canecão, contra a Universidade. Algo comum em relação a imóveis comerciais: ou o inquilino ou o proprietário pedirem à Justiça uma revisão no valor do aluguel. Segundo Osvaldo, havia três pedidos de revisão do Canecão na Justiça. Na época, Osvaldo apresentou uma bibliografia e diversos argumentos mostrando que casas de espetáculo devem pagar aluguel equivalente a um percentual do seu faturamento. Com isso, o valor do aluguel deveria subir dos R$ 17 mil propostos pelo “inquilino” para R$ 26 mil — ou 5% do faturamento líquido presumido. O profes-

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Em outubro de 1999, o governador Anthony Garotinho assinou um decreto supostamente tombando o Canecão. Na verdade, o texto apenas diz que a área deverá ser destinada a “atividades educativas, culturais e artísticas vinculadas à Música Popular Brasileira”, e não contesta a posse do terreno pela UFRJ, o que pouco ajuda a casa de espetáculos. Além disso, em abril de 2002 o decreto foi anulado pela Justiça Federal.

Unificar todas as escolas Descontinuidade Quem conta isso é o professor Maurício de Cardoso na Cidade Arouca, que foi sub-reitor de Patrimônio na gestão do reitor José Henrique Vilhena, no fim dos anos 90. Ele acompanhou a Universitária questão dos diversos imóveis em litígio da UFRJ, e tem convicção que o caminho para órgãos federais é, por incrível seria uma forma que pareça,melhor evitar ações na Justiça. — Eles sempre perdem — diz. de otimizar os A razão? A rotatividade de procuradores federais, reitores e demais administradores provoca uma descontinuidade gastos da UFRJ no acompanhamento dos processos. De fato, ao longo dos 40 anos que dura a sua disputa com a ASCB e o Canecão, a UFRJ teve 16 reitores e, conseqüentemente, diversas mudanças no quadro administrativo. O próprio Arouca já deixou a sub-reitoria e trabalhou em Brasília, antes de retornar à Coppe UFRJ. Enquanto isso, o outro lado esteve sempre atento. No caso do litígio da UFRJ com o Canecão, Arouca diz que, a cada mudança de reitor, a casa noturna propunha um novo contrato de aluguel, que deixava de ser pago alguns meses depois. Além disso, nas negociações, repetiam uma ameaça:

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— Se vocês não fecharem com a gente, a ASCB acaba retomando o imóvel, e todos perdem — conta o ex-sub-reitor. Como os administradores recém-empossados quase nunca conheciam os detalhes do longo processo, acabavam engolindo a história... Segundo Arouca, foi por essa razão que o Canecão conseguiu passar anos pagando aluguéis irrisórios à UFRJ. Quando não havia acordo, a casa de espetáculos dizia depositar o valor dos aluguéis na Justiça. — Mas fomos verificar as contas correntes e vimos que eles só depositavam um salário mínimo por mês — lembra o professor. Por tudo isso, apesar dos bons serviços prestados pelo professor Osvaldo na avaliação do valor do aluguel a ser pago pelo Canecão, a UFRJ acabou abrindo mão da cobrança. A reitoria optou por não mais fazer acordos e simplesmente tentar retirar o Canecão do imóvel.

LEIA PAPEL DAS ARTES Arte, Cultura e Informação

Buracos na parede Pelo lado da ASCB, a UFRJ tomou outra surra, perdendo quatro julgamentos em diversas instâncias, até que em 28 de julho de 1988 conseguiu derrotar a Associação por 3 votos a 2 no STF. Nesse ínterim, a ASCB enfrentou uma campanha direta contra sua permanência no campus. Em 1985 assumiu a direção da UFRJ o primeiro reitor eleito diretamente, Horácio Macedo. Nessa época, veio à tona que o Canecão pagava de aluguel à UFRJ apenas 50 mil cruzados por mês, o que hoje equivaleria a uns R$ 50,00. O DCE aderiu à campanha e os alunos derrubaram a parede que separava a UFRJ do colégio da associação. Nada disso ajudou às batalhas na Justiça, e a UFRJ continuou perdendo nas duas frentes. Nos anos 90, o colégio da ASCB deu lugar a um bingo, administrado por Chico Recarey, que só foi fechado há alguns anos devido aos escândalos envolvendo casas de jogos de azar em todo o país. Hoje, a ASCB já não tem o mesmo prestígio político de antes. Existem mais de 30 diferentes entidades representando os funcionários públicos federais, que também não têm mais o mesmo

status dos anos 40. O dr. Darcy diz que permanece na ASCB apenas por causa do processo contra a UFRJ, e está fazendo uma última tentativa de vencer a disputa, através de uma ação recisória nº 1333 / 90. O dr. Darcy lembra, com uma ponta de orgulho, que a ação é conduzida em Brasília pelo mesmo advogado da ex-amante do presidente do Senado, Renan Calheiros. A tentativa de acordo em relação ao terreno da Praia Vermelha, mencionada pelo reitor Aloísio, é confirmada pelo dr. Darcy, para quem a ASCB se contentaria com 40% do valor de uma possível venda do imóvel. E diz, com convicção, sobre a UFRJ: — Na Justiça, eles não vão ganhar. As conexões continuam tortuosas, o patrimônio parece ser ainda grande, mas as chances de a ASCB vencer essa última batalha parecem remotas, pois seria muito difícil o STF rever sua decisão anterior por causa de uma recisória, ainda que movida pelo astuto dr. Darcy...


Pragmatismo milionário Para o professor Arouca, todos os pleitos da ASCB são ilegítimos. Ele lembra que o presidente Castelo Branco, na época em que assinou o decreto doando definitivamente o terreno da Praia Vermelha para a UFRJ, teria dado outro terreno, próximo ao Aeroporto Santos Dumont, para a ASCB, como prêmio de consolação. Ali foi construído um edifício, de pé até hoje, que tem o nome da entidade na fachada. Mauricio Arouca também acompanhou o caso do imóvel da UFRJ na Avenida Chile, uma das áreas mais valorizadas do centro do Rio, onde funcionou a antiga Faculdade de Letras. Ali, os litígios tiveram uma solução mais positiva para a universidade. Depois de muitas idas e vindas jurídicas, o terreno acabou cedido para um fundo de pensão americano, que está construindo no local um enorme prédio comercial. Segundo Maurício, trata-se de um empreendimento inédito no Rio, com uma vaga para cada 35m2, um padrão que só existe na Avenida Paulista. Quando a obra estiver concluída, o aluguel dos cinco andares (ou dez?) pertencentes à UFRJ deverá render cerca de R$ 10 milhões por ano à instituição.

Arouca defende a mesma solução para os terrenos da Praia Vermelha. Segundo ele, trocar uma única maçaneta nos prédios da Praia Vermelha, todos tombados pelo Patrimônio Histórico, custa três vezes mais do que na Ilha do Fundão. Unificar todas as escolas na Cidade Universitária seria, portanto, uma forma de otimizar os gastos da UFRJ, que recebe anualmente do MEC cerca de R$ 100 milhões. Ele defende a divisão do terreno da Praia Vermelha em três partes: a histórica, com centros culturais ocupando os edifícios tombados; um shopping cultural, com sala de ópera, casa de shows, galeria de arte e similares, com estacionamentos, onde está o Canecão; finalmente, grandes empreendimentos imobiliários na área sem edificações. — Isso poderia dar à UFRJ, por baixo, dez vezes o que será valor recebido nos aluguéis da Avenida Chile — diz Arouca. Coincidentemente, esse é o plano que a reitoria da UFRJ apresentou para discussão pela comunidade acadêmica em julho passado. Resta saber o que as escolas da Praia Vermelha e a comunidade adjacente à UFRJ pensam a respeito. π

poesia

PATRÍCIA EVANS

ilustração: PEDRO GARAVAGLIA

FÉRIAS Alguém viu você, quando dobrou a esquina e sem saber pra onde ia entrou no carro e seguiu? Alguém viu? Alguém viu você esperando colocarem gasolina no tanque, estancar com pano sujo o sangue, que saía do porta-malas? Sangue de grife, de marca? Alguém viu no reflexo torto do espelho, o seu rosto pálido, enquanto os pneus ralos esmagavam os pardais? Quem mais? Você guiando em última marcha, sequer apreciando as paragens e eu voluntariamente amassada junto à baderna de suas bagagens. Era sangue de grife, era sangue de marca!

no site: “EU FALO”, da mesma autora

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No site: “Poemas com fundo” de Laura Erber

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quadrinho


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opinião

TIRO PELA CULATRA

MARCELO CAMPELLO *

O perdão se faz implícito a todos que não despertaram para um

mundo de ternura, que seu caminhar é entravado e doloroso. A sabedoria consiste em amortecer o ódio alheio e refletir ternura, interrompendo a corrente do mal. Ao tempo em que perdoamos, sabemos nos defender dos espinhos para seguir. Há seres imaturos, oprimidos pela vaidade, aleatoriamente movidos por energias obscuras que os levam a fazer escolhas erradas, utilizando-se do sarcasmo comum aos recintos mal freqüentados em suas pequenas oportunidades de poder, passando grosseiramente por cima dos fatos para construir uma narrativa livre aos seus interesses. Convidado a comentar recente matéria da “Veja”** que cita minha banda Mombojó e mais duas bandas que estão aí trabalhando duro: Móveis Coloniais de Acaju e Teatro Mágico, pensei logo em não ecoar declarações tão desprovidas de qualquer intenção que de longe lembre o amor guia-luz dos homens. Mas resolvi comentar, porque realmente receber uma crítica negativa da “Veja”, um ataque extra musical assim aberto e gratuito é, antes de tudo, uma conquista por tudo o que a revista representa. Pelo valor monetário do espaço gasto para nos “destruir” (duas páginas inteiras da maior circulação semanal do país), é de se pensar: o que três bandas de moleques remelentos tanto incomodou? Talvez o fato de representarmos um modelo auto-sustentável que vai de encontro a uma indústria fonográfica arquejante, disponibilizando músicas gratuitamente na internet, vendendo milhares de CDs artesanalmente, mobilizando espontaneamente nossa geração em torno dessas e outras questões. A deselegância da matéria começa por não estar assinada e discorre por uma série de espasmos altamente descontextualizados do momento em que vivemos com a partida do Rafa. Inclusive acho que é no tato com o nosso luto e no respeito a quem já foi que mais se esteve em falta. Por isso, desejo muita lucidez a todos, o tiro da “Veja” saiu mesmo pela culatra e será de grande valia à união da cena independente. Viva a música! *Marcelo Campello é guitarrista do Mombojó **Na sua edição de número 2.020, a revista “Veja” chamou as bandas Los Hermanos, Mombojó, Móveis Coloniais de Acaju e O Teatro Mágico de “os remelentos do rock”. 48

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série

MARACATRON

texto: TOINHO CASTRO ilustração: ERICK GRIGOROVSKI

cidade procura continuar a vida, com velas acesas, geradores a diesel entrando em funcionamento e casais se aproveitando da súbita escuridão. Jornalistas se atormentam em busca de especialistas e autoridades que tenham uma resposta ou uma daquelas perguntas que parecem resposta. Mas as autoridades não sabem nada, porque o nosso trabalho está além das autoridades. Estamos aqui no laboratório, muito atentos porque a bolha não pára de crescer. Essa é uma notícia que eu não gostaria de dar numa entrevista coletiva, mas após uma rápida e monumental expansão inicial, que engoliu praticamente toda a cidade, a bolha continua a se expandir, muito lentamente, a partir do seu centro geométrico: o Maracanã. Os subterrâneos do estádio Mario Filho abrigam a mais louca experiência científica brasileira. A derrota de 50, as vaias a minutos de silêncio, gols anulados e a memória de jogos inesquecíveis que não assisti repousam sobre um acelerador de partículas paradimensional. O monstrengo opera secretamente e eu não tenho a menor idéia de quem paga nossos salários. O governo sabe mais ou menos como somente o Papa sabia do Terceiro Segredo de Fátima (as maiúsculas são minhas), se é que você entende o que quero dizer. Não tenho também noção da dimensão do que está acontecendo, sei apenas que esse aparelho é parte de um projeto maior, o desenvolvimento de uma máquina do tempo. A melhor fra-

se que eu conheço sobre máquinas do tempo é do Jadeir, nosso Engenheiro Adjunto para Raios Catódicos: — Depois que você vê funcionando nem é tão interessante assim! Temos certeza de que afetamos, durante os bombardeios quânticos, decisões dos juízes, a trajetória da bola nos cruzamentos e cobranças de escanteio. Lances inexplicáveis, amigos do esporte, têm sua explicação na malha de fios e circuitos que percorre toda a circunferência do estádio. A linha de impedimento se desloca muitas vezes de acordo com cálculos complexos que nossos computadores elaboram para descrever partículas que nem existem. Mas o que importa é que agora essa bolha eletromagnética, à falta de um nome melhor, prossegue avançando sobre estradas, casas e supermercados, sobre as pessoas. Não sabemos das conseqüências, mas estamos curiosos para saber. Agora mesmo há uma vibração e um zunido que não havia antes e não sei bem porquê, pode ser até impressão ou cansaço, mas alguns objetos parecem desfocados. Outro dia li um livro sobre desastres dimensionais e criação artificial de buracos negros que falava dos zunidos e vibrações que precedem o colapso da trama do espaço-tempo. Bem, do jeito que a coisa evolui parece que não teremos que dar explicações à sociedade.

Os subterrâneos do estádio Mario Filho abrigam a mais louca experiência científica brasileira.

Vou contar de forma objetiva, direta, que esta-

mos no meio de uma bolha eletromagnética gerada acidentalmente. Essa é a única, a verdadeira explicação para que a cidade esteja às escuras. A torre de energia que caiu foi derrubada após a queda da energia para encobrir a real situação. Há, de plantão, uma equipe criada especialmente para simular coisas que precisam ser simuladas a fim de que outras pareçam ser o que não são. Pouco sabemos sobre essa misteriosa equipe, mas de alguma forma eles foram acionados e cumpriram a missão. A culpa é da torre que caiu por causa de um raio.

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Essa bolha, naturalmente, não deveria existir; pelo menos não nessas proporções. Trata-se de um daqueles casos em que uma experiência rotineira se transforma num desastre porque um incauto se apoiou no botão vermelho no qual... ninguém deveria se apoiar. Outras coisas deveriam ter sido afetadas, mas incrivelmente apenas o fornecimento de energia elétrica foi interrompido. As teorias dizem que eventos dessa natureza parariam marca-passos, automóveis e dispositivos eletrônicos em geral. Nada disso aconteceu e a nossa equipe está aproveitando a situação para observar e analisar o fenômeno. Enquanto isso a

Continua em www.revistazepereira.com.br

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Como a UNE retomou o terreno de sua sede no Flamengo

A D O I ÁR

I D

N O C E R

A T S I QU A ATRÍCI texto: P

ROCHA

R UCIMA fotos: L

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Em agosto de 2007, o terreno da Praia do Flamengo, número 132, já não era mais um estacionamento para 72 carros como foi desde meados dos anos 80 até o início de 2007. Também não era mais um acampamento onde cerca de 300 jovens marcaram território, aguardando da Justiça a reintegração de posse da histórica sede da UNE, a União Nacional dos Estudantes. O último terreno sem prédio da rua valeria R$ 55 milhões com uma construção comercial sobre ele — só que não está à venda. Hoje, seus 1000 m2, quatro contêineres e dois caixotes de concreto servem de base para um pequeno centro cultural e político. No oitavo mês do septuagésimo ano de existência da instituição-mor do movimento estudantil no país, o espaço se propõe a escrever mais de 70 anos de história do poder jovem no Brasil. 52

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E nada mais poderoso e contraditório do que ser jovem. No início de uma tarde fria do inverno de 2007, Marcos Luiz Silva de Souza, o Marquinhos, 24 anos, estudante do sétimo período de Engenharia Mecânica na UERJ, um dos moradores remanescentes do acampamento de retomada do terreno, arrumava-se em seu contêiner-residência. Ao ar livre, bochechou um anti-séptico bucal e cuspiu à distância no concreto. Ele não estava só. Na entrada do terreno, também havia um segurança contratado pela UNE uniformizado e desarmado e um amigo que passava por ali e assistia com ele na TV, debaixo da meia-água de amianto, a alguma competição dos Jogos PanAmericanos. Do outro lado do portão, Maria José Martins dos Santos, a posseira do estacionamento que impetrou uma ação contra a UNE, debaixo de uma outra meia-água, também assistia ao Pan. Seu filho, Jorginho, de aproximadamente 10 anos, brincava sozinho na entrada do terreno como costumava fazer todos os dias.

Ao ar livre, bochechou um anti-séptico bucal e cuspiu à distância no concreto. Ele não estava só

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Jorginho não imagina que aquele espaço em 1942 era a entrada do Clube Germânia, que o presidente Getúlio Vargas tratou de fechar pela simpatia da agremiação de origem alemã ao fascismo, cedendo o prédio à UNE. O menino não deve fazer idéia do que seja fascismo, mas apesar de não ter vivido entre as décadas de 40 e 60, tempo em que o espaço serviu de sede para a entidade, já deve ter entendido que o tal do movimento estudantil é feito por adultos que falam muito e muito alto, às vezes de um jeito muito chato que beira o incompreensível, mas que também conseguem ser legais e de vez em quando até brincar com ele. Talvez nos seus sonhos de moleque ele tenha visto, num 1964 que ele não viveu, muitos soldados tacando fogo numa casa antiga que ali existia, em que os adultos tiveram que sair pelos fundos, corridos, fugidos. E com uma expressão de horror semelhante a de seus pais, os donos daquele estacionamento, no dia 1º de fevereiro deste ano. Marquinhos é o atual “prefeito” do terreno e herdou a função por ter sido “vice” no início do acampamento. Marvia Scardua, 26 anos, a “prefeita” dos aproximadamente 120 dias de ocupação, voltou para casa em maio, quando o juiz Jaime Dias Pinheiro, da 43ª Vara Cível do Rio de Janeiro, emitiu sentença favorável da posse à UNE. Marquinhos não fala com Maria José. Aliás, nun-

ca falou. Nem ele nem nenhum dos estudantes que lá estiveram. Apesar de a retomada ter acontecido no furor da emoção de uma passeata, não houve por parte dos estudantes contato algum com aquela que representa o último obstáculo à concretização da UNE no Rio de Janeiro. Só nos tribunais. Mesmo com algumas sentenças favoráveis, o processo ainda corre e Marquinhos, Maria José e família ainda convivem dentro dos mesmos muros. O estacionamento irregular era uma pedra no tênis do movimento estudantil há 20 anos, mas a gestão encabeçada por Gustavo Petta foi a única que conseguiu mobilizar um número suficiente de estudantes com peito para encarar o problema. Presidente da UNE por quatro anos, Petta parece ter conseguido dar novo ânimo ao movimento, que desde os caras-pintadas dos anos Collor estava bastante débil. — Quando os militares, durante a ditadura, queimaram e demoliram o prédio, eles não conseguiram acabar com o movimento estudantil, mas conseguiram quebrar a unidade entre estudantes e artistas — analisa Petta. Na última semana de janeiro deste ano, a entidade produziu um de seus maiores eventos, a 5ª Bienal de Arte, Ciência e Cultura, com inspiração no histórico Centro Popular de Cultura (o CPC), que conseguiu mobilizar na Fundição Progresso cerca de cinco mil jovens por dia.

— A Bienal reuniu artistas e estudantes do país todo. O Rio de Janeiro é o lugar ideal para isso — conta Petta. O balaco terminaria no dia 2 de fevereiro, mas, um dia antes, a vontade de tomar de volta o espaço baixou com força nos cinco mil jovens, que se mobilizaram numa passeata com atrevimento suficiente para reconquistar o território no grito — ou no braço. Apesar da mobilização, nem tudo se resolveu na força bruta. A ex-“prefeita” Marvia, estudante de Administração na Universidade de Guarulhos, responsável pelas relações institucionais da UNE, relata a tática utilizada na ocupação: — Até o início do ano não pensávamos em ocupar com uma passeata, pois as informações que tínhamos era de que o dono do estacionamento era violento. Daí pensamos em cada detalhe da ocupação. Tinha a comissão dos ex-presidentes que ficaria na frente da passeata (Aldo Arantes, Ricardo Capelli, Orlando Silva e outros), em seguida viria a comissão de segurança, os estudantes mais fortes que ficariam responsáveis por encarar o que nos esperasse no terreno, caso houves-

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se algum tipo de resistência. Pensamos em como derrubar o portão e chegamos a comprar uma serra elétrica. No dia da ocupação, encontrei o Gustavo (Petta) no café da manhã no hotel. Nem conseguimos comer. Afinal, era a responsabilidade com cinco mil estudantes e a de ocupar um terreno tão carregado de sentimentos e simbologia. Várias perguntas vinham: “Será que o dono do estacionamento vai reagir? Será que vai dar certo? Será que alguém vai se machucar?” Então, saímos do hotel. Marvia ficou com a tarefa de olheira, e foi para frente do estacionamento espionar a movimentação ao longo do dia, junto com um companheiro de movimento. — Me mandaram vigiar de longe, trocar de blusa, parecer com tudo, menos com uma estudante e muito menos como diretora da UNE. Nas primeiras horas, ficamos observando de longe,

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mas no fim da manhã já estávamos em frente ao terreno. Nós olhávamos pra eles e eles nos olhavam. De hora em hora o celular tocava: era a galera que estava organizando a passeata querendo saber o que estava acontecendo. Contei várias vezes quantos homens estavam no terreno e as crianças que lá permaneciam. Quando avistamos a passeata chegando, a rua foi tomada pela emoção, dos vizinhos, dos transeuntes, dos.... A fisionomia de desespero tomou conta dos caras do estacionamento. Acho que eles não acreditaram no que viram. O sentimento era tão forte naquele momento que de nada adiantou a comissão de segurança, a serra elétrica, que no final acabou não sendo utilizada. Quando vimos o portão, foi como se uma força muito grande tivesse tomado conta de nós e no segundo empurrão ele caiu.

Acampamento profissional Passado o calor da emoção, foi a hora de pensar na estrutura para os estudantes acamparem no terreno. A UNE comprou no mesmo dia barracas para 300 pessoas, pães, mortadela e refrigerantes numa padaria próxima. Nos dias seguintes, o pessoal ficou na base do lanche e do prato-feito. O banho era mais complicado, vários ficaram sem. Após alguns dias, descobriu-se que o terreno tinha uma cisterna e uma bomba e assim foi improvisado um banheiro coletivo, com quatro chuveiros em que todo mundo tomava banho, as moças de biquíni, os rapazes de sunga, num clima de Fórum Social Mundial. Foi encomendado a um serralheiro um novo portão reforçado e foram contratados seguranças. Marvia justifica: — Tínhamos medo de uma reação que viesse de fora, tipo capangas atirando nos estudantes. Depois cadastramos todos e distribuímos pulseiras de identificação com uma cor diferente e cada barraca ganhava um número. Atualizávamos essa lista de dois em dois dias com nome, faculdade, telefone e endereço de cada um. Houve caso de penetras que logo foram identificados e solicitados a se retirar. Tínhamos muito medo que o posseiro colocasse alguém infiltrado para algum atentado contra os estudantes. Marvia também ficou responsável por organizar a bagunça. — Imagine 300 pessoas num só lugar. Acabamos montando comissões para nos organizar: cultura, limpeza, segurança, alimentação, comunicação, estrutura. Isso era necessário, pois assim todos se sentiriam responsáveis e parte da história. Nossa idéia era a de permanecermos acampados até que ganhássemos definitivamente a posse do terreno, o que poderia demorar um pouco. Sempre tivemos em mente também que tínhamos que ocupar, mas de forma organizada, segura, que passasse credibilidade e confiança a todos os vizinhos e a sociedade em geral. Quando o último carro estacionado saiu do terreno, os acampados puseram abaixo a co-

bertura que servia de proteção para os veículos — um ato simbólico e tanto que tem até vídeo no YouTube. Diariamente eram feitas assembléias para se decidir como administrar o acampamento. A animação inicial era tanta que nem a chuva que caiu logo no segundo dia e que entrou na barraca de quase todo mundo conseguiu esfriar os estudantes. Pelo contrário, com o calor que fazia dentro das barracas à tarde, a coisa ficava cada vez mais quente: em três semanas, o caldeirão cultural de sotaques e hábitos de gente de todos os cantos do Brasil começou a borbulhar em pequenas tensões. De posicionamentos políticos conflitantes a manias irritantes, tudo podia servir de faísca — pequena, mas poderosa. Márvia teve que pedir para algumas pessoas se retirarem. Além de administrar os ânimos nas situações mais extremas, era ela que comandava a compra de alimentos, sabonetes, xampus e caixas de camisinhas — que sempre acabavam “inexplicavelmente” no mesmo dia. A fase acampamento, com os 300 jovens, durou coisa de um mês e meio; depois foram alugados alguns contêineres que inauguraram a fase alojamento para os cento e poucos que ainda tinham tempo e disposição. Foi estabelecida uma lista de regras para o lado de dentro do terreno: horários de entrada e saída, das 8h à meia-noite; só poderiam dormir no acampamento pessoas cadastradas; não era permitido fazer muito barulho a partir das 22h; cada um era responsável por seu kit alimentação (lavar prato, talheres e caneca); cada acampado era responsável em preservar os itens de uso coletivo, como TV, DVD, máquinas de lavar, freezer; todo acampado era responsável pela limpeza de seu contêiner; não era permitido o uso e porte de drogas no acampamento — esta última, apesar de pouco crível, era compreensível, inclusive pelo interesse da mídia. Era freqüente a visita de policiais e de jornalistas. Fala-se até de uma chegada no meio da madrugada de uma equipe da Globo para uma x-noveada básica. Sem sucesso. O que não quer dizer que não havia festas.

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O cafofo é meu! O terreno foi ocupado em 1º de fevereiro e no dia 18 a UNE colocou na rua o bloco Se Não Me Der Eu Tomo, que desfilou por Flamengo e Catete com uma barraca de camping como carro abrealas e o samba-enredo “O cafofo é meu” para embalar: “O cafofo é meu... e eu vou ocupar / Tava em frente à praia / Me tiraram na marra / Na marra eu vou voltar! (Já armei) Já armei minha barraca / Vou buscar o que é meu / Porque eu vou voltar / para a cidade (onde?) / Onde o CPC nasceu.”

Quando não havia festas, havia os bares. No começo do mês, quando alguns recebiam salários e muitos recebiam mesadas, a boa era tomar chope no Boteco da Praia, vizinho de muro do terreno, o mais caro e mais bem servido da quadra. Lá para o dia 15, era mais certo encontrar os mais animados tomando cerveja de garrafa no Café e Bar Guanabara, na Buarque de Macedo. Fim de mês, sinônimo de fim de verba, e o pé-sujo Caimã para beber em pé na Corrêa Dutra estava de ótimo tamanho. E quando não havia as festas, nem os bares, havia a programação cultural. A antiga base do CPC passou a abrigar o Circuito Universitário de Cultura e Arte, o Cuca, que exibiu filmes, produziu peças, ofereceu saraus de poesia, oficinas de expressão corporal, rodas de samba. Iscas para os vizinhos que simpatizavam cada vez mais com aquela mudança.

Com a vitória na Justiça no dia 4 de maio, acabou a fase alojamento, e os estudantes não tão profissionais foram voltando às suas rotinas. Hoje, o Cuca mantém suas atividades culturais abertas à comunidade, o que leva Felippe Redó, 25 anos, estudante de história da UFRJ e diretor do Circuito, a ir quase diariamente ao terreno... e a encontrar, eventualmente, com Maria José. Acontece que o único contato que a UNE tem com a senhora se dá nos tribunais. Maria José entrou na Justiça afirmando que há cerca de 20 anos vinha “exercendo direito real de posse, sem qualquer oposição, de forma mansa e pacífica” quando “cerca de quatro mil pessoas, violentamente, invadiram o referido bem”. O juiz da 43ª Vara Cível entendeu o contrário e sentenciou que “o imóvel situado na Praia do Flamengo, nº 132, Flamengo, é de propriedade da ré (a União Nacional dos Estudantes), sendo a ocupação, em decorrência, ilegal e contra a vontade do proprietário, restando, apenas, lamentar a disputa que vem sendo travada entre a UNE e o Estacionamento. Aquela, um verdadeiro patrimônio do povo brasileiro e merece todo o apoio da sociedade. Para finalizar, se porventura há alguma ilegalidade na doação feita pelo presidente Getúlio Vargas, a meu ver, essa questão deve ser dirimida em ação própria, e não na presente.” Mas se o direito de posse dos estudantes era tão evidente, por que demoraram tanto tempo, 20 anos, para reaver o espaço justo quando seu maior e histórico inimigo, a ditadura militar, não estava mais em seu caminho? Em 1996, o então presidente Itamar Franco devolveu o bem à entidade — só esqueceu de dar também a posse. Daí em diante, cinco diretorias da UNE, durante dez anos, teriam tentado chegar a termo com os posseiros na base da conversa, sem sucesso. Lia Carneiro Campos, advogada da entidade, lembra que em 2003 a UNE entrou com uma ação contra o estacionamento, ganhou na primeira instância, perdeu na segunda e quando recorreu na terceira, o processo, misteriosamente, sumiu. — Os estudantes só invadiram por indignação mesmo, por não agüentarem mais a lentidão da Justiça. Atualmente, o processo em que a UNE é ré e ganhou está ainda em primeira instância, o que quer dizer que o estacionamento pode recorrer em segunda e até em terceira instâncias. Um processo lento por natureza.

, s ê m e e d d m m i fi F e d o m i sinôn , e o pé-sujo verba para beber Caimã na Corrêa em pé estava de Dutra tamanho ótimo

Protocolo político Assim como também se arrasta o processo de formação dos estudantes engajados na luta. Marquinhos deveria estar no sétimo período de sua faculdade, mas trancou a matrícula. Darwin de Assis, 21, outro voluntário a permanecer no terreno desde fevereiro, estudante de História na Federal do Paraná, também. Marvia, Gustavo Petta e Lúcia Stumpf, a nova presidente da UNE, também. A justificativa protocolar dada por Marquinhos é, sem tirar nem pôr, idêntica a de todos os outros dirigentes: — Como todo mundo que é envolvido com o movimento estudantil, por conta de algumas demandas, a gente tem o estudo um pouco atrapalhado. Não há por que a turma fazer cara feia com a alcunha de “estudante profissional”. A fala bem treinada mostra que o meio universitário é um am-

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biente e tanto para quem quiser desenvolver seu talento para ingressar na vida política. Nada mais contraditório e poderoso do que ser jovem. No dia 10 de agosto, uma sexta-feira, véspera da comemoração dos 70 anos da UNE, alguns dos dirigentes da UNE que acamparam no 132 por um, dois ou até quatro meses, estavam novamente no Rio de Janeiro. Pela manhã, um grupo de oito deles foi se encontrar com o arquiteto Oscar Niemeyer. Tocaram a campainha do escritório na Avenida Atlântica e a nova presidente se identificou: “É a Lúcia!”. A reunião foi rápida, mal chegou a meia hora, porque Niemeyer reclamava estar cheio de trabalho. Ele já havia dado de presente um projeto para a construção de uma nova sede para a entidade, e o encontro era para apresentá-lo redimensionado: eles haviam pedido um espaço para um museu da memória do movimento estudantil, uma biblioteca e também um teatro maior que o projetado inicialmente. — Agora estamos atrás do financiamento, que a gente exige que seja dado pelo governo federal, uma vez que foi o Estado brasileiro que demoliu o prédio — conta Lúcia. Sorridente e desembaraçada, Lúcia dava várias entrevistas para repórteres de TVs e jornais cariocas. Gaúcha de sotaque discreto, 26 anos, estudante do sétimo período de Jornalismo das Faculdades Metropolitanas Unidas, a FMU, ela é uma garota bonita, tem cabelo liso com mechas louras, mede cerca de 1,60m de altura, tem um tipo mignon, cicatrizes nas sobrancelhas de piercings que já não estão mais lá. No calor fraco do fim do inverno na cidade, ela usava uma camiseta cortada nas mangas e na barra e um jeans que lhe vestia muito bem. Às 14 horas, cerca de 300 estudantes — mais secundaristas do que universitários — ocupavam a praça. Empolgados com o som dos tambores do Rio Maracatu, alguns pulavam, dançavam e rebolavam até o chão no esti-

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Nada contra mais e pode ditório que se roso do r jovem

lo baile funk. O clima era de uma alegria quase carnavalesca, como se o objetivo do ato ali fosse qualquer outro que não protestar contra a redução da maioridade penal ou exigir o passe livre para universitários. Depois de duas horas de concentração, era vez de seguir com a passeata. Na hora H, materializou-se ali a deputada gaúcha queridinha da hora Manuela D’Ávila e os ex-presidentes da UNE José Guedes, Javier Alfaya e Carlos Henrique, que formaram uma espécie de comissão de frente logo atrás de uma caminhonete alugada onde se empoleiravam alguns dos dirigentes da entidade e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). Lúcia subiu no carro e um companheiro lhe passou o microfone. Embalada por um sorriso charmoso deu uma piscadela esperta para algum conhecido lá no chão e, com sua voz fina, tentou lembrar aos jovens da passeata os motivos por estarem ali. A passeata passou por três quadras, seguiu pela Rua do Catete, cruzou a Dois de Dezembro, a Buarque de Macedo, a Corrêa Dutra, entrou à direita na Ferreira Viana e voltou pela Praia do Flamengo até chegar ao número 132 — onde uma tenda cobria o concreto, cem cadeiras e um palquinho no qual seria empossada a nova diretoria. Ao longo do percurso, uns motoristas esbravejaram e alguns moradores bateram palmas das janelas dos prédios. Quando os estudantes chegaram ao terreno da UNE, começaram a cantar espontaneamente, sem que ninguém tenha puxado no microfone nenhuma palavra de ordem: “O cafofo é meu... e eu vou ocupar / Tava em frente à praia / Me tiraram na marra / Na marra eu vou voltar!” π

PUTA CONTO

texto: LUÍS PIMENTEL ilustração: WAINE

— Você

pretendia ser escritora e virou prostituta. Poderia ser uma puta escritora. — Já está gravando? — Está. — O que você pretende com essa entrevista comigo? — Quem faz as perguntas aqui sou eu. Eu sou o entrevistador. Você, a entrevistada. — Combinado. Você está pagando. — Como é o seu nome? — Shirley. Alexandra. Simone. — E na Carteira de Identidade? — Maria das Graças Ribeiro da Cunha. Filha de Maria Auxiliadora Ribeiro e de Salvador Amorim da Cunha. Sou sergipana, de Itabaiana. Tenho vinte e um anos. — E na Carteira de Identidade? — Trinta e dois. — Filhos? — Lindos. Um casal. Anderson e Michele. Estão lá, com minha mãe. — Bonitos nomes. De onde você os tirou? — De uma revista de nomes. Tinha nomes de todo tipo: de americano, de alemão, de francês, todos Jean, Pierre ou Jean-Pierre. Até nome de chinês, Ching, Ling, Ling-Ching. Para que você quer essas informações? — Vou escrever um conto. — Como vai se chamar. — A puta. — Interessante. — O que aconteceu que empurrou você para essa vida? — Que vida? — De puta, ora essa.

— Não aconteceu nada. Um dia resolvi abraçar a profissão de prostituta. Todo mundo precisa ter uma profissão, não é verdade? — Você não foi violentada e abandonada, quando novinha? — Que nada. Minha primeira vez foi tarde. Eu já era bem crescidinha. Ninguém me violentou nem me abandonou. Dei por prazer e faço isto até hoje. — Você não foi expulsa de casa pelo seu pai? Não teve que cair nessa vida por absoluta falta de opção e aí comeu o pão que o diabo amassou? — Nada disso. Acho que não sou a personagem ideal para o seu conto. Opções não faltaram e optei pelo prazer. — Já apanhou? — Já. Mas não gostei. — Qual o seu tipo de homem? — Todos. Sobretudo aqueles que pagam bem, são carinhosos, limpos e atenciosos. Que são clientes, mas também sabem ser amantes. Tenho uma queda especial por escritores. Afinal, quase me tornei uma escritora também. Há algo em comum entre as nossas profissões, sabia? — Ah, é? O quê? — Vocês também se vendem. — E quando você desistiu de ser escritora? — Não desisti. Apenas optei por viver. Mas vou escrever um conto. — Ótimo. E como vai se chamar? — O contista. — Que interessante. — Continue com suas perguntas. Vou precisar muito delas na hora de escrever a minha história.

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da panelinha

folhetim

Cachaça de encruzilhada

As aventuras de um Zé Pereira

cap. 2:

os que tomam a resignação como medida; os que, desapercebidos, mergulham numa caudalosa derrota quando o inexpugnável acena; há, ainda, os que, para não parecerem vítimas e sim honrosos kamikazes, se destroem antes que outros o façam. No entanto, há o tipo mais raro, de ímpeto forjado com a experiência, “com as porradas da vida”, com a craca do vivido. Zé-Pereira, sujeito-homem. “Mermão, pra cima de Madureira só Cascadura”, defendia-se ao mesmo tempo em que ameaçava, confirmando o caráter. De certa forma, soava exótico aos moradores que raramente saíam da Zona Sul topar com afirmações assim tão rústicas, de um homem vivido onde, supunham, há muitas carroças na rua, em meio a camelôs, ruas sem calçamento e senhoras desdentadas esbanjando felicidade enquanto preparam feijoada. Mas Zé Pereira pagava o preço da transição; a essa altura, não se identificava com nenhum dos mundos, dos quais tentava costurar semelhanças e suprimir as diferenças. Nesse desvão de entrelugar, quase se tornou Zep, apelido arrojado que os amigos quiseram imputar-lhe logo que se mudou, evitando ainda outros mais infames e estúpidos, como Zé Pelin. Teve de resguardar a essência e ao mesmo tempo se adequar ao novo ambiente, num exercício ímpar de convivência. Todo esse esforço encontrou o ponto de equilíbrio em Cláudia, cuja presença agora explodia como uma tormenta. Supôs que tivesse se enganado, que não era a sua Cláudia, mas uma loura qualquer acenando para um homônimo: “tanto Zé que há nesse mundo”, pensou rapidamente. Contudo, dois passos à frente confirmaram. Quando se conheceram, Cláudia era jornalista. A profissão lhe conferia a praticidade que faltava a Zé Pereira. Outros lhe perguntavam como conseguia viver com uma mulher tão metódica, no que respondia: “ela mantém meus pés no chão, senão fico que nem pipa avoada”.

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ANGÚSTIA

HENRIQUE RODRIGUES

E cada passo significava a possibilidade de reencontrar essa harmonia, mas com a dor da certeza de se tratar de uma lembrança apenas, especialmente com aquele anel que balançava no ar. Zé Pereira alternava os olhos entre a mão e o rosto de Claudinha. À medida que se aproximava, uma nova gaveta se abria e se confrontava com a nova imagem. Calculou que ela agora estava com 39 anos. Sujeito-homem, de Cascadura: sobretudo um forte. Um forte que por isso mesmo titubeava com o corpo inteiro enquanto seguia rumo à mesa no canto. Buscou auxílio em Cícero, mas o garçom, que assistia àquela cena de angústia, desviou o olhar e fingiu atender uma mesa próxima, impotente. Zé Pereira não queria demonstrar o nervosismo, ensaiou um sorriso, que saiu apenas de um lado da boca. Cláudia mudou o movimento da mão; em vez de acenar, abria e fechava: “Zé, vem cá!” Quis fingir que estava de saída, pensou em dizer que estava com pressa e tinha coisas a resolver, diria que a namorada nova o esperava — inventou uma Clarissa e ao mesmo tempo notou que as letras iniciais eram similares, o que denunciaria a mentira. Poderia simplesmente dar um oi rápido, sair do bar e beber com segurança em outro, encontrar outros amigos com quem desabafar. Cogitou até assumir uma grosseria e fingir que não a viu. Todavia, como que atraído, chegou até perto e fixou os olhos na lâmina branca que forra a mesa. Zé Pereira, sujeito-homem, sentou-se com Cláudia, cuja mão esquerda agora repousava sob a mesa, enquanto ela estendia para ele a direita, cumprimentando-o.

Continua. no site: O CAP.1

texto: ANA SILVIA MINEIRO ilustração: SERGIO FRANÇA

Uns

dizem que sofrem porque atiraram pedra na cruz. Tenho certeza de que minhas tormentas começaram numa esquina de Ipanema, quando subtraí a garrafa de cachaça de um despacho a caminho de uma festa, pencas de anos atrás. Seguia com meu namorado e dois amigos e não me lembro de quem foi a idéia de desfalcar do ebó a caninha que jazia tentadoramente ali. A ação com certeza foi minha. Incentivada pela embriaguez e pela aventura, queria beber daquela garrafa mágica que me ofuscava a consciência com seu néon. Mais tarde, percebi na carne as conseqüências de dar golpes em santos e entidades. Sim, sou supersticiosa. Chegamos trôpegos, eu com a garrafa na mão, à casa na Barão da Torre que seria demolida para a construção de um edifício. A festa, uma das muitas de despedida do local, estava estranha, desenrolava em câmera lenta. Nós quatro entramos em ritmo de “uhúúú, vamos detonar”, mas os convidados pareciam alheios à nossa presença esfuziante. Olhei para a beberagem enfeitiçada que segurava com um egoísmo desconhecido para mim: “Maneiro, essa cachaça dá o poder da invisibilidade. Ou será que não estamos aqui? Ou será que não estamos em lugar nenhum?” Pronto. Começava a rolar a paranóia e a vingança do além. Convoquei uma assembléia rápida com os outros três. Vambora daqui, sentenciei. Mas pra onde?, vacilaram os moços. Linha Branca — pra

quem não sabe, era como chamávamos a Pinheiro Machado quando o rumo eram as ladeiras de Santa Teresa via Catumbi No Golzinho preto do meu namorado, com a garrafa sempre na mão e a cabeça pra fora da janela em busca de ar fresco — a essa altura o estrago do álcool já era sentido em ondas de enjôo —, vi o Rio como o paraíso para desvalidos amantes do goró. Em praias, encruzilhadas ou nas mãos de criaturas que não deram conta de buscar refúgio para curar a manguaça, e abandonaram os corpos na rua, sempre há uma garrafa cheia, ou quase cheia, ou suficientemente cheia para alguém pegar. Divagava, quando a sirene da polícia incomodou meus pensamentos. Em vez de parar, meu namorado acelerou, efeito da cachaça do ebó. Os homens vieram a toda, mostrando as armas. Nada a temer, éramos invisíveis. A sirene ficou para trás, a garrafa continuava na mão. Em velocidade na Almirante Alexandrino, rodamos 180° nos trilhos derrapantes dos bondes. A cana voou pela janela, se espatifando no chão. Era o santo cobrando o seu quinhão, enfim. Nunca houve perdão para o pecado distraído de roubar o despacho. As divindades deram o veredicto naquela mesma noite ao meu “crime”: serás alvo da sanha de bêbados e loucos até o fim dos seus dias. Assim foi e assim é.

A essa altura o estrago do álcool já era sentido em ondas de enjôo

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ilustre desconhecido*

o bumbo do zé

por ZAIRA BRILHANTE

Matias João da Costa,

Entrei em 1930 e estou aqui até hoje (na Vila Operária). Dr. Menezes (Joaquim Lacerda de Menezes, o dono) matava boi e dividia com os operários. Não gostei quando ela parou de funcionar. Ficou todo mundo desempregado. Eu tinha direito a NCr$ 20 milhões (o cruzeiro novo era a moeda na época), mas, como nós aceitamos receber a metade e ficar com a casa, só ganhei NCr$ 10 milhões.

Muitos amigos daquela época? Tinha o Noel Rosa. Grande amigo, grande cantor. Conheci ele porque cantava samba por aí. Era um rapaz pobre. Nesse tempo não tinha rádio como hoje. Ele não trabalhava na fábrica, mas ia lá sempre porque a mulher dele trabalhou. O Jamelão sim, esse trabalhava. Ele soldava na oficina junto comigo e tocava o bicho aí fora.

E as brincadeiras na infância? Fui criado na roça, em Pernambuco. Quando era criança, trabalhei com meu pai em carro de boi. Depois de muitos anos veio a fábrica do Ford Bigode e o camarada que trouxe isso pra cá, Lourenço Pé de Quenga. Aí falei com o meu pai: “Tá indo um bocado de garotos pra lá.” No início ele não queria, até que deixou e eu fui. Ganhava 400 réis por dia e tinha comida. Logo depois tive um aumento e passei a ganhar 500 réis pra ser ajudante de bancada.

Um bom causo pra contar. Chegou o tempo de Exército e eu fui pra a Paraíba. Tirei um ano e pouco no Exército. Quando saí, achei a polícia bonito e fui saber o que precisava fazer. “Você é boa pessoa? Porque pra ser polícia tem que ser homem severo”, me perguntaram. “Eu sou um homem severo, sou honesto e cumpro com as minhas obrigações.” Então ganhei um rifle e uma cravinote. Eu achava bonito o uniforme, parecia um manequim. Lá pra certo tempo, apareceu um tal Lampião, ele e a mulher, Maria Bonita, e foi tudo quanto era soldado da polícia atrás deles. Esse tal de Lampião não te-

ve mais sossego na vida. Em Alagoas, não tinha mais pra onde ele fugir, cercaram na borda do mato. Foi então que Maria disse: “A nossa hora chegou, se prepara que os macacos (polícia) vêm aí.” Eu não estava na hora em que ele foi baleado, mas mataram um soldado nosso, o Zequinha. Depois disso eu vim pro Rio, pra Marinha, ali no campo de aviação. Fiquei dois anos e fui pra Guerra da Alemanha lutar com o Marechal Zenóbio da Costa.

Muitos amores na vida? Teve uma moça, ela foi pra Inglaterra quando tinha 8 anos e voltou quando tinha 18. Foi com o Dr. Menezes. Como falava bem o estrangeiro! Ela trocou língua pra mim, eu gaguejei. Dr. Menezes me chamou várias vezes pra consertar o carro dele e eu fui, aí a senhora dele, dona Mirian, me chamou pra conversar. Disse que já tinha casado outras meninas que trabalhavam pra ela e agora era a vez da Inês. Me pegou na oficina, me botou dentro do carro perto da Inês e fomos pra alfaiataria. Ela encomendou dois ternos, um de casimira azul-marinho com colete e outro branco. De lá, fomos pra sapataria e eu só pensando, “essa mulher tá ficando maluca, não tenho como pagar nada disso”. Saí de lá com dois pares de sapato, um de verniz e um branco. Depois fomos comprar os móveis. A geladeira era uma caixa com serragem e pedras de gelo, o fogão era a carvão. Quando acabou, ela me deixou na Igreja Nossa Senhora de Lourdes e disse: “Agora você vai se confessar.” Cheguei lá e o Padre Miguel perguntou: “Você é sócio da Vila Isabel, não é? Então vai lá menino, não precisa se confessar.” Ficamos casados 20 anos e ela morreu.

* inspirado no “Dicionário de pessoas desconhecidas ilustres”, de Evando dos Santos.

Como foi trabalhar na Fábrica de Tecidos Confiança (a da canção de Noel Rosa)?

foto: EDUARDO SOUZA LIMA

ou apenas Seu Matias, pernambucano, 98 anos, botou o Ford Bigode na estrada, foi macaco da volante que caçou Lampião e Maria Bonita, lutou na Segunda Guerra Mundial, trabalhou na Fábrica de Tecidos e foi amigo de Noel.

O GOLPE DO SEDEX Até bem pouco tempo, a instituição brasileira mais confiável — e até mais querida — eram os Correios, um serviço eficiente e barato. Nos anos 1970 e 1980, você mandava uma carta do Rio para qualquer lugar do Brasil e ela chegava no dia seguinte. Parecia mágica. Hoje, o correio pode ser barato e ineficiente ou caro e eficiente. Inventaram uma forma de aumentar o preço do serviço sem dar satisfações ao consumidor: o Sedex. Com ele, o cliente paga mais pelo mesmo serviço. Por exemplo: para mandar um exemplar da Zé Pereira para São Paulo como carta normal custa R$ 1,65. Se ela fosse despachada nos anos 1980, chegaria lá no dia seguinte. Hoje, Deus sabe quando — ou mesmo se chegaria. Para mandar o mesmo pacote via Sedex, custa R$ 14,30. Dá para comprar sete revistas e ainda sobram 30 centavos de troco. É pura chantagem. Se for de Sedex 10 — um aperfeiçoamento do golpe — o preço pula para R$ 20,90.

CHAMANDO NA CHINCHA

Aliás, alguém já notou que na Globo só se fala de filmes da Globo Filmes? Isso não é ilegal, já que a emissora é uma concessionária pública? Cansou? Indignação de fachada é no trio elétrico da Philips, comandado por Ivete Sangalo.

O NOVO SERTÃO O aviso abaixo estava num supermercado do Catete, mas não é privilégio da rede Princesa (que pelo menos teve a honestidade de admitir): não é de hoje que o comércio em geral não faz entregas em alguns lugares. Alarmante mesmo é que não é só uma medida da iniciativa privada, mas do poder público também. Para a Justiça brasileira — ou ao menos parte dela — as favelas estão fora de sua jurisdição. Oficiais da Justiça Trabalhista se recusam a entregar intimações em determinadas localidades. Eles emitem uma certidão dizendo que o local é perigoso e pronto. É como se o Estado declarasse que as favelas não fazem mais parte da nação. Antigamente, a palavra sertão não se referia apenas ao interior do país, mas a lugares afastados das cidades que obedeciam às suas próprias leis. O sertão hoje é a favela. E todos fingem não ter nada a ver com isso.

A Associação Brasileira de Propaganda (ABP) está veiculando um anúncio no qual afirma que advertências do tipo “Fumar faz mal à saúde” e “Se beber, não dirija” seriam uma forma de censura — esta palavra é a “patrulha ideológica” da vez — à sua criatividade. Os pobrezinhos defendem o seu direito de esconder do consumidor malefícios que os produtos de seus clientes podem causar. Ninguém mais quer ter responsabilidade no Brasil. Um dos projetos de cinema contemplados pelo Programa Petrobras Cultural foi “O bem amado”, de Guel Arraes. Nada demais, não fosse uma cláusula do regulamento que veda a participação no edital de produtoras ligadas a emissoras de TV. “O bem amado” já foi novela da Globo e Guel Arraes é um dos principais diretores da casa. Alguém é ingênuo o bastante para acreditar que a Globo Filmes não tem nenhuma participação neste projeto?

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humor

O Mundo é Flicts

ARNALDO BRANCO

Quem

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FRASES DE EFEITO (retardado) O Chorão está para essa geração como o Cláudio Humberto para o governo Collor: o porta-voz que merece.

g SIMPATIAS h

Recebeu uma crítica negativa e não está reagindo bem? Quer se livrar da sensação incômoda de não conseguir parar de pensar em um comentário depreciativo? SIMPATIA PARA NÃO SE IMPORTAR

Olhe fixamente para o espelho Repita “Eu não me importo, eu não me importo, eu não me importo” até a afonia ou a demência. Pronto!

leia o Mal Necessário Online em www.revistazepereira.com.br

já assistiu a uma aula de Comunicação & Cultura sabe que ganha em comparação com o trote violento nas universidades no quesito tortura. Aliás, trote violento é uma expressão incorreta: no meu ano, pelo menos, todos sobreviveram, até aqueles que depois de suas primeiras intervenções em sala de aula o corpo docente também quis matar. Desculpem os maus modos, até agora não apresentei o assunto dessa coluna: a transformação do planeta Terra em um parque temático para maricas. Aliás, desculpem o caralho. O movimento politicamente correto que persegue o trote também nos obriga a usar eufemismos como verticalmente prejudicado para anão, afrodescendente para negro e artista para a Deborah Secco — exatamente como quando éramos crianças, fase em que não podíamos chamar pelo nome verdadeiro genitais, excreções e o amiguinho débil mental. Aliás, esse último tem a denominação PC recordista em extensão: Indivíduo Portador de Necessidades Especiais — tente fazer um mongolóide falar isso, típica boa intenção que leva ao inferno. A idéia do herói estóico que já nos deu Sir Galahad e Dirty Harry perdeu terreno, substituída pela figura do cidadão amedrontado constantemente em pânico pela segurança dos seus filhos. Um tipinho que, para protestar contra o direito sagrado do ser humano fumar em berçários, aceita a classificação de “fumante passivo” ­— qualificativo que diz muito a respeito da Pussyficação do mundo. Hoje, um gesto que já foi considerado mácula na honra de qualquer sujeito homem, como a delação, tem até 0800. Não é à toa que o movimento de protesto (contra os atrasos nos aeroportos, Cristo!) se chama “Cansei” — e nem vou comentar a frase que li outro dia: “a culinária é o novo rock’n’roll”. Pussies!


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