6 se contigo deverei habitar

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR

SE

CONTIGO DEVEREI HABITAR

Ricardo de Almeida Rocha

O solitude! If I must with thee dwell (Oh solidão! Se contigo deverei habitar...)

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR John Keats

Era exatamente o mesmo de então. Talvez apenas ainda mais enamorado da solidão perpétua Emily Brontë

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Na janela junto à ponte a jovem se debruça absorta. A correntinha brilha em seu pescoço. Na trilha do parque por onde ereta voltou como se nada tivesse acontecido, arde ainda a devassidão das aparências como um copo fervilhando. Havia nas árvores aves como essa — canto de um mundo que a abandonou. Chega a ouvir o barulho do mar exatamente como em sua caminhada matinal. Em cores fortes e reflexos passam os automóveis. Inquieta respira fundo. Afasta-se da paisagem com um impulso no parapeito e num último relance deixa o sol entrar na sala filtrado quase líquido sobre os móveis. Enquanto procurava entender onde estava ao acordar suando frio no meio da noite cruzara os braços sobre o peito e levara as mãos em cruz ao calor do ventre. Recordou-se menina. Seu primeiro amor foi uma coleguinha de classe. Um dia saiu de casa e esteve diante da portaria de seu prédio respirando a chuva fina em súplica inócua que se prolongou por quase uma hora. Um dia foi magra e sem indício de atrativos em vestidinhos que ela masculinizava. Uma menina obediente e bondosa. Isso deveria fazer com que merecesse um corpo despercebível em que habitar. Jamais iria usar cremes ou maquiagem. Jamais iria beber ou mentir. Cultivará apenas o saber que tenha um propósito virtuoso claro. Estava sempre ajeitando o biquíni sem que seus pais entendessem a razão e em casa ficava horas olhando o nada. No enterro do avo o tempo todo chorava e dizia "Vou sentir tanto a sua falta! Vou sentir tanto a sua falta!" Mas agora ama a integridade de um homem e passou a amar tudo que lhe diz respeito incluindo a indócil virilidade que ele está longe de imaginar tenha tal efeito apaziguador. Livrara-se enfim do remordimento do passado e enfim seria feliz mas agora está transtornada porque descobriu que ainda eh possível ser surpreendida e renovar a humilhação e a dor de outra perda da inocência. Em que medida era culpada e como conviver com essa culpa? Como conviver com esse ódio?

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Gisele Drabska. Uma jovem simpática que todos achavam belíssima. Que vantagem se a beleza só traz dor? Um dia morrerá e nada ficará além de seu caráter. Dos objetos pessoais impregnando de saudade a pessoa amada. Os poemas das horas de maior angústia.

Meu irmão, o que te tornou assim corriqueiro e substituiu teu amor dedicado por lassidão tamanha?

Nem imagina onde ele estah. Possivelmente algum lugar no litoral irlandes que adora. Sempre soube se virar longe dos grandes centros. Aqui na megalópole a vida é mesmo difícil e o recanto bucólico eh enganoso. Apesar da longa ducha a sensação se mantém: parece que ainda dorme. Seja como for jah é dia e ela precisa ir para o trabalho; é o único motivo para levantar da cama.

Sobre a cabeceira o relógio acusa seu atraso. Na penteadeira o perfume que recebeu no Dia dos Namorados. Veja no espelho o quanto você é de fato bela, lindíssima, dama triste do olhar perdido na sacada da firma. As colegas a imaginam realizada, com os homens que quer. E amaldiçoam, amaldiçoam sempre, às vezes com gracejos, outras com simples e cruel maledicência. Sobre a cômoda antiga as bonecas de porcelana numa cena perfeita de reflexão da protagonista acerca da infância que chegou a ser tão boa durante algum tempo. Uma colina ao longe cuja neblina jamais se dissipa. Com uma última ajeitada no cabelo desdenha de qualquer tempo ou contratempo. Ao sair, numa rápida olhada para cima, percebe que há ainda orvalho nas folhas da árvore em frente, única do quarteirão. A grama ao redor está dourada. Até

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR que horas durará esse brilho? No rosto pálido a resposta se manifesta: não mais que alguns minutos, o tempo da alegria de alguém. O vermelho vivo passa e na distância marcada pelo motor se mistura o som do telefone. - Alô? Ela não achava que ele fosse capaz de ligar. - Vamos terminar num lugar discreto o que a gente começou na trilha? Gisele continua caminhando. Nem por doença falta ao trabalho e não costuma se atrasar.

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David é uma pessoa anacrônica mas até aceita as inovações tecnológicas; porem no caso especifico de celular preferia a vida antes. Gisele leva consigo o seu para caso de emergência. Conheceu-o no ônibus. Numa festa é que não poderia ter sido. Um cinema em que talvez não é lugar para esse tipo de encontro. Na rua caminhando, outra alternativa. Enfim. Foi antes do lugar em que ele deveria saltar. Não tinha certeza. Gisele sabia? - Ah! - respondeu ela. - Também vou descer nesse ponto. Ela se angustiava com a possibilidade de uma ligação. Como não é comum que ligue e como ela não costuma receber outras chamadas, quem poderá ser agora? De quem é esse número no visor? - Sim? Um caminhão passou no exato momento. Terá de perguntar novamente. Não teve tempo. A seqüência é conhecida. Aconteceu assim. Foi levado para a clinica tal. Está em coma. Um pranto desesperado. Camadas de desespero sobre camadas de pranto. Ali ela morreu. Continuou morrendo pelos meses seguintes enquanto as esperanças de que ele pudesse despertar eram retiradas como bebês a fórceps. Não para a vida. Natimortos.

Outrora era uma festa. Seu coração exultava por tudo e por nada. Até a primeira vez. Ao menos não era mais uma criança. Então conheceu David e todas as coisas passaram a existir em glória como se houvessem alma. O corpo na cama deitou ao quarto a paz que emana do alivio de

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR uma dor intensa. No rosto meigo de Gisele o sorriso é de novo o Deus a quem se deveu em infantil consagração. A madrugada de sábado ronda a janela em celebrações embriagadas. Acordou consigo mesma ao despertar em nada pensar sobre a noite passada. Esqueceria o monstro. Tinha essa sorte - não morarem na mesma casa. É a miséria de tantas sobrinhas e enteadas e filhas.

Manhãzinha. Neblina acrescida de chuva. As ruas vazias e tristes estão mortas. Sentada à beira da cama correu à memohria. Onde seus nove anos? os resplendores? a eternidade? O espelho lhe sorriu em cambraia com busto de algodão — era essa a transcendência perseguida? Uma jovem forte que só mas estava um pouco cansada. Mal saíra do prédio notou-o no ponto. Que rapaz simpático. Que porte... — O que é isso, Gisele? nada de perder a compostura - a única coisa que restou. Foi uma noite horrorosa, exaustiva. As olheiras sujam o redor dolorido de seus olhos. E ainda dizem que isso lhe dá um charme especial.

Toda luz estava acesa. A das janelas e o dia. E havia uma lua teimosa. Garoa nos postes e na fina percussão das vitrines. Independente do tio, chegara a primavera. A saia de sarja sairia índiga em seus suaves quadris. Os seios pequenos apontavam para a idade completada no dia anterior. Embora discreto ele não pôde deixar de perceber.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR David Choi lutara contra graves limitações de saúde. Perdera a família e não tinha amigos. Mas conseguiu ao que parece um bom emprego de pesquisador. Refletiu contudo. Está plenamente feliz? Pode prescindir da oportunidade de conhecer essa moça? O coração parece que vai explodir ao descerem do ônibus. Um capricho do destino que os toca com a delicadeza dos pingos e permanece com ela na segurança do prédio. -Trabalho aqui - disse ela. Quem dera, pensa ele, eu pudesse também. Mais do que acaso.

Lembrando, ela atendeu a ligação. Sombrias expectativas confirmadas, chorou. Chorou muito. Chorou tudo. De novo sozinha. Para sempre. Não. Antes sozinha. Mas não: com o vizinho, o tio, o médico, o homem no metrô, o assaltante. Todos à solta a seu redor. E David uma falsa companhia - uma falsa existência ligada às máquinas. Como era infeliz! Depois do pai e do irmão, abandonou-a também o seu amor, partindo para esse limbo.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR A morte não existe para ele. A moça do monitor atende o pedido e tira mais uma peça. O homem sabia que com essa conseguiria logo no primeiro encontro. Virtual, dizem. Quem se importa? Os amigos de bar não partilham suas fantasias porém não consideram um mal. A vida não existe para ele se isso não for vida. O barulho incomoda. Grita com os vizinhos. “Parem com isso, palhaços!” Não escutam. Não estão em casa. “Hum, gostosa”. Vejamos o que digo para que tire o resto, pensa com a mão direita. Bendita tecnologia! - Aposto que você se depila toda. Ela mostra que não e não deu para segurar. Depois do gozo não há nada. Ela gosta de se exibir e agora se exibe para ninguém. No contato com a água fria, o pequeno menor. Ele se assusta. Vira-se para o lado do ruído. Não sabe se está vendo o que está vendo. Procura razões para a alucinação. Algo que comeu no almoço. A maconha do dia anterior. Pensa até na possibilidade de estar sonhando. Do chuveiro o que se vê é um homem prostrado. Um menino. Quem entrasse naquele momento não veria a luminosidade de uma perna feminina à luz do basculante. Na pele lisa e luzente um reflexo desfigurado do homem caído. Ele balbucia. Pelo ângulo não se poderia ver além da perna mas da perna se deduz uma jovem magnífica. Lembranças antigas mais que sexo. O menino no chão vê a mãe, tão bonita,; escuta o pai dizendo que vai embora, que não aguenta mais a mulher, vou embora, diz, desse inferno. Está se justificando? Pede humildemente perdão, não pretendia. - Ando estressado por causa do trabalho, você não imagina o que é a rotina de um executivo. Perdoe-me, por favor.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Estava cheio de dívidas, não conseguia se concentrar no trabalho. Não tinha mais posses e jamais teve amor. Encontrá-la no parque foi um refrigério. - Reconheço que não foi uma maneira bonita de demonstrar o meu amor, mas é a verdade. Não vai dar uma desculpa para a mulher na tela? A moça no banheiro não se mexe e não fala. Nem poderia estar ali. Então do que se trata? É uma impressão correta a de que ela está a ponto de chorar? Sim. Os olhos estão marejados. Perdoe—me toda crueldade que fiz ao longo de minha vida. Dói demais. É consciência demais. - Fale, moça. Me faça compreender o que está acontecendo. Que nada. Cada vez entende menos. Na exata proporção da dor que cresce dentro dele, lentamente; ela própria cresce em seu peito, como se ali estivesse enraizada. Ah! a loucura! Quem disse que pessoas como ele não sentem remorso? O que é corpo e o que é alma? onde começa esse sofrimento? Não, não é remorso. É alguma outra coisa.

Os lábios que recebiam as lágrimas — lago sob a cascata — se movimentam inversamente e ameaçam um sorriso apavorante. O que está acontecendo comigo? Por que justamente comigo? São palavras inteligíveis as que saem desses lábios? Não, mas ele as entende com clareza, a mesma com que sente o pé descalço que em seu peito se apoia. Havia no olhar uma sentença. Desista de sua vida ou a dor crescerá eternamente. O chuveiro pinga; a torneira da pia está aberta; gotas na janela do

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR banheiro — tudo chora o pranto ao qual a visão renunciou. O homem está admitindo o que sua razão rejeita. Está a ponto de desistir da vida. Não há dúvida, é dela esse joelho. Como não seria? foi o que primeiro lhe chamou a atenção. Mas não provém dela a dor desse remorso. Uma vida inteira que não pode mais justificar. A dor crescia pelas coxas e irradiava seca para o ventre. E a secura ignorava os gritos apoiada pela mão que tapou a boca. Aí chegou alguém. Aí ele fugiu. Agora ninguem tampa a minha boca, pensa. Mas eu não posso gritar. Enquanto ela descreve os detalhes ele simplesmente não suporta mais. É o fim. Precisa ser.

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Ao ouvir as batidas na porta Gisele saiu da frente do espelho. - Venha tomar café, minha filha. A mesa está posta. A senhora Ewe tinha feito omelete de queijo com trigo. - Vem logo, meu amor. - Já vou, mamãe! Quando descer será com garbo apesar das sombras na escada e ainda que estivesse escuro na janela da sala. Pois abandonara os terrores noturnos e esquecera o ruído das correntes. As síndromes tragadas pelo abismo. Se fizera mulher ao longo de boas escolas e alimentação balanceada, roupas quentes e tratamento de canal. A beleza abre portas. A garotinha cresceu e não tinha mais medo. Mas alguma coisa se perdera no caminho.

Havia filas barulhentas no pátio batido pela chuva e a excitação das crianças se media pela algazarra. Um garoto muito nervoso estava bem ao lado de Gisele. Deve ter a minha idade, pensou ela. No máximo uns treze anos. E a fila começou a andar bem devagar como se fosse uma coisa viva exalando um cheiro escuro de tempo. Ela piedosamente ouvia o silêncio de David por experiência própria. A sorte era o irmão e os amigos e amigas do irmão ou também estaria ali sozinha e temerosa. Moreno como ela. Covinhas no sorriso triste. Estavam se molhando. Atrapalhadamente ele cobriu a cabeça com o capuz do blusão e em seguida foram chamados a salas distintas. Não veria o rosto dele outra vez até ele fazer a pergunta no ônibus. E esqueceria. Não havia qualquer razão para lembrar.

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Gisele era responsável pelo jornalzinho da escola. As matérias traziam entrevistas com professores e informações sobre a diretoria e eventos, lista dos melhores alunos, dos melhores atletas, os que se destacavam em atividades extracurriculares. Aí ela reinava absoluta. Escrevia peças de teatro e poesias, as mais belas. Menina linda e sensível. Todos tinham olhos para Gisele Drabska. O menino moreno também criava jornaizinhos em casa, sobre os campeonatos de futebol de botão que disputava sozinho.

Na noite de um dia chuvoso, primeiro do ano letivo, festejavam o aniversário de Gisele. O pai, o senhor Pierce Drabska, é um homem bom, um juiz. Íntegro e religioso. Adora os filhos e especialmente Gisele, embora nunca vá admitir e diga que gosta dos dois irmãos por igual. A senhora Ewe Drabska é mulher do lar, simples e feliz na medida em que a filha dava mostras claras que em pouco tempo conseguirá o que a mãe sonhou a vida inteira sem conseguir: a realização profissional; a independência; a admiração de todos. O irmão é um chamego só e os primos estão presentes também. Descendiam sem dúvida de valorosa estirpe: os homens inteligentes e fortes; as mulheres sensíveis e bonitas. E Gisele em tudo a todos excedia. Adorou o que ganhou. Um perfume dado pelo tio a deixou louca de vontade de que chegasse logo o dia seguinte na escola. Constrangeu-se um pouco com o corpete de rendas que tia Natacha deu com um sorriso maroto. Mas amou mesmo as sandálias de couro entrelaçado que recebeu dos pais; e, embora costumasse baixar as músicas que gostava da internet, sentiu um prazer diferente quando o irmão lhe deu o CD. Enquanto abria os presentes, alguém comentou na sala o quanto ela seria uma moça alta. Diante do espelho alguns anos depois, a menina que recém perdera o pai é

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR ainda relativamente baixa embora esbelta e empertigada. A mãe comenta durante o café o quanto o terninho creme lhe caiu bem. Era um dia frio, fora dos padrões para a época do ano. Ela pede que a mãe lhe passe um pedaço de quindim. Como consegue que fique com esse gosto? É por causa da gelatina sem sabor. O primeiro dia de trabalho e seu pai e seu irmão não estão ali para se orgulhar dela. O tio, que escapou do acidente, passou a noite apenas porque precisava sair cedo e a casa da irmã era próxima do lugar aonde ia. Transbordando em lágrimas silenciosas Gisele abraçou a senhora Ewe por trás da cadeira. — Querida — diz a mãe. — Minha eterna menininha...

Os que viviam naquele prédio do bairro nobre estavam protegidos por muros e porteiros e é de se supor que tenham todos os seus desejos satisfeitos. Havia vultos na janela do segundo andar na noite azul arejada pelos ventos do camburi. O que terá acontecido? O rosto do homem grisalho se volta para a mulher ao lado mas deixa de dizer o que pensou. “Sigamos nosso caminho. O que temos a ver com isso?” Mas é difícil imaginar que exista para o casal um caminho comum a seguir exceto salvaguardas que perderão mais cedo ou mais tarde o sentido. O homem assassinado é conhecido do policial responsável pela investigação. Por que assassinado? Não há indício de que tenha alguém estado com ele. Não há arma ou vestígio além dessa expressão aterrorizada Nada aponta para um crime. Mais e mais pessoas se aglomeram. Sem o casal entre elas. Pertiert passou a noite com uma garota nesse bar onde costumam ser rigorosos com a questão da identidade e não permitir a entrada de menores. Há essa construção ao lado. Ninguém pensa que existe no fundo um quarto agradável com

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR alguma serventia. Não toque o corpo, diz o policial ao porteiro. O homem exigia o inverso de sua companhia. Não dá para ter certeza mas realmente parece não ter mais que quatorze anos. A idade da sobrinha quando descobriu do jeito mais cruel que ele não era digno de tanta admiração. Vem cá, diz um policial ao outro. Segunda-feira passada houve morte parecida. Com um cadáver muito parecido. Igualmente apavorado e próximo ainda em vida da região das sombras. Que eu não precise ver um terceiro desses. Olhe. A tela do notebook mostra à luz do basculante a posição derradeira do vizinho de Gisele Drabska com clareza digital que não dá verdadeira noção da luminosidade que ali havia. Longe disso. Quem é, como foi, por quê? — com que rapidez se deslocam as hipóteses entre o avanço tecnológico e a lerdeza humana! Onde fica esse prédio? As coisas ficarão complicadas para essa moça. O vento lá fora geme e remexe coisas que deveriam ser apagadas para sempre.

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Gisele se sentia bem com elogios. Esse agora inesperado a entusiasmou além do que costumava se permitir. Sua beleza e inteligência de pouco valiam mas agora é exaltada a possível glória literária — glória de homens do mesmo modo e qual é mesmo a sua utilidade? O brilho da noite lembra o brilho dos sonhos e seu tio está entre as raríssimas pessoas em quem acredita. Olhando-o ela aceitou o dom como de fato uma dádiva e não um fardo. E foi se deitar com uma nova perspectiva para o dia seguinte. O Sr. Pertiert no quarto era mais um. Não há exceções. Nenhuma, pensou. Como viver num mundo assim? A cruel decepção com o tio deixa de ser um choque. Revive num desejo forte de conseguir um bom trabalho e o mais depressa possível se tornar independente. Ainda que exista no mundo um homem bom não irá pôr em risco o relacionamento com dependência. Assim que se vê de novo sozinha, Gisele enche o peito, se põe ereta e entra no prédio em que construirá uma carreira de sucesso. É aí que o delegado pessoalmente pergunta se ela veio trabalhar e, pela resposta, forma dentro de si a convicção. Tem a sua suspeita.

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Foi uma vez há séculos mas ela se lembra. Fazia frio como poucas vezes sentira. Amanheceu e havia geado. Ela olhava as folhas, súbito caleidoscópio ao som de flauta. Um símbolo da paz, esverdeado. Anos sessenta, claro. Teria ele feito isso, e quando e como? — posto algum pó alucinógeno na xícara de seu café? O tronco da árvore entrelaçado ocupa toda a superfície da xícara. Não evitará — desejará — o abrigo de uma casa, e ele terá consumado seu plano. Amanhecer de pedra e cores transformadas de minuto a minuto, efeitos de um programa de edição de imagens (filtros e canais e agora até a aplicação de um outro amanhecer sobre o primeiro numa camada de desejo de morrer sobre a original camada do desejo de ser feliz). Pintura digital da dor que ah sim pode ser bela. Naquela noite escreveu seu primeiro poema realmente relevante. Foi a primeira vez em que as coisas aconteceram sem que ela pudesse dizer abuso. Se David não aparecesse é até provável que acordasse um dia achando que o rapaz que depois do cinema a convidou para o apartamento tinha sido seu primeiro namorado.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Se não voltar a si rápido vai passar do ponto. Devaneio sobre devaneio e está muito longe agora.. A última parada antes do lugar em que deve descer. O vento ondula a gola; esfriaria o rosto se ele estivesse ali. Abstraindo-se ou meditando, não percebe o olhar de Gisele enquanto passam as lojas da zona comercial e mais além uma fumaça que bem pode ser da empresa procurada, cujo projeto sustentável tem decerto muitas falhas. Fumaça pegajosa e desagradável, pensa Gisele. Há algum tempo em seu trabalho ela mantém as ligações comerciais entre as empresas.

Quando deu por si percebeu onde estava e tocou a campainha do ônibus. Ela olha sem ver. Pensa no pai. Ele dizia que a beleza e a inteligência não a deixassem se enganar. É quase como perdê-las. Ela então sorria mas não lhe dava atenção. Era coisa de seu zelo. Junte a coragem às virtudes. Junte a coragem em qualquer situação. Assim respondeu tranquila à pergunta de David e seguiu olhando de cima. As luzes do teto do ônibus são como cílios do carinho de papai. Ainda caminharam, David e Gisele, por um pequeno trecho do calçamento juntos antes de deixarem para mais tarde o futuro.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Sentados à mesa do jantar sozinhos enquanto a senhora Drabska repousava após uma crise o pai pergunta o que Gisele tem. Não é bom para a saúde guardar as coisas. Não é bom, claro que não, ela bem sabe que não, sabe o quanto não é bom, admite enfim falar. Pai, diz. Começa, do princípio. Não terá coragem de falar do tio. Conta sobre o médico sem os detalhes mais humilhantes. Bem que o senhor Drabska tinha suas cautelas quando diziam que era um profissional competente e um homem maravilhoso e louvavam seu interesse pelas pacientes. As palavras de Gisele ainda procuram um caminho quando ela sente que não deveria ter falado. Olha de soslaio para o pai. Podia matá-lo de desgosto. O senhor não deve se torturar assim tanto. É um desclassificado. Não vale a pena sofrer por causa dele. O pai pensa que se não vale a pena sofrer com tal motivo então qualquer sofrimento é escusado. Minha filha, minha querida filhinha, um dia eu disse para sua mãe: o que não vale a pena é colocar uma criança num mundo destes.

O sol estava alto e o dia quente quando o carro do senhor Drabska saiu da garagem, gemendo em cada manobra. Perdera a hora. Nunca acontecia. Só conseguiu adormecer pela manhã, o que tampouco era comum. O senhor Pertiert a seu lado ao contrário parece ter passado uma noite ótima. Na verdade ainda dorme. Apenas passou da cama para o banco do carona. Nesse exato momento Gisele despertou num sobressalto. Correu até a janela e viu por uma fração de segundo o carro do pai fazendo a curva e pegando a avenida.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Por que não se conheceram antes? Por que o acidente aconteceu? A concupiscência e crueldade dos homens. De nada servirá a luz do amanhecer. E a beleza dessa manhã para que serve? E pensar o quanto gostava de morar perto do parque. Correr e caminhar pelas trilhas antes e depois do trabalho.

- O que a senhora quer dizer? A senhora Ewe Drabska que a partir de certo momento não escutava mais o policial olhou-o com olhos grandes e vazios. - Minha filha é suspeita desses crimes? - Lamento, senhora, mas ela eh a unica suspeita. - Não pode ser, meu bom homem - disse a mulher. Louva a diligência com que ele quer executar seu trabalho, mas simplesmente não pode ser. - Se o que quer é prender minha filha, por que não a prende? — pergunta meneando a cabeça.

A mãe abraça a filha com desespero e seu beijo não entende que ela vai apenas dar uma corridinha antes de ir trabalhar. Alguma coisa aconteceu durante a noite. O que terá sido, se pergunta, embora saiba a resposta. E sabia que jamais perdoaria. Laços sanguíneos agravam o mal do mundo. Em família tudo o que é apenas parece ser.

Então o delegado sentiu um horror vago que poderia se passar por tristeza ou saudade ou loucura. Vê sua primeira esposa, a falecida, o que é isso? Rápido demais. A mãe de novo em sua frente em meio àquela escuridão em pleno dia.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR A mulher não mostra desagrado com a ideia de uma filha criminosa. Fez-se silêncio e ele pressentiu contra toda a lógica que indicava Gisele como a assassina daqueles homens (por envenenamento decerto), que não. Que ela é inocente. Tem de ser inocente porque já estava morta.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Houve uma mudança essencial. Ele via o céu e o vento, as arvores e a chuva com novos olhos. Houve uma autêntica transformação exterior porque ele próprio mudara e amar é isso, transformar o mundo. Deparar com essa gente nervosa se angustiando por nada e pensar que gostaria de dizer “A vida é bonita, é para ser vivida em paz”. Quem diria. David, o ansioso, tendente à depressão. Na verdade tempo chegará em que se desesperara de novo - o coração pulando entre vozes anunciadoras. Foi assim. Há tantos meses. Tudo mudara. Ele era outro. Um outro administrará a notícia.

Caminham pela rua como se não houvesse ao redor tudo o que há. Pessoas passando e carros e um avião aqui e ali um trovão distante. Um cão em alguma casa e as batidas na construção. Os trilhos do trem e a possibilidade de um trem. Ambulantes. O sol e os raios invernais do sol e a vizinhança bucólica dessa rua central. Ainda duas pessoas distintas? Passam e ninguém dá por eles. As luzes acesas mal percebidas de fora serão apagadas. O olhar de Gisele. Seus movimentos de cabeça. Contida, está todavia determinada.

Contra a luz exterior vista de dentro assim o homem na mercearia os via. A instabilidade do tempo trouxera de volta a umidade do ar e o canto dos telhados. Estava começando a última parte da tarde; aproximava-se o crepúsculo. Ele estava com o poema que escreveu para ela na escola. Carregava-o desde sempre. Entregoulhe. - Como assim"na escola"?

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR - É claro que você não se lembra de mim nem daquela fila sob a chuva para entrar nas salas de aula. Agora está ali. Agora. Ali. Ondas que se perseguem. Os dias após as noites. Espanto e regozijo. Agora está ali. Uma moça alta como a compleição da menininha indicava. Pálida e saudável como a imaginara. Em nenhum momento pensou se era bonita ou atraente. Em nenhum momento exceto um ou outro dia solitario. Sao muitos entao. Não é coisa que possa mudar dentro de alguém após anos a fio. Existe algo em Gisele que não tenha sobrevivido ao reencontro? Como se o tempo não tivesse passado. Entretanto sim passara. E do menino insignificante brotou o ser que daria sentido à sua vida. Eterno herói entregando a vida. O mundo renasce porque ela é como é; porque ele, que não existia, está ali.

Lado a lado se afastam de si mesmos tão perplexos quanto não o esperassem. Nas crianças que foram e nos círculos de perguntas infantis. Extremidades se tocam como papéis de diferentes finalidades guardados por muitos anos em uma mesma gaveta. Ela e ele. Ele a esperava desde sempre e ela não mais esperava por alguém.

Param numa banca. David compra uma barra de chocolate, tira o invólucro e oferece o primeiro pedaço. Ela morde e mastigando articula as palavras. Leva a mão ao ombro dele sem se aperceber. É aqui que devo entrar, diz, mas está pensando o

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR quanto seria bom se fosse tambĂŠm o lugar que ele procurava.

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sexta-feira, 14 de junho de 2013

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Bem cedo os peritos começaram a procura de indícios. Os médicos depois diriam se foi morte natural. Mesmo se nada indicasse um crime, todos tinham uma sensação estranha ao olhar o cadáver. Vultos para lá e para cá. Falam entre si a cada poeira descoberta. Estava se divertindo antes de acontecer. Vale a pena localizar essa mulher? Nos laboratórios haviam também madrugado. Pincéis e líquidos. Fitas e ácidos. Uma ou outra ferramenta. A lanterna e o microscópio. Isso é nojento. A internet é um espelho do mundo: um espelho que aumenta mas ainda um espelho. Ninguém imaginava que o perito tão jovem pudesse conhecer Baudelaire. Quem? Hum. Aí está. Quanto à menina, não sabiam como avaliar. O lugar foi preparado por um cafetão. Podiam ir atrás dele mas em nada ajudaria na investigação; quer dizer, de nada serviria para explicar o horror nas feições dos mortos.

Não parece coisa humana. Na verdade, o sexo virtual e a pedofilia tampouco lembram alguma coisa humana. Há um monstro inumano dentro de cada um. A gente desconhece porque prefere desconhecer. Talvez pelo anseio de liberdade porque cada transgressão, quanto mais sórdida, mais se aproxima de uma idéia de liberdade que nos aproxima dos deuses. Um dos homens se vira para a perita que falava. Você parece ver em tudo alguma coisa que confirme suas estranhas teorias. Mas no fundo pensava de modo parecido. O pior não é descobrir pessoas anormais, mas sentir que há uma afinidade entre nós e elas.

Os peritos são sombras na manhã. Esse aqui parece ter passado uma noite difícil, talvez insone. Talvez o cansaço do sexo ou ambos. O assoalho estala com as idas e vindas num estranho refrão. Se a prova pericial é ciência e a ciência é

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR irrefutável, o que faremos com a expressão desses rostos? a ausência de digitais? esse inquérito de sombras? Nenhuma materialidade, tampouco testemunhas; nenhum vestígio ou agente que suporte a existência de um crime. Nenhum vento que dobre árvores nem água das nuvens carregadas. Rostos revestidos de pavor mais do que de pele. Nem autor nem material nem indício qualquer e assim nenhuma evidência. Todavia não é possível ignorar esses corpos retorcidos, não importa o que diga a autópsia. Assim o investigador se antecipa, descobre a relação entre os mortos que se confirma quando a mãe da suspeita chora à possibilidade do irmão ter abusado da sobrinha. E todavia não há nada. Por que não desiste? Ela morreu sim. No mesmo dia em que foi atacada no parque. Morreu por causa do ataque, ao tentar se defender. Morreu porque ele fugiu. Que sonhos são esses de que forjou a própria morte para se livrar? Seguirá ele na caça de um fantasma?

Se precisa de um corpo e a cremação está documentada, o que terá? Mas é um profissional competente, racional. O que temos? Dois corpos; uma jovem assediada pelos dois; uma mulher determinada, conforme os testemunhos no trabalho. De inteligência incomum. E agora o resultado da autópsia: ataque do coração nos dois casos. Sim, e o que comeram? Está muito próximo da aposentadoria. Jamais houve um desafio assim. Será o fecho de ouro de sua carreira. Não se deixará ludibriar por uma mulher, inteligente que seja, ainda que seus motivos sejam justos.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Desde que conheceu Gisele, Eduard não consegue mais dormir depois que acorda, bem antes do amanhecer. Agora desiste e se levanta. Chega à janela. Que mulher extraordinária. Realmente obstinada, obsessiva, para não dizer um pouco louca. Olha a rua. Orvalho nos cabos elétricos e nas folhas. O fio de água correndo ao longo da calçada. E o que talvez sejam os passos de uma mulher que vai apanhar o ônibus para o trabalho no ponto da esquina.

Uma vez ficaram conversando um bom tempo na cozinha da empresa. Ela até se mostrou acessível. Ele chegou uma ou duas vezes a insinuar seu interesse. Pelo menos pensou que sim. Que havia sido claro o suficiente. Não sei o que aconteceu contigo mas você não pode viver a vida toda nessa concha. E por que não poderia? É ela, é a concha que a protege de pessoas como ele: sinceramente interessado, um homem íntegro segundo o testemunho de todos, realizado na profissão, com os mesmos interesses no trabalho e fora dele - cinema, literatura, teatro. Mas não. Esses não são os reais interesses dela mas cortina de fumaça. O que eu realmente quero é encontrar alguém que cuide de mim e seja o oposto do que sou. Porque se aceitasse uma pessoa como ele, tão parecida com ela mesma, deixaria de descobrir as coisas que precisava saber. Um legítimo amante tem esse dom de fazer com que, ao amarmos o que está fora de nós, revele-se o que vai dentro. Jamais será o caso de Eduard. Seria como se apaixonar por si mesma, homem.

Em determinado momento nesse dia ela tocou na mão dele num resvalo. Olhou bem dentro de seus olhos. - Todos os homens são iguais, egoístas, irresponsáveis. Não se entregam - disse. Foi o mais próximo que eles chegaram um do outro. Depois ela se encostou na parede, calada. Pensativa — ou só queria fazer tipo? Ele ameaçou

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR se aproximar uma ou duas vezes e ela esperou que ele o fizesse. Subitamente entretanto retornou para a planilha aberta na tela de seu terminal.

Foi uma prova de caráter. De que era diferente. Não o bastante para Gisele. Inspirou-lhe respeito, não amor. Sequer um desejo remoto. Nem mesmo o anseio de fazê-lo amigo. Na belíssima dureza do rosto pálido, o terror dominava as virtudes conscientes de que não havia esperança. A que deve renunciar para tornar a viver? Tudo está irremediavelmente perdido. Imersa em aversão também ela regressou à sua mesa de trabalho.

Não imagina que ele tem insônia pensando nela. E se soubesse, que diferença faria? Aqui está ele, à janela. Vê agora a mulher madrugadora atravessando a rua para alcançar seu transporte. Poderíamos ter sido namorados, por que não? Talvez ainda possamos. Porém o pensamento desloca-se como um trem, com o caminho previamente determinado; como um trem, às vezes lento, às vezes desgovernado, aqui e ali apitando. Quando parte e ao chegar. E a cada apito se sucedem planos de uma família. Viagens. Prêmios. Crescem, elaboram-se em detalhes e logo se dissipam. Depois restam os carros do ano, os projetos estressantes, as garotas de programa — corpos novos renovados para a cobiça.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Ninguém estava aqui no momento em que ele morreu, disse o perito ao delegado. Não há dúvida quanto a isso. Por que o senhor simplesmente não aceita? O legista determinou: simples síncope. Nada indica o contrário. Substância suspeita alguma ingerida. A dor no rosto dele infelizmente não há método que explique. Que razão para continuarmos? — perguntou o jovem, condescendente. Todos concordam que é apenas uma coincidência ambos terem abusado da moça. Se pensarmos bem, foi feita justiça. Justiça divina. Vamos tomar um café e depois eu levo o senhor em casa. Têm sido dias difíceis.

Estava deitado sobre os lençóis trocados. Recusara o chamado da mulher para jantar. Abdul, abdul — ela insiste sem que ele ouça. É possível que não esteja morta. Que tenha forjado a documentação e subornado os envolvidos. Cinzas não deixam rastros. De um salto, levantou-se. É claro! As cinzas... Onde foram jogadas? Haverá testemunhas decerto. Se não houver, não será estranho? — disse para si mesmo. Um sorriso sarcástico. Tudo de que precisa: um pretexto para seguir adiante. Descobrirá a intrincada verdade. Sua investigação terá sucesso. Será um marco. Abdul, Abdul. Você é um gênio.

Todos estão convocados para a reunião. O pessoal da Instituto de Perícias não podia acreditar. Menos ainda os investigadores subordinados. A irritação se misturou à maledicência. Portas batem pesadamente, cadeiras são jogadas contra as mesas. Na sala o delegado nada ouve. As pessoas ainda estão entrando. Abdul está em outro mundo.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR A luz permeia a água em que ele descansa, na parte rasa do mar aberto. Deixase entre o sol acima e a areia do fundo. Corpo e pensamentos flutuando no marulho suave rompido de quando em quando por um motor distante. Transportado para a sala de aula no seu primeiro dia. A chuva em bátegas chora na vidraça as lágrimas que à noite desejaria ter derramado por não ter se aproximado mais da moça do ônibus. Sono sem sucesso na noite quente, entorpecida. Névoa de sonho. Desenhamse os traços da jovem através do absoluto silêncio. Talvez a reencontre algum dia no ônibus. Quem sabe a espere para um encontro casual quando saia do trabalho. Esperará o canto do mesmo pardal numa diferente manhã?

As palavras trocadas ecoarão por toda a noite. Estará David Choi diante de Gisele Drabska nas horas seguintes e só quando o despertador tocou deteve-se em si mesmo, nas preocupações referentes ao primeiro dia de aula. Imaginava que um pesquisador da área de informática fizesse muitas coisas, mas dentre elas não estava dar aulas, com o didatismo quase maniqueísta que isso requer e sem a experiência adequada. Um devoto da sorte permaneceu durante todo o dia perante os alunos mas parece que o diretor do instituto está satisfeito e disposto a mantê-lo na vaga aberta pela viagem de intercâmbio do outro professor. Carros chiam na chuva. O trânsito lá embaixo é pano de fundo. A lembrança do dia anterior se confunde com a tensão de falar em público. A sombra dos prédios à frente e o reflexo de seu rosto escorrendo. Abandonará a timidez. Esperará Gisele à saída do trabalho. O que dirá não faz idéia mas se deve ser assim que comece agora. Sai da janela da sala de aula, olha firme para sua platéia e quando soa sua voz já não se mostra hesitante.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR O professor mais charmoso segundo as duas moças na primeira fileira de carteiras. Uma delas chegará a ir ao hospital após o acidente. Menina bonita, leve, jovial, que estaria disposta se fosse o caso a sacrificar alguns anos para estar ali quando ele acordasse. Ele sonha. Ali está ela extasiada. Ele veio. Quem é? — perguntam as colegas. Silenciosa em sua direção. Num pensamento que não se deixou registrar, boiando nas marolas, David quase cogitou ter apenas feito uma troca. Sua repulsa à vida e seus medos por uma idolatria. Mas não parece mesmo uma deusa vindo em sua direção?

Contempla-a com a calma de que necessita a apreciação das coisas simples da vida. Assim vê esse céu azul. A textura da mesa de trabalho. Alívio de uma inspiração profunda. Gratificação de não sentir receio. Ousadia de pensar diferente. Ter respostas imprevistas e atitude. Flutuar no mar da infância como agora. Quem conversa e aprende (isso chamou a atenção do diretor e o fez mudar a função de David no instituto). Esse sal é mar ou estou chorando? Está chorando: chorando de felicidade.

Entra em casa que adquire novos contornos e cores. Lancharam juntos no caminho de volta. Deixou-a em casa. Sorriu comovido e encabulado quando ela deu a correntinha. Uma amiga, talvez um amor. Renascera. Tons sombrios de azul das luzes apagadas transformam-se nas linhas claras e vigorosas do branco no teto e no creme das paredes. Senta-se na sala. O sofá não parece o mesmo. Repara o pó na estante, escutando o barulho das chaves que descem na mesa de centro. Sentiu a vontade antiga. Nadar a noite e, ao amanhecer, deixar que o sol o surpreendesse no mar. Gisele havia sorrido ao escutar isso quando chegavam os hambúrgueres. Quando for, dissera ela, me convida. Colocou o calção de banho e a camiseta. Era muito cedo e a quietude tornava possível a voz dos pombos. Estrutura luminosa principal vinda da lua

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR na superfície do mar, trêmula de vento. Entra na água. Quando voltasse no sábado, a chamaria.

Fim da aula de música. Gisele. Seus cabelos cresceram desde o verão, emprestam-lhe um toque de mulher. Que horas são? Está atrasada para o médico e não teve tempo de encontrar a mãe para irem juntas. Balança moderadamente os quadris ficando férteis. Mordisca os lábios. Se não mais a encontram na noite, como reclamam os amigos, é por isso, responde, porque vive sem tempo, mas na verdade prefere usufruir da vida assim, estudando, logo terá um bom emprego, o que eles ganham com tanta madrugada insone e noites em claro jogando conversa fora? Quando porém lembrar desse dia, terá preferido um barzinho, uma festa ridícula, qualquer coisa que a fizesse perder a hora.

Então? O que você está sentindo? perguntou o doutor muito sério imaginando que a mãe está na sala de espera acertando detalhes com a secretária. Não. A senhora Drabska não foi com a filha. A mãe estava se acabando, exausta, doente, disse Gisele numa confidência de que se arrependerá para sempre. Ao chegar em casa atravessando as ruas perigosamente entre carros e palavras de concupiscência e maldição, ela ainda está desalinhada. Seus olhos marejados e o ar lhe falta. Evitou a cozinha e o beijo. Não contou à mãe, conforme prometera, da audição com o mestre italiano, que tal ele era, ela achava ter tocado bem? — e quanto à consulta, o que vai dizer, meu Deus, quando inevitavelmente elas se encontrassem? Dirá que foi tudo bem, naturalmente, e precisará ser convincente porque a senhora Drabska é muito esperta apesar dos vácuos da doença. Mas agora vai direto para o

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR quarto e maquinalmente tira o violoncelo da caixa. O som se propaga melancólico pela casa e todos sabem que ela não gosta de ser interrompida quando treina.

Que música tão triste. Melhor deixá-la sossegada. À noite a gente pergunta, bem, você pergunta na verdade, porque eu não estarei aqui. Terminando de falar o pai entra e fecha a porta atrás de si. Depois do almoço ele e o cunhado irão viajar a negócios. A mulher relaciona a tristeza da música com seu pressentimento. Não diz nada — silêncio de que se arrependerá para sempre. Não se calará quanto ao irmão. Um dia haverá de falar o que passou a inundar sua alma. Não precisa ser muito clara. Um delegado perspicaz. A mãe indignada. Não irá ressuscitar a filha nem punir o irmão morto mas de algum modo a conforta. O quadro na parede aspira a melodia, a lâmpada e a suavidade quente da tarde. Vozes através da porta do consultório. A secretária sai levando alguns prontuários. Uma menina também espera o elevador. Nunca a viu por ali. Sorri e diz que vai chover. Naquele dia no quarto de Gisele os quadros deslocavam luzes, sons e sentimentos. Agora o médico se prepara para sair. Não se sente muito bem. Apóia o queixo com a mão esquerda e desvia o olhar antes perdido para o quadro na parede. O que está vendo?, se pergunta, preferindo que a resposta não se manifeste.

Quando a polícia chegou, lá estava o doutor, caído, como se por horas houvesse se contorcido. Meu Deus, murmura o delegado. Em seu olhar está escrito que ele começa a acreditar que existe alguma coisa além de vingança naquelas mortes. como irá dormir? Escuta. Lágrimas desesperadas abafadas por um violoncelo... O calor suave parece vir de uma tarde distante.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Ao saber, Eduard foi até a sala de Gisele, onde a viu pela primeira vez. Quando se apaixonou. Olharam-se e sentiram ambos algum tipo de conforto. Ele diz que lamenta de coração o que aconteceu com David. Ela sem dificuldade acredita. Ele diz que imagina o que ela está sentindo. Ela se pergunta se é possível mas por fim não duvidou. Saíram juntos e ele a acompanhou até o shopping onde ela precisava fazer uma compra para o seu setor. Cai a noite. Em silêncio sobem a escada rolante e antes de entrarem na loja param numa lanchonete, depois dão umas voltas até encontrarem o lugar que vendia a peça muito mais barata. Em dado momento ela sorri. Ele não chega a tanto para corresponder. É a primeira vez que ela sorri pra mim assim. Talvez nada aproxime tantos as pessoas quanto uma tragédia mas não é normal que aconteça esse tipo de triângulo, se é possível chamar assim. Ela jamais deu a Eduard qualquer esperança nem ele agora se aproveita do momento. Apressam o passo ao atravessarem a rua para apanhar o metrô pois começa a chover.

Veja: a avenida não parece mais serena depois que chove? As luzes molhadas não são mais bonitas? Ela tinha aceitado que fossem a pé e ele a acompanhasse. Responde. Pode ser a umidade do ar. Os níveis andavam muito baixos, quase como num deserto. Tudo se ressente. As luzem úmidas podem estar refletindo o alívio. Ela aceita a companhia e não evita a idéia de consolo. Por que não? Uma forma de enfrentar as profundezas de sua dor, da desolação que se fizera a seu redor. Seu comportamento contradiz o que pensava quanto a natureza de todos os homens, do que apenas David deveria ser a exceção. Está tão cansada que apenas aceita. Nada além disso.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Na saída do elevador uma sala-de-estar. Um sofá verde acompanha a curvatura da mesa de centro onde se destacam flores naturais. Depois da lei anti-fumo, o cinzeiro ficou não se sabe bem por que. Gisele demorou a encontrar esse prédio, que lhe parece ideal para todas as necessidades e conforto da mãe. Eduard procura ser discreto ao observar. O corredor é amplo e longo. Os passos ecoam, e só então percebe que ela está de salto. Jamais imaginou que ela usasse. Foi uma noite muito agradável no meio de tantas em que ela não sabia como fazer para seguir vivendo. Sua voz ressoa grave e nítida, doce e sinuosa. Então pararam. Então é possível a amizade entre um homem e uma mulher. Ainda assim Eduard, gozando de plena saúde, com um ótimo salário e a aparência decantada entre as mulheres, sente inveja do pequeno e feioso David agora preso em uma cama de hospital. Não existe homem na face da terra que possa se dizer livre de em algum momento descobrir que, se existe, a felicidade não é feita dessas coisas. E ela, imagine, sente inveja da moça com quem um dia Eduard acabará casando. Mulher afortunada. Passa a mão no rosto dele quando termina de abrir a porta. Eduard sorri o sorriso que antes não deu e tomou a mão que tão terna o acarinhava. Fechou os olhos. Um momento desses bem podia durar eternamente.

Os odores que envolvem esse tipo de ocasião. De homem e de mulher. De tapete, de paredes. Do mogno da porta. Evocam origem ou recomeço, decisões, compreensão. Sem tais aromas não se vive e quem não os sentiu intensamente não pode dizer que viveu. As chaves não param de tilintar nas mãos dela. Olham-se nos olhos mas sem mais desafios. Porque as verdades que descobrimos provêm de outras que demoramos a aceitar ou das que ainda rejeitamos. No morno elevador que desce há uma luz desconhecida e dolorosa, ancestral. Eduard não viverá momento semelhante. Parte de uma redenção. Gisele ainda se manterá um tempo encostada do lado de dentro da porta após o longo suspiro. Eduard a tempos não tocava num

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR cigarro. Procurou pelas gavetas algum que tivesse sobrado de sua decisĂŁo de largar. Pegou-o e acendeu-o na cozinha escura de sua casa. As luzes da cidade lembravam algum tipo de brinquedo iluminado alĂŠm da varanda.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Um violino se faz escutar por toda a rua. Corta a alma. Podia ter dito. Estudei música aqui. Por que a vergonha? Como se tivesse culpa. No carro que engole a avenida, a voz de David é um murmúrio. Como se ele soubesse. Do perfume que ela um dia ganhara, do cheiro de álcool e cigarro. Do bater de seu coração adolescente, mais e mais forte à medida que os cheiros se misturavam. O motorista do táxi ri de uma piada no rádio. A risada do tio durante a noite na festa conversando com o pai dela. Todavia agora o silêncio é absoluto, sentença dum quarto eterno. Hoje ele se atreverá, pensa a senhora Drabska. O ronco do marido é pesado, também bebeu demais. Haverá uma tragédia se souber. A dor de mãe foi dada à luz. Dor da qual a mulher chegou a achar que estava livre. Não seria um padrão familiar se cedo ou tarde não acontecesse. Uma nota longa e bela desafina no final. Estudei música aqui. Quase diz. Mas teria sido apenas para trazer ainda mais nuances daquela dor. Então se cala e David respeita seu silêncio. Teria preferido, é verdade, que ela lhe confiasse a dor; podia ser até num aperto mais forte das mãos dadas sobre o banco do táxi, que não houve.

Não que ela sentisse prazer em carregar a dor sozinha. A vergonha tem um quê de auto-piedade. O que sente é uma vergonha pura, pujante, um sentimento de vingança por ter nascido. Estão no parque. Os pássaros cantam, os pombos rodeiam a árvore, não há sinal de qualquer pessoa além deles por ali. O sol de inverno concede tonalidades inesperadas ao vermelho das flores. Não, ela não tem culpa, sequer de continuar mantendo o tio entre eles num lugar desses e na plena paz que deveria estar vivendo com David, a cada dia mais companheiro. Não tem culpa da dor no estômago quando a mão do tio tornou o lindo traje que acabara de ganhar numa fazenda amarrotada sem sentido. Ou das sombras nascidas no espelho de seu quarto — algumas vindas do vulto contra a lua, outras de lugar algum: sombras

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR simplesmente, quase pétreas apesar dos movimentos. Ou da pele muito lisa. Ou da exuberante juventude .

Anoitece e começam o caminho de volta. O esforço de David é tanto e tão autêntico que ela praticamente riu junto à floração única do ipê. Primavera! Dedos que afundam em seus cabelos lavados. Um beijo ou a fuga para o presente restaurado. Um abraço que acolhe tudo o que Gisele tem. Então seguem. Meu Deus. Faz tão pouco tempo. E agora estou aqui, feliz. Uma gota desce de sua testa. Sabe que não pode mais continuar a destruir sua vida com o passado ou descobre que não há como o passado morrer quando se renova ou na simples memória ou pela repetição dos fatos. Que caminho é esse? Seu olhar perscruta a música muito além da vitrine da loja de instrumentos musicais na saída do parque. Seus cabelos esvoaçam e quando retorna para o lado de David sente-se exausta mas decidida a dali para frente não tornar a ausentar-se ao lado dele. Por que não entramos, e você vê de perto, e perguntamos o preço? Ele sabe que o aniversário dela será dali a um mês mas ignora que ela detesta aniversários. O vendedor se aproxima e ele diz que só estão olhando e ela pergunta onde ficam os equalizadores. O que seria dela se não fosse a música? O que seria de sua música se não fosse David?

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Puxou a saia e tentou interpor a bolsa ao sentir o indesejável contato e se afastou o quanto possível no metrô cheio. Com a veemente insistência, a certeza do abuso deslocou-se para a região em que a ganha nítidos contornos que ela aceita como ódio. Subjugada em mais de um sentido não apenas pelos eventos exteriores. Deus, como todas as coisas são escuras por aqui! Ajuda-me. O corpo e a alma eram como a imagem diante do espelho. Ela não sabia o que era reflexo do quê. Porque seus nervos também estavam afetados. O homem atrás dela perde, a cada movimento do vagão, eventual pejo que possa ainda. A cada tiquetaquear se permite maior avanço, saqueador na noite. Vergonha decretada por quem o dirá patético e solitário. O brado entre a ira e o constrangimento como se os que os rodeavam estivessem prontos não a socorrê-la mas acusá-la. Por que esse vestido curto? Por que essa blusa justa? Por que esses quadris perfeitos? Outro brado e som algum.

Apenas o trem está gritando. Ruge agora. Geme e se contorce na lenta e odiosa agonia borrifada no coração de um ser invisível. Viu o próprio rosto tornar-se exangue. Inconcebível morte se alastra pelo infame constrangimento. O escândalo transcendera a mera decência e mesmo o crime jamais punido. Uma coisa que acontece em meio a tantas a serem tão somente acatadas, não partilhadas. Assumiu a forma também na representação futura abjeta. Não sabe quando mas será tenebroso o fim dos pusilânimes. Não sabe quando. Um dia. A eternidade sórdida teve seu fim anunciado pelo auto-falante. A próxima estação incompatibilizará o desejo de paz com o de vingança. E todavia que tempo será esse para alguém como ela incapaz de qualquer ira ou violência? Que tempo será

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR esse para encontrar esse rosto visto com clareza num relance, se tudo o que deseja agora é jamais rever esse rosto? Azáfama na plataforma. A multidão se derrama. Logo o gargalo da escada rolante em fila indiana a detém. Ninguém verá Gisele chorar. Ainda que todos os seus sonhos de um mundo puro estejam desabando sobre ela, ninguém a verá chorar.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Ainda que ali às vozes se confundam, ainda que dentro de si também se revelou o crime, a mulher a seu lado soa como um fio de sonho e condescendência que gostaria de manter. O silêncio não distingue entre o que é e o que deveria. Namoram há tanto tempo e ela não o conhece. Por que você está assim? — ela insiste. Aconteceu alguma coisa? Na lanchonete, onde há minutos se encontraram, a vida em cores se agita como esse milk-shake no canudo que ela brande com dedos nervosos e desconfiados. Iluminação baixa em lâmpadas discretas. Pessoas que entram e saem. Vozes, tantas. Serão humanas? Preciso ir ao banheiro. Poucos antes do fim do expediente, decidiu sair e ir de metrô, obediente não sabia a que. Precisava. Por quê? Precisava. É um vício. O que devo fazer, doutor? Tome cuidado, é um tipo de estupro. Estupro? Nunca havia pensado assim. Se cuide, rapaz, diz o psiquiatra ao puxar a receita do antidepressivo, ainda em seu bolso quando chegou à estação. Não pode acreditar que esse seja seu mundo. Não pode acreditar que seja um criminoso. Afinal elas parecem aceitar. Gostar até. Sobe no vagão. Se aproxima. A janela mostra o letreiro da penúltima estação, o início do mais demorado percurso. Por que esta e não aquela nunca ficará claro. Quem sabe um dia ao se achegar entabule uma conversa. Que chuva! Ou: É um absurdo esses trens apertados. A certa altura ao olhar o livro nas mãos da estranha, perguntará se gosta também do anterior de Jelinek, “Os Excluídos”. Ela responderá que não e ele dirá que é muito bom. Não chegou a ser adaptado para o cinema. Dirá que os filmes costumam ser inferiores. Nesse caso, responderá ela, a qualidade é correspondente. Então terão um assunto e ele o pretexto necessário. Tão mais natural. Por que prefere essa aproximação fortuita e sem depois? O banheiro da lanchonete. Amplo, iluminado. Observou mais. A luz tem uma espessura árdua. Uma solidez altiva. Semelhante à da noite passada em casa lá pelas nove. Luz com personalidade iluminando a solidão de seu quartinho de pensão. Tanta

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR cultura. Tanto estudo. Não deveria a essa altura da vida morar num lugar decente e não neste pardieiro? Contemplou a flutuante luz ansiosa de defeitos, implacável na demonstração de suas culpas. Banhou as paredes sujas como uma pintura nova. Doía. Doía terrivelmente. Mas, súbita como veio, sua culpa se dissipou. Agora ali está de novo. Por que aqui no banheiro de um bar? Seu vício o repugna. Mas não tem sequer tempo de se arrepender plenamente, quanto mais pensar em mudar.

Um rapaz que passa vê a moça pelo vidro da lanchonete. Sônia! Ela ainda mexe o canudinho em meio às vozes e luzes e só agora sente o peso do copo de papel, agora, quando o rapaz se aproxima. O reflexo dos dois está no vidro quando ele a cumprimenta efusivo e sem perder tempo fala que ela está sumida, que sentiu saudades, parece enfim decidido e tão direto que ela pede. Evandre, por favor, vá agora, meu namorado está no banheiro e é muito ciumento. Está de fato no banheiro e se contorce em meio ao horror que ilumina tudo e pelos amplos espelhos se espalha. Pensando bem, ele está demorando. Pede a Evandre que vá ao banheiro e o chame. Estão atrasados para o cinema. Seu pedido é uma ordem, diz o sorridente rapaz à namorada do outro. Trarei então seu amado. Mas quando vocês terminarem lembre-se de que sempre te amarei. Como ele é bobo. Como é bobo. Será que ela não precisaria exatamente de um bobo? rir assim em vez do relacionamento atribulado e sisudo que mantinha?

Ela ainda treme. A polícia chegou e ninguém pode sair. Então depõe. Conta o encontro marcado, o cinema. Ele chegou em seguida, não se atrasou tanto como de costume. Meu Deus... O que é isso? Todos se perguntarão mais tarde na internet, quando Evandre postar aquele vídeo. Nem os mais acostumados com as bizarrices

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR online deixariam de sentir uma pontinha daquele terror. Era a peculiaridade daquele sentimento, contaminava. A namorada assistiu da casa do amigo. Não tem o menor escrúpulo de publicar isso? Mais calma pergunta depois o que ele acha que aconteceu. O tremor está passando. Sei lá. O que pode ter acontecido? Tipo uma síncope, sei lá. As pessoas passam mal e morrem. Não tinham bebido demais ou fumado alguma coisa? Você está parecendo o policial, Evandre. Mas o policial decerto não a ama. Mesmo em meio a tudo ele sorri. Estavam tão juntos e unidos pelo acontecimento que logo se acariciavam e ali mesmo, diante da tela negra que ocultava o horror do namorado ao morrer, ela se entrega. Afinal todo mundo passa mal e todos morreremos.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Atravessa a ponte lentamente. Apareceu na paisagem levado pelos seus próprios desejos, ardendo, igual a qualquer outro. Se sair desse quadro, deixará que atrás de si, ao piscar do semáforo, dois carros em sentido contrário se encontrem num cruzamento. Em momentos assim o ar parece estar em sua face. As cores da cidade e o sol que sobe no horizonte saem de dentro dele. Diluído em seu olhar, o amanhecer foge da terra. Poderia ser de tardinha. Daria no mesmo. O que muda é a personalíssima perspectiva. O calçamento que avança conforme seus pensamentos na intensidade íntima de seu cálice. Os passos ecoarão até o alto da escada. Então uma pausa ilusória. Sua vida hoje se assemelha sem dúvida a qualquer uma. Não que seja mau, pelo contrário. Sente-se sereno como um fantasma que caminha. O inquilino do andar de baixo pergunta se ele tem um pouco de açúcar. Acho que sim. A mão abre a porta que range em seus gonzos. Eis aqui, diz para si mesmo. O pote de açúcar como um sol que se ergue atrás de uma cordilheira interior. Um dia como outros. Escravo dos sentimentos. Lá e acolá é sempre aqui. No fundo da sala, enquanto o vizinho sai, a janela está se abrindo e os duendes que geram esse David Choi voam por sobre os telhados. Elementar. A manhã respira nas cortinas. Um zíper. A descarga. Ela disse que me ama. Estamos juntos há quase um ano e só hoje ela disse que me ama. Com a mesma convicção que amou todo esse tempo sem dizer. É essa franqueza, se pode chamar assim, que o comove. Que faz com que dele brote esse sentimento de dever, quase de missão, matéria de que é feito o seu amor ainda quando escapa para regiões de onde só voltará após o êxtase.

Estranhos chegam para a missa. Diante do altar o padre ergue a hóstia irreprimível. Uma improvável ovelha atrás da igreja à saída fez estremecer o coração da mãe. Depois, à noite, o grito de um pássaro e pela manhã a flor que murchara.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Violência sobre violência ou retira a vida ou a vontade de viver. Mas não foi o caso. Cada mácula é um canto agora. Beatitude entre beatitudes.

Um copo. Água. Bebe. A menina que Gisele foi um dia. Está sorrindo. Sorrindo para ele. Visão rara. O que está dizendo? Durante muito tempo escutará o inaudito no movimento dos lábios. Mas por que ele está tremendo? Não importa. Nada importa. Ela está ali. Está, ainda. Diáfana em sua lembrança. Revivida em seu presente por caprichoso acaso que ele tende a acreditar predestinação. Amor. O sorriso se espalha pelos nervos. Que sorriso? — pergunta-se. É ela que está sorrindo em mim ou sou eu mesmo? A menina encosta o braço no braço dele sobre a carteira que pela primeira vez dividem e será a única. O branco da blusa de seu uniforme irradia-se pelo futuro de David. Ilumina agora este aposento.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Quando se despediram no dia anterior, Gisele olhou para David entre apaziguada e temerosa. A que horas nos encontraremos amanhã? Não fazia sentido ser fulminada assim como se tivesse recebido uma má notícia justo agora que tinha superado os traumas e conseguira. Conseguiram. Na sala azul abrigada dos demônios, os ininterruptos espasmos parecem os últimos suspiros. Primeiro ela sentou-se. Passou-se o dia. À saída ela cantava. Parece a canção de uma fada, ele diz.

A luz da tarde que iluminava os enfeites na mesa de centro é a mesma agora no quarto dele. De manhãzinha como se fosse de tarde. Ele seca a boca com a manga da camisa. Algo está errado. Sentem no mesmo átimo. O gozo pairando sobre eles — o gozo há tanto esperado. Justo agora que as sombras se dissiparam, a premonição indesejada. Deveria ter dormido lá. Por que mesmo não o fez? Então este momento não poderia existir. Seus olhos ainda a estariam contemplando. Mas, se o passado às vezes volta, o futuro jamais chega. Quem poderia ontem imaginar? O que poderia ter sido não foi e agora é tarde. Na sirene da ambulância cabe o grito alucinado da derradeira queixa. É tarde demais.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Alô? Escuta. O vizinho fala. Vi quando você saiu. Vamos terminar em algum lugar mais discreto o que começamos na trilha? O que haviam começado? Esse tom de voz não deixa margem à dúvida em que a mãe prefere ficar. Quem era? Silêncio. A senhora Drabska sempre dizia para que Gisele levasse o telefone quando fosse correr no parque. Poderia descansar seu coração quando como agora a filha tarda. E essas ligações em nada a tranqüilizam. Se fosse um amigo apareceria o nome no visor. Quer ignorar os pressentimentos. Confia em Gisele. Ela não se envolve com desqualificados. Mas não dá para viver hoje em dia de acordo com nossas convicções. Alô? Desligou. Agora os temores da mãe tomam conta. Quase se pode dizer que são certezas. Não. Ela sempre pede que a mãe não se preocupe assim. É sofrer por antecipação. Esperará a confirmação para sofrer.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR A mulher sente que a filha está morta. Sente que ela está ali agora, portanto não está em qualquer outro lugar. Mãe... Gisele gostaria de ter dito. Por algum sinal poder dizer. Estava bem agora. Sua vida se tornara um sofrimento insuportável e estava bem agora. Estará próxima da mãe quando o delegado vier. Quanta dor... A filha era uma menina cheia de fibra. Terá levado isso consigo para o lugar em que esteja. Até entende, mas não sabe se é certo. Enquanto estiver se vingando, seu espírito não terá sossego, filha. Gostaria de dizer e talvez esteja dizendo quando o delegado tiver saído. Filha, deixe-os. Entre na sua paz.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR O senhor Drabska deixou para a mulher o belo apartamento na região da estação central do metrô. Talvez fizesse algum sentido continuar morando ali depois do acidente. Agora que também Gisele partiu, para que precisa tanto espaço e de que servirá essa linda vista? A lembrança de Gisele está na cor da escrivaninha em que escrevia mas a de Pierce caminha pelo quarto solitário (e nada é tão solitário quanto o quarto de uma viúva que se resguarda) e se desdobra na luz de cada manhã, nos eventuais passos em que a senhora Ewe abstraía a alma da saudade, colocando-a na ilusão de que ele estava em algum lugar da casa e iria em segundos aparecer. Aliás, o senhor Drabska não teria um meio de consolar a filha? afinal estão ambos no mesmo Hades. Ou será um lugar tão grande que não permita o contato entre eles? ou terá ido ele direto para o sono profundo, e apenas a vingança a mantém nessa terra de treva e injustiça? Sim, filha, deixo-os. Entretanto a própria senhora Drabska não sabe como se sentiria se fosse com ela. Ou no fundo sabe. Não havia sido assim com ela mesma com esse mesmo Pertiert, irmão e tio, expressão suprema da honorabilidade?

A sala está escura. É assim mesmo de dia. Talvez seja o grande problema do apartamento, essa noite eterna, como Gisele chama. Gisele. A senhora Drabska continua sentindo a presença dela e sabe que não mais a verá, exceto quando das crises se esquece e não será que é um sintoma antes misericordioso da doença, esquecer? Põe o celular sobre a mesa de passar ao entrar no quartinho de empregada. Talvez seja hora de chamar Alcina de volta. Estão com a mesma idade. Se tivesse de agora ir morar em outro e distante lugar. Como se fosse a coisa mais certa e natural do mundo que ela realmente estivesse morta embora tão presente não só na evocação da escrivaninha mas em tudo. A notícia chegará a qualquer momento, ela sabe e está totalmente preparada. Sentirá saudades. Sentirá muitas saudades, filhinha querida.

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O sonho de vida se corrompeu. Flores exuberantes todavia aí estão. Coloridas, tenras e viçosas. Não há como imaginá-las ligadas à morte mas entram com Gisele no cemitério e a acompanham até o túmulo do pai. Devolvem a luz ao dia enquanto pássaros esvoaçam do prédio principal onde está a capela e a sala onde o corpo foi velado. Branco funéreo em que ela continua a vê-lo. Em cada rachadura da fachada um segredo a respeito dele ou dela mesma como se a vida estivesse muito mais ali, na morte, no morto, do que em sua sobrevida caminhante mais fraca cada vez, sabe Deus a que apegada — à esperança é que não. Pai, receba essa homenagem de quem o amou muito e sente tanto a tua falta.

As poucas pessoas ao redor guardam entre si essa afinidade derradeira. Estarem vivas. Ela sobe dos joelhos, apóia-se e levanta. Retorna às passagens estreitas e solitárias. Escuta os pássaros e os murmúrios. O que dizer de desse céu? do luzidio verde dessa árvore? das nuvens escuras cujo contorno se mantém branco? Caminha agora contra as aparições. O acidente, a morte do pai e a sobrevivência do tio, a doença da mãe — tudo adquire uma lógica alheia ao raciocínio. E naturalmente seu fardo. Luzes no prédio. No ritmo de seus passos, as casas se acendem. Sua sombra lateral no caminho cresce agora na parede de sépia saturado.

Quando se aproximou de sua rua cerca de meia hora depois, a luz dourava seu perfil. Parecerá uma orla em seu vestido quando entrar no prédio numa linha reta e decidida até o elevador, sentindo que o ar lhe falta, encostando-se ao metal frio bem debaixo da câmera de segurança, falando baixinho palavras de consolo para si mesma. Calma. Você não vai conseguir viver sob tanta tensão. Bom é ter esperança e esperar em silêncio. Sentou-se na cama, tirou os sapatos, suspirou, tornou a levantar,

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR chegou à janela. Ainda bem que não dá para nenhum vizinho, não gostava da maneira como esse do mesmo andar a olhava. Era bom pelo menos em algum momento ter essa liberdade aureolada, imagine, uma santa, não, é uma coisa que não sou. Solta os cabelos e uma explosão suave e prateada engole os intermináveis temores da noite que pulsando se aproxima. Gostaria de por um short, uma camiseta e ir correr no parque junto à praia mas seria um insulto à violência da cidade. Bem, deixará para assim que amanhecer. Excepcionalmente hoje as lembranças a deixaram com muito sono. Assim que dormir em seu sono sem sonhos, já será amanhã.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Deixa que a aragem traga a preciosa lembrança. Gisele e ele na adolescência. Brincando. O primo Joaquim junto. Procuram-na. A irmã dele, a prima Maria, foi quem contou que ela preferia os lugares escuros. A mãe os olha pela janela. A tia. Pensativa. São crianças tão doces... Hadrien imaginou onde ela poderia estar. Ninguém a conhece melhor do que ele. Um lugar escuro, descalça, sonhando. Ali estará. Atrás da casa. Dentro daquele pequeno túnel abandonado. Assim a encontrará, sua luminosa irmã. Gisele, chamou. Não adianta, sei que você está aí. Ela não saiu e Hadrien avançou ao seu encontro. Alguém está chamando. Hadrien! A mulher de longe aparece, requebrando. O que fez da vida? Não é mulher para ele. Belíssima, às vezes demonstra sensibilidade e alguma inteligência, mas jamais será como Gisele; é só uma potranca de voz esganiçada. Por quanto tempo estiveram ali no túnel não sabe dizer e tanto tempo depois, depois do assalto, a lembrança perderá a doçura. Ele terá de fugir, o que mais lhe restava? Se não pode olhar nos olhos da irmã, melhor jamais tornar a vê-la. A própria mulher, Vanda, inutilmente insistiu para que fossem visita-la, preocupada. Deveria ir vê-la. Irmãos são para sempre. Eu a amava tanto, chorava Hadrien no quarto. De fato, jamais tornará a amar assim.

Ele passa as fotos na sala após o jantar. Uma de Joaquim, outra de Maria e uma outra de todos juntos, os quatro. E seus primos, também nunca mais os viu? Hadrien olha para Vanda como se visse um fantasma cujas palavras são ininteligíveis e pensa como sobreviverá todo o resto da vida sob aquele segredo lento e sem direção, imaginando o que estará expressando seu olhar, querendo que não expresse mais do que ele pode permitir que expresse e sabendo que isso nunca acontece, antes sempre as pessoas se traem, cedo ou tarde se traem. Não pôde renunciar ao prazer da primeira noite e agora não quer abandonar as comodidades que juntos construíram. Bem. Maria acho que foi fazer um intercâmbio na Europa e nunca mais voltou.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Joaquim da última vez tentava um concurso público com a convicção de que uma vida estável possibilita outros sonhos ao acabar com a preocupação da subsistência. E a tia, a mãe deles, dona Francisca? Ela ficou por lá mesmo, cuidando da comida e das roupas do senhor Pertiert, mesmo quando o câncer a consumia. Passou a maior parte da vida varrendo, encerando, lavando pratos naquela casa em cuja janela se debruçava sobre a sina que lhe coube, sem reclamar, antes glorificando a Deus, e nunca lhe ocorreu que era infeliz porque nunca pensou a respeito. Ela é que era feliz, pensou Hadrien. Sem problemas de consciência. E ele, incapaz de um ato vergonhoso, que dirá contra a irmã, no entanto foi mais violento do que os assaltantes. Violência contra o sangue. Pior e ainda pior quando não há chance de defesa. Porque o que Gisele tinha de forte em seu caráter, tinha de fraco no físico. Sequer gritou, pensando na mãe no quarto. Calou nos dias seguintes. Isso a mãe não podia imaginar. Não tinha essa referência e não notou algum clima entre os filhos. Sua sagacidade não ia tão longe, nem sua desesperança. Mas o olhar da irmã era implacável. O que poderia Hadrien fazer senão fugir desses olhos?

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Alguns dias depois de ter ido à casa de Gisele e falado com a senhora Drabska, o delegado Abdul encontrou um antigo colega a quem muito respeitava e perguntou o que ele achava de tudo aquilo. Tem suas opiniões e algumas intuições porém vão de encontro umas às outras. Você sabe, Artur, não sou um homem místico; mas estou começando a crer que existe alguma conotação sobrenatural nessas mortes. O outro quis então saber detalhes e o delegado contou.

Gisele é — ou era (quase admite) — uma moça muito bonita, realmente atraente. Olhe. Ao mostrar a foto disse a si mesmo que não fazia justiça à jovem. Lembrou-se de repente que o colega teve um caso extraconjugal com uma moça dessa idade. Enfim. Havia começado e, paciência, continuou. Tudo indicava que ela se vingara do vizinho que a havia assediado no parque da praia na manhã de 29 de setembro de 2010, quando à noite ele foi assassinado em seu apartamento. Mas isso não pode ser porque ela morreu antes, nesse mesmo dia. Abdul chegou a pensar que ela simulara sua própria morte para se livrar, pois o porteiro de seu prédio disse que ela saíra à hora de sempre para trabalhar. Mas no escritório constatou que ela faltara — o que aliás, testemunharam, jamais tinha acontecido antes. Artur a essa altura começa a se interessar e passa a dar uma atenção mais cuidadosa à narrativa do delegado. É um homem de sessenta e dois anos, de poucos amigos e hábitos rigorosos. Aposentou-se tão logo pôde. Não suportava como as leis terminavam por livrar sempre os culpados. A literatura deveria servir para que de algum modo fizesse a justiça. Se tivesse talento teria se dedicado completamente. Abdul continuou. O que chamou a atenção dos policias, do pessoal da perícia e de todos o que chegaram a ter contato visual com o cadáver foi a aparência aterrorizada. Fantasma acorrentados ao inferno num filme de terror. Testemunho unânime. Gaguejar, tremor e olhos esbagaçados. Artur abre mais os próprios olhos

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR sem ousar o esboço de uma tese. Quem sabe o enredo de seu romance. Algo pelo que valha a pena viver os últimos anos de uma vida inócua. O que virá agora? Não um só cadáver. Como assim? Soubemos, meu amigo, de um caso em tudo semelhante. Artur tentava imaginar. Um homem rogando aos montes. Isso em vez de clemência. Não parece coisa humana. Esse outro morto, imagine, era tio da suspeita, que agora creio estar mesmo morta. Não acabou. Falta falar de um rapaz que enfrentou a suspeita do delegado, um tal Eduard se esse detalhe interessar. Ele garantiu com consistente veemência a inocência da moça chamada Gisele. Ah, e a mãe dela, cuja doença não a impediu de desafiar a autoridade em sua casa. E falta sobretudo falar de outras vítimas. Não sei — diz — o quanto é válido usar esse termo. O médico que ela consultava. Sobre quem a família praguejou ao saber e a esposa em especial parecia se sentir vingada. E um outro homem encontrado no banheiro de uma lanchonete. Tinha também algo em comum com a rotina dessa moça. Quero dizer, costumavam pegar o mesmo metrô no mesmo horário. Assim aqui estão os delegados, um aposentado e outro quase, em meio a uma tal sorte de fatos e espectros, enquanto o garçom lhes traz mais duas xícaras de café. Como se não bastasse tudo isso, há uma história trágica que não envolve diretamente a moça, mas seu namorado, o que quase a envolve, tal a ligação dos dois, conforme Abdul pôde apurar. O que aconteceu com ele? Sofreu uma queda numa circunstância corriqueira. Parece que ia trocar a lâmpada de seu quarto e teve uma tontura. Não morreu, mas é quase como se tivesse

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR morrido. Está ligado a aparelhos, inconsciente. Os médicos acreditam que é remotíssima a possibilidade de um dia acordar. E tinha mais, se Abdul quisesse se ater a detalhes. O acidente que matou o pai — o tio se salvou para fruir de morte mais macabra.

Artur intuíra saídas para o labirinto. A literatura poderia suprir o que faltasse. Não pode dizer isso ao amigo. Não é o que ele espera ou pediu. Beberam juntos um gole de café e Abdul apanhou o cigarro a que voltara após o caso. Olham-se. Suspiram. Ao contrário de você, Abdul, sou um homem místico. Um calendário na parede. Faz um mês que o vizinho da moça morreu. Desde então, toda segunda-feira. O quê? Alguém morre assim. Artur emergiu de seu mundo imaginado e cogitou o quanto poderia ser verdadeiro. Então, o que ele achava? Pode ser que existam mais pontos em comum entre esses mortos e a partir deles tenhamos um caso, mesmo que, como tudo indica, a moça realmente esteja morta.

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A sala envolta na paz de uma névoa morta. Terá Gisele de viver para sempre em meio a essa saudade sombria? Acredita agora que o pai está bem onde está. Descansou. Logo estará com ele. Não assim tão depressa. Deu outro passo, tocando o sofá com os dedos de leve, quase uma carícia. Os quadros da parede, os livros na estante, as flores naturais, serenamente se apresentam e comunicam eternidade. No vidro da janela feito espelho a bela jovem, severa, a questiona.

Acompanhou o Sr. Pierce até o fim. Ouviu o diagnóstico sobre a senhora Ewe dos mesmos doutores que primeiro apresentaram as condolências. Depois de tanto sofrimento poderá esperar algum descanso para a mãe? O médico só podia afirmar sua esperança. As agulhas de tricô e o agasalho inacabado produzem fragmentos de uma infância talvez nem tenha existido. Enfim. Já não faz diferença. A vida e a imaginação tão próximas não raro se misturam. Esse caderno agora aberto ela usou para seu primeiro diário; nessa mesa de estudos, quantas lições o irmão lhe ensinou. As cortinas que com o passar do tempo amarelaram remexem dentro dela meandros do tempo e do destino. Em alguma outra época teve semelhante medo? Pode escutar aqui a voz de Joaquim; ali Maria por causa de uma piada boba gargalhou. Venham jantar, diz tia Francisca. Cheiros fortes açodam a fome limpa e nítida de adolescência nas cores do verão que passava depressa na inconsciência do futuro para o qual ela supostamente deveria estar preparada com alguns anos de lar e escola mas não é assim, ela lembra e pensa, não é assim. Todos felizes e ela chora. Compreende que não pode ficar ali por muito tempo. Desvia. Entra no quarto. Você precisa dormir, minha filha.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR O suor esfria todo o corpo. Olha ao redor e assustada percebe de fato ter dormido. Não foi um sonho. A morte do pai no acidente, a doença da mãe, a sala percorrida e no quarto dela o beijo de boa-noite. Está bem. Então descanse também, mamãezinha. Há tanto respeito e admiração em sua voz que ninguém imaginaria uma dificuldade perene entre elas. Ninguém notaria uma mudança quase de raça em Gisele com o passar dos anos.

Sem dar por si está de novo na sala junto ao aquário onde antes ficava a escrivaninha do pai e aqui a poltrona em que a senhora Ewe costurava. Não pode ficar fugindo todo o tempo do passado. Ou talvez possa caso venda o apartamento e compre outro. É isso. Amanhã mesmo irá procurar o corretor. Há de fato alguma coisa que a incomoda nessas lembranças, embora nada do que tenha realmente acontecido. Uma intuição. À mesa, Hadrien diz que há verbos que admitem várias regências. Hoje eu sei, pensa Gisele. E como sei. Talvez um dia venha a compreender. Gostaria de saber também onde está o irmão e reencontrá-lo. Olhar de novo dentro dos seus olhos.

A senhora Ewe Drabska ainda dorme. Gisele lembra vagamente do que sonhou. Me procuraram hoje cedo? — pergunta pelo interfone. O elevador passa pelo andar, levando seu coração. O sino está tocando como se espalhasse um segredo guardado durante séculos, durante vidas — de crianças inocentes que, forjadas pelas sombras, crescem e se transformam, se tornam duras, obstinadas e acalentam o desejo de vingança onde antes havia apenas tristeza conformada.

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Por volta do meio-dia, com o cunhado adormecido no banco do carona, o senhor Pierce abriu o porta-luvas e apanhou alguma coisa na mão direita. Chega a esbarrar e Pertiert resmunga alguma coisa que o pai de Gisele não teria gostado nem um pouco de ouvir. Ele pensa no quanto um homem precisa se adaptar à família da esposa e no que pode acontecer caso não o faça e não lhe pareceu que isso fosse ou sequer aparentasse uma virtude. Um baque seguido de pequenas batidas. Preciso consertar esse porta-luvas. Dirige com a displicência de quem conhece bem a estrada e também por isso mal a olha, optando pela contemplação do objeto entre os dedos. Um céu limpo de inverno. Grandes pastos passam ao lado. No instante assim fugidio não parece caber a grandeza de uma tragédia.

Valeu a pena, é claro. Ele nem acreditou a princípio que Ewe pudesse mesmo gostar dele. Mas é verdade, ela sente saudades, como disse na primeira vez que se separaram por mais tempo. Como era linda. Não parece irmã desse traste. O tempo não retirou dela a beleza nobre que Gisele herdou. Como a amava, o que será que ela tem, essas dores, esses esquecimentos. Apenas senil ou será mais? Precisa faze-la aceitar se consultar com um médico, ele até compreende a ojeriza que ela tem de médico, mas simplesmente precisa. Pierce lembra com detalhes da primeira vez que ela usou esse broche. Essa voz maviosa vem do corredor do prédio em que ela morava, quando saíram pela vez. Quando a beijou naquele dia, a testa dela estava úmida.

Logo cedo tivera um dissabor na universidade e ao longo do dia as coisas apenas contribuíram para piorar o seu humor, porém assim que ela abriu a porta soube que jamais na vida seria de novo sozinho e para sempre teria com quem partilhar alegrias e tristezas. Entrou mas não se demorou. Em seguida estavam se

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR despedindo dos pais dela. Prometeu trazê-la antes da meia-noite como convinha a uma moça de família e por muito pouco não quebra a palavra porque quinze minutos antes disso estavam ainda se vestindo no hotel.

Gisele se parece muito com ela. Olhou no espelho como a perguntar se também com ele se parecia. Como a amava! Não seria capaz de colocar esse sentimento em palavras. Flui dentro dele como um rio. O sol ilumina mais que aquece e o cavalo está calmo agora embora já não seja possível discerni-lo na paisagem que voa. O carro devora a estrada mas seu condutor está realmente longe dali — como pode pensar esse tipo de coisas após a confissão da filha na noite anterior? — e só retorna quando do estrondo. Pertiert acorda assustado em meio às ferragens enfumaçadas.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Quando em seu caminhar as luzes encontram o espelho da parede, surgem a mesinha, a xícara, o abajur e uma ponta do sofá. Há agora o barulho de um chuveiro e um choro convulso. Os ladrilhos estão suando. Aconteceu de novo e dessa vez ultrapassou em violência todas as vezes anteriores. Houve uma violência real, na verdade. As batidas na porta do banheiro são da mãe, que não pode desconfiar, mas Gisele agora acha que não suportará o silêncio e terminará por se lançar a seus braços.

Tem o rosto inclinado e as mãos sobre os olhos como a tentar impedir as imagens. Não passou por ruas ermas em horário perigoso. Simplesmente cortou caminho por um beco de poucos metros na hora do almoço. Ainda assim, talvez não tenha sido prudente. Uma colega comentou alguma coisa sobre um homem chegando com atitude suspeita, mas Gisele não costumava se deter na conversa das colegas. Agora, fragmentado e inútil, sobe da memória o que ela então contava.

Sente a aproximação pelas costas e pelos lados. Acima, céus sombrios e prédio em prédios recortado. Um frio cortante na garganta, uma voz trêmula. Passe o dinheiro e o celular. Cores fortes se formam em sua face, mas não teme a faca ou a morte. Misericórdia não espera nem quer. Hienas em torno de um cadáver. Os dedos machucam, as mãos sufocam. Como resistir? Como vomitar? Como não envelhecer mais mil vidas em outros poucos minutos? A lâmina teria sido menos dolorosa.

O tempo que passou não saberá. Caminha resfolegando. Precisa chegar em casa, é tudo que precisa. Que caminho a deixou nessa relva não saberá. Se esses jardins um dia a excitaram em deslumbramentos de infância, distorcidos, agora e em qualquer tempo futuro serão sempre flores da ignomínia. Juventude sentenciada.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Ruína. A porta que se abre a introduz num outro mundo em meio aos móveis escolhidos para aconchego.

O quarto de Hadrien, seu melhor, único amigo, cresce em conformidade com o próprio desespero. O que foi, Gisele? Um feixe luminoso descansava no tapete com motivos egípcios, Nut sobressaindo no baixo-relevo. Meu Deus, o que houve, minha irmã? Olham-se e ressurgem um para o outro em novos papéis. Como poderia ela imaginar? Não poderia. A mãe internada há dois dias. Correntes estranhas e portas que seguidamente batem sem que haja vento.

Quase meia-noite de segunda-feira. Gisele faz grande esforço para levantar o fardo da cama, pois era isso que seu corpo se havia tornado. Acabara de desabafar com o irmão e convulsa adormeceu. Ele está ao lado e a contempla calado. Parece meditar sobre os horrores que ela contou: assim ela o vê ao despertar. Mas aqui mudam algumas coisas. Hadrien a olha de um jeito estranho, olhar típico de quem bebeu. O que vê? É esse o seu irmão? Ele diz algo. Sim, é ele. Mudaram algumas coisas. O declínio da nobreza de um amor fraterno. Uma realidade inesperada. O que você está fazendo, Hadrien? Ele apenas a velava. Não assim. Eu te amo, ele diz, como se fosse algo normal de se dizer. Ela fecha de novo os olhos e afunda na espuma.

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A cabeça do gatinho se vira pra lá e pra cá como se alguém passeasse pela sala, alguém cujos passos uma pessoa não teria ouvido, e todavia aumentam mais e mais. Muito frio. Que tipo de primavera é essa? As bolinhas de vidro pelo chão caem e correm pelas frestas do assoalho, como quando Gisele brincava com ele. Ninguém irá arrolar um gato como testemunha. Ali está ela, sua dona e amiga, debruçada na janela. Por que tão triste? E por que solidão? ele não estava com ela, como sempre?

Não se trata de solidão. Só lembrou do poema que começa assim. Mas terá de habitar noutra parte dali para frente. Nem mesmo o gato escuta o mar: até para uma audição privilegiada como a dele, estava longe demais. Quando o cérebro deixa de funcionar, o que exatamente deixa de existir? Não o significado do tempo e as relações entre as pessoas. O anjo e a jumenta de Balaão. Saul angustiado faz com que Samuel se inquiete e apareça. O que exatamente sou nesse sonho? O que sabia ainda sei, pensa ela, e nem todas as pessoas haviam desaparecido, não ainda, não antes que se permitisse adormecer até o Juízo.

Que não seja um imenso obscuro caos. Que os assuntos pendentes se resolvam. Então ela mergulhou na fulgência terrível que se abria. Sweet, o gato, tornou a olhar e ela não estava mais ali. Um túnel. Um longo túnel e uma queda lenta. Ou é uma subida? O filme da vida de Gisele não estava passando. Não consegue ver nada ou porque está muito escuro ou porque a demasiada luz a tudo ofuscou? Esse olhar infantil não se impressiona com a própria perplexidade. Vê que algo está

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR soando, como um sino, no lugar que acabara de deixar. Não precisará mais levantar da cama de manhã.

Está sonhando, dormindo ainda portanto? O relógio. O espelho. Quem é essa que saiu para trabalhar? Sweet mia. Se espreguiça e desloca. A senhora Drabska entra e atende o celular. Passa-lhe pela mente, com detalhes, toda a vida de sua filha.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Sentam-se no sofá da pequena sala. É um ambiente abafado, insalubre. Falam sem parar. O mais velho pergunta ao menor se apanhou a encomenda conforme sua ordem. O menor diz que sim, entre risos, contando que tivera de bater na mulher porque não queria colaborar. O terceiro, um moreno, confirma a história enquanto acende o baseado. Diz que, olha, acho que a gente deve agora se concentrar nas joalherias, mas aí, responde um quarto, o gordinho, a possibilidade de tirar uma casquinha das funcionárias é quase nula. O mais velho concorda mas considera que moças como aquela Gisele é como um bônus, para compensar o lucro menor dos assaltos a transeuntes. “Aquela Gisela”? Como ele sabia o nome dela? O mais velho meneia a cabeça. Gisele, idiota; Gisele, não Gisela. Como senão pelos documentos na bolsa?

Não se passou muito tempo antes que o espelho do corredor começasse a refletir aquilo. Aphonsus, mais velho e chefe da quadrilha, demorou para acusar o impacto da visão. Lidava assim com tudo. Esperava até que pudesse ter reação adequada, que não comprometesse sua fama. Mas quando Kitaro, o mais novo, perguntou baixinho quem era aquela mulher, já não era possível fingir que não havia ali nada estranho. Começaram então a falar uns com os outros. A princípio sobre a estranha na casa; depois sobre sua estranheza; e finalmente sobre a semelhança com Gisela. Dessa vez Aphonsus não corrige o assecla.

Há meses Aphonsus deixou de ter os sintomas da abstinência, então é bom que os outros também estejam vendo o rosto pálido de fulgurante beleza, as feições vívidas e livres, leves como as de um algoz. Discernem um eternal brilho nos olhos vazios acima dos vermelhíssimos e carnudos indecifráveis mundos que sorriam. Há

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR um cheiro enjoativo na sala qual incenso de flores apodrecidas. Todos podem sentir. Todos — malvados, estavam preparados para a consciência do mal?

Que bom todos ali juntos na perversidade e no arrependimento. Não é uma benção essa sensação? Ela quer que degustem isso até a última gota. Não irá privarlhes de nenhum desses prazeres do remorso. Ter-lhes-ia dito quando do assalto que no fundo eram bons rapazes. Que os perdoava do pequeno deslize. Coisa da carne por que todos os homens uma vez ou outra passam. Todos olham paralisados. Hipóteses as mais loucas se desenham. Em Kitaro hipótese alguma. Apenas a contempla, como a uma flor. Como a uma deusa. Talvez revele o verdadeiro motivo de estar ali. Quem sabe seja ele. Ele que demorou a participar; que chegou a dizer que não deveriam.

O que essa visão enfim pretende, se uma visão possa algo pretender, está em que parte do processo? em seu final ou no começo? passará ou se cristalizará pela eternidade? Firme e lentamente, a brancura se move. Derrama-se e se transforma. Está nas paredes, nos móveis, no céu acinzentado na fresta entre os prédios na janela. Está em tudo, é tudo, fora e dentro deles — dentro principalmente — dor de um parto inimaginável: dor que tudo resume e nada permite além dela mesma. Dentro de cada um, por quê? Por isso e por aquilo e também por essa outra razão. Agora podem morrer em paz. A paz possível aos abomináveis, fornicadores e idólatras.

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Eduard pára ante a porta branca enquanto passam pensamentos desconexos. Se David é mesmo o homem de sorte a quem inveja, está na hora de saber — se faz algum sentido invejar alguém que esteve morto por tanto tempo mas enfim, contra toda expectativa, reviveu. Todavia, Gisele está morta. A encantadora namorada não existe quando ele acorda. Sabe que um ano foi o tempo durante o qual dormiu. Não tem mais vinte e cinco anos e fez aniversário numa cama inclinada em que um depósito de urina está acoplado. Então, no espaço limpo das reflexões, ao som do sino falso da capela, Eduard percebe seu engano. Insistente sinal atmosfera o quarto quando entra. Desconhecidos descobrem afinidades e se respeitam. É hora. De escutarem um ao outro. Então David fala com a espreita da lágrima anexada ao sinal. As noites são longas. De recolher um fragmento de sonho que a manhã dirá falso; de reviver a conquista que o despertar reverterá em fracasso. Eduard agora pode entender. Como se conheceram? Foi num ônibus, diz David. Eu ia para o primeiro dia de trabalho. Saltamos juntos. Ápice de sua vida. Nunca soube de nada das coisas que ela passara? David imagina o que se passa dentro da amada certas noites. Aquele suspiro junto à cabeceira. A mão que subitamente o afastou. O braço se movimenta e toma de novo consciência dos tubos e mangueiras ou seja lá o que seja ligando-o ainda à morte. Tosse. Respira com dificuldade. O sinal leva tudo à tela que tudo devolve em gráficos móveis junto a estatísticas azuis. Não há por que segurar essa lágrima, David. Um instante volátil percebe quão enganoso é o coração, conhecimento trazido pela dor e pela ausência diluído. Com isso, Eduard quer dizer o quanto está arrependido e o que pudesse faria pelo novo amigo. Obrigado, diz David. Mas o que ele poderia? Talvez estivesse viva se ele soubesse. Tomariam alguns cuidados. Está certo de que foi isso? que foi assim?

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Sim, David. Ah, permita-me que apresente a você o delegado Artur. David leva o ar pelo dedo aprisionado e aspira uma nova esperança em meio à repetição agora calmante do sinal. Seu coração está mais calmo ao que parece. Nesse outro ser vê a jovem mulher pálida não mais como um fantasma. Quase palpável embora ainda inexplicável. Gisele, violenta e súbita alegria próxima da loucura — e o que não seria loucura num despertar após um ano do mais negro e absoluto silêncio?

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Quando a luz aflita entrou pela janela e banhou o assoalho, ela estava deitada. Os olhos abertos. Agora porém o espelho diante da cama já não guarda sua imagem. Levantara, abrira as cortinas. O amanhecer envolve o quarto. Espáduas nuas, floridas, tocam o tecido. Visão completa do jardim. Diga-me em que está pensando, dissera uma vez David. Pensa nele. Sua esperança de que desperte algum dia, desgastada, está morrendo. O vidro devolve o olhar que questiona os cruéis caprichos do destino.

Gelada na alma. Senta-se e na penteadeira passa a se maquiar. De que adianta chorar? saberem que chorou? O rosto enquadrado chora ainda. As lágrimas se multiplicam quanto mais são reprimidas. Está correndo agora pela rua vazia. Os olhos borrados. Relembra. Amor, fica tranqüila. Você tem o direito de guardar o segredo que quiser. Intimidade permite vida própria. Ela olhou David com ternura agradecida mas sabia que não poderia mais guardar para si aquelas coisas. Isso foi no dia anterior ao acidente. Agora não tem mais com quem falar. A manhã brilhante concede a seu corpo um frescor que ela não sente. Não quer mais viver embora não seja capaz de tentar contra a vida. Continua correndo e o mar aparece diáfano como se tivesse luz própria. Os pombos na areia ainda podem ser ouvidos. Chega a pensar quem sabe as coisas se ajeitem. Parou defronte à praia. Um dia assim não pode conviver com o mal, pensa. O céu e o mar garantem isso. Passa a recordar.

Ela tenta adivinhar as horas pela posição da lua. Os olhos de David, fundos, a contemplam. O pior horário do trânsito já passou. Ela pede a ele que se sente. Pede que ele se sente. O movimento das folhas das árvores à janela é suave, quase inexiste. Quadro magnífico, ele pensa. Sombras no rosto e no vestido, luz que se

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR derrama pelo quarto. Um leve tremor nas mãos dele. Tremor que as frustradas tentativas anteriores só aumentaram. Subitamente ele levanta e se aproxima. Um dia tinha de acontecer. Foi como se algo se rompesse. Por uma desconhecida natureza que nele dormia entre biliosa e irascível sem contudo ter nada de uma coisa ou de outra (a virtude desconhece extremos), David abraçou-a de modo inequívoco. Sua ternura não deveria ser confundida com pusilanimidade. Se ela quisesse, podia lhe contar o que se passava nos momentos íntimos. Por que se tornava tão arredia no melhor momento. Como não contava, deu-se o direito de se impor. Nada falaram enquanto durou. Dedos tomam o partido de Gisele. Pétreo e passivo. Uma réstia brilhante e ela soube que era outono porque embora fizesse frio sentia-se aconchegada e havia muita umidade. Sinuoso silêncio. Então, se devia estar decepcionada com David, que se impusera como todos, seu sorriso todavia denuncia que está feliz e que não, ele não era como todos. Era único, murmurou ao pisar o mar. A ramaria próxima dança verde e suavemente.

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Uma sombra na parede. A luz amarela em torno se agitou como a aura de alguém à beira de um ataque. Quando a esposa entrou, ele estava deitado mas agora, zurzido, parece que vai se levantar. Quem sabe precise sofrer assim. Escuta a irmã em meio aos sons no assoalho do apartamento acima, no teto. Sente-se desgraçado. Gisele! Acorda em desespero. Sua mulher pergunta O que foi? Hadrien não consegue falar. Olham um ao outro enquanto a sombra desliza para os lados da janela.

Os rins estão matando. Pontadas dolorosas. Por que tem medo? Precisa encontrar explicações. Devia ter aceitado a sugestão e ido ao médico. Não continuar a comer morango. Mas é tão gostoso. E crianças comem. A dor desce pelo corpo. Ela o está tocando. Está me tocando e dizendo que me ama. Quer mais. Mas por Deus, Hadrien, do que você está falando? Ela quem? Uma mulher tocando assim, como se fosse um homem? A esposa pensava que ele tinha se curado. Qual o quê. De novo aqueles sonhos. Você está me assustando. Pare com isso. E pensar que era o homem mais bonito que ela jamais vira. Hoje acabado. Ou algo pior. Que música é essa? É dolorosa demais. Mundo de horrores em cada acorde. Eu sei que não fui o que você esperava num tempo em que esperava tanto e tanto precisava. Tão gostoso? Hadrien nada tem em comum com as crianças senão a maldade intrínseca. Sem vara de correção. Poderá sobreviver a isso? Não quer, na verdade. Sua sentença. O caminho de seus pecados. A perversidade é o castigo do perverso.

Sombras da noite sem pressa. Mulheres à janela do trem para o inferno. Trovões. Uivos. Inconfundível palidez da raça degenerada. Esse rosto verdoengo tem a ver com insônias, depressão ou outra mulher? Quando Hadrien chegou perto dela,

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR tremia toda sobre um majestoso calafrio e quase via o que, acorrentado pelo medo, ele via. Ele não tem medo de morrer. Seria banal, um castigo desejado. Diante da esposa, vê a irmã. Quem dera constatassem que foi mesmo outro sonho, outro pesadelo e apenas isso. Tudo bem. Sei da minha maldade. Diga agora. O que posso fazer? Deve haver alguma coisa, uma salvação, e ele a reconheceria de imediato. Seu coração contrito suplica. Saber o sortilégio com que afastará as dores. Tomam um e outro lado e o alto da cabeça. Ele a ama, Gisele. Jura que sim. Nas trevas que o envolveram e tudo ao redor. Mil vezes repetirá que a ama. Não o fizesse sofrer assim. Não se nivele comigo. Você sempre foi um anjo. Então pensou que deveria procurá-la e pedir-lhe perdão. Pessoalmente. Embora não tenha certeza de ser capaz de olhar nos olhos da irmã outra vez. Vanda percebe que ele está nu. Pensando bem, nem tão acabado assim. Passaram momentos inesquecíveis. Então ela tem certeza de que ele precisa mesmo entrar em contato com a irmã e acabar com isso. Acontece nas melhores famílias. Quem não tem um esqueleto no armário? Amor, por favor, volte pra mim. Ele quer. Palavra de honra. Então pede que ela o ajude. A quem está pedindo? Esse não é o olhar de Vanda. Você pode ler meus pensamentos. Vanda meneia a cabeça e pensa que não, ele está louco. Nada mais há a fazer.

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Um homem renascido. No rosto perplexo de infância a customização das últimas luzes do dia. Ahn? Customização, repete ele para a enfermeira. A forma como algo passa a existir segundo determinada forma de cada pessoa. Quando ela se afasta, pergunta a si mesmo se sua idéia não é loucura e não, é antes a afirmação do bom-senso e da vida, conclui. Seus passos soam no silêncio do hospital. O corredor vazio termina no balcão de atendimento. A mocinha, com os olhos marejados, sorri para ele. Adeus, David, venha nos visitar de vez em quando. Pensa que ele bem poderia pedir o endereço e ela passaria a criar essa expectativa, de que um dia ele apareça lá em casa. Seu rosto pálido lembra o de Gisele, mas — imagina David — a partir de hoje todos os rostos de mulher lembrarão o rosto dela.

O mundo... A neblina submerge as construções. O sol renovado dá às ruas desconhecidas um quê alegre de descoberta. Antes que se permitisse habituar, estaria longe, junto dela nesses lugares além. O coração bate pesado. Desculpe-me, senhor, diz ao esbarrar no idoso. Me desculpe. Meio que rindo, diz para si que está distraído demais. Talvez isso não seja bom. Meu Deus, me guia, preciso ir. Está bem, talvez não precise, talvez seja mesmo loucura, mas vou enlouquecer se não tentar.

Quando ele se vira, pensando que caminho seguir, os raios de um sol inclinado criam o efeito de um flash onisciente. As portas abertas de um galpão. Um suspiro. Um amigo. Boa pessoa. Tem uma agência de viagem. Ainda que não entenda para que David quer saber aonde o cunhado foi e uma passagem para esse lugar, há de lhe conceder esse favor. Todos estão espantados e comovidos com o despertar de um coma longo assim, é inacreditável. Antes conversam sobre os diversos negócios de Sebastian, é preciso hoje em dia, sabe-se lá quando a moeda sobe ou desce e as

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR viagens se tornam privilégio. Farei isso apenas por você mesmo, lembre-se, porque definitivamente não acredito nessa tua loucura, meu amigo.

Discernindo a auréola de um outro rosto de Gisele na secretária do amigo, David espera que não seja loucura. Quem pode afirmar que os mortos caminhem por aí? Ninguém tampouco afirmaria que não. Ah Gisele. Se pode me ver e escutar, também pode me guiar. Não foi quando acordou: agora sim está prestes a realmente renascer.

Um lugar inesperado, maravilhoso. Antes do sol surge a casinha envolta na névoa. David sente na umidade do ar a inelutável verdade. E agora? Agora os vizinhos absortos em suas lidas matinais, nas plantações e nas casas, subitamente arrastados pelo som do sino. Para Hadrien, o som é uma outra concepção de sua irmã. Ela está aqui, pensa. Sei que está. Sim. Ela está ali. David pode sentir.

O que significa? Deve se deixar entregue à sensação que transcende o corpo? Estará preparado? O desejo mais terrível se realiza. Seja como for, é tarde para recuar. É tarde também para Hadrien. Nem arrependimento é mais possível. Então os dois homens, num mesmo instante, no interior da casa e no alto da encosta, sentiram a presença, a perfeição de cada um.

Outra badalada. Hadrien abre a porta e sai na neblina. David, ereto e inspirando pelo nariz. Vê de longe a figura de ombros largos a quem uma vez Gisele se referiu como único amigo “antes de você”. Com essa mesma voz. Com essas mesmas feições agora etéreas. Como conhaque que flamba a carne em uma frigideira. Lembrança cuja vida não passará. Como um trem se aproxima do final do

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR túnel. Ali está. Luz. Dia. O que se repetirá até o final dos tempos. Certeza do que se não vê. Gisele? Hadrien está gritando. Gisele! Então David entende e sussurra. Gisele... Não...

Ao se aproximar ela aproxima mundos. Destruirá o equilíbrio que é o próprio tempo e os espaços? Em algum lugar o futuro existe. Ele está em pé e respira fundo mas não é daí que a vê. Em que difere esse arrabalde da realidade cujo formato se dissolve no desejo? Ainda uma mulher? Ele o homem. Queixo firme, narinas pulsantes. Conhecimento da vida primária. Está num sonho esse corpo que acaricia? Por que precisaria da morte ou da vida entre terras? Ela é em demasia. É em demasia para conjecturar. Êxtase que dissolve a dor. E passa. E passa. Voltando. Ele é o arrepio que o percorre. As veias que se dilatam. Um relâmpago corta o céu.

Peremptório ensinamento da intuição, o sol surge e atravessa a névoa. Chega ao rosto e ao peito de David e a profundeza trêmula e quente de Gisele se alastra em seu peito. Hadrien não sente mais, como se a vida tivesse se retirado, justamente por isso, porque a vida que vivera nos últimos meses era morte, era Gisele, lembra-se de Vanda e volta para dentro de casa. Abre a porta do quarto e mergulha na cama, aconchegando-se no regaço da mulher.

Treva primordial. Vazio desejável, silencioso, musical. Noturno e diurno. Transformação de tudo. O nada. Exausto. Jamais tal solidão e todavia ela está ali. Na

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR grama a seus pés. No raio em seu peito. No silêncio de vibrações do sino que se calou. Todas as coisas enfim se acalmaram após o êxtase. Ela está ali, ainda está ali, solícita. Ele ouve a história da jovem morta que se recusava a partir. Lampejos do ano passado, do período em que dormia. Ela promete partir mas habitará ali para sempre — não na morte, na solidão ou na vingança. Habitarei para sempre, diz ela, em sua vida.

Agora entende. Silêncios que na madrugada fazem o papel de um relógio. Ali está estava, absorta, junto à mãe sozinha e preocupada. Não a pode consolar? Pode tudo nessa repentina dimensão. Como esse infame tem coragem de ligar e sugerir que ela aquiesceu? deixar a senhora Drabska ainda mais atormentada? Se pode se ver refletida nos olhos de David agora depois de tanto tempo, se nesse olhar sua eternidade se manifesta enfim, não há lugar para a mágoa que deteriora a fonte cristalina.

David, tão próximo e tão distante. Que respiração irregular, pobre querido. Procura um lugar para deslocar dali o terror. O medo é por causa dela, não por si mesmo. Acreditou-os integrados pela morte mas o leito desse rio serve apenas àqueles a quem é inexorável. Afluentes incertos ali não desembocam. Não saberão do hades. Caos medonho imerso em construções assombradas. Não quer mais isso. Se tem de habitar aqui por todo o sempre, que seja descanso. Visão com o fim único de apaziguar, depois o sono. Depois a paz. Faculdades aperfeiçoadas pela redenção. Um canto agora. Você. O vínculo que me liga à terra.

Termina assim. Numa galeria na cidadezinha próxima do campo onde Hadrien vivia. O rosto translúcido, o olhar transcendente. Nalguma loja próxima da

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR barbearia. Burburinhos sempre encheram David de inquietude. O pequeno anel na correntinha. Passando pela trilha do parque escuta os pássaros e o mar. O caminho. Em certo momento uma curva aguda seguida de íngreme subida. É plano agora. Infinitamente sereno. O homem que vem em sentido contrário, curioso ou compassivo, recebe dela a certeza de que está tudo bem, não se preocupe, obrigado. Tem certeza? É que o homem também sabia tudo sobre aparências. Ela confirmou. Tudo bem. E seguiu. Debruçada vê a senhora Drabska atender o celular. Pobre mãe. Mas acredite, ela está bem, diz David na cabine telefônica. Desejaria decerto que a senhora também estivesse. Algumas pessoas, quanto pior o mundo que as rodeia, melhores se tornam. Ainda mais, murmura a senhora Drabska ao desligar o telefone, depois de experimentar um renascimento como esse rapaz. Ainda mais quando, morto, torna a viver. Ela imagina que esse é o segredo de David. E o convida. Se meu filho não vai mesmo voltar. Seria maravilhoso, uma honra. Decerto uma forma de se confortarem da perda de Gisele. Combinado, diz ele. Repete mais alto, pois a mulher está perdendo a audição.

O avião está descendo. David fecha o livro e olha pela janela. O alto da cabeça dele. Respira fundo. Há um casaco marrom na guarda da cadeira ao lado da cama. Não se lembra desse casaco e todavia estremece à lembrança. Mais além, do outro lado do quarto, após ricochetearem no teto, estendem-se sombras velozes sobre os móveis. Ele praticamente as vê nas páginas do livro cuja leitura abandonou. Senhores passageiros. O trem de aterrissagem toca a pista. Resvala, desliza agora. David reconhecerá cheiros de mar, o rosto amado no espelho e objetos pessoais. Alguns que Gisele guardara no dia anterior à sua morte. O gatinho se encosta em todos, ronronando.

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SE CONTIGO DEVEREI HABITAR Irei pelo aterro. Carros velozes irrelevantes ante as sombras e reflexos. Por contraste será feliz. Verei o sol sobre as águas da baía. Mede o futuro em eternidades. Distingue à margem da pista o ritmo do outono e as avencas no parapeito. Será o bastante, essa memória. Amanhã visitará o prédio do antigo trabalho. Se der tempo na noite de quarta o senhor Abdul. Talvez no final de semana reencontre Eduard. Este mundo. Aproxima-se da escada do avião. Sorri para a aeromoça. De noite sonhará com esse momento na cama de Gisele. A escada, o sonho. Olá, senhora, como vai? Olá, meu filho. Entre. A casa é sua.

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