Diante do postal de Kleber, no delírio de ter uma cidade sob o sol nas mãos e estar sob o sol de outra cidade, evocou o dia em que conheceu Francesca, levado pela relação entre a reminiscência e os dois sóis, relacionando Francesca com sua ida de um para o outro. Na margem do Tejo o vendedor de haxixe aborda os estrangeiros. Eflúvios de tágide emanam do outro envelope, a carta de Cláudia. Ela fala de trabalhos e estudos em Milão e de sua vida solitária e de todo o seu tempo tomado mas dera assim mesmo um pulo até Moscou após um giro pelas capitais da Comunidade Europeia. Era o início da livre circulação de pessoas e mercadorias. Ela fala - ele pode ouvir. Soa com a naturalidade de quem diz que viu o crepúsculo da varanda de casa. Ai. O mundo de camponeses e reis, dos pedestais da aristocracia feminina e ternos vagabundos sob o sol. Os pés no rio são peixes. Viram que ele virou o papel e pensaram em lhe pedir um pedaço. Um rapaz de bermuda e camisa floral chegou a se levantar mas desistiu quando percebeu a caligrafia de Katia, inclinada e tensa de sua síndrome. Letra elegante e bonita como ela própria se movimentando pela Praça de São Marcos entre homens de terno como se estivesse em Piumhi conversando com a velha senhora que foi para ele uma segunda mãe; se aproximando carta e postal como se as cidades se aproximassem e não houvesse distinção entre as ruas de café e o percurso das gôndolas. Então se viu na carta. O papel fino o reflete contra o trânsito fluindo para o Porto. Acinzentado brilho imperial cobre o casario nas ladeiras ao redor. Cheiro de vinho no ar ao de grelha e rio se mistura. Francesca na memória de sua língua. Tamborilam as águas da fonte nos ladrilhos rangentes à passagem dos bondes. O prédio na esquina do paço ergue-se triste em cicatrizes e olhos duplicado ao longo da poça no meio-fio. A gola azul de zuarte levantada até as orelhas. As sobrancelhas se encontram na glabela. Ergue os olhos. Dragas empurram as ondulações contra a superfície sáxea que margina a avenida até a torre de Belém. As moças passando não sabem o que são aquelas coisas e para que servem. O sol são miríades de diamantes. A cidade inteira na largura do rio. O tráfego na ponte aumenta conforme desce a noite: linhas douradas que na outra banda se dissiparão; mas na perda do fulgor as pessoas estarão em casa. Lisboa. Repartida entre portugueses e turistas à vontade em leves roupas coloridas ao chamado do sol ibérico e negros provenientes das ex-colônias africanas sentados atrás da igreja de São Domingos, logo depois da Praça da Figueira ou defronte da estação Restauradores do metrô. A primavera traz o humor de seus dias tanto do inverno que passou quanto do verão por chegar. Estamos num desses últimos. - Give me light? — pediu a jovem cujo vermelho da pele acusava a palidez congênita.
Os mochileiros se movimentavam como numa festa íntima. Sua indolência contrasta com os lisboetas fardados de sobrevivência na Praça do Comércio. Calçou os sapatos e desceu do muro de onde, sentado, via os cacilheiros. Apanhou a mochila preta e jogou as alças no ombro. Está cedendo na costura. Dá para ver uma camiseta azul e um desodorante em bastão. O ruído dos tecidos é como o chiado de um disco velho, chiado de um disco velho, chiado de um disco velho. Caminha no sentido de Santa Apolônia: à meia-noite pegará o trem para a Espanha. O caminho era feito de incisões que costuravam as semanas imediatamente anteriores às imediatamente seguintes, porque nunca teve memória ampla o bastante para lembrar fatos há muito acontecidos nem esperança tão grande que compreendesse o futuro distante. Tentava juntar os dias em que Francesca participou do torneio em Barcelona com as possibilidades após receber o pagamento do artigo e quem sabe a encomenda de outro, ou ser efetivado na revista. - A estação está longe, senhor? - Ali, depois daquele prédio. Anoitecia e esfriava e sequer frequentou uma universidade e não fazia sentido o legado de seus escritos dispersos. Aceitou, contudo, a encomenda do texto sobre a passagem dos vinte anos do Maio de 68 e vai entregá-lo pessoalmente na revista espanhola. Depois pode passear em Madrid. Conhecer a movida e sentir a respiração de uma espanhola em seu rosto. Uma mulher de fala cantada e longos cabelos negros. Pele clara, branca por assim dizer. Coxas brancas exceto pelos arrepios e as veiazinhas entre o azul e o vermelho como a luz do sol numa cortina. Ele tem desejo de Espanha, das pessoas e coisas da Espanha, porque não está na Espanha. Mas está indo. Entra na estação. O burburinho ambienta seu silêncio interior. Frio e fome abrigados no sangue aquecido e preparado, grosso. Não voltará ao mundo. Não voltará. E, se não voltará, por que olha tanto para o céu e se importa tanto com a opinião das pessoas? De nada valeu a vivência exceto para descrevê-la? Está cansado de lidar com palavras. Não voltará — o que é tempo? O sopro de vida em mim será tirado como esse trem da plataforma um. Exceto minhas ações nada restará e Com lábios trêmulos chegou a dizer Estou com frio. O homem a seu lado não entendeu ou não se interessou ou não estava com frio. Viu a amada ausente na foto. Ela longe ele era livre, mas não sabia até que ponto, nem sabia se era bom. Na cabine solitária chegam cheiros de todas as casas que passam na escuridão. Camas rangendo. Armários abertos rangendo. Relógios refletindo o luar. Sons noturnos. Sim, meu amor. Outra camada do tiquetaquear do trem na noite. A mulher se ajoelha e o homem por trás segura os
seus seios. Ofegam. O leite ondula no copo à cabeceira. Pingos enchem o vidro da janela do trem e escorrem pelas pernas trêmulas. Estação de Atocha, Madrid pela manhã. ¿Por favor, donde un hotel? Com que então o mundo ideal é assim. Entrou. Não é tão perto quanto disseram. Ficou com o quarto. Lá fora trovejava. Solidão. Solidão. Rodinhas no piso. O carrinho gemia. O corredor não era acarpetado? A voz (do gerente talvez) diz à camareira que — passos arrastados e outras vozes na memória da janela. Meu Outro será para sempre um mero espectro? O recém-nascido morrerá? Pensei que ele estava — diz a camareira — não para o gerente, pois a resposta menciona o gerente, sujeito ridículo. As folhas do caderno estão dobradas no canto superior, precisa comprar um novo. Estava terminando e sabia que, mal acabasse, nada restaria de si mesmo, do Eu justo e agradável que o possui ao escrever. - Não sei se ele está aí — diz a voz. - Parece que há um recado. O corpo na cama deitou ao quarto a dor da ferida que constantemente se abre. Meu ser não é meu, mas um efeito cuja causa não está em mim. Os olhos estão nublados, doem um pouco. Você precisa fazer uma faculdade. Bem que seus pais avisaram. Profetizavam essa ereção inútil. Caminhões municipais escovam o asfalto. Lavam o dia. Gotas no espelho escuro. Recémnascido de um Maio há vinte anos, logo morreria outra vez — até quando? Você em minha mão solitária. A janela enquadra o céu e uma estrela aparece, imponente ou simplesmente só, em sua solidão como um sinal. Que o vento leve o que eu vejo e veja o vento quando eu não possa mais. Na neblina a cidade derrete. As ruas estão mortas. Sentado na beira da cama, ele crê que a vida não seguirá com as nuvens mas ficará com a estrela. Ele não voltará e o efeito há de se libertar. Não passará sem antes legar algo aos que estão na festa e aos vão chegar, quando olharem por uma janela.
O relógio registra o final de abril, assim como o jornal que ele lê na cama, apoiado num cotovelo. Há tensão no avião árabe sequestrado. Na copa das árvores o verde muito escuro retém pelas nuances a luz do sol imerso no abismo. Como um profeta, ele perdera tudo o que prezava, num processo irreversível, fatídico, que escapava a qualquer controle. Por quê? - ele queria saber, pois não era um profeta. As manhãs vêm e depois as noites. Grande es el sentimiento de soledad en las grandes ciudades. As vozes no corredor se distanciam, crescem os sons do vizinho. Como pode fazer tanto barulho num lugar tão sem nada? Talvez por isso mesmo. O ruído oco e duro do vazio.
Está no espelho. Em torno da lâmpada, mariposas. Ele as vê com as mãos na parte de trás do pescoço, boquiaberto, como se visse fantasmas. Cartas caídas no chão, jornais velhos se misturam; fotos; papéis voam da mesa e alguém exulta. Um livro! Não sou a mão que escreve, pensa, sou a espécie. Sonhos sensuais. Amor, que seja. Os utensílios de sua normalidade planetária tinham sido tirados, um a um. Amor, pátria, casa, trabalho. E agora? Honrar o homem que conseguiu a viagem? Mas a que preço… O que pretendia? ser feliz? E afinal o que é ser feliz? Alguém chega a ser realmente feliz? Detestava quando seus pais lhe faziam perguntas apenas para introduzir teorias sobre tudo. Talvez tenha sido feliz nos mimos à criança, nas atenções voltadas para a puberdade do filhinho, nos paparicos à sua inteligência, nos agrados ao adolescente sem espinhas, nas lisonjas que profetizavam o sucesso literário. Mas o que é sucesso literário? Aliás, o que é sucesso? Aliás — a mão não que escreve, mas que segura o copo dágua. Se escrevia bem, qual a serventia? Se nem tanto, qual o prejuízo? Na noite se esvaem as luzes e lhe resta colocar o coração, ainda bem irrigado por exercícios e alimentação balanceada, a serviço do que deve perdurar: os vislumbres pesados; as asas da sombra; a casa esperada. Junto ao tesouro sem traças que lhe restava.
Uma camareira rende a outra, passa pelos quartos abertos recolhendo a roupa de cama usada. Lembra da cara do marido quando ela finalmente tomou coragem e disse - Vou sair de casa, não preciso de você para sobreviver. Recorda a cara da filha. O orgulho da moça, escondida atrás da enorme barriga. Passa com o carrinho pelo balcão vazio da portaria atrás do qual havia os quadros da Inspeção Sanitária, a advertência contra crimes sexuais, o espelho e o quadro das chaves. A que saiu se encontra com o namorado. Seguem pela Gran Via, entram no prédio e no apartamento. Depois que comeram as iscas de fígado que ele preparou, foram para cama e no dia seguinte acordaram quase meio-dia. O porteiro voltou. Cantarola a música que encerrou o show que assistiu na noite anterior. Uma banda fantástica. Era como se todas as coisas boas que deveriam acontecer ao longo do dia — as gorjetas, a pausa do almoço, o flerte com as hóspedes — tudo estivesse ligado aos acordes dentro dele. As escadas descem em voltas. Devem ser uns cinco minutos do momento em que se sai dos quartos até o corredor que vai dar na rua agora visível. A luz faz com que a pessoa aperte os olhos.
Transeuntes se aproximam de quem sai. Há dois casais parados em frente ao prédio. O ônibus ronca e retoma seu trajeto.
Valerie queria fazer amor com seu professor, sem qualquer outra implicação. Saboreia a intensidade desse desejo sem culpa enquanto suas amigas acendem o baseado. Quando fez efeito, inflamando sua vontade passou pela sua cabeça a reação de Hans se soubesse e certamente do jeito que eram as coisas haveria de saber. Em nenhum momento sentiu menor o seu sentimento por ele, por Hans, desde que viu o outro no campus e quis estar com ele ao menos uma noite. - Ele é muito lindo! - Você só pensa nisso, amiga... - Por que outra razão eu me ligaria ao movimento estudantil? Ele chegou e disse Oi pessoal. Ela já tinha tudo planejado e pouco depois estavam no alojamento. Do outro lado da parede tocava a música dos Beatles que fala de revolução. Os outros deviam estar ainda tagarelando sobre sistema educacional, política e Vietnã mas no fundo tudo o que diziam era que Valerie tinha o direito de fumar unzinho e depois fazer sexo com aquele homem.
Pelos labirintos do metro, ele chegou ao outro lado da cidade no princípio da noite. Arrefecido o horário, restou a oferta de corpos, o burburinho nos bares, adolescentes discutindo qualidade e preço. Apertos de mão em código. Socos de camaradagem e beijinhos descompromissados. Alíneas de parágrafos inacabados. Ao se dispersar o grupo, alguém deixa um pedaço gratuito como prova de amizade. Está sentado no degrau de uma loja fechada. Rabiscava a página do caderno pensando através da caneta. Durante tanto tempo sonhou estar no lugar que agora estava, mas isso não significava mais nada. Pouco depois, estava na avenida de Daroca, ventava. De Vicalvaro a Las musas ele entrava no mundo que nasce quando morre o diurno e sua retidão. Apanhou a linha sete até Pueblo Nuevo e a cinco até Ventas. Cinemas, sopas e imprevisíveis madrugadas, segundo o suplemento. Entrou após ver o cartaz. A inverosimilhança do castelhano perfeito de Sting e Kathleen Turner fez da sessão um tipo estranho de terapia; saiu sereno, bem disposto. Não lhe ocorreu qualquer associação entre o filme e Blandine; entretanto havia Trieste, cidade que não conhecia mas estava tão ligada a seu destino. Se estabelecesse analogias entre Blandine e Julia, entre ele próprio e Daniel (o personagem de Sting); se relacionasse aqueles cenários com os arredores da Via della Sorgente, onde Blandine vivia e caminhava ao sol, e aquele mar do filme com o mar que todos os dias a extasiava — teria ficado ansioso e triste. Mas não lhe ocorreu
qualquer ligação e saiu ileso, graças a esses complexos mecanismos mentais que nos protegem de nós mesmos. Meses depois, quando voltasse a assistir o filme em Lisboa, numa sessão reservada a jornalistas para mostra dos processos de Alta Definição, por causa de um detalhe — o espaço entre as casas, de que Francesca não gostava por achá-los grandes demais, agente de isolamento — ele pressentirá Trieste e confirmará a intuição. Nessa sessão, em que os cuidados técnicos subtrairão ao filme o halo de magia, substituindo-o por tipo um vídeo-tape (algo como trocar a pintura de um mestre pela foto da paisagem que o inspirou), nessa outra sessão, quando Sting falava com sua própria voz o inglês original do filme, ele experimentou imensa angústia porque, se aceitamos as horas que passamos numa sessão de cinema como um tempo vicário onde a ilusão assume o papel da realidade com o nosso aval, quando voltamos a nos deparar com o filme, depois de ver os atores recebendo prêmios ou em entrevistas egocêntricas ou simplesmente em outros papéis, perde-se a dimensão de sonho da primeira vez, detemo-nos nos detalhes, e tudo se torna evidente como fruto de uma humanidade vã, verossímil demais para ser verdadeiro. Não era assim após o filme em Madrid. Estava cheio de esperança. Com postura e respiração de peito caminhava para a região das tavernas. O rapaz lhe pediu um cigarro e, depois de acendê-lo, propôs um chocolate. Michel foi até um vulto na transversal do outro lado da rua sem dizer palavra. Voltando, preparava o baseado. Michel era inglês, embora tivesse nascido na Suíça. Pronunciava o espanhol tão corretamente quanto Sting no filme porém ele é real como minha alma dilacerada. Cantava o lhú de lluvia (começava a chuviscar) e o lhê de calle (convidara-o para ir tomar sopa num clube noturno e agora explicava o caminho), diferente dos latino-americanos que dão aos eles som de jota. - ¿Como eh seu nome? - Andrei. - Vamos, Andrei? No percurso, pelo cheiro, juntaram-se a eles um italiano e um português. Um veículo pesado faz com que a avenida estremeça. Um sino. Meia-noite. Tudo o que um segundo comporta.
Luis, o entroncado moreno do Porto, está falando sobre mulheres. Diz que sexo e sentimento são para elas a mesma coisa. Quando sentem prazer estão amando. O homem não associa assim, por muito que ame. Admitimos que a imagem da mulher amada possa por momentos se apagar e o coração transmitir outras imagens.
Talvez seja por isso que o espírito possessivo toma conta delas — o italiano que vivia em Barcelona, Tomás, faz uma pausa e vai concluir. Mas Luis, como que desabafando um caso recente, conclui ele próprio. — Como uma possessão mesmo. - O ciúme é o demônio particular das mulheres. - A mulher é que é o demônio — diz Tomás. - É um engano pensar assim — Michel sorriu. — Uma mulher não passa despercebida. Para a mulher, uma amante eventual é definitivamente traição, quando apenas prova uma tendência polígama primordial. Para elas um caso sempre significa alguma coisa. Passam três moças em sentido contrário. Michel se virou e as seguiu no decurso de uns passos. - Mujeres, vosotras las chicas, no valéis nada, no sois nada, no tenéis sentimientos, ni corazón, ni entrañas - no queréis ninguna salir conmigo? A mulher escolhe sempre um homem que desperta a atenção de outras — o rico, o charmoso, o bonito, o inteligente, o protetor, o sedutor — mas só leva em conta que, se ela é fiel, garantiu o direito de exigir fidelidade, argumentou ele. Escolhe e se entrega logo antes que surja a questão de sua própria beleza e independência e charme e meiguice que desperta no homem o desejo de proteger. Não preserva seus encantos e exige fidelidade independente desses encantos, concluiu.
Ao longo da noite, no sobrado que atendia pelo nome de pub, branco como as outras casas da rua, os ciganos se divertiam, cheios de brincos e pulseiras, num idioma irreconhecível. Num canto, quatro estrangeiros bebem refrigerantes potencializados pelo haxixe. Fazia calor, um calor fora de época, sufocante. O suor escorria pelas veias saltadas, semelhante às folhas nos vasos do parapeito — a água da rega escorrendo nos limbos — o suor escorria, até nas mãos que seguravam os tacos de sinuca, como mangais de faraós. O cheiro de uma cozinha próxima serpenteava sob os narizes substituindo o cheiro de maconha. Num momento, Luis respirava fundo perto da janela. A planta suando parecia um chapéu; noutro, ele havia levantado e gritava. - Minha carteira! Alguém roubou minha carteira!
Ato único, todos pensaram em Michel. Onde estava? Tomás discretamente conferiu os bolsos. Uma sirene disparou. Andrei pensou na polícia e no haxixe. O inquietante barulho insistia, aumentava. O porteiro pedia que saíssem, suplicando. Nas escadas, a ponto de sair, claustrófobos, esbarraram em uma tranca de bronze. Com o medo que, em público, pela intempestividade, se confunde com coragem, Luis tornou a subir os degraus, de dois em dois. Lá embaixo ouviram sua voz, desesperada e enérgica, levando o dedo de alguém ao botão que atuou no circuito. O frio lá fora se misturou ao relaxamento. A madrugada madrilena distribuía luzes e sombras pela amplidão de suas avenidas iluminadas e nevoentas ruelas sempre dando em alguma praça, entrada de metrô ou outra avenida iluminada. Lâmpadas de postes transpassam a bruma e entranham no asfalto as encompridadas sombras. Michel havia feito confissões. Tinha uma linda casa em Londres. Era sócio de uma próspera loja. Optara por viver na Espanha por se relacionar com a resistência basca em nome da memória de um avô, um basco francês. Que significado teria o Maio francês para os bascos, perguntou-se Andrei ao pegar o ultimo pedaço, recusando a tentação de guardá-lo para depois escrever na solidão do quarto. Luis abriu o papel e Tomás colocou a mistura. Aspiravam ao máximo, que não era tanto, por ser fortíssimo o tabaco negro. Quando restou a acidez do cartão, Tomás atirou-o ao chão. Luis disse que tinha de ir. Deixou seu endereço no Porto. - É só pegar o autocarro 57. E se despediu.
Ficaram, Tomás e Andrei. O vento frio parecia outro e eles mesmos outros também — eles sob outro prisma. O que pode enlevar, sim seu guarda, é incapaz de modificar. O tal espelho que amplia é ainda um espelho. O sábio será sempre sábio e o tolo cada vez mais. Andrei falava a respeito quando passou uma jovem roliça e castanha, pequenina, dix-neuf ans, olhos verdes. Lábios rosa escuro. Os cabelos caíam pelo rosto. Um blusão surrado aberto o bastante para a visão de seios, bico revelado na transparência da camiseta castanha como o blusão e ela mesma. A cintura, era como Deus ali houvesse se demorado. Sua expressão inteligente; as frases curtas, divertidas; supergata charmosa. Chamava-se Isabelle.
Seu saboroso gerúndio, de sublime acento, comovia. Sorrindo, ela disse smiling cantando o g e depois Tomás, assim, abrindo o a e derramando o Sena dentro dele. Tomás se desinteressou do espelho.
Um olhar ao redor. A caderneta. Um bar que se abre. Começam a servir. Ele abre o texto em uma mesa de canto. - Café con leche y dos tortas. As conversas cruzadas atravessam seu cérebro. Na mesa em frente um velho de barbas brancas divaga diante de um copo de vinho pela metade, há muito intocado. Lembra alguém. Que foi feito das profecias nas paredes? Onde está a sociedade que se pensou? Em Paris não é vista; em Nanterre, não está. Droga de caneta. Depois Droga de artigo, a ponto de rasgá-lo. Um mundo, no final das contas: o das soluções literárias para problemas reais.
Entrou no bar uma jovem de olhos grandes em nada semelhante a uma mulata da roça. Todavia, é Blandine. O que ela faz aqui? - Jag vill gärna... Falava com o atendente loiro quando percebeu que Andrei a observava. Está de costas junto do balcão, os cabelos escorrendo pela camisa azul-claro e o jeans geminando perfeições. Ele ergue a cabeça, displicente. Talvez ela esteja olhando. O texto diante dele. O fundo de café com leite. Hesita um segundo e, quando de novo a procura, ela não está mais. Sua ausência o deixa com a caneta na mão.
Ele escuta pássaros matinais em ramos à janela.
A vírgula rasurada. Talvez aí exista um fato. Mais que jornalístico, mais que literário. Trata do Maio mas é da minha morte que trata na verdade. De minha morte miserável. Que diferença faria se a fome, o frio, ou ele mesmo a provocasse?
Amanhecia. Blandine e o lago no espelho do bar. Kleber e Donda Maria. Não eram chegados a cartas, mesmo assim enviaram um postal e o bilhetinho carinhoso. Oi Andrei, como tem passado?
Por onde anda que só agora mandou notícias? Ele conquistara o amor de todos e ela esperava em Deus. Mas da filha não falava. A porta da casa estaria sempre aberta, mas Blandine não estava mais lá. Donda Maria era desquitada de um francês, Blandine e Kleber os frutos mulatos do relacionamento. Sempre doente, a mulher nunca era vista prostrada. Acordava às quatro da manhã, tratava dos animais, tirava leite, moía café, cuidava enfim da parte doméstica da fazenda do senhor Jean, que morava em Ribeirão Preto e deixava a lavoura em Minas administrada pelo filho. Andrei à época morava em Ribeirão, escrevia para um jornal local. Quando Blandine surge com o pai, ele vê televisão na sala. O senhor Jean está para se casar de novo, com a dona da pensão. Planos na cozinha. Taquicardia qual revoada de pulsações próximas à janela em que debruçada Blandine espera. Ela se move de um jeito lento e ansioso. O perfume suave tudo envolveu. - Que nome bonito — diz ele. - É que o pai era louco por Liszt. Se Kleber tivesse nascido primeiro teria se chamado Franz. Sorriram. O casal jantará fora, com a filha. Convidam-no. Ele andava bebendo demais. As coisas não andam bem, muito estresse no trabalho. Está tenso, infeliz. É a cidade grande, justifica. A tensão do fechamento diário. - Um tempo na roça? -Não gostaria de vir conosco? No dia seguinte o senhor Jean ia levar Blandine para Piumhi. Pode trabalhar nos cafezais. Será uma ótima terapia.
Ela costumava levar a comida quando Andrei e Kleber trabalhavam no milho, antes da panha. Então o irmão pegou o trator. Talvez não goste do cara bonito e rico da cidade. E demorou o suficiente. O café esfriava na caneca. Deitados na relva, ao lado da casa desabitada, conversavam sob o sol frio e baixo do começo de junho. Ele perguntou sobre seu namorado e ela respondeu que lhe dá segurança material. Não reprimiria o desejo, a não ser que ele não a quisesse. Ele a queria. Não desejá-la seria não estar ali, o lago ao lado, os patos, a brisa encrespando as águas. Não desejá-la seria não existir, o corpo não formigar na grama, a vegetação não receber a tarde de uma quinta-feira amainada de um agosto logo tornado mais distante do que deveria pelo efeito orgulhoso da saudade.
Uma fase de sua vida costumava pensar em como seria a intimidade com um rapaz de quem gostasse enquanto arrumava a casa com aparência serena, quase santificada, imaginando pés descalços no assoalho reluzente. Depois ficava sentada na varanda, relaxada, ao lado da vassoura esquecida. Os olhos fixos no horizonte cuja cor entretanto não saberia dizer, salvo o vermelho, um tom escuro de vermelho. Pensou nisso ao arrumar a cama do quarto de hóspedes quando chegaram a Ribeirão naquele dia, depois que o irmão levou Andrei. Ele não dormira, talvez um pouco, do momento em que deito até o momento da madrugada em que um galo gago e hesitante o acordou. Sentira um perfume suave, indolente, indubitavelmente feminino, denso, como num quarto em que uma amiga acabou de usar talco, ou tenha sido o talco ela mesma; mas ao sair, após o chamado para o café, não deixou senão um impessoal e sem graça aroma de si mesmo. Talvez agora isso mude, pensou, porque amar é zerar tudo, começar de novo, construir uma nova imagem de si mesmo a partir do olhar do amor e da afetada voz de suas palavras. Andrei e Blandine estão juntos há uma semana. Kleber está feliz, Donda Maria também. Feitos um para o outro. Felizes para sempre na casa que o Sr. Jean prometera como presente de casamento. Andrei não sabe. Se soubesse, talvez não pensasse em partir. Mas Blandine a princípio não contou. Uma e outra coisa. E a nova vida, o casamento, ia ficando para mais tarde. Blandine pensa. É que você se sente dividido porque gosta da roça mas não a ponto de esquecer as facilidades urbanas. Ou ela queira viver longe dali, daquele ambiente nem sempre agradavelmente familiar. 1986. Dias de desejo e ciúme. O cheiro da terra ainda por algum tempo. O café. Se alguém pergunta: Por que a separação? Por que alguém não impediu o rompimento? Não há uma explicação. A diferença de idade faz dele um homem maduro ou quase um velho, um cara cheio de si ou um menino inseguro. Ele adora uma santa, enlouquece uma mulher, mas os defeitos dela o aborrecem, não é santa, sequer uma mulher, é só uma menina mimada, o que houve não foi fruto de uma escolha, mas um passo para a perda da liberdade. Ela se deliciava com presença dele, e mais ainda com a ausência, sua presença imaginada, na verdade um novo tipo de presença. O homem não mais é uma espécie hostil. Gosta de lhe explorar os ombros, de beijar as costas, os quadris, as coxas. Chega a se entender quando está ao lado dele. Vozes ao longe se revezam. Apanhadores, decerto. O sino da igreja dá seis horas, arrasta a memória em cada badalada.
Ele foi um apanhador de café calado, deslocado no canto da carreta (o que era chamado de jornalista"), torcendo para que não puxassem conversa, sabendo que iriam puxar. Imaginavam o que teria feito para terminar assim, empoeirado como todos, e mais pobre do que todos, sem casa para morar, sem sequer parecer ter morado em uma casa algum dia; sem amigos, sem parentes, como se a vida houvesse se desfeito dele e por alguma razão o tivesse lançado no mato para menos que morrer, para regredir ao tempo anterior a seu nascimento. As vozes. Arrefecem. O espírito da torre da igreja rasga o ar até se dissipar na manhã.
Ela chega a temer tanto prazer. Seria lícito? Não por ser solteira. Seria lícito tanto prazer, em qualquer circunstancia? Também porque parecia perigoso. Estar com um homem, pensava, pelo resto da vida, não por conta de ele prover a subsistência (o que é uma visão retrógrada, lembrou). Mas ah, quando ele chegou da lavoura com os olhos caídos e cheios de si!... As feridas da mão como medalhas; suportando o olhar dela com uma expressão altiva e cansada - como um menino que tivesse passado de ano com média cinco diante de sua mãe. - Voce está bem? Deu tudo certo? Vai conseguir voltar amanhã? - Sim e sim — respondeu ele. - E sim. - Voce tem um riso bonito. Agora é tarde. Ela não devia ter dito isso, mas já disse. Como a simples presença dela me inspira, pensou ele. Agora era capaz de acreditar, pensou, tocando a aura que a envolvia, como um gato sente a presença humana sem necessidade de ver, como um cego, como uma moça cansada distraída na varanda. - Olá! Arrumei teu quarto. - Não precisava se incomodar - Não foi incomodo algum — disse ela, quase completando Foi um prazer. Mas não ia pegar. Quando ela o reencontrou, lembrou que pensava em como ele trabalhava duro, com responsabilidade, não só pela quantidade de arrobas, já que dava todo o dinheiro para a sogra, puxava as cerejas com as grandes e amorosas mãos cujas palmas não mais ficavam em carne viva (embora fossem, de certo modo, carne viva), com a dedicação com que possivelmente qualquer monge faria caso o café guardasse o significado da vida e o segredo do Tempo; lembrou de si mesma, a palha do chapéu preso à cabeça pela fita nova, vermelha, o contorno dos montes do sul de Minas correndo na linha do horizonte invernal com o frescor azulado do inverno que acaba de se estabelecer, lembrava e pensava reencontrar alguém assim, depois de anos, numa cidade desse tamanho e se via, quadros depois, as cestas resvalando na parte externa de seus joelhos, e certo
desconforto da palha tornado um simples sentir à maneira de uma dor que se torna crônica — se esticasse uma linha daquele seu olhar até o rosto de Andrei, subitamente oculto pela saca que levava, sessenta quilos bem pesados, como ela disse quando ele lhe perguntou (e era a pura verdade, a linha acompanharia o caminho de terra pelo qual se chegava à casa principal, recebendo a mesma luz inclinada, como um rio calmo. Eles não falavam. Ele estava saindo do cinema e ela entrava na loja de ferragens do shopping. Não falavam: olhavam-se, aproximavam-se. O que você está fazendo aqui — ela pensou e ele não conseguia sequer pensar, como se houvesse um bloqueio entre a consciência e o pensamento. Apenas olhava para ela, tentando desviar o olhar dos seios, sem conseguir, esperando que isso não a constrangesse. Está tudo bem, pensou ela, por que me constrangeria? E assim do nada se beijaram, porque não havia mais nada a fazer além disso, exceto se houvessem falado, e não falaram, como se há três anos houvessem perdido a voz , como quem se desfaz de algo que não serve mais. Porém, alguns dias depois abriram suas bocas e então usaram a voz de forma burocrática e inútil, sobretudo um pouco antes de se separarem, e falaram, e falavam montes de coisas, além do que o outro poderia perceber.
Mas veio o fim da safra. Ele quis partir. O interior está mudando, como ela dissera, mas não o bastante. As luzes da casa estão acesas, há pequenas cintilações nos telhados. Questão de pouco tempo. A queda do muro de Berlim, fim de uma era. A perestroika varrerá o leste europeu e promoverá fartura para os povos soviéticos independentes. Mandela liberto, de volta à harmonia familiar, mais que do apartheid é o fim do racismo no mundo. Pinochet permite um plebiscito sobre sua permanência no poder, aceitará o não. A transição política brasileira se consumará graças à pureza dos partidos de esquerda e à sublime Constituição de 88. O primeiro presidente eleito após décadas. Enfim a justiça social no País. Um jornalista precisa participar de tão singular momento, é missão. Então, numa manhã úmida ele fechou a mochila e partiu.
No dia em que ia, segundos antes de ir (pegará o ônibus que leva dos cafezais ao centro de Piumhi), ela aparece à porta do alojamento. Tarde demais caiu em si. Como quem não quer, como que agindo sob o pano de fundo da segurança que o namorado de BH proporcionava, ela santificara o desejo, revelando uma face definitiva do amor, a certeza de que a vida passa.
O calhambeque da empresa mineira de transportes buzina ao longe, buzina para trazer a morte revestida de resto de vida, de saudade, de vocação literária. Traz um epílogo descendo pontual a sinuosa encosta ladeada de ravinas buzinando buzinando. Por que não sofreu uma avaria? Por que não houve uma greve de motoristas? Por que o governo não proibiu todo êxodo rural? O olhar molhado de Blandine o acusa cheio de dor e altivez. Contra a luz seu queixo adquire um duro contorno de seios. A manhã treme em seus lábios. Em suas olheiras, a noite. Não poderia ter vindo antes, pensa ele, me deter? Amor pode ser apenas isso - alguém que supere o amor-próprio e se antecipe ao erro contra o qual será o futuro implacável. Mas não, não quis. Preferiu me punir assim, pensou, segurando o vestidinho de popelina contra o peito e, assim, enquanto vivesse, ele guardaria aquela lembrança; Enquanto vivesse, ela estaria ali. - Desea usted alguna cosa más? Ele encarava abobalhado a garçonete que veio não para servir mas para que desocupasse a mesa. Ele contou mentalmente as pesetas. Dá para mais uma xícara de café. Blandine anotava o pedido com cara de poucos amigos. Escorre enfim a ressentida lágrima que retém à porta como o mar numa pequena onda busca a manhã para salgá-la. Saiu agora da entrada do alojamento e se foi, em silêncio de miragem.
Ele partiu de Piumhi em 1983. Foi para o Rio de Janeiro. Um dia ela apareceu lá também. Era o início de 1986. Tinha ido fazer a faculdade. Trabalhava no Curso de Inglês. Era atendente. Um dia ele esteve lá. Ia fazer o curso. Ficaram juntos de novo. Ele começou a trabalhar no jornal em Ribeirão Preto. Passava os finais de semana no Rio. Um dia quando foi visita-la, ela disse. Iria para a Europa. Um aluno do Curso pagou a passagem. Ofereceu a casa dos pais para que ela ficasse um semestre. Achava (o aluno) que ela precisava descansar. Ele chegou (Andrei) na sexta para passar o fim de semana e ela contou. Estava com a viagem marcada. Em fevereiro de 1987 ele pediu a conta no jornal de Ribeirão. Em marco foi para Luanda, onde conheceu Francesca.
Quando saiu do banheiro, ele a viu no balcão. Campos e prados, habitantes de montanhas e pântanos, bandos de pombos escurecendo céus incendiados. Sob a árvore, o potro relincha. Luzes na pedra. Sem que nada pedisse, o atendente a serviu. O homem ao lado diz alguma coisa e ela responde. Sem pressa ela percebe a saia presa. Renda e poros no rumor em que se intrometia a cidade lá fora — motores e vozes, martelos e serras. O cheiro de leite morno era mais forte que os outros cheiros. Ela estava de pé junto à janela do bar, a silhueta desenhada pela luz de um dia inexistente. Havia em Madrid quiosques que vendiam livros, en geral senhores, talvez no passado antigos livreiros. Como nas feirinhas de livros em pracas, as pessoas passando em torno, olhando como quem estah agradavelmente surpreso, folheando. Naquele da esquina era um homem grisalho, forte, os olhos pretos e a voz firme de quem sabe o que estah falando. Rapazes e mocas com folhetos se aproximavam e quem estava feliz com o espairecimento terah agora de escutar a velha conversa religiosa. Uma das mocas olhou para o livreiro por cima do ombro de seu par de pregacao. Disse, com movimento de labios: - Ela está naquele bar. O velho virou o rosto, olhou e fez sinal de afirmativo. La dentro, Andrei esbarrou numa das mesas de seu caminho ate o balcao. - Perdoname! — exclamou ele ao chutar a perna da mesa. Ela virou-se e se olhou no espelho atrás da estante de bebidas iluminada e ensombrada de todos os lados por um dia inexistente. Do bolso, assediando as canetas encularradas sairam as moedas a que olhando o proprietário fez uma piada racista relacionando pesetas e cruzados. Andrei jogou outra moeda no balcão e saiu.
O coração disparou. Ela sentou a seu lado no vagão. Seus olhares tinham se cruzado um pouco antes por sobre a aglomeração na estação Tirso de Molina, nascidos de uma inspiração recorrente cuja origem está num impeto do qual ele inelutavelmente se arrependerá. O trem rangeu com um soco que inclinou os passageiros e o braço dela o pressionou com resultados, enquanto lia sem cerimônia as anotações. Ajeitou-se no assento calada e ao levantar parou o trem. As portas se abriram e ele a seguiu.
Não será imediatamente. Levará um tempo até que ele tenha consciência do quanto estava perdido o qto estava sem rumo, o dano que uma mulher pode causar a um homem perdido que causa danos estáveis a si mesmo. Eles caminham lado a lado, ela um pouco mais à frente. As paredes pichadas, o casario cinzento. A cidade nervosa desapareceu. Ela precisa entregar um trabalho na biblioteca e de imediato ele pensa realmente ter visto uma biblioteca por ali. Ruas secundárias ludibriam a onipresença do metrô madrileno quando os homens viram o pescoço. Poderiam almoçar juntos, que tal? Haviam descido na Gran Via. Quanta gente. Puerta de Alcalá, Menéndez Pelayo. Calle 12 del octubre. Ela diz que precisa mudar de roupa. -E você, descansar um pouco. Ele sugeriu que ela também. - Descansarei de tarde Enquanto falava ela girou a chave e subiu um cheiro de apartamento, o cheiro dela. Ao lado da poltrona, contando histórias obscuras, uma pilha de jornais velhos — Portugal e Espanha integrados na CEE deverão — A menina está desaparecida desde — Passos sedutores em torno dele. - Prazer. O meu é Oleana. Nasceu em Linkoping. Foi criada em Madrid. Soltos, como boas novas, os cabelos esvoaçaram. Seu pai é representante de uma empresa espanhola em Londres, ela passava lá as ferias. Oleana continua contando: um dia ela ficou; tem alguma coisa de inglesa. Ele olha sem ver a janela e boa parte do bairro, e um pouco de céu. Ele sente o cheiro do xampu. O óleo na pele. Especiarias no hálito. Madrid é outra. Mascando um chiclete, encostada no umbral, ela o encarou como se esperasse ser surpreendida; ele sorriu o mesmo sorriso tímido que já a aborrecia. Unhas vermelhas, sandálias e pulseira azuis. Ela deixou é claro amigas na Suécia mas se sente espanhola. Ficou por causa da paixão. Pelo calor humano, por isso estava ali. Pelos valores que o conforto sufoca, na península escandinava ou no Reino Unido. Circunscreveu o sexo à sua experiência sexual. Um biquíni sumário a partir das marcas na roupa. Ele esboçou um sorriso que ela devolveu lendo pensamentos. Oleana. Em que momento mesmo disse esse seu lindo nome?
Cabelos de navalha em largas mechas ainda respondem aos movimentos. Não há homem ao longo do rio Tamisa que sequer pareça com Andrei. O sol da meia noite nunca iluminará alguém como ele. Uma estante divide as salas. A de estar se divisa por entre um e outro livro. A janela dá para outras janelas. Uma pia embutida no armário da cozinha, no armário que é toda a cozinha. Junto à torneira, ele observou o sofá branco gasto; em algumas costuras roto, desfiando. Cabelos de Oleana. Ela bebe água no copo em uso. Jag är en ond kvinna. A sombra de sua mão se define no mármore ao pousar o copo. Ao lado do sofá duas poltronas. No centro sobre a mesinha de mogno o telefone e um bloco de anotações. Ele pisa a nave viking contra o sol e aborve a luz quente no tapete. Eram poucos móveis e pequeno o espaço para se deslocar. - Wow! — ela havia olhado o relógio. — Desculpe — disse. Distraíra-se na conversa e nem o convidara para sentar. - Fique à vontade — disse. Ela não ia demorar. Abriu a porta defronte da estante e letárgico ele pensou: o que dizer quando ela voltasse? qual o gesto adequado? Como se tudo não passasse mesmo de uma encenação. Fechou os olhos mas não é ela quem surgiu e sim um senhor de aparência honrada.
*domingo, 19 de março de 2017 - Você se aventurou - diz o homem. - Então por que não tem a mesma determinação para refazer a vida em Lisboa ou conseguir o dinheiro da volta? É que ele ouviu dizer que o homem ajuda imigrantes a achar trabalho. - É verdade. Mas só em ocasiões especiais, em casos especiais; que não é o seu. Agora se me dá licença. - E a publicação de um livro em baixa tiragem? - Antes de gostar de você como escritor, precisaria gostar como pessoa. - Passaria a gostar em circunstâncias especiais? Ele sacudiu os pensamentos e lembrou que em meio aos estalidos de pano havia uma mulher do outro lado da parede e foi rigida sua reaparicao. Apertou os olhos. Sapatos, portas de armário. Caso quisesse ler alguma coisa para dar sono (ela levanta a voz acima dos demais sons, arrastando a primeira e a última sílaba da frase), imagino que você viu o tanto de livros. - Todos muito bons. Andrei relanceou os olhos à estante. Ela continua falando.
- Vou deixar minhas chaves com você. Ele se levantou e andou até a porta aberta. Oleana estava de frente para o armário. Prendera na liga as meias de nylon que envolviam suas pernas até o meio das coxas. Braços pálidos entre os cabides. A luz do basculante delineia a manhã e molha a pele nua. - Deixará as chaves? Os sul-americanos não tem boa fama na península. O assoalho reluz e a multiplica. Virou-se. Ele desce pela encosta, pela prateadura a que ela era submetida. Ela estende na cama a e coloca um par de sandálias altas junto à cadeira. Ele media os músculos trabalhados anos a fio pelo ciclismo. A cama arrumada de ontem é o motivo dos olhos sonolentos. Três almofadas descansam em cetim sobre a colcha mole e peluda, verde. O banquinho forrado. Na cabeceira um maço de cigarros, Le temps retrouvé e um exemplar da Times. Nas paredes quadrados em quadrados, retângulos em retângulos, triângulos em quadrados, metempsicoses em metempsicoses, inscritos no papel creme e atravessando-o ao infinito. E Oleana, a existência de Oleana, diante da qual se reduziam à insignificância os móveis, os desenhos, a cortina, o tapete e sobretudo Andrei. Ela diz que não é da península. - Não ligo a mínima para a fama das pessoas - diz. Seus olhos se distraem no espelho. Só por falar, ele perguntou se não era temerário, embora estivesse na sua cara que ele lamentavelmente confiável. - Quizás — disse ela. Mas ela não lidava com povos, lidava com pessoas; não com a fama delas. - Se fosse perigoso deixar as chaves, seria perigoso ter trazido você. A gaveta range ao ser aberta. Um vestido. A lingerie sobre o vestido, oceano escurecido por uma nuvem cremosa. Quando ela se curva para as sandálias, pedestal negro, ele cresce com a manhã: sol no sentido do dia pleno. Retine uma medalhinha num cordão de ouro. Prados longínquos e trote distante. Um detalhe em seu braço, sombra de volume. Força; também juventude. Ela sentou e prendeu a meia na liga, colocou uma das sandálias, equilíbrio sutil de colibri. Apanhou a outra, as costas delineadas pela lâmpada, e a segurou-a por trás, apoiando o bico na beira da cama. Os dedos forçam os músculos da panturrilha; o pé se amolda ao calçado. O vestido sobe e acompanha a coxa lenta, um rochedo. Um pouco acima e ao lado, um ossinho saliente na marca, alinhado com o culote. De repente, cédula de moeda nova que tem o mesmo valor apesar do diferente layout, outro prazer subiu pelos nervos do rapaz, como se sua reação tímida tivesse valorizado a oferenda.
Ela apoiou o antebraço direito no alto dos arrepios no jogo de luz e sombra. O indicador e o polegar forçam o elástico em pressão discreta e a peça esticada se detém e acomoda. O vestido caiu sobre o corpo. Estava pronta. O mundo a teria assim. Permanecia a advertência, vaga como uma coisa viva. Num futuro próximo será necessário sair da pintura. A decoração da casa de Oleana será a decoração da casa de Oleana. Não haverá eternidade. Ela será o que é e ele igualmente. O livro nas mãos será o mesmo velho livro contando as mesmas velhas histórias. De resto, quando a viu novamente vestida ( última aparição de uma Oleana a quem podia ainda imaginar recatada), quis guardá-la assim, como são guardados os autógrafos de artistas no ostracismo, preciosas para quem as conseguiu.
- Raramente faço as refeições em casa. Mas deve ter alguma coisa na geladeira. - Tudo bem. - Então estou indo. Os vizinhos do andar de cima se perguntavam quem era aquele rapaz. Ela não tem um namorado? Ele mal percebeu o casal que o encarava, concentrado em respirar fundo. Oleana abriu a bolsa e retirou as chaves. Depois de entrega-las, apertou o botão do elevador. Lembrou-se que estava devendo uma visita ao casal. Caso ela ficasse mesmo desempregada. Precisaria do marido. Sorriu e a porta do elevador se fechou. Em frente à porta, olhava a lâmpada da sala imaginando que estava em sua própria casa que nunca teve mas tão bem conhecia, sua, de todo sua, em todos os sentidos. Havia uma aureola dourada e ondas de luz crescendo em intensidade a partir dos filamentos como os movimentos de uma pessoa em relação a outra que está ao lado, a presença das lâmpadas. Como uma pessoa se levanta, as ondas que a pessoa emite. Um dia as pessoas não sentem mais, acontece sempre. Quando acontecer, talvez eu venha, pensou, medindo a distância entre as ondas, talvez eu venha a achar que vir para a Europa foi uma grande loucura. Talvez tenha sido nesse momento. O ar começou a faltar. Tentou nomear o objeto que olhava. Lustre. Lustre. Mas não pensava na palavra lustre, era outra coisa; um mundo escuro escorrendo de sua mente para a absoluta treva de onde vinha o sufocamento e o pânico, como se (a treva) tivesse o mais perfeito controle de tudo o que existe, sobretudo seu coração disparado e o lustre para o qual olhava. Seu rosto dividido em dois pela luz da lâmpada.
O primeiro livro em que bateu os olhos foi a uma velha bíblia azul antiqua version Casiodoro de Reina, marcada num trecho dos salmos. Apertou os olhos e nascendo nítida dessas falsas lágrimas a cidade se derramou nas douradas letras da lombada. Abriu o volume entre três e dois dedos. Acariciou a lombada de couro.
É de manhã e ao sair para o trabalho diz a Blandine que poderiam jantar juntos. Ela responde com um sorriso. Marcam. No restaurante, ela conta sobre o convite do italiano. Ele não sabe o que sentir ou dizer. Ela diz que era uma oportunidade única. Que sempre quis conhecer a Europa. Voltará em um mês. - Passa rápido. Ele não responde. Fecha a cara. Ela faz um carinho em seu rosto. - Deixa de ser bobo. Os dedos dela estão frios mas atenuam o súbito horror. E o amor desde então passou a se resumir nesse episódio que ele repete e repete para si mesmo. Ela dizendo Tenho uma coisa para te contar. Ele não tem nada para dizer a respeito. Passa os finais de semana na casa de Donda Maria. Um mês passa rápido e de fato. E dois. Três. Aí chegam as cartas. Ela vai se casar com o italiano, é claro. Diz que pensou muito depois da atitude de Andrei ao não levá-la ao aeroporto, não querer se despedir, que isso significava alguma coisa, que não havia nada mais entre eles. - Não há mais esperança para nós. Ele está sentado perto da janela. Kleber vê o futebol pela TV. Ele passa os olhos vezes sem conta pela carta. Pensa na unificação da Europa dos doze. Que quem estiver em Portugal estará na Europa. Na facilidade de ir de Luanda para Lisboa e talvez do Brasil para Angola. Segunda à noite na redação ainda pensa nisso. Olha os ombros da menina na prancheta à frente mas é em Angola que pensa, em Luanda, em embondeiros à beira-mar, no rio Cuanza, no valor da moeda na Europa, em encontro de Países de Língua Portuguesa. A situação política piorou. Dá-se um jeito. A questão é mesmo dinheiro. Ele pode vender os móveis, fazer acordo no DP. Tem o apartamento. Acho que deve dar, pensa. - Quem vai atender? O editor está ligando de casa, pergunta se a página três foi fechada. Ele diz que sim. As vaidades ficaram nos textos. O pessoal foi esquecer as diferenças no bar da esquina. Ele pode encontrá-los quando terminar. Não vai. A colega das costas e ombros insiste, diz que ele estava precisando espairecer. - Quem sabe eu vá.
Quando fala, a moça abre uns lábios muito vermelhos, faz gestos largos que os seios acompanham. Ele diz que nunca foi muito social. - Não que não goste de convívio, pelo contrário. Enquanto escuta ela meneia a cabeça como quem diz Entendi. Ela não insiste mais. Sai balançando os quadris e ele a despe devagar, beijando-a toda, e a possui. A porta bate e ele retoma o trabalho. Apaga as luzes ao sair da sala do Past-up. Segue a silhueta de longe pelo corredor. Faltam uns minutinhos para a meia-noite.
Fecha a Bíblia. Oleana saiu faz uma hora, mas seu cheiro persevera na sala. Sem ela por perto ele pode trazê-la à distância que quiser, levá-la aonde quiser; fazê-la rainha ou escrava. Madrid no quarto. A hora do almoço. A sesta depois. A cidade dormiria. Um e outro carro — os últimos por um tempo. A face dura de um Cristo de lábios ressecados o encara na quase tarde. Um silvo parece vir da nuvem. A caderneta no bolso do blazer. Como não achasse a caneta, ao ver um lápis sobre a estante, foi naquela direção. Respirou fundo ao passar em frente aa janela. O lápis cadenciado no papel, seus esforços tornavam-se caracteres de uma carta que o correio devolve porque o destinatário se mudou.
Fome forte pelo fim total do efeito. O haxixe é parte de uma madrugada longínqua. Aproximou-se do armário onde viu batatas. Sua sombra na parede vence limites. Acaso haverá uma máquina de escrever na casa? um processador de texto? Os eventos históricos o ultrapassam, como a sombra. Ela diz que não era para ele saber. Não queria que decidisse ficar a não ser pelo amor. - Você está grávida! É nosso filho, não poderia ter escondido isso de mim. Ela diz que ia contar. Ele diz que a ama. Ela pergunta sobre os planos dele para depois da safra. - Vai voltar para o jornal? Ele pergunta se ela iria junto. Ela responde. - Você não ficaria?
Começou a chover. Deveriam falar com o Sr. Jean agora? Talvez seja melhor esperar.
A saúde frágil apesar da aparência. Trabalhava duro na panha. O aborto previsível. O lago, os pássaros, os cheiros — ele correu para a panela, espetou o garfo em duas batatas, diminuiu o fogo, colocou um pouco mais de água. Em Angola não o aceitaram como cooperante. Disseram que ele estava muito mal informado. Ele insistiu: tinha pensado que a marinha mercante estivesse contratando. O homem perguntou se ele veio sem checar essa informação. Ele respondeu perguntando quanto a outras vagas de trabalho. Até existem, disse o homem mostrando alguma simpatia; mas que ele acreditasse: era melhor desistir dessa idéia. Mas eu não posso voltar para o Brasil, confessou Andrei. - Quero trabalhar em Angola e fazer algum dinheiro e ir para a Europa. - Não quero nem ameaçar-vos nem acalmar-vos — disse o homem. Se o brasileiro queria isso, era melhor ir para o sul e lutar. - Com licença, senhor. Aqui é Maianga? - Sim, estamos na Maianga. - O senhor conhece uma obra aqui por perto onde estejam contratando? O homem disse que havia obras por toda parte em Luanda, mas era melhor desistir dessa idéia. Andrei então se lembrou do que o outro lhe dissera. — Senhor, e como eu faço para chegar em Cuito Canavale?
Luanda. Das acácias e embondeiros. Ela atravessara a rua no sentido do automóvel branco — sábia e indiferente, ignora o homem que a olha fixo. Portuguesa criada na capital angolana conheceu o marido no golfo de Nápoles ao som de Caruso. Antes de casar certificou-se do clima do soldato innamorato no Teatro di San Carlo, não as vielas onde à janela as mulheres estendem roupas de varanda a varanda sob as bênçãos de Santa Lucia. Arranjou-se além das expectativas. Uma casa em Nápoles, onde o marido trabalhava. Saiu da universidade para adornar com sua elegância e cultura as relações sociais de Franco Roseto, que a dispensava de outras relações. E cada vez mais escapava para um fenômeno anterior, de sua adolescência: Francesca, a que estava disposta a se envolver sob o sol com ternos vagabundos.
Viera visitar os pais, portugueses vivendo em Angola, graças à influencia de um tio que mexia com diamantes. Eles ainda moravam em Alvalade. Não fugiram; não se tornaram "retornados" embora retornassem a Portugal sempre que lhes aprazia. - Depois da ponte. Seguindo a vala do rio Cambamba para a jusante até cruzar com a Avenida Pedro de Castro van-Dúnem. - Obrigado, senhor. Tenha um bom dia. Na avenida, Andrei a viu pela primeira vez. Era a tarde do dia em que vencia seu visto. Ela saía do banco. O guarda de trânsito com capacete de caçador sobre uma armação circular pintada de vermelho (uma pianha, alguém lhe dirá mais tarde) sinalizava para que ela passasse e, distraído ao contemplá-la por trás, uma buzina o trouxe de volta. Ele e o motorista discutem em língua estranha apesar das palavras portuguesas. Não era bonita. Tinha, digamos, uma beleza nascida um pouco da elegância, outro da serenidade, e um tanto ainda da sensualidade. A idade deles regulava. Tailleur caqui de gabardina, cintura marcada, bainha italiana, scarpin preto. Rica, estava claro. Que olhar persistente, pensa ela. Deixa-me nua. Todavia um olhar triste. Não é angolano. Nem parece português. Lábios finos. Os olhos nunca olham diretamente para o que vê — lentos, ligeiramente estrábicos. Uma aliança exagerada. Ela parece respeitosa ao escutá-la. Entrou no carro e antes de dar a partida percebeu-o perscrutando-a, desolado. Talvez tivesse sido melhor ter continuado no jornal, lutado pela carteira provisional que tinha o mesmo efeito que o diploma. Talvez a tenha deixado se afastar demais antes de encará-la. Doravante será a estranha que passou, mulheres que poderiam ter sido na vida de um homem e não foram. Por timidez, por unilateralidade, por soberba, por inadequação, por martírio. Ela olha para ele com o tipo de olhar dirigido que se declara inocente ao captar tudo à volta. O sorriso não deixa de possuir os lábios mas tampouco a libera. Um brinco em forma de folha responde aos mais leves movimentos de cabeça. Grafite no muro enquanto ele caminha. MPLA. Aproxima-se. - Com licença. - Para onde você vai? Sabiam que nunca mais. Que tudo o que tinham de verdadeiro estava — Perdido? Talvez. Então se permitiram. Para ele, perdido em Luanda, perdido onde fosse. Dependente. Ou aceitava a profissão. Ficar rodeando autoridades corruptas em busca de uma declaração mentirosa em primeira mão. Comentar a declaração mentirosa como se fosse alguma coisa de suma importância. Fazer espetáculo da dor alheia. Aí descobriu.
Não era o diploma. E mais. No mercado literário seria igual. Tarde demais. Não reencontrará a inocência perdida. É só fazer as contas, como se diz, na ponta do lápis. Então os dois. Não têm mais alternativas de arbítrio. Querem uma vida que não existe e sabem. Podem enfim ter aquele caso. Pernoite em Mussulo. Uns vinte minutos de barco, talvez menos. Palmeiras flutuam na penumbra lunar. A areia já lembrou ouro; o mar, é um espelho. - Mas não se esqueça de que é um país destruído. Todavia, onde mais existe um céu assim?
Em Lisboa apenas o tempo de marcar um novo vôo. - Campo Grande, por favor. Remaram no lago. Na mesa da esplanada tomaram uma xícara de café pela metade, uma bica. Ele diz que assim mal dava para sentir o gosto. - No Brasil as chávenas vêm cheias. Ela diz que é só pedir bica cheia, amor. O metropolitano para o Campo Pequeno. Na praça, ela se aproxima de um grupo de jovens num banco de jardim sentados no espaldar. Pede três pintores — são trezentos escudos de haxixe, explica. - Você fuma? Raramente, ela responde. Mas agora está a lhe apetecer viajarmos. Três quadrados de uma ganza escura e maleável. Sentam num outro banco mais próximo da praça de touros. Ela faz o cigarro e fumam ao som da conversa dos garotos. Em cada frase inserem um "pá", um "caralho" e um "foda-se". Adoro o submundo, diz Francesca. Aproveitam os mesmos bilhetes de metrô. - Não é ótimo transgredir, my dear? Descem na estação dos Restauradores e sobem as escadas para a avenida da Liberdade. Também aqui Foda-se e Caralho. Uma menina esmurra o peito do homenzinho careca. -E aí ó pá? Fodeste e não vais pagar? - Essa não tem chulo, explicou Francesca. Outro táxi na Primeiro de Dezembro em frente ao teatro. -Bom dia. Algés por favor — disse Nestácia ao motorista. Ela queria que ele conhecesse um barzinho onde costumava se refugiar para ler quando era adolescente. Comeram pastéis de nata com bicas duplas. Ela lamenta não haver mais tempo para voltar de eléctrico. - De quê?
- Aquilo. - Ah, o bonde. Ela estava louca para andar de bonde. Pegaram um terceiro táxi até o aeroporto e depois o vôo para Paris. - Adoro Lisboa - disse ela na poltrona do avião. Um problema de teto e o atraso na descida. Entre Montfermeil e Meudon, manchas verdes intervalam aglomerados de casas. Fleuve la Seine. O impacto da pista. Deixaramos as bagagens. Rungis. De mãos dadas, os lugares interessantes da cidade. - Aqui. - E aqui. - Ah e ali. Valia como pontos de referência. Vai que a gente se perca, diz ela. Ou que ela precise deixálo sozinho. Marca um local de encontro para essa eventualidade. Abre um mapa que não tem paciência de consultar. - Monsieur? Rue des Francs-Borgeois s'il vous plaît. Na troiseme a gauche, ela virou para um compromisso que ele não se deu ao trabalho de questionar. Há um momento em que as cidades se abrem ao estrangeiro mas não todos percebem ou não chegam todos a esse ponto — ruídos de carros, vozes anárquicas, os pássaros do caos — tudo se faz novo e só a coisas velhas se é estranho. Esperando a hora do reencontro marcado ele tentou relaxar e aproveitar a oportunidade. Os prédios dourados, como se ardessem. O negro e o marroquino discutem com gritos e grandes gestos na rua estreita. O rapaz de bicicleta com um pão nu no sovaco, um clássico. Clochards pedindo dinheiro — para mim, diz Andrei para si mesmo, essa é boa. Aquele outro dá um show ao longo da avenida. Pobre homem. Esses babacas rindo desse jeito, filhinhos de papai. O argelino quer passar haxixe, espera-o à noite no Quartier Latin. Que idioma é esse? Mundo o quê? As mulheres olham para ele com um misto de atração e desdém. Seguindo a sugestão de Francesca ele deu uma volta antes parar no café da Praça Saint-Michel para espera-la. O garçom palitava o dente diante da arquitetura sofisticada do prédio em frente com o olhar tedioso do hábito. Atrás o homem do balcão lavava algumas xícaras, distraído. Quando Andrei levou a sua à boca, viu a mulher levando o celular ao rosto e reconheceu o DynaTAC8000 da matéria recente do suplemento
de tecnologia que revisava. O relógio na parede iluminado pelos lustres alaranjados marcava vinte para as três. A luz do sol no Sena tinge de ouro o teto do barco de turistas. Uma esquina num V sem ponta. Pombos, bicicletas. Cercas de ferro ao longo de uma rua que dará nessa igreja. Toldos vermelhos. Uma livraria. Música num acordeom. Um cão, um cão branco. Folhas pelo chão, folhas em pedaços em Portugal se diz partidas. Paletós dobrados em braços, um rapaz correndo. Outra ponte. Cintilações da água do rio. Limo nos pilares. Um rouge-gorge. Pichações. O arco. Latas de cerveja, grafites bêbados. Famille o quê? Luz obliqua entre os túmulos. Nem nos shows dele haverá azáfama assim. This is the end. Um busto de Jim —Je te aime toujours. Entre Yves Montand e Joachin Murat. Pedra e vento. - Estou cansado. Você não? - Cansar-se em Paris? Não é possível! É possível, pensou ele. - E estou a me apaixonar — disse ela. - Sempre ouvi dizer que Nápoles é a cidade mais charmosa da Europa. - Nápoles? - Gosto da Itália. - Pois iremos a Roma! - Franco não tem um escritório lá? Estavam em Roma havia duas horas. Era a exuberante tarde de uma terça-feira. Nas vitrines da rua Condotti refletidos. - Meu Deus, as coisas aqui estão mais caras que nos Estados Unidos! Deixaram a bagagem no hotel e sairam. Até o café na rua Fratinna não foi um longo percurso. Paris é para meu lado fresco, responde ela; Roma é calorosa, para meu lado emocional. Os italianos, completa, são todos gente boa. E riu. - Exceto o Franco — disse ele. . - Ah, como adoro Roma, amor! Chi la conosce la ama moltissimo! Os italianos são como vocês, calorosos. - Franco não é italiano? Ela diz que, bem, Franco não é italiano de verdade, é um acidente geográfico; e Trieste é uma cidade que apenas fica na Itália: uma bela cidade mas sem identidade própria como toda cidade fronteiriça — não é assim no Brasil? Caminhos de vinhedos, sanduíches ao longo do Tibre. Francesca renova a imagem de menina pelo calçadão da piazza San Lorenzo. Ela jubila num rompante.
- É maravilhoso. - O quê? - O fascínio romano nasce no hálito de suas fontes. Francesca encontra uma senhora simpática, velha amiga que morava em Foggia. Abraçaram-se efusivas. - Passato un anno! Um café em Trastevere. O dia útil termina mas não os misteriosos encontros. Deixa-os um instante para fotocopiar uns documentos numa copisteria próxima. - Ela disse que você tem uma ótima conversa - Quase não falei. Que melhor interlocutor? Ele apanhou um papel com entrevistas que fizera, no aeroporto e no avião. Começou a rabiscar um fio condutor para o artigo. - Preciso de um complemento que mostre outro ponto de vista. - Quanto? Tantos dólares. - Quanto em liras? Então ela abriu um sorriso radiante que guardava para momentos especiais e parecia o sol nascendo entre seus dentes. Olha só, disse ela, não se deixe impressionar, Andrei; são muitos zeros, mas na verdade é muito pouco para um trabalho assim. - Francesca... — disse Andrei baixinho. Ela o ignorou e continuou fazendo contas. - Claro que é muito pouco, fumamos a metade, estás a ver? - Francesca — intervim. - Deixe que a gente se acerta. - Ok ok... Na pior das hipóteses seriam umas tantas porções de haxixe como aquela.
Enquanto esperava Oleana, arrumando a mesa para o almoço, ele via Woody Allen e Diane keaton na TV do quarto romano. Francesca dissera que voltaria para passarem juntos um tempo e procurarem um apartamentinho em Lisboa para Andrei fixar residência. Ele sugeriu esperá-la em Veneza. - Tudo bem.
Ela estava mesmo querendo ver um espetáculo no Fenice. De Veneza a Trieste será um pulo.
No dia seguinte ao balé, eles se despediam. Ela insistiu para que ele ficasse num hotel. Ficarei melhor entre os mochileiros. Ela compreendia, mas o Franco tem relações com políticos contrários a esse tipo de turismo. - O Franco - suspirou ele. - Não fique assim - disse ela. Tudo ia terminar bem. Por agora, que se divertissem. Para isso ela se casara com um homossexual rico. - Vamos mudar de assunto. Então você conhece Friul-Veneza Júlia? Palmanova, Udine... Trieste?
Foram dias bons, pensou Andrei ao esticar as pernas. Apesar de tudo, foram dias bons. Alisou a capa plastificada, como se acaricia uma mulher. Levantou lentamente o livro até diante dos olhos. Começou a passar as paginas inquieto. quand je n'allais pas errer seul dans Venise.
Francesca acabara de partir para Nápoles. Ele subiu escadas e desceu. O homem com acordeom acena com a cabeça. Dobrou uma ruela. Um leão de pedra. No colo o gatinho ronrona. Um bêbado dorme ignorado. São Boldo. Casas velhas e crianças pobres. A praia vazia. San Zacaria, o vaporeto. A mochileira permanece arrumando suas tralhas. Um determinado nó resiste. Posso ajudá-la? Não, obrigado. Ele disse que era mochileiro quando ela ainda estava no jardim de infância e era perito em nós. Eu só queria ajudar Não quero sua ajuda, merda! Desatou a rir. Só faltava essa, nostalgia hippie! O que ele continuava fazendo a seu lado? Ela já tinha dito: não quer porra de ajuda nenhuma! Cercas vivas. Além, por detrás dos telhados, no azul se espalha a fumaça negra de um cargueiro. Ele pergunta a idade dela.
Era um crente querendo converter a pecadora? Só podia. Mas ela é autêntica e não se trocaria por mil evangélicos hipócritas! Ele tem dificuldade para entender o que ela diz e teria mesmo se falasse português, tal o modo pastoso e arrastado com que falava. Não sou de nenhuma igreja não, diz, só queria uma amiga. Antes que terminasse a frase ela está gritando. Quer saber? Não estava em nenhum jardim de crianças quando você se aperfeiçoava em nós! Quantos anos? A idade de pessoas como eu se mede em séculos. Alivia o suor num largo movimento da mão direita. Inclina o rosto, chora. Ele diz: Ei, tudo vai ficar bem... Acaricia os cabelos dela. Ela diz: Olha aqui, te odeio. Odeio todos os homens. Pode esquecer, não vou me deitar com voce, não de graça, de graça só deito com mulheres!
Milão testemunha a decadência. Olhava o cliente e não conseguia mais ver o dinheiro e o que fazer com o dinheiro, como no começo. Katia, a infeliz, a que não tem mais caminho de volta. Os braços manchados, corroídos de dor. Então chegaram ao quarto, ela e a companheira de sonhos, de vida, de agulha. As mãos fracas se procuram. A cama no meio do quarto, e os homens no meio das duas. Não me chamem de lésbica. Me chamem de puta, poetiza e puta. Ela, Katia, e sua amiga querida. Quem quer que fosse a outra, sua amiga mais querida.
Só com mulheres! Tornou a rir enquanto permanecia chorando. Aliás você não tem cara de quem possa pagar nem cinco minutos com a deusa Katia! Gargalhou. Cenas assim não deviam ser incomuns pois a maioria das pessoas passa e os ignora. O que está havendo, gata? Inconfundível era o sotaque para quem tivesse ouvido uma angolana falando inglês.
Dez anos antes dois homens estavam agitados embora imóveis dando impressão que é apenas mais uma discussão de negócios no centro de Milão. Você não está cumprindo nosso trato, Antonio.
Trato? que trato? Viciar a menina, voce bem sabe. Para isso estava ali naquele lugar naquele dia naquela hora. Ó Massimo foda-se! estou a gostar da chavala! o trato está cancelado. Você não é capaz de gostar de ninguém. Foda-se pá! meu jeito de gostar não é da sua conta! Se gostasse não teria levado a coisa tão adiante. Você está é com ciúmes porque ela gosta de mim. Só está contigo por causa da droga. Foda-se! Caralho!
Não pá ela faz o que gosta e adora dinheiro e, se vai com muitos, apenas comigo ela goza. Tanto que precisa de mulheres... Deixo-a livre. Ela adora ser livre. E as drogas? Estão acabando com ela, você não vê? Não fui eu quem fez a vida humana ser curta. Mas a dela será intensamente vivida. Você está louco. O pá basa foda-se você é que iria lhe dar o que ela precisa? Um fodido de um escravo do trabalho? Antonio se virou e pegou o bonde alaranjado como se fosse um turista qualquer e deixou Massimo falando sozinho.
Ela no começo dizia antes do sexo que ele iria acabar se apaixonando depois não vá dizer que não avisei. E ele mal ouvia ,atônito com a beleza da nudez fresca que aparentava ainda menos idade, peça após peça e recusa após recusa. Ele nao sabis se tinha a ver com necessidade de dinheiro ou medo ou uma inocente perversidade.
Antonio não foi órfão. Não passou por uma infância difícil. Ao contrário. Nascido em bom berço, teve tudo o que quis. Demorou mas enfim seus pais admitiram. Ele não tem mais jeito, querida. Bobagem, dizia a mãe, é só uma fase. Quando sentiu alívio ao deixar Antonio a casa, ela deu o braço a torcer. O pai se refugiou no quarto. Meu filho, lamentava, meu único filho. Ali estava ele, quase às margens do golfo. - What is happening here? As pessoas param, mantém uma distância prudente. — Che cosa è? A luz do sol é a mesma para os três, os reflexos do estilete se repetem no canivete. Ameaçador, Antonio avança. Um brasileiro? Abriu o canivete. Foda-se! caralho! Andrei tira o estilete do bolso da jaqueta. Achava que ia assustá-lo com esse chino ridículo? Era um instrumento de trabalho. Nada que devesse assustar. Foda-se! Caralho! Nunca mais falta de diploma, livros sem publicação. Enfia esse chino no cú! António — intervém ela. Ele fizera um movimento, a lâmina de past-up a um braço de seu pescoço. O pá, te basa! O corpo dela exala um cheiro forte; o seu próprio também. Bem, se quisesse dar uma, Antonio fala, aí a conversa será outra. O soco explodiu no queixo de Antonio. — Foda-se! Isso já não era tão comum. As pessoas ao redor paravam por causa da cena. Do chão, António amaldiçoa. Diz que Andrei é um gajo morto. Avança furioso, Katia entre os dois. Os policiais abrem caminho. Luzes girando, uma sirene. Katia empurrada. — Foda-se! A lâmina rasga o ar. Ela sangra, pobrezinha. Agora pense: há um fato realmente novo. Polizia! Pagarão caro, não sabem com quem estão mexendo.
Os policiais não entendem, ou fazem que não. Os turistas voltam ao passeio; os nativos a seus afazeres. Acabou.
Havia um bosque próximo e uma lancha voava diante deles. Além, uma cúpula. São os arredores de um lugar chamado Giudesca, Giudecca, algo assim, se ele entendia os circunstantes. Lamento, disse ela. Ele não respondeu, sorriu. Fez que não, não tinha importância O que você vai fazer agora? Vou voltar para Muggio, respondeu Kátia. Ah. Minha cidade. Muggio... Muggio é longe de Trieste? Muggia é que é perto de Trieste. Minha cidade é Muggio, como quem vai para Verona. Sim, voltará a Muggio. Retomará a vida de onde foi interrompida há dez anos quando conheceu Antonio. Queria haxixe. Experimentou heroína gratuita. Ele estava encantado. Então lhe propôs riqueza. Por falar nisso, Katia precisa um pouco de pó agora ou enlouquecerá. Um hotel. Trieste esquecida.
A sombra sobre a colcha. Onde deixara seus cigarros? Você não viu? Divisões de mochila freneticamente vasculhadas. Poderiam ir tomar um café. Contariam um ao outro suas histórias. Os olhos dela são tão claros... Então ela mostraria os poemas que escrevera em sua agenda nova. Tome um dos meus. O quê? — Você não queria um cigarro? — Ah. Por favor.
Diante da casa ao lado, coberta de hera, uma caminhonete está estacionada. A noite outonal fere com insuportável beleza. É que às vezes fico sentimental demais, diz ela. Caso seguissem dali no sentido apontado iriam parar na França. Mas esse dedo apenas quer mostrar onde há um lugar que vende leite e pão. Por enquanto, vão dormir.
Quando encontraram o prédio da polícia, ele pediu que ela prometesse. O que perderia se tentasse? No visor de seu relógio os ponteiros estão fora de foco. Tenho medo, ela diz. Passaram as primeiras quarenta e oito horas passeando, sem romance, apesar das reticências aqui e ali. Em todas as ruas passavam por mochileiros, em trailers ou carros e até pequenos caminhões; e também a pé, naturalmente. Quando os olhares se cruzavam, sentiam-se compreendidos. Voltando ao quarto, as coisas espalhadas retiravam a impessoalidade. A primeira coisa que ele fazia era conferir o conteúdo da bagagem para ver se não faltava nada. Odor quente de roupas que o acompanhava como uma aura de santidade. Chegou à janela e viu o homem preparando o vidro para o que ele pensou seria um vaso mas ao final se mostrou um cavalo. Então se aproximou de Katia e a tomou pela mão dizendo: Olhe só. Mas ela não olhou. Lágrimas represadas enchiam a parte inferior dos olhos dela. Na manhã do terceiro dia pediu para ser amordaçada. Seus gritos poriam tudo a perder. Na mochila um velho vestido largo. Um espírito a arrasta para o banheiro. As mãos na borda da privada, os polegares para dentro. Ele diz: Posso fazer alguma coisa? Poderia achar e devolver a minha infância? Ela sinalizou para que ele tirasse a mordaça. Vômito pelos braços. Deus misericordioso! Ela tenta voltar para a cama curvada sobre sua sentença. Na cama, abraçou com força os joelhos. As solas dos pés e pontos de pressão. Os dedos se contraem; depois ela aquieta. Não será capaz. Ele tampouco. Mas e a codeína na mochila dele por causa da gripe pouco antes da viagem? Uma cápsula para cada um. Ele se multiplica em do-in nos pulsos e na nuca de Katia, na rígida região dos ombros. Dá-lhe banho. Sou do Espírito Santo, ele responde. Quase um pentecostes.
Estão com as mãos livres agora pela primeira vez pelo que ele se lembra desde que se conheceram. Sem mochila ou nós ou estiletes. Um gato. Um cartaz descolado. Folhas. Poças. Então ele retira a correia do relógio, as fitinhas e as miçangas. Ela é quase da altura dele, mas agora está maior A respiração se altera de novo e de novo. Desse jeito. Até o sexto dia.
O sono nas feições dela. Lentamente a noite avança e ela dorme. Ele se recostou a seu lado. Ela segurou a sua mão. Silêncio. A maciez alta do travesseiro lhe esconde o rosto. A moça de Muggio. Acima dos cabelos a guarda da cabeceira se entrelaça em palha. Houve aquele momento de cuja espécie são feitas as decisões mais nobres.. Ele a olhava e disse baixinho que ela se livraria. Aproxima o olhar. A exaltação cresce e o desejo se consolida.
Acordou sobressaltado. A luz do sol lá fora e todos os objetos dentro do quarto tinham seu duplo cinzento em meios às cores vívidas de Giudecca. Os móveis do quarto saíam de si mesmos e ganhavam vida como num desenho. Ela acabou de acordar também. Queria dar uma volta. Em Veneza há um lugarzinho ao lado do canal, em frente do relógio da igreja, quase junto às escadas. Comidinha boa, caseira. Lembranças de infância. A ladeira que subia era a mesma que descia produzindo efeitos inversos nos que subiam ou desciam em meio aos toldos coloridos. Os duplos cinzentos se movimentam agora no chão, subindo e descendo. Ela se detém nos doces.
São cinco horas. Amanhece e há um motivo para se levantar. A morte não a atrai agora nem a vida a assusta. Ele abre um sorriso e toca a testa de Katia como se ela fosse de louça Você está com uma aparência muito boa, ótima na verdade. Se ele estava dizendo, ela acreditava. Então ela o tocou, não como se toca um amigo. Talvez como a um irmão mais velho. Sim. Uma agradecida irmã mais nova. Ele escreve. Ela torna a se deitar. Faz-se silêncio como os silêncios que antecedem, depois dos largos, os alegros de Vivaldi.
Ela diz que se sente estranha. O quarto parece estranho. Um lugar como esses que a gente sabe que conhece embora nunca tenha estado lá. Está feliz — é possível? Está viva. Sentada na cama.
Nossa! Pergunta se o relógio estava certo. Ele faz que sim. Quase um novo dia. Estou ótima. Estou me sentindo realmente muito bem. Disse o que ele espera ouvir. Abraçam-se. Não saberiam dizer o que sentem, por isso se calam. Sem a droga tudo se tornará mais fácil. Ela tentará se manter limpa cada dia, como os anônimos. Era mesmo o único jeito — concorda ele pensando em como se tornaram próximos e como ela estava próxima, cheirando a sabonete, com sua coxa encostada na eletricidade do braço de Andrei. A renda brotando como um sol de cós da bermuda. Foi assim desde sempre. Ele nunca cresceu o bastante. Nunca acordou completamente.
A paisagem transitou entre tons de azul. Mar e céu intervalados pela faixa amarela. Ainda é Veneza? Sim, acho que sim. Mas diga. Você é homossexual? Por quê? Bem. Me viu nua e me deu banho. Dormimos juntos.
Alfazema. Quando era menina no sul da França. Uma perfeita aristocrata... Azulíssimo mar de lavanda. Poderíamos fazer uma viagem, pensou ele, depois de comprometidos. Disse a ela que estava enganada. Mas a gente acabou de chegar do Inferno e não há mais trens para o Paraíso hoje. Acho que senti o trem, disse ela.
Na janela um ramo de flores brancas se abria e o sol nas copas em frente alternadamente aparecia e era ocultado. Pássaros se pegavam e despegavam e ninguém poderia imaginar que ali fizessem ninhos, revelando antes a algazarra alguma coisa lúdica e passageira. Katia moldava um vestido de cetim godê branco que usava quando saiu de casa. O corpo mais cheinho do que dias atrás. Estava em pé, direita, ao contrário do tempo recente, sempre curvada como uma idosa.
— O trem está na estação mas não há mais horários. Imagino que você esteja exausta. Você é muito bondoso. Realmente não havia mais trens.
Depois de passar a manhã ao sol e o tom róseo se sobrepor à palidez doentia, Katia se arrumou, excitada. Iria finalmente reencontrar a mãe. Ele pergunta se ela está zangada. Ela diz que não. Tanto que gostaria que fosse comigo, Para ser apresentado como um bom amigo? e a seus amigos como um novo? Entre eles um namoradinho de adolescência e um novíssimo flerte em cujos braços se jogará amanhã. Ele podia ouvir os risos e as lágrimas e a noitada de comemoração e ele acabrunhado num canto. Não, Katia. Mas obrigado. Ao menos me deseje sorte, disse ela.
Recebeu a primeira carta ainda em Veneza. O remetente dizia Muggio-Mi. Ela havia refeito a vida. Começara a trabalhar e estudar. Noutra carta, já para a posta-restante de Lisboa, está nadando e viajando novamente e tocando num clube de jazz e batendo fotos para uma revista e escrevendo uma peça. Tocando a vida. Pretendia fazer esportes de inverno.
Respirou fundo e enfiou nos cabelos os dedos que haviam dobrado a carta. Os mesmos dedos dias antes introduzidos nos cabelos de Katia. Ele passou as mãos pelos braços como se pudesse retirar do corpo o mal-estar. Ouvia nitidamente os sons à janela como se de súbito tivesse recebido a faculdade da audição. Adormeceu segurando a folha.
A campainha atravessa a tarde entre as paredes. O ruído do elevador subindo, após o soco, tornou-se a cantiga dos cabos brincando. Depois a porta da sala destravada rangeu, metálica e definitiva, e eles ficaram se olhando quase surpresos. Que cheiro bom! — exclamou ela. A timidez que o vidro da janela refletia o detinha apesar do cântico de primórdios e ecos de oceanos. O cheiro dela quando passava. Pergunta se ele quer tomar alguma coisa. Hun? Se ele queria vinho tinto ou verde. Ele pergunta se ela quer mesmo almoçar agora. Na verdade ela não estava com fome mas a comida ia esfriar. Além do mais o cheiro já começara a abrir seu apetite. Talvez ele esfriasse também. Calma. Temos a tarde toda e — Tarde toda que nada. Comida se requenta. Ele adorava comida requentada. Eu não — disse ela num tom de raiva contida que se alarga pelos gestos e cria tiques no olhar — Onde está o menino comportado que deixei aqui de manha? Viajou, disse ele. Voltou ao Brasil. Esteve na África. Voou até Paris. Passou por Roma. E agora há pouco estava num maravilhoso idílio em Veneza, interrompido por uma ridícula falta de trens. Ela estava preocupada. Você se drogou na minha ausência? Respondeu altivo: Olhe nos meus olhos. Ela estava olhando e garantia que isso em nada ajudava. Queria que eles sentassem e conversassem. — Mentira!
Sim. Era mentira.
Ela jogou a bolsa na poltrona e deu três passos. Há uma luta de toques febris nos corpos unidos e desmascarados pelo mesmo beijo. Refletidos na faca (fiapos de cebola no corte). Ele dá uma olhada na direção da pia e se orienta. Ouvem o som tremido de metal no mármore. Ela enlaçou seu pescoço e cobriu os lábios de Andrei (Ja fucks mig så !). Foi um beijo longo e cheio de alternativas. Ofegante ele fez o vestido acompanhar o braço que a envolvia. O quanto de espécie? Arbítrio algum. O outro braço dobrou os joelhos de Oleana e ele a pegou no colo. Encontraram o caminho do sofá sem interromper o beijo, ouvindo sandálias ecoarem no assoalho. Davam a quem porventura olhasse a impressão de uma coreografia bem ensaiada. Os cabelos se misturando numa única massa amarelo-escuro. Andrei se confessa, a respiração o reconhece pecador diante da divina anatomia. Ela liberta o pulsar como uma hóstia. Ele a contempla em suspenso. O tapete marcado pelas pisadas. Ele pensou ter visto o pôr-do-sol na janela mas não, não era isso. Era uma força da natureza e ele um homem, talvez menos, apenas a virilidade avulsa à espera. A nuvem sombreou a sala. Ele se lembrará disso como de um espetáculo no qual os atores existem apenas em função da peça que representam; e seu outro ser — alheio ao corpo ator — deduzia que a realidade não estava ali mas em um depois mais cedo ou mais tarde. O vestido amarrota-se nas costas de Oleana e Andrei desce a trilha onde o umbigo era referencia, seus dedos brincam com o elástico. Um cheiro forte e doce. Um toque que se demora. Uma profundeza esperada. Alivia o aperto até restar a marca estriada na cintura ¡Sí! ¡Sí! O outro dedo é como um homem preocupado numa sala. Jag är din tik nu. Que ele não estragasse tudo com carinho. Ele prova um gosto de si mesmo. A cada descoberta latejava, latejava mais a a ponto de — O arroz! Um cheiro de queimado se sobrepõe aos demais, a agua transborda sobre o ferro enferrujado; com o sacrifício do operário ao som do despertador, ele segurou o rosto de Oleana. Levantou e tentou andar tropeçando na calça. Conseguiu chegar junto ao fogão e desligou a chama. Ele podia jurar que tinha desligado antes. Ela podia jurar que ele só a andara atiçando. Contemplou-a descalço e retirou toda a calça antes de voltar.
Ela disse: Estamos juntos? Apenas dormimos na mesma cama. E é tão bom. Ademais, ninguém proibirá se acaso você quiser vir. Não, obrigado. Vou ver um filme, disse ele. Que ela fosse sossegada. Quando voltar, não estará nada mudado em nossa cama, não é? Como você mesma disse, é tudo o que temos, disse ele
De vez em quando o homem diante dela desaparece, transformado em borrões móveis. Em nenhum momento ela pensou em tanto, mas seu gemido a traiu. Abre os braços de Andrei contra o tapete depois solta, mas continuam abertos, vendo ele mundos a que o sol ibérico não tinha acesso. Ela sussurra o nome dele, depois grita. Andrei. Assim tão limpo, tão liso, quase uma criança. Recolhe-o agora sem o lapso do outro jeito. Às suplicas ele se apressou. Um rio brutal onde nascia e sereno no leito em Oleana preparado.
A seu lado na cama ela dorme. Quando anoiteceu parecia uma chuva: carros no asfalto separavam os níveis de realidade. Sonhos que se confundem, preguiça ou receio de abrir os olhos. Vizinhos chegando e batendo portas, chaves girando. E vozes. E vozes. Ele saiu primeiro da coberta e caminhou pelo quarto como se procurasse alguma coisa. O ruído do prédio assim como cresceu agora amaina. Ele voltou a se deitar e olhou a mulher adormecida, encolhida, as costas expostas. Depois dormiu de novo.
A noite insone, o haxixe, Oleana e o almoço — adormeceu profundamente. As persianas batiam. Um miado atravessou a música sobre o casario. Pombos repentinos tocam e abandonam o parapeito. Oterapiia cheiro forte. Lentamente, o amarelo cintilante cedeu primeiro a um alaranjado pálido e em seguida ao azul escuro em que quinas e portas negras se destacam. Súbito um outro caminho, ladeado de árvores. Acordou sobressaltado, tentando discernir quem era. Ou o quê. No rosto de Oleana, a noite nos lábios entreabertos. Nem num nem noutro mundo o coração de Andrei se acalmava. Não havia mais sonho ou despertar que o valesse. E ela sonha com tempestades. Está nua exposta aos trovões e seu namorado bate na porta. Adiante uma sombra. Depois ela conversa com um estranho, num elevador, acerca do tempo. Suas feições tem alguma coisa dura, militar.
Andrei quase pegara em armas quando pouco mais que um garoto mas não era ainda um homem e as tinha abandonado sem usar. Costumava lanchar com seus colegas de redação em frente à baía, encostados num tronco à sombra do verão carioca, diante do prédio do jornal, perto de árvores enormes. Há uma loja na esquina. Abriu semana passada. Importa vinhos de mais de dez países. Dois dos homens eram antigos andarilhos. Quando se está em cidade do interior faminto do lado de fora de um muro, o chão fica coberto dos frutos de repente e o mochileiro mata enfim a sua fome. O cheiro, entendeu, era de manga.
Teve um primeiro contato visual com Rachel no trem de Buenos Aires para Santa Fé. Havia dureza em seu rosto mas logo se mostraria falsa; era, ao contrário, terna como uma menina. As sobrancelhas como que escovadas. Pálpebras lisas e cílios curvados alongando seu olhar. Agora Oleana está no metrô e olha para frente mas ninguém sabe para onde olha por causa dos óculos escuros. Pode perceber de soslaio o rapaz a seu lado enquanto a voz canta o nome da estação. Diluída nos alto-falantes Joan Baez enche a comunidade de Rosário, como a voz de um metrô. Mas se conheceram mesmo na Ciudad de los Ninos. Ela estava com uma sobrinha e ele escrevia um poema quando o agarraram. Exigiram que dissesse o que os versos significavam. Ele perguntou se gostavam de poesia. Os dois riram muito quando Rachel explicou. Fizeram amor no dia 1o. de maio de 1974. A questão entre Perón e os imberbes no rádio, pano de fundo. Namoravam entre pássaros, borboletas e abelhas. |Folhas caindo das árvores. Nunca mais o vi. Dizia coisas engraçadas e era muito meigo. Sentia muita falta do feijão. Eu sabia que era virgem pois me contou. - Como você consegue manter esse cheiro gostoso de homem saído do banho? Um homem cheirando mal é quase tão repugnante como um homem sem cheiro. Ela dizia coisas inesperadas pela alameda que serpenteava até o portão. Flores durante as passadas e à tardinha sombras argentinas sobre a casa. Onde estará?, pensou Rachel, ao ouvir o baque no chão. 1988. Ainda há de ser ainda um bom ano.
Cheiro de manga quando deitados na rede da varanda. Que amizade! Não bastante. Nem o anseio de justiça. Nem as lágrimas comuns. Nem a misericórdia ou o desejo. Nem a causa. Não: nada disso era o bastante. Estava sozinha. Nasceu assim e assim morrerá. Assim vivemos.
Oleana agora desperta e diz Olá. Olá. Que horas? Ele diz. Ainda? Vou dormir um pouco mais. Claro. Um beijo na testa. Oleana começa a gostar desse tipo de manifestação. Ele dá uma última olhada antes de sair. Sai e sua última sensação é um mal-estar indefinido. No final do corredor a ânfora no suporte lembra vasos de Veneza.
Kátia partira e Francesca regressara conforme o combinado. Estava rosada. O lenço com que prendia os cabelos realçava sua beleza, a beleza do pecado sem futuro. Em torno deles no restaurante do hotel, as pessoas não estavam impressionadas por ela usar uma aliança e ele não, mas em que ela, tão europeia, estava com um evidente sudaca. Ao saírem, seguiram por ruas escuras que se encompridavam.. Agora ele estava bem perto. Durante meses a fio, desde que ela partira, ele perambulava pela Riviera Triestina e ali ficava ao sol. Súbito Blandine surge, sozinha. Olham-se uns segundos e correm um para o outro. Francesca olhava para ele com uma expressão conformada.
Madrid. Edifícios assombrados. Os passantes olham para ele com suspeita. Sente-se desaparecer. Eu. Quem? Perambulando perto da Caja de Pensiones. O parque não está longe. Um parque é sempre um alívio. Um telefone público.
Havia em algumas cabines telefônicas de Lisboa um orifício pelo qual, ao se introduzir um arame, se estabelecia a ilimitada chamada internacional. Assim ele soube da morte de Donda Maria. Perguntou a Kleber por que não lhe dissera quando mandou o postal. Ela morrera dormindo. Está melhor que nós. Não adiantaria de nada te dizer. A vida é assim mesmo. A gente começa a morrer quando nasce.
Quando ele começou a escrever o livro, Andrei e Francesca viviam na periferia em Linda-aVelha. Ao contar em lágrimas sobre a morte da mãe de Blandine, ela, depois de um silêncio emburrado, disse que ele ficava ridículo a chorar por uma velha que de qualquer maneira não veria mais. - Francesca, acho que devíamos dar um tempo. - Devíamos? Claro. Que momento melhor? Você refez sua vida... - E você mantém a sua. A que ele se referia? Ela sabe. - Tudo bem, sei. Não falei antes porque queria te poupar. - Do que? vê-la na cama com outro? - Como você é ingrato! Mesquinho! Como é cruel! Ela nada sentia por Jacques. - Quem? - O gajo que precisava ver em Paris. É dele que estamos falando, não é? — disse ela. Disse que nada sentia por ele e se metera naqueles negócios por ele, sim, por você, Andrei! - Só me realizo com você mas você parece só se realizar com o que escreve. Tive ciúmes dessa tal Donda - abraçou-o. - Quem dera chorasses por mim! — levantou a voz. Só se realizava com ele! nada sentia com os outros. Além do mais, era passado. - O pub é bem presente. Ela suplica. Que ele a liberte dos outros. - Só contigo me realizo...
Francesca o espera na galeria em Milão para irem ao teatro. Tomam um café e vão. Ao chegarem em Lisboa passarão na casa dos tios dela, em Povoa de Santa Iria, pois disse a Franco que ali estaria. Um casamento aberto tão cheio de mentiras, mais até do que um casamento normal. Ela teme perder a fonte de renda, explica.
Quase oito da noite que ainda não aparecera no céu outonal. Andrei foi apresentado ao tio como amigo do padrinho, um sujeito que negociava diamantes na África e tratado com polidez excessiva, constrangedora. Francesca diz que estará treinando equitação nos dias seguintes. Passam em Cascais ela onde apanha a égua. Precisa depois encontrar um amigo, o Miguel. Ela ainda fala enquanto sobe para tratar com a proprietária da pensão. Andrei assiste um julgamento embaixo na TV. Toni Ramos é o réu e Fernanda Torres surge numa cadeira de rosas, testemunha inesperada. O juiz parece o Viloni. O sotaque brasileiro sob os quartos e depois num deles.
Casais enamorados a buscar o fado para os lados da editora até o mirante onde reina o gigantesco pôster do Rambo em cartaz na boca dos Restauradores. O bar da sopa vinte e quatro horas e cerveja com tremoços. No alto da ladeira, descem trôpegos e risonhos. Há sempre briga por causa de mulher; às vezes o ofendido tira o cinto da calça para surrar o outro com o risco de terminar de fazê-lo de cuecas. Ternos impecáveis gritam o gol de Mozer. Da janela ouvem-se imprecações diversas - brigas de amantes, de gigolôs com clientes, de meninas com gigolôs, de meninas com meninas, vizinhos de porta. - Ó pá te basa! - O que caralho? Um dia, na saída do cine Quarteto, sons de sino na travessa da Gloria, onde Francesca um dia disse Essa não tem chulo. Entrou no sebo. Não deveria estar aberto mas estava. Crime e Castigo num exemplar italiano. Comprou o livro e voltou pelo longo caminho até a pensão, quase feliz.
Preparavam-se para a viagem. Uma ideia insiste. Um romance: um romance de verdade em meio a tanta mentira. Por que não? - Ao voltar de Barcelona, não perca tempo, meu amor — disse Francesca. Que ele se dedicasse apenas ao livro. — Não se importe com mais nada.
Passaram a praça. Se não estava enganado era a descida mais curta do Bairro Alto para o centro. Passam as pessoas. Se amam e se odeiam perante ele. A Catalunha à espera. — Mas nada é perfeito — conclui Francesca: — Será nossa despedida por um tempo.
Antes de partirem, ela pegou a picape do cavalo de Miguel, que estava num haras na Espanha. Insistiu em rodarem por Lisboa para tirar umas fotos. Levou quase o dia inteiro.
As fotos estavam com os outros papéis que caíram e se espalharam. Ele na Rua da Prata com um pesado casaco de Francesca. Ao longe o relógio tocado pelo dia e dentro do arco pétreo a mancha esverdeada. Dom Jose em seu cavalo. Ele pelos lados da Porta do Sol, numa sacada. Embaixo, prédios envelhecidos; além o Tejo, cacilheiros e um navio. Ele tomando água num bebedouro constante a céu aberto perto do zoológico onde as vozes dos animais se cruzavam. As crianças ao redor indiferentes rodando no brinquedo do parquinho riam e gritavam. Em frente do jardim. Na boca do metrô. Sentado numa mureta, lia o semanário que trazia bela e poderosa a ministra da saúde na capa. A tarja diagonal no canto superior esquerdo anunciava matéria sobre a feitura do filme em que pela primeira vez dividam a cena atores e desenhos com requintes de realidade como a sombra — semelhante a essa que ele deixa a seu lado na mureta. Os macacos chamam a atenção das crianças desde as jaulas. Sem o casaco, Andrei com a jaqueta preta cheia de bolsos e um tecido pregueado usado como porta-caneta. Na escada, sob o rei João Primeiro pela graça de Deus, a montaria com crina de passarinhos.Beijando na palma da mão o canário da casa dos avós de Francesca — pareciam ter se afeiçoado - manso como um rapaz que condescende com caprichos da amante por medo da miséria. Os braços por sobre os ombros frios de Fernando Pessoa. Na areia cascalhenta à beira do Tejo um vulto de barco no fundo espectral. Desejando os produtos dos livreiros do Chiado. É um registro histórico, mas ele não sabe. No Hospital do Câncer sob o sol que oculto retirava o brilho das arvores e prédios em volta ou deveria dizer a luminosidade talvez o lustro ou o fulgor que a luz do dia emprestava às coisas, mesmo aos lugares malcheirosos. — Mais para cá, lindo. Com os papéis e fotos caiu também uma esferográfica preta quicando e sumindo debaixo da cama. Diante do viveiro espelhado dos peixes róseos no Centro Cultural. Começa a fazer um friozinho. Dirigindo o carrinho do jardineiro da Fundação. Alguém de quem ele nada sabe.
Nenhum daqueles homens parecia amar uma camponesa que partira para longe. Ou por causa da camponesa algum deles deixará um país. Aliás, esse homem não ama ninguém além de si próprio. Estavam todos porém vivos e sabiam de coisas interessantes, coisas que o rapaz que olhava as fotos desconhecia. Um bonde. O cartaz publicitário no corpo do bonde. Crianças de rua ao redor da estátua no Paço. Andrei iluminado pelo flash quase noite na Baixa. De novo olhos vermelhos ajoelhado (rezou) na igreja de Madalena. Molhando os pés à beira do rio sentado no degrau de musgo. Firme no musgo. No museu de Lumiar não desejou mais a memória do mundo mas a sobrevivência. Às vezes não sabia onde estava. Pernas trêmulas e dor de cabeça. Dói mais no shopping. O rapaz que não se reconhecerá nas fotos fala. - Vou ao banheiro um instante. O alívio é maior porque na volta a sessão de fotos terminou.
Poderia dizer que só conheceu Madrid mais tarde quando foi de trem. Agora passando e cochilando ignorava a cidade, sacolejando sobre o motor. Não conseguira pegar no sono na noite anterior porque sonolência não acompanhou o cansaço das fotos. E Francesca, inteira na vigília, também contribuíra; nada a cansava. Quando meio que acordou, Madrid dizia adeus. Miguel acelera. Ele escutava longínqua a discussão sobre que caminho tomar até Barcelona. Evitar o mediterrâneo. Ao lado da estrada corriam árvores num biombo transpassado pelo arrebol. Como se mão insana tivesse rasgado o biombo, como se fosse de papel, dava para ver um lago em torno do qual arbustos cirandavam. Ele imagina (ou sonha) Girl na picape, majestosa em seus oito anos. Joelhos baixos mas eretos. Peito forte. Vigor e voluntariedade nas obedientes espáduas. A tarde caminha quieta e calma para Logroño, onde vivia a namorada de Miguel, razão da sua insistência pelo percurso. Enfim chegaram.
A mulher estava sentada no sofá de colchões na varanda. Levantou-se levantou com gritinhos acastelhanados de alegria. Miguel desceu e Rachel se jogou sobre, enlaçou seu pescoço. Rodada e rosada a saia de linho e rosadas as suas faces argentinas. Acho que a gente fica mais bonita com a idade, Andrei.
Vinte anos há vinte anos. E daqui a outros vinte quem sabe.
Em meio à achilea a mesa de madeira pesada, apoiada na terra pelas mesmas mãos que levaram as cadeiras e as encostaram de forma casual o bastante para fazer supor que tinham sido recentemente usadas. Aí ele sentou. Olhava o céu pensando em como a vida pode ser maravilhosa.
Rachel e Miguel permaneceram abraçados após o beijo. Aproximaram-se da janela da picape. - Olá, tudo bem? - Fizeram boa viagem? - Vamos entrar! Rachel iria preparar os quartos. Francesca disse não, obrigado, iremos para um hotel. Ah nada disso. Rachel não iria permitir. Será uma desfeita. Etc.
Francesca e Andrei caminharam para dentro abraçados trocando beijos na direção da casinha rústica na quietude quase catalã. Esfriava um pouco. O quarto na cave em que se chegava depois de cinco degraus. Janela de caixilhos azuis como suporte para o vidro batido. Acima da cama de mogno uma janelinha circular que dava para um corredor branco cheirando a vindima. Pés-depato no rodapé junto à máscara de mergulho. No exíguo aposento Rachel conseguira acomodar muito livros, A cidade dos prodígios à cabeceira que fazia parte da cama. A sombra serrilhada das folhas toca Andrei quando ele passa curvado por causa do teto baixo. - Simpático, não é? Naquela noite dormiriam em paz e imediatamente após o amor abraçados, parecendo uma única pessoa, a mesma montanha se alongando para o sul. - Muito - respondeu ele. Uma luminária com cabeça articulável e interruptor de correntinha, vermelho. A única capa visível era de Aranjuez. De um vaso vermelho vivíssimo salta o cacto que lateralmente se propaga. - Amor, vou tomar um banho.
Depois do jantar, de novo os cinco degraus. O corredor agora cinza-escuro. Não há lua. Ela se trocou atrás do biombo. Cantarola em italiano. Depois senta-se na cama e sorri separando saturnal as sílabas do conhecido convite. - Anda cá...
Andréia surgiu na porta, como uma aparição. Parecia mais nova que Rachel. O apartamento de Miguel, nas proximidades do hospital, em termos de Barcelona era até modesto. — Entrem, por favor, fiquem à vontade — disse Andrea. Depois, baixinho, quando Miguel passou: — Tudo bem, amor? — Tudo bem. — Me perdoa por domingo? — Claro, amor, relaxa. Miguel estava sendo sincero. Respeita Andréa. Casou com ela em primeiro lugar porque a admira. Se nunca lhe fizessem perguntas muito específicas, continuaria pensando que estava tudo bem, que não havia nada por que se culpar, ainda que uma sombra rápida e soturna tenha passado diante de seus olhos quando se lembrou de domingo, de uma bobagem que ele tomou por inspiração para rever Rachel. Não saberia dizer como Rachel aconteceu em sua vida. Não parece preocupado com a resposta. Mas suas têmporas são altas e passam a impressão de que está sempre absorto por algum dilema.
- Olhem a vista - disse ele como se mostrasse um pedaço de sua alma ao abrir as cortinas. Andrei percebe que seus movimentos são firmes. - É lindo. - Que lugar! Quando Andrei e Francesca passaram pela porta, Andrea juntava dois ovos ao trigo, mais uma colher de manteiga, uma xícara de açúcar e um copo de leite. Limpando as mãos no pano de prato beijou o marido. Deu dois beijinhos em Francesca e ofereceu a Andrei pela mão macia o calor de seu corpo. Ouvia mentiras sobre a viagem quando pediu licença para voltar à cozinha. Não sabe direito porque suporta essa vida. Suspeita que é por causa da dependência financeira mas isso não explica tudo.
No dia seguinte Andrei acordou antes de todos e saiu. Para ir à casa do amigo de Tomás tem mesmo de passar na avenida da agência. O velho que mostrou o caminho reclama da unificação européia, da unificação espanhola e da prosperidade desigual do mundo.
No dia seguinte estavam nos cavalos. O lugar era fora da cidade. O dia inteiro entre os picadeiros e os boxes. Ele fez a cama de Girl, que no dia seguinte ele também levantaria. Deu-lhe a mistura de cenoura e cevada. Escovou-a conforme lhe ensinaram. Ela dá show no treinamento sob a rédea firme de sua dona, espora atrás da cilha no trote diagonal. Aproxima-se do obstáculo, estende e alonga a coluna para frente ao intuir a intensidade do esforço. Francesca sofreou o animal e desceu, levando-o para o boxe. Anoitece no bridão e no freio. Ele acarinha Girl, que puxa sua camisa. Francesca rindo dá o digestivo; mas é um riso nervoso.
A noite desceu sobre Madrid mas ele não sabe onde está, precisando desesperadamente encontrar alguém que lhe seja referência, testemunho do que é, do que fez, do tempo que gastou fazendo, que elucide fatos sobre os quais hesita. Mas quem poderia ser, se chegara a Lisboa após as provas de equitação há muitos (quantos?) dias, sozinho, e sozinho ficava horas a fio na pensão onde alugara o quarto a tentar em vão sair do primeiro capitulo do romance, circulando nos intervalos com a caneta vermelha os anúncios do Diário de Noticias e indo sozinho a redações e editoras receber padronizados nãos e sozinho viera a Madrid no dia em que recebeu o postal e sozinho... — Não... o breve período no Campo Pequeno... — não não... — com Francesca, alguém num café, um espanhol — sim, uma revista espanhola, um poema... a noite madrilena. Havia um postal. Deve estar junto com o de Kleber. Onde os pusera? Os bolsos. Não neste. Nem aqui. Noche. Madrid. Ele passa pelas jovens, os olhos perdidos. Deusas? O tecido das roupas, os perfumes que usam, a casa diante da qual subitamente parado sonha. Contempla-as ainda quando as perde de vista em coisas diversas — carros, muros, postes, janelas. Uma pergunta algo à outra. — Viu os olhos dele, tão arregalados? Decerto está drogado. Resta a imagem etérea dum vestido florido, o aroma da alfazema se confundindo com a casa azul. Diante da qual. E sobre a lâmpada do poste, rodeada de mariposas, o céu era azul escuro, quase negro, como os olhos de... Deus!... O postal da noite ajuda mas não é suficiente. Precisava de alguém, referente a si mesmo, dentro da noite madrilena. Precisava de... - Andrei? Depois da exclamação de Tomás, Isabelle apenas sussurra. - Que cara...
Perguntaram se ele já havia apresentado a matéria. A matéria? - Maio de 68, não é? Ah. Não, não entreguei. Um carro passou chiando no asfalto molhado. Haverá alguém lá num sábado?
Ar molhado na avenida, tênis emborrachados na calçada, ao fundo das vozes enrouquecidas. Ele diz que o endereço do espanhol podia ser também a sua casa, não é incomum. E que tal, diz Isabelle, irmos agora? Sim, deveriam ir. Mas ele não terminara. Não digitou. E o tamanho? Conforme pediram. Vocês vem comigo? Sorriram. Claro que sim. Defronte do prédio do editor, olhavam para Andrei. Lentamente, a lâmpada se acende sobre eles, e Isabelle percebe o tremor nas mãos do amigo. Abstinência sim mas algo além, mais ligado ao caráter que aos nervos, talvez à timidez, e à má alimentação. Que magreza... O céu contrasta com a lâmpada.
O rio cintilante. Marolas monótonas. Batidas de barco na beira do cais. O cacilheiro range. A gaivota grita. Os quatro à sombra da estátua, agora com uns dez graus menos de inclinação do que há cinco minutos quando desceram do taxi. Sentaram-se sob a estátua em frente ao consulado brasileiro. Fumaça de cigarro se misturando à das refeições de restaurantes vizinhos. Oleana, depois de dar fogo para um segundo grupo, ao terceiro se negou.
Procuravam um alemão que conheceram no trem, para pegar a chave de seu trailer num camping. O frescor dos corpos comprometido pela nova caminhada. Voltam pela escadaria, esbarrando em copas muito verdes e baixas, num farfalhar suave, imperceptível exceto para sentidos de haxixe. Na estação do Rossio, entre réstias que atravessam os telhados além dos trilhos e batem douradas na parede úmida dos sanitários, juntando-se aos passageiros com destino a Aveiros e Óbidos, dobram à esquerda e continuam descendo, passando uma impressão de blasé (mas estão apenas cansados). Atravessaram a Avenida Liberdade à altura do obelisco. Dormiram num hotel em frente ao coliseu. Cartazes de Leonard Cohen à janela e fotos de Rebeca deMornay nas revistas espalhadas. Oleana e Andrei exaustos escutavam os gemidos de Isabelle pela parede ao adormecerem. Estiveram toda a semana no camping. Andrei nadou, nadou muito, como se gozasse o velho mar pela ultima vez, partilhando-o com um e outro adeptos do windsurfe.
Oleana na mercearia escolhe a marca da massa para o almoço. Tudo tão junto nas prateleiras. Aquele molho de tomate, esqueceu o nome. O tempo todo esquecia também o nome de Andrei. Agora ele saiu do mar. A luz inunda um mundo esquecido e ele se vê nos olhos de Isabelle; depois também o olhar de Tomás o espelhou. Viu de longe Oleana na calçada com as sacolas e, pontos ao longe, as casas banhadas pela tarde no silencio. Isabelle embrulha-o na toalha. Discreto sinal afirmativo e uma passa no SG Gigante que Tomás coloca em seus lábios, preparado. A praia de São Martinho do Porto sobe para a falésia à esquerda. O azul do céu se escurece na linha do horizonte, se adensa ao negro no mar além do U largo. Esverdeia nas ondas mas o branco sobre o verde prevalece.
Pilastras, pessoas e postes à janela têm pressa. A composição chacoalha. Os amigos, a amante, o livro. Planos. Copenhague, Amsterdã, Paris de carona num caminhão da TIR. Falavam a respeito quando Andrei foi acompanhá-los à estação, no dia da volta deles para a Espanha. Um rosto no burburinho depois que partem. - Desculpe. Com licença. Francesca se aproxima. Viu a ternura do abraço de Isabelle. Tomás e Oleana dentro do vagão. O ritmo da composição cresce e preenche a nave da estação. Melhor tudo terminasse ali. Ao relento talvez, passando fome e frio, mas livre. E quem ela é que acha que pode aparecer de surpresa e fazer uma cena de ciúme na estação? Perder tudo não a liberdade. Explodirá à primeira palavra de Francesca e a voz dela se faz ouvir. - Querido! Um abraço cheio de lágrimas.
Ele pensa em procurar Luis. Telefona para Oleana. Ela tinha acabado de acordar. A voz que ele escuta é um rio entre mundos. Há em seu sonho muitas pessoas em grupos, apenas ela está sozinha. Sente-se doente, é tão raro. Não ligava pra essa coisa de estar mal ou bem. Vivia. Mas então por que sonhar assim? - Oleana? Está escutando? A ligação está ruim. Maldita voz. Mas terá sua serventia. - Estoy tan cansada... - Parece desanimada - ele diz.
Ela responde que tem de entregar as chaves do apartamento. Não menciona detalhes, nem são pedidos. Se endireita, esfrega os olhos; pigarreia, decidida. A idéia de viverem com o dinheiro que tinham, aproveitando-o ao máximo e encararem depois as vicissitudes de sua falta, isso caberia bem num escritor despojado buscando vivências. Mas partiu de Oleana. Ele desliga o telefone e escreve o bilhete.
Pegaram o último trem para o Estoril. Recomendam determinado hotel, cinco estrelas no monte. Ele ponderou mas Oleana insistiu. Recebera, disse ela, uma boa indenização; e há o ganho pelo artigo. Também pedras de haxixe dadas por Tomás. Era um apartamento com vista para o mar; espelhos sobre o console na saleta aprofundando o corredor; banheiro de granito; a cama larga de mogno arrumada com colcha de couro chinês e na varanda cadeiras e mesas de varanda em madeira branca. Oleana faz amizades que rapidamente se tornam íntimas. Oito da noite passou pelas risadas lúbricas e bêbadas decidido a mandar um telex para seu antigo editor. Tantas coisas acontecendo. Oleana passa no corredor em sentido contrário. Oi ufa uau estava doida por um banho. Com ela um rapaz que embora encoberto Andrei julgou conhecer.
- Você está com a cara abatida - diz o rapaz para Oleana. - Venha ao meu apartamento, descanse um pouco. Chamou o serviço de quarto que em seguida chegou. Ela está com muita fome. Ele percebe. Segura os dedos dela. - Olha só — o rapaz sorriu ao mostrar um objeto redondo, de vidro, com algo dentro, comprado na feira das pulgas. - Guardaste! — ela se emociona. - Preciso de um banho, ela diz. - Claro, vamos, ele responde e pede: - Me perdoe...
Michel exclama — Chico! — e abraça Andrei. Jura que nada sabe acerca da carteira de Luis. Inclusive, diz, ele me deu um endereço. Passará lá e esclarecerá tudo. Andrei diz que está tudo bem.
Completada a ligação na sala de telex, lutando com o teclado AZERTY, falou com o senhor Matias.
- Ah claro que gostaria que você trabalhasse de novo pra mim. Mas sabe como é, a empresa está em contenção. Lamentou e desejou sorte. Andrei ouvia seus próprios passos ressoando no corredor antes do ruído da chave na fechadura, imerso no cheiro de roupa passada dobrada no carrinho e na aura da enxaqueca.
Ao entrar, viu Oleana enrolada na toalha branca em que se destacava o emblema do hotel. Goteja no tapete. - Tudo bem? - Tudo bem - respondeu ele. - Vou com Michel ao cassino; você não se importa, não é querido? - Por que deveria me importar, só por estarmos juntos e você sair com outro? - Estamos juntos?
O luar traça uma linha lilás de horizonte na varanda. Oleana está ajoelhada sobre a toalha. Hóspedes vão e vem pelo corredor. O resto de luz natural se funde com as paredes. A pressão das mãos aumenta e a ponta da língua se distrai. - You are dead - diz na TV a garçonete amiga da protagonista. A musica toca, grandiosa.
Cascais à janela. - Levanta, Andrei. Vamos à piscina. Anda. Michel já havia ligado. Oleana sacode Andrei. Semicerrando os olhos por causa do sol que varava as cortinas, ele consultou o relógio. - Ah, vão vocês, eu queria ficar e escrever. - Escrever? é isso que tenciona fazer de sua vida? e para que isso serve?
Os dias se passavam. Oleana de manhã ia à piscina, à tarde dormia e de noite voltava ao cassino. Que mulher admirável, pensa Michel ao deixá-la na porta do quarto, a chuva chicoteando os vidros. Um trovão. Decide ali mesmo e faz o convite.
- Entendo — disse ele. A súbita falta de energia no hotel logo é sanada pelo gerador. Ela não recusará o novo convite.
Quando acabasse o dinheiro, Andrei profetizava, estaria sozinho pelas ruas de Lisboa, ao relento. Não foi surpresa quando, ao pagar a conta no saguão do hotel, a carteira quase vazia (e Oleana não precisava de carteira), ela sorriu amarelo e pigarreou. - Michel convidou para passar um tempo na casa dele em Londres. - É claro. Ela havia aceitado. Andrei sorriu. — Ótimo — disse. Iam no carro dele? Ela disse que sim. — Então imagino que não será problema me deixarem em Andorra. Andorra? Michel concordou e perguntou se Andrei estava pronto. — Mas não temos pressa. Oleana aparenta serenidade. Iam passar na casa de um amigo em Toulouse. —Você aproveita, diz Michel, e conhece meu avô. Andorra... Tinha tudo para ser uma bela matéria. Ao atravessarem a ponte, todos os sonhos se faziam possíveis.
Estão em Badajoz. Uma represa passa ao largo na amplidão romana da Extremadura. Luz após o aperto nos olhos sonolentos, o ar parado, sufocante, quente, quente, ufa, e nem é ainda verão, suavam quando sugeriu o caminho das uvas. Tenho uma amiga que pode nos hospedar, o que acham? Poderiam ainda passar na casa de Tomás em Barcelona. Michel acha tudo ótimo. Oleana, ele espera que esteja doente de raiva. E sorria, impressionado consigo mesmo.
No sofá rústico, Rachel se diz apaixonada. Jamais esquecera. O sol imprime nos beirais o dia agonizante. Na sobreposição, o azul se juntou ao rosa. Carregava, portenha, ao dobrar o ele e pedir que se aproxime. Oleana na cave com Michel. Alguém arrasta um móvel. O céu estrelado troveja.
O armário aberto estava cheio da noite. Sim, pois já amanhecia. Rachel lhe deu uma camiseta para dormir. Do cinza denso à pálida prata dos contornos, o sofá no canto traz odores de passado. Rubor nas cortinas. Andrei bêbado dum vinho anterior à videira. Foi noutro rompante. Vamos agora, deixemos tudo para trás, venha comigo... Ela aceitou, com aquele sorriso que ele conhecia tão bem, e apanhou as chaves na cabeceira.
Os cabelos esvoaçando ao vento que vinha de Vitória, talvez de mais além. — Então você não perdeu essa fixação pelos bascos e pelos Pireneus. — Vamos aqui por cima pelo norte, ladeando rios e contornando montanhas sob toda essa chuva e as tempestades no golfo. — Não me diga que nunca sonhou com algo assim. Subamos em direção ao norte, cantando cânticos bascos. Em Rosário éramos adolescentes, hoje vamos apenas fugir, à maneira dos adultos, e recomeçar; não é tarde. — Na verdade — disse ela sorrindo— meu sonho era mesmo alguma coisa assim.
Não existe nada tão belo quanto a fúria do mar nos despenhadeiros ou tão terrível quanto ondas que sobem e arrancam pedaços de muretas e cospem nos carros que passam lá em cima querendo lambê-los para as profundezas. Agora, ele está há cerca de um ano na Europa, um pouco menos, deixe ver, saí do Rio na primavera de 1987, então era outono aqui. Na beira da estrada uma mulher rega o jardim com cuidados de proprietária. - Ali no porta-luvas.
Andrei olhou dentro dos olhos dela e estremeceu de prazer ao lhe entregar, roçando sua pele quente com as costas da mão esquerda enquanto a direita quase em simultâneo fechava o porta-luvas. O revolver trêmulo quase caiu. - Vejamos. Quase 150 por hora. Escurece rápido. O céu se misturou com a náusea. Lutando, tentou sentir a passagem do ar no ponto da respiração em que havia o desconforto (entre as narinas e logo abaixo da garganta) — e, entender que não era nada, que estava bem, se não estivesse não suportaria a furiosa e inclinação da curva. Hondarribia entre mar e montanha, entre nações, uma nação na própria cidade, entre vida e morte. - Não seja assim dramático, Andrei, vai dar tudo certo. Vamos achar um restaurante e comer — diz ela e estaciona. Descem do carro. Finalmente estão falando sobre todos esses anos, sobre como ela conheceu Miguel, sobre como Blandine o deixou. - Mas por Deus, por que não me procurou? Esteve tão próximo! Ele não respondeu e desviou os olhos como se a contemplasse num ponto separado dela, mais jovem, numa árvore. - Será que você ainda a ama, Andrei? Será que um dia a amou? Rachel sabe como é, como a gente se engana. Terei eu própria sentido alguma coisa por Miguel um dia? Alguma coisa que se sustentasse sem a casa, sem o carro? Há um mundo. Uma mureta de onde sentados vêem o penhasco e ouvem os respingos e os estrondos, as águas profundas e terríveis, misericordiosa. Cantarolando, ele ajeitou os ombros da blusa em frente ao retrovisor. Trieste é uma fantasia, um sonho louco. Não se fala mais nisso.
O rosto de Andrei ao amanhecer nos contornos que substituem os moveis escuros. Na mesa de cabeceira uma foto de Rachel numa ponte. O abajur insone perante os rostos no espelho. A torre da catedral de Santa Maria de Logrono. Fora da cidade, peregrinos retomam viagem.
- Não entendo você, Andrei. Gostaria, mas não entendo. Você é bom, um homem raro no melhor sentido, e nos piores também. Apesar da tristeza, e apesar de estar precisando de alguém para ajudá-la e saber que cumpria os requisitos, Rachel contudo não pediu para que ele ficasse. — Lembra daquele domingo na praça, dos mercados? — perguntou ele. Claro que ela lembra, mas do que adianta? Ele vai partir. Todos partem. Eu mesma. Meus tios pediram para que eu não saísse de casa. Não vá para a Espanha, diziam. - Eles ficaram lá, sozinhos, e eu ficarei sozinha. Todos ficam sozinhos. Ele lhe prestou a homenagem de uma lágrima quando ela acenou do carro. Como em Rosário, parecia tão simples. E assim ela pairou na vida de Andrei com jeito de anjo da guarda, que quer o nosso bem mas não é Deus.
Oleana saiu do carro. Michel conta do mau-humor dela à noite, e eu é que estou pagando, acrescenta rindo. —Não pude evitar, Michel — disse Andrei; me desculpe. Michel ri. Estava tudo bem. Quando brigaram naquela festa, antes de Oleana conhecer Andrei, ele estava desistindo. Imaginara a mocinha tímida de mochila às costas, tomando água com as mãos em concha numa nascente suíça. Imaginara. Mas agora só existe a mulher nórdica. —Acho que a amo, sabe, mas não sei o que fazer para dar um jeito nela. Tive sorte. —Como assim? —Você foi bom para o nosso relacionamento — disse Michel. Um ônibus escolar passou bem na hora. Ele iria sofrer um pouco com o mau humor de Oleana — O caso contigo foi bom para mim, chico. Só tenho a lhe agradecer. Falou-se desse assunto e de outros até que Michel chegou ao ponto: Oleana pressionava. — Lo dejamos en la carretera
—Babe, we can not do that to a friend — Você mal o conhece! EU mal o conheço! Mas não precisavam deixá-lo à própria sorte. A idéia passa a ser deixá-lo sob um teto. Com Tomás. Com Tomás e Isabelle. - Você está certa. Pensando bem, ele bem podia ter ficado com a mulher de Logrono.
Oleana falava animadamente com Isabelle quando entraram. Andrei a cumprimentou com um sorriso. Michel se apresentou. Isabelle pergunta quem ele é, o que faz da vida, o que faz ali. Tomás, recostado na pia da cozinha, espera a água para o café. Não gosta de visitas inesperadas. Não está à vontade. Ainda a carteira. - Cara, deixa disso, são os tempos. - Tempos porra nenhuma! é sacanagem. Sob as estrelas, à fumaceira de peixe na brasa e tilintar de garrafas do Rioja, Isabelle também está desconfortável. Chama Andrei num canto. Pede que ele entregue, se não for incômodo, umas coisinhas para sua mãe em Paris. Beijou-o como um imaturo irmão mais velho — imaturo, para dizer o mínimo. Se fosse domingo, disse, ele iria encontrar a senhora na église. Isabelle, vejam só, filha de crentes. Ele sorriu de volta seu sim.
Tomás e Andrei trazem fumaça na roupa. Isabelle fecha a porta corrediça de vidro. Oleana agora é imigrante em Minnesota, depois na gélida Quebec. Antepassados ali chegavam e se casavam com mohanks em pé-de-guerra. - Vocês sabem que índios americanos perderam terras para imigrantes suecos? - Os imigrantes peninsulares, sobretudo os portugueses, são tolos, usufruem nada das cidades mas conhecem a fundo o sistema bancário. Estava bêbada. Os problemas com Michel começaram por isso. Atravessou oceano, voltou a Estocolmo, chegou a Madrid. Que ficasse entre eles: ela teve uma experiência homossexual num hotel próximo da estação, sabe Michel, aquele que uma vez pagamos oitenta dólares a diária, caramba, a mulher da portaria era uma indiana deslumbrante, uma pérola verde na testa, que Michel a desculpasse.
Falava. Repetia. Isabelle e Tomás sorriam para Andrei. Antes de dormir, disseram que ele poderia ficar o quanto precisasse. Isabelle agora diz que a encomenda podia esperar, não era nada de urgente. Andrei agradeceu mas disse não, mas muito obrigado, estava comovido. Pensava, ao agradecer, como o pequeno apartamento suportaria a madrugada embriagada. Passará várias vezes pelo corredor para o banheiro, após as luzes apagadas, defronte de Michel e Oleana, sem olhar, ouvindo de lado, até decidir ignorá-los deitado até de manhã.
Chegou a pensar em ficar, mas partirá; era sua escolha padrão. Começava porem a inquietar. Sonhou. Ao longo de um corredor escuro, fugia de gargalhantes espectros. Desembocou à margem de um rio putrefato. Estava ali a rainha Cristina, mulher de Max Von Sidon em Nybyggarna. É informação demais para um único sonho, deixem-me, e o grito ecoa pelo Mar do Norte. Se eu colocar essas coisas, as notas de pé de página vão dar mais páginas que o próprio romance. Acorda com o amanhecer nas cortinas.
Julie pediu carona não muito longe da ponte. Há flores azuis e alaranjadas ao lado do caminho. Na estrada outra vez depois do lanche, ao longo da tarde, a chuva sobre o carro. Ela era de Miramas e estudava na universidade de Toulouse. Ia para Paris mas na carona resolveu passar uns dias na praia. Pau passava à janela que à esquerda olhava a cordilheira. Dias profundos mais à frente da paisagem visível, Saint Jean de Luz, Donibanetik, Anglet, Bayonne. Quase noite. Os dois no banco de trás quase dormindo. Julie olha excitada o movimento pela janela. Colocou as mãos nos bolsos do blusão acolchoado. O carro diminuía a velocidade e viu numa varanda o casal. O avô de Michel saiu ao encontro deles pelo caminho estreito e longo entre a cerca e a casa dentro da qual o som das vozes se comprimiu e ecoou, logo seguido do barulho de copos e depois talheres e depois uma outra voz feminina, mais fina do que as outras duas, mais baixa e generosa. A tia abriu e fechou duas gavetas, secou as mãos no pano de prato e no último momento de uma quase agonia se virou para Julie e disse alguma coisa como Sente-se minha filha embora não tenha esperado para ver se o convite havia sido aceito. Na direção da massa na tábua sobre a pia. Continuou esticando a massa sobre a tábua na pia, no longínquo entardecer um par de horas atrás. O tremor nas mãos era perceptível.
Uma hora ela abriu os olhos e certificou-se da presença dele e sorriu como se despertasse de um sonho que a vigília recuperava e mantinha. Ele sorriu de volta, olhando-a nesses olhos e dizendo Acho que foi aqui, neste momento, neste lugar, que aprendi a viver e ela respondeu Quer dizer que se sente afinal um escritor de verdade? As sombras deles se misturam num balé na parede lateral. Em certo momento da passagem por Beynac se perderam nos arredores medievais com os pés silenciosos, não faremos isso, não faremos isso. Em Marais, Paris à tardinha, subiram de mãos dadas as escadas da casa da mãe de Isabelle. Na janela apareceram tulipas vermelhas e amarelas. Não, a senhora não está e, se podiam esperar, esperaram no vestíbulo. A empregada serviu raclette e café. A senhora não costuma receber e pouco pára em casa. Agora foi visitar uma amiga e na volta passaria no mercado. Não se lembra do telefonema da filha e não se preocupa com a hora de voltar. Prefere chegar depois da janta e evitar a mesa. Quando desciam as escadas, os papéis de Andrei caíram — esboços sobre Harlem Desir, Loyers libres, Sous le cieul de Novgorod, Sylvie Guillen. Era um dia frio. Andando devagar, dobraram uma esquina e deram com um céu rosa sobre os prédios de uma Paris quase deserta. As pernas pesavam, ameaçavam dobrar. Faziam alternadamente sombra um para o outro, medindo as palavras com o cuidado dos ansiosos. Julie passa a impressão de serenidade; se ele a visse numa biblioteca ficaria impressionado. Com licença, diria, querendo passar para o outro lado no corredor entre as estantes. E sentiria esse cheiro. Meu Deus, pensou ele olhando as mãos dela enquanto falava das diferenças entre Paris e Toulouse. Há um pedaço do sol em cada unha. E além disso o tom da voz dela comenta os reflexos. Vou a Toulouse, Miramas, até lá a diferença de idade perderá a importância. Não imagina outro cenário. Havia chovido, estava quente, as nuvens passavam, é um sonho de Paris, diz Julie, sem parisienses. Em frente a Baudelaire na vitrine, ela fazia confissões, discretas, de bom tom entre recém-conhecidos que mostram afinidades; e se mantiveram naquele nível superior em que se opina sobre a vida de forma vaga e teórica, como se opina acerca de livros e filmes e partilha-se o gosto musical mas as revelações pessoais são contidas, casuais. Chegaram diante do que parece ser um supermercado, Le plus bas prix. Seria uma boa idéia comprar alguma coisa, mas o preço mais baixo é alto. Como se tivesse sido combinado, apertam o passo. Julie lembra como era uma estudante de arquitetura fascinada pela nuance rósea dos tijolinhos aparentes de Toulouse. Ele não notou o pavor nos olhos dela, um ponto de ruptura. Ia pedir que tomasse cuidado ao atravessar, como quem diz Leve um casaco que vai esfriar.
Dois dias e duas noites Andrei errou sozinho por Paris. A enxaqueca voltou. Não sabia o que faria quando chegasse a Trieste, que voltou a ser meta, como um regime a que se está disposto e, embora nunca concretizado, sempre é recriada sua expectativa. Degraus sem fim que nunca encontram uma porta. E essa dor. E essa dor. Vosges. Toda essa gente. Voltará à casa da mãe de Isabelle, levará a encomenda. Homens de névoa, mulheres do bairro, cães, crianças. O que será de mim? Flores, canteiros e jardins exuberantes, bandeiras, o teatro. Sentado num canto da Praça, a senhora apareceu com a menina. - Ela está perguntando se você gosta de vídeo-game. - Não muito. E você, assim pequenina, já gosta? - a senhora traduz. A menina ri e esvoaça, pipilando. Bruce Willis tem uma filha assim no filme que estreou. Acompanha mãe e filha até a casa, ali perto. A menina chama, a senhora convida. O senhor insiste que ele fique para o jantar. Podia trabalhar com eles como sanduicheiro, sabe o que é? Não sabia. Eles tem uma confeitaria ao lado da casa. No final de um mês, tinha dinheiro para ir ao sul, até Marseille. Compreendem como ele se sente. - Calme-toi, chérie, ne vous inquiétez pas, il va revenir. Pagaram o dobro do salário combinado. Nunca recebeu tanto como escritor ou jornalista. Nunca foi feliz tão feliz.
O homem passa e Andrei pergunta pelos Wingran. Ah claro, são gente muito boa, você é parente? Chapelle Saint-Julien. Estou velho para andar de mochila. Muito prazer, meu nome é Andrei. Falam dela, de Julie. Consolaram-no. Ele não devia se culpar. Choraram. Acompanha-os sexta-feira a Marseille. O homem como morto. É alemão de Darmstadt. Falase de integração em seu país. O alemão é um idioma bem difícil. O senhor Hans se mostra indiferente ao futuro. Que me importa? Minha filhinha.
Não ficou claro se os Peyroux esperavam Andrei de volta. Ele é como nossa filha, diz a senhora Valerie. O marido a abraçou sentindo o cheiro dos cabelos que ela usava soltos como quando o conheceu. Oh meu amor, não chore disse Hans, chorando.
Valerie sugere a Holanda, Julie ficou lá recentemente, passou as férias num barco, fez bons amigos. Andrei viu um olhar reprovador no marido. - Ah, sim, tenho dinheiro, eles foram muito generosos.
Foi na Bélgica, caminhando por ruas limpas ladeadas por canteiros, ao distinguir uma moça no sentido contrário, pássaro ao crepúsculo, imaginou voltar para Paris e procurar a senhora Hélenè, trabalhar com os Peyroux mais um tempo, uma ultima baldeação antes de Trieste. Em Paris, quem diria, estava em casa. Pessoas com malas, de lá para cá, carregadores, táxis. No céu uma lua se intromete no dia. A azáfama não causa medo: tinha para onde ir, não dependia de ninguém. Não restava muito dinheiro, quase nada na verdade, mas tudo bem, tem para onde ir. Marais envolta numa luz pálida, abandonada. Então a velha empregada explica. Eles não estão. Não sei quando voltam. A mulher não é rude, não é simpática, só informa. Agora você está de novo ao relento, amanhã poderá comer ou não. - Obrigado — disse ele. - De nada, senhor. A rua é selvagem; os carros monstros; luzes, instrumentos de tortura. Senta-se no mesmo banco de praça. Os vizinhos acham que eles não voltarão. Parece inclusive que venderam a padaria. Segundo o cliente de um antiquário, foram para Milão. Olhava as pessoas com perplexidade e terror. Como os que acordam de um pesadelo gritando e descobrem que o despertar não traz consolo, salvo a fome. Os lustres pendem em losangos. Olha e vê a si mesmo no reflexo do vagão. Ainda bem que não está frio. Tremem as pedras do Maio: era a perspectiva do Pink Floyd. Caminhou uns três quilômetros movido pela disposição do medo. A amplidão de alma a que se pode chamar fadiga o havia envolvido. Os passos se apressam e, como sempre quando se está vulnerável, surge uma igreja. Entrou e sentou-se no primeiro lugar vago, na ânsia de alívio para as pernas; esperou que o sermão durasse o bastante. Tocava de leve o lábio inferior. O pastor se inflamava, gritava, cuspia, dizia que os prevaricadores estão com os dias contados e os que tendem para a sensualidade arderão todos, eu disse todos, e socava o púlpito, erguendo a bíblia equilibrada na mão direita. Depois mais calmo fala das bênçãos do dízimo e das ofertas. Aproximava-se a hora em que os pecadores arrependidos se adiantam e aceitam Jesus e recebem na frente de todos o perdão dos pecados. As olheiras de Andrei contrastavam com seu rosto muito branco de doente. O vitral à esquerda, que ardia, estava esmaecendo com a proximidade da noite.
A seu lado, à esquerda, a bela mulher transgride a orientação bíblica sobre atavios e maquiagem. Os dedos longos encimados pelo carmesim se ramificam no couro da capa do livro. Pergunta baixinho, sem olhar, de onde ele é. - I am Brazilian. I do not speak French. - I like Brazilians. Saíram no carro. Ele respondeu às perguntas com franqueza. Os jovens, comentou ela; sempre se aventurando. Não sou tão jovem. Você deve estar com fome, claro. Claro.
Estavam no restaurante a cerca de meia hora quando ela pediu licença, tinha de dar um telefonema. Voltou, pediu que a desculpasse. - Preciso dar preciso dar uma saída - disse. Pediu que a esperasse. Ele sentiu um medo físico de que ela não voltasse. Na ausência dela há um corpo rígido no burburinho de gente jantando. Ele retinha a idéia de lar, adorada, com a qual não saberia subsistir caso se tornasse real. Quando Beatrice reaparece, traz consigo o alívio.
Na época dos cafezais, subsistia graças à codeína. Após o primeiro dia na panha, fraqueza, mal-estar, vômito e diarreia. Imaginam que é falta de costume. Mas depois, na seqüência, o trabalho árduo se mostra benigno, calmante, e no decurso dos dias ele fica corado, engorda. Na crise de Kátia, para ele próprio suportar, retoma o hábito. Agarra-se à economia das ultimas cápsulas. Volta e meia sente-se sem forças de se manter em pé, torna-se bem penoso respirar. Fora o terror. Agora, a solidão, fome, relento, e tardios os sintomas da abstinência se manifestam. Músculos repuxando, rigidez facial, tremores nas extremidades, movimento involuntário das pálpebras. Tomara a ultima cápsula no dia anterior presumindo da nova estada em Marais, do trabalho na confeitaria, de uma nova caixa de cápsulas. Ah o alivio quando a mulher passou francos e dólares sob a mesa. Junto, num envelope, um papel carbonado. A moeda francesa era para cobrir as despesas em Paris; a americana, o valor de uma passagem de avião de Portugal para o Brasil. Mas ele mal se conscientizou da viagem. Pensava na
farmácia. Aos poucos despertou do alivio. O sud-express, o trem Paris-Lisboa, sem crise de abstinência. - Obrigado, senhora, obrigado...
Sabe que tem a aparência mórbida. Porque tanto quanto na fome, talvez mais, na síndrome de abstinência não existe mal ou bem, culpa ou inocência. Não sublimação, nem arte, nem amor, sem dilemas existenciais ou destino. Por mor dessa dor jamais anjos. Só o vazio. Suplicando outra dose. Cold-turkey, o cold-turkey. - Ei, onde você está? - Beatrice passa a mão direita diante do rosto dele. Pediu que pagasse a conta. Depois disse: -Vamos. Ao entrarem no prédio, ele viu as tulipas vermelhas. Lá em cima afundou as mãos numa caixa e de dentro trouxe um envelope. A encomenda da filha. Sua atenção conforta, seus olhos brilham; sua boca, num instante breve, se transforma na boca materna. Seus seios logo satisfarão a pequena Isabelle. - A senhora deve com razão me achar um oportunista. - A maldição humana - respondeu ela - é julgar.
Deixou as coisas e saíram de novo para uma volta. O caminho produz um olhar agradecido. Atrás deles a rua se estreita. Se afastam do rio. Ele conta de Blandine. Está fazendo uma temperatura agradável. As pessoas usam casaquinhos. Ela conta que se apaixonou por um canalha. E sente-se à vontade para dizer que por causa disso a filha é quem mais sofreu.
As sombras se misturam. Cheiro forte na escuridão, iluminada quando passava um carro à janela jorrando a luz dos faróis. Um mundo que só funciona em solidão plena. Quando não há outro morador nem perspectiva da chegada súbita de um, ou quando o outro morador irá decerto se tornar um contigo — sem outras pessoas nos outros quartos, sem outros destinos, perspectivas e direções, meu querido. As coxas de Beatrice estão afastadas e delas ele escorre. Ele levantou a cabeça e ela percebeu os olhos sonolentos e tristes. E mediu a escuridão, calculando os movimentos para que nenhuma bonequinha de louça quebrasse.
Beatrice viu que ele estava dormindo. O lento movimento do lençol dizia o quanto o sono era profundo e calmo. Sentiu-se tentada a verificar o quão calmo e profundo. Apenas uma vez, rapidamente apenas, ele nem sentirá, que mal poderia ter? Porque ele partirá, não há qualquer dúvida a respeito.
Costurava a camiseta, de quando em quando a levando ao rosto e mantendo-a pelos segundos necessários para aparecer o vulto.
Há uma mariposa na parede e eles a olham maravilhados. Caso chegassem à janela veriam um carro azul na entrada da curva. Ruídos na cozinha. Ele fecha a janela para quando ela voltar. Ela entra sorrindo. Ela se aproxima e diz: - Olhe. Você gosta? - O que você fizesse agora seria minha comida favorita.
Muito de madrugada, três e meia no relógio da sala, quando ia ao banheiro, tateando no corredor junto à espiral da escada, o luminoso repetia-se lá fora. O dia na janela. Desce a escada após ter deixado o bilhete. O farmaceutico não atende de imediato. Há um médico no sobrado. Na rua que desemboca na pracinha, toldos verdes, uma bicicleta e pingos do sol que atravessava a copa da árvore onde a mulher estava encostada à espera. Tomou uma cápsula a seco e depois outra. Quando comprava o refrigerante, o rapaz passou em frente apressado seguido pela mochila de rodinhas.
A não-chegada da crise de abstinência. Sentia-se outro, como se seu eu profundo fosse exterior. Está seguro com a cartela no bolso da jaqueta. Foi feliz dois dias.
Envolto na fumaça, o trem deu o tranco. Sentado à janela, espalma a mão no vidro. Da plataforma, ela pergunta se ele escreverá. - A senhora gostaria? Ela disse que não. Talvez ele escrevesse.
A dificuldade do adeus. Alguém pode indagar por que a dor. Ele não sabe. Mas à medida em que Beatrice vai ficando pequena, menor cada vez ao ritmo do ferro, é sofrendo que ele soletra, tocando os dedos na frase, um último protesto de amizade e admiração. Ela disse algo que Andrei entendeu como Adeus, querido, vá e encontre teu mundo. Duas lágrimas azuis encheram os seus olhos.
Era meia noite quando a locomotiva puxou os vagões, apitando. Igual a qualquer locomotiva puxando vagões e apitando, em qualquer parte. Uma locomotiva tem sua rede de músculos, como um homem, na Europa, na América, em qualquer lugar. Podem ser diferentes os homens, e são, mas a estrutura é a mesma — como um trem. O cordel da máquina fazendo as vezes de corda vocal; o apito, a voz; os ferros tiquetaqueando na fricção da partida. Como pernas que se preparam para correr. A fumaça da respiração. Os passageiros nos vagões, células renovadas. Sud-express. Diante de uma estrela, se ignora outra na areia do mar onde pisamos — o mesmo mar, com a estrutura de um ser humano: a voz das ondas, a alma do abismo, e glóbulos de peixes em veias de correnteza: a bonança como a calma de um homem e a tempestade coma a fúria de uma mulher ciumenta, em todas as partes do mundo.
Na plataforma de desembarque de Lisboa, Andrei a viu. Porque o inverno se aproximava. Francesca. Está ali parado, sem esconder o rosto. Se ela o buscava, iria encontrar. Ela o vê. Acompanha os últimos metros da composição. Andrei desce e põe a mochila no chão. Ela vai sorrindo a seu encontro. Onde a fúria do mar? Ele a abandonara... Não estava sozinha. Não podia ser o marido. - Olá. Sou Franco Bellini! Como sabia que eu estava naquele trem? Sabiam?
- Não vamos duelar ou algo assim? Franco riu.
Percorrer com Francesca os mesmos caminhos que percorreram quando ele estava na miséria era andar por caminhos novos e redentores. Lugares em que o menino costumava brincar mas temia a chegada da noite enquanto o homem se afadiga no dia e regozijará com as sombras do crepúsculo. Montes de mãos, rios que escorriam dos dedos, impulso primário de todas as formas satisfeito. Noite. O céu estrelado sob o vulto da árvore contorcida ao ribombar regular dos trens no chão cruzando a guarida do manobreiro. Andrei e Francesca ocultos pela copa próxima à Torre. Ela deita na coberta retirada da mochila. Margens sujas de lendas. Castelos. Ele se abaixa junto às águas. Transporta-se. Um Tejo real, adormecido. Só irão dormir quase na manhã de domingo. O gramado ao redor da igreja lá em cima, após o sol secar o orvalho, lá pelas seis e meia. Semelhante sono será desfeito pelo calor dentro da lã na blusa necessária para a noite fria.
Cansados, famintos, procuram agora uma pensão. Acabam no velho hotel defronte do coliseu. Luxo perigoso, sempre. Chegaram assim a semelhante situação: Andrei nada dissera sobre a volta ao Brasil, sobre o dinheiro que para isso a mãe de Isabelle lhe dera. Aliás, nunca falaram sobre nada relativo aos últimos meses, os meses de ausência mútua. Francesca está tranqüila em relação à parte financeira, por causa de Franco. Além disso tem amigos anteriores ao marido, os quais não vira após o casamento. Em sua maioria portugueses retornados de Angola. Passaram maus pedaços na volta, após a independência da colônia, mas conseguiram se restabelecer em Portugal. Tenho certeza, disse ela, que nos receberão enquanto as coisas se acertam. A pomba no parapeito do hotel geme e estala as asas.
Pois bem. Os tais amigos recusarão guarida um após outro. Exceto Hilda. Ela e o novo marido, Garlos. Hospedam a amiga e seu companheiro. As duas recordam passagens da adolescência enquanto ele e Andrei acertam o emprego do brasileiro em sua fábrica de móveis.
Começa a trabalhar. Constrói reputação de empregado exemplar simultânea à de protegido do patrão. Garlos estava a pensar, diz logo depois do jantar no primeiro sábado, em colocá-lo num dos escritórios. - Serviço braçal não combina contigo - diz.
Andrei adorava. Cadeiras, mesas de TV, vídeo e computador, escadas graduáveis. E a preparação das embalagens — pode-se dizer que se tornou um perito em nós. Dias calmos na casa do casal. Nos finais de semana iam a um barzinho onde serviam bebidas quentes à lareira. Sobretudo aos sábados, sábados como ontem, meu Deus. -A única coisa que me incomoda, Garlos, é incomodar vocês. - Incomodar nada. - Claro que sim; por exemplo, tirar sua filha do conforto do quarto dela para nos instalar. Não era nada, disse ele; era um prazer, completou Hilda. Mas de fato mudaram a rotina da casa, horários de banho, refeições, lugares à mesa. Perderam a privacidade. - Não é verdade meu amigo. Estamos optimos! Mas um dia a tensão à mesa do jantar ficou incontrolável - Não fale assim! Somos teus pais!
Nastacia sugeriu que ficassem na casa de praia não usada por conta da reforma. Hilda e Garlos ofereceram uma resistência não-convicta. Sandrine olha os amigos dos pais, agradecida .
Amanhã estaremos à beira mar - alegra-se Francesca. O sol busca no mar seu próprio reflexo; sombras pesam em torno do prédio. Tinham acordado e olhavam a cidade lá embaixo, o rio, os cacilheiros pequeninos. Houve um casamento e as pessoas saíam ao gramado a confraternizar. Da distancia em que estavam naquele dia, dormindo no gramado, Andrei e Francesca aos olhos dos convidados faziam parte da vegetação que ladeava a rua até a igreja num primeiro olhar dos meninos, ele de terno, ela com um vestido de festa rosa. - Olhe ali - disse João. - Não parecem mendigos — respondeu a irmã. - Vamos lá. - Melhor não - Você tem medo? - Não tenho, mas melhor não.
E olharam o casal se levantar, sacudir os vestígios de grama da roupa e ir embora, descendo a encosta, ele ao som de uma canção triste nos fones de ouvido. Era a mesma canção que escutavam no aparelho de som de Felipe, na casa de Garlos. Os transeuntes lá embaixo formam uma mancha esverdeada, escura, móvel, nas cercanias na Torre. Tudo parece novo — é a vantagem de estar dormindo na rua e um dia em cada lugar. Desvia os olhos na direção de Francesca, embaçada. Quando ela acordar, decide, eu lhe direi que há dinheiro suficiente para o hotel até conseguirmos trabalho. Contempla de novo o rio, a cidade, as pessoas pequenas, a mancha móvel. Deixa a varandinha, entra no quarto e fecha a porta, recordando a mudança para a casa de praia.
Fins-de-semana, uma festa. Felipe, filho de Hilda e meio-irmão de Isabel, dezesseis anos, descobrira facilmente o hóspede apreciador de haxixe. E, consumindo-o ele mesmo desbragadamente — sem que a mãe ou o ocupadíssimo padrasto percebessem — introduzia as madrugadas de sábado a buzinar sua moto com a namorada na garupa eventual. - Olá, tios giros! - Ô pá, cá estamos! Vinham sempre com irmãos de CBX200. O que a mãe haveria de dizer. Sua comportada amiga de Luanda!... E Francesca ria
Numa segunda-feira, Hilda telefonou. A secretária do escritório de Garlos em Lisboa pedira demissão. Ela usa meias e ligas para convencê-lo a dar a vaga a Francesca. Significava que Andrei ia perder o lugar na fábrica, pois só a parte administrativa funcionava na capital. - Eu posso continuar aqui e você ir para Lisboa, passaremos juntos os finais-de-semana. Alugaremos uma casa numa cidade intermediaria. - Por quê separar-se? queres se ver livre de mim! Claro que não, Francesca, seja razoável, estou bem em meu trabalho, não é só uma questão financeira mas, no fundo, ele sabia que a polêmica transcendia essas coisas. A brasa de um cigarro girando no escuro.
O último dia na casa de praia. Lentamente o sol surge na névoa. Venta muito, como sempre. Mais um croisant, querido?
Mudam para um subúrbio lisboeta. Dois dias e tinham esquecido a discussão ao chegar, até Francesca dizer como é bonito o prédio. - Tão difícil conseguir um emprego bom, uma renda regular, e você joga tudo para o alto e quer que eu fique admirando a arquitetura de Lisboa? - Ah, Andrei, vê se pára de reclamar, estás a encher o meu saquinho! Logo ela, que sempre disse que não sabe fazer nada, nunca trabalhou, e nem quer saber de — Caralho! Saí, me deixa em paz, porra! Ele vai para a porta. Adeus então — Não, por favor, não vá... E, como sempre, fizeram amor.
Sexta à noite Francesca chega e sem preâmbulos diz que brigou com Garlos, quem está ele a pensar que é para falar daquela forma comigo na frente de todos? Pedira demissão. Mas não se preocupe, amor. A casa fazia sim parte do contrato mas telefonará para Franco no dia seguinte, pedirá algum dinheiro. Alugaremos então um apartamento. E tenho certeza o próprio Franco nos conseguirá trabalho junto às suas relações em Lisboa. Um miado agudo se ouviu do telhado.
Ali. É ela. Uma mulher maravilhosa. Com a roupa do corpo, um belo corpo. Agora ela de novo, ligando para a Itália. A mesma roupa, um pouco suada, a blusa ligeiramente encardida na gola, amarelada debaixo dos braços e nos punhos. O mesmo corpo, um tanto cansado. - Ele não está em casa, foi para Nápoles. Não. Ninguém sabe onde. Claro que há uma explicação. Enquanto isso poderiam recorrer aos avós dela em Póvoa. Não era caso de desespero. Os navios passam ao longo do Tejo e os cacilheiros o atravessam. Ali está de novo. Estão. Duas pessoas sem nada em comum mas, pensa ele, não posso abandoná-la numa situação em que se meteu por minha causa. Um casal em Cascais, da agenda de retornados de Francesca, precisavam de caseiros. - Melhor do que sermos constrangidos a hospedá-los. - Também acho - diz o marido.
Na quarta seguinte, ultimo dia de Francesca no escritório de Garlos, já haviam mudado para a linha do Estoril, no fim da qual o casal tinha a chacrinha.
Quinta-feira entre as árvores que farfalham. Francesca chegou pelo caminho verde que leva à habitação dos caseiros. Andrei está cozinhando na lareira porque o gás acabou e só poderá buscar um novo botijão no dia seguinte. Ela esteve durante todo o dia e parte da noite na casa principal servindo os convidados. Desabou chorando sobre o sofá e disse que não agüentava mais, era superior às suas forças, não estava acostumada, não agüentava mais. O senhor Couto compreendeu, a senhora Couto lamentou. Partiram no dia seguinte à tarde. Durante o percurso de volta a Lisboa, ela escondia os olhos. Quando na penúltima estação as pessoas começaram a apanhar suas coisas para descer no Sodré, ela tomou as mãos dele e o encarou, por favor me perdoe. Ele estremeceu. Ao descerem na estação do cais, estavam na rua, sozinhos, amaldiçoados. Então ela fala. É hora de começar a aprender a viver sem o Franco, disse. Não iria atrás de advogados ou detetives até porque não tinha dinheiro para isso. - Eu tenho — disse ele. - Não é muito. Mas creio que para isso — Como, não quer o meu dinheiro? Não te incomodava tanto a dependência? — disse ela. Agora ele estava livre, não dependia mais. Anoitecia e ele tomou consciência da noite. O vento continuava a soprar.
Naqueles dias em que o dinheiro escasseava a ponto de terem que economizar deixando para ir dormir pela manhã no relvado da igreja no alto da rua da Torre de Belém, ele foi à posta-restante e ela ao Ministério das Finanças onde tinha esperança de encontrar uma última amiga de infância. Há uma carta. Ele rasga o envelope com mãos trêmulas e coração disparado. Francesca se aproxima. Não trabalha mais aqui, pá. Ele guarda a carta. Não estava mais a agüentar, ela diz, precisava de um banho, tomar uma bica, comer uma comida decente. - Quanto você tem? — Dois mil dólares. — Ô pá tudo bem. Vamos para um hotel. Amanhã é outro dia.
Massageava os meridianos do sistema nervoso sob a pele úmida à altura dos ombros de Francesca na banheira e imergiu junto dela. Os lábios de Andrei procuraram o lábio inferior de
Francesca e as pontas das línguas criaram a expectativa que não pode ser a do pecado. Não tem certeza. Gostaria. Deslizou no fundo sob ela. No dia seguinte, Francesca ligou para um anúncio classificado que pedia funcionárias de fino trato para trabalharem num pub, os inferninhos das ruelas escuras nos fundos da avenida luminosa. Estrelas sobre o rio quase mar.
Uma semana. Duas. Três. Em um mês ela tira mais que ele em quatro ou cinco na fábrica. Não disse? Dá risada. Sei o momento de agir, ó pá. No calor da noite enevoada as sombras de Lisboa. Ali no final da estação, onde se não insistirmos em comparar o clima com o calendário, acharemos, vejamos, o hotel modificado pela mudança do pagamento de diário para mensal, sim, mudou mesmo meu querido, estão a nos tratar melhor. Dentre outras coisas. A luz da manhã também mudara. Os corredores. Um espírito se move entre Andrei e seu sósia, ele e o Outro que protege Francesca dos assédios das quatro da manhã. Escreve para Barcelona dizendo à agente literária o que poderia ter dito pessoalmente.
O calor se estabelece em Lisboa, seco e pegajoso. Durante esses dias, ele escrevia na biblioteca municipal. Para chegar ao Campo Pequeno, evitava caminhos antigos, amigos e inimigos de haxixe, além do próprio. Diminuía o remédio e usava as síndromes como um registro de correio para oficializar a desintoxicação. Amplo jardim com mesas de tampos vítreos e cadeiras brancas de ferro onde havia sombra e a temperatura era agradável. Ela estava bonita. Ele lhe diz. Gosto tanto de seu perfil, fique assim, vou pedir alguma coisa. Passara a fase em que as culpas pedem responsáveis e as coisas boas não são notadas. Tinham entrado na parte da vida em que tudo adquire tamanho real. As escadas externas dos prédios à janela se comunicavam com as roupas estendidas; não é uma visão propriamente agradável mas se tornou familiar e assim amiga. Escuta-se todo o tempo a camada sonora dos carros distantes e vozes incompreensíveis, um som uniforme e queixoso.
O calor na pele nas tardes frescas à mesa vítrea do jardim da biblioteca. Ali escrevia também artigos, não mais para vender a jornais mas a jornalistas sem tempo. Não dependia do dinheiro de Francesca mas não mexia nos dólares. Tinha crises de ciúme e volta e meia discutiam. Suportavamse. Saíam do quarto um depois do outro e os mesmos olhares para os lados. Quem olhasse acharia que
escondem algo. Ele não perde um único movimento que ela faz, como se disso dependesse a própria vida. Sofriam o relacionamento doentio porque o destino os empurrava um para o outro na ausência de antigos amparos.
- Boa noite, senhor — disse o porteiro quando Andrei entrou. Eram nove da noite. Na penumbra da sala de TV, esperou o documentário sobre vida animal. Como terminasse a novela, todos deixaram a sala e ele mudou de canal. Ao sentar-se de novo, passou uma mulher azulada, mãe morena, solta no vestidinho branco. A criança em seus braços, dormindo. Não olha para ele, é como se ele fizesse parte dos móveis. De costas, ela passa para a outra extremidade do sofá. Seria indecoroso se deleitar nessa visão. Quer contar a ela, contar tudo, a vida toda — era tanto assim? Respiram fundo ao mesmo tempo. Ela senta, calada. Lança na penumbra um olhar pelo espelho lateral. Dedinhos na sandália de pelicato. A sinuosidade prática do abotoamento. Angustio-me por ti, diz a voz na televisão. O peito é oferecido ao bebê. - Eu te amo tanto, filhinha, muito, muito querida, muito, queridinha da mamãe, é sim minha pequenininha, a pequenininha da mamãe, meu amorzinho... Ele suspirou incrédulo. - Blandine!
Caminhões de água da Câmara de Lisboa lavam as ruas da Baixa. Espelhos turvos no asfalto devolvem a lua do chão. Ele mantém no céu um olhar fugidio. Caminha ereto, ombros para trás e abdômen recolhido. - O que você disse? - Nada, estava pensando. Andavam um ao lado do outro mas era como se estivessem sós. Quando passam por um vão entre as pedras do calçamento, como num movimento ensaiado, olham juntos para baixo. Como num movimento ensaiado, levantaram simultaneamente o olhar do calçamento. O ruído do motor do caminhão dá a idéia do minuto passado, uma canção que insiste na mente ao adormecermos. Uma ave noturna revoou sobre eles. Andrei cobriu os ombros da mulher com um abraço antigo e brusco e ela sorriu e pousou a mão sobre a mão dele. Pronto. E agora o quê?
Adoro esse trecho da cidade, ela diz, ele também — Adoro — sobretudo o contorno da ponte ao longe. Subiram a viela. Uma ratazana passou célere. Surgido do nada, o gato, que havia pouquinho recebia o afago de Blandine, saltou e a abocanhou. — O Kleber devia ter dito que você estava em Lisboa. — Se tivesse dito, você deixaria de vir? Aliás, o que te levou a se hospedar num hotelzinho como aquele? — O que está querendo dizer? Que vim na esperança de encontrá-lo? Sua pretensão não tem limites! É maior que a sua memória! — Mas não maior que o meu amor. Como se ela não tivesse ouvido, disse: — Esqueceu que estivemos no Rio em hotéis muito piores? - Como poderia, como poderia esquecer? - Achei simpático, entrei. Como sempre faço. Se estivesse com o Octavio, seria diferente, é claro. — É claro. — Ele não ficaria nesse tipo de hotel. É o jeito dele. Acha que deve oferecer à esposa todo conforto. Eu concedo a ele essa alegria, por que não? — Onde está ele agora? — Tem uns assuntos no Porto. O garçom chegou. Ela disse Eu te amo, circundou a mesa e se jogou em seus braços. Poderia ter sido assim, por que não? O vinho aberto, as taças.
Era hora de Francesca chegar do pub, pela rua em lento declive. Aos ruídos óbvios da noite juntam-se as sombras nos telhados. Contra o branco da parede ao lado, as olheiras dela estão mais fundas; seus braços mais carnudos, redondos; a forma como depilava agora as axilas era outra - a pele ali se tornara mais clara e não se pode imaginar que ali um dia tenha havido pêlos. Há uma mulher de óculos à frente deles; uma outra — uma jovem de blusa vermelha e bolsa negra — se aproxima e não diz nada, porque acredita que o que precisava ser dito era dito pelo olhar e por sua própria aparição
ali. Do lado oposto um rapaz segura os cabelos da namorada e quando solta eles voltam aos ombros em câmara lenta e em câmara lenta ela se vira para ele e lhe promete aquela noite enquanto os outros jovens à mesa sorriem para a foto que alguém irá bater. Blandine segura o antebraço esquerdo como de costume quando está inquieta e não sabe o que fazer das mãos. Uma das moças ao lado tapa o rosto e diz que está com a maquiagem borrada e não quer sair assim na fotografia A noite de agosto ainda não é tão quente. Ele pede para bater uma foto. Passar-se-ão os anos.
Outra moça mexe os ombros ao acompanhar uma música que eles não ouvem; as mãos tricotando no ar. Blandine diz que quer perguntar uma coisa. — Você esteve em abril, maio, em Madrid? — Podia jurar que era você. — Entrou num hotel em Atocha. — Deixei um recado na portaria. — Estive mas não deram o recado. — Por que deixara um recado, o que dizia? — Foi me ver? Ainda me ama? — Sou uma mulher casada.
Acima deles o cartaz do cine Éden anunciava vibrante o terceiro Rambo, tremulando e estalando como uma imensa bandeira. Jovens vestidos de negro subiam a ladeira da Glória a pé embora ainda fosse hora do bondinho. O electrico está avariado, comentam os que passam. O céu estrelado sobre eles. Estão próximos à travessa da Boa Hora. O grupo passou e veio a idéia. Por que não irmos? E dançarmos? Nada de adultério, só um passeio. Escutar o fado. A bebida fazia efeito nos corações. Ela concordou, mas não deveria esquecer que eram apenas bons amigos. — Minha vida hoje é o Octavio.
— Sim. Minha Blandine jamais me beijaria sequer dançaria comigo em minha ausência. E o beijo na mulher a quem ele havia sido fiel durante o melhor período de sua vida fez renascer uma urgência de fidelidade, uma necessidade maior que o próprio amor — uma fidelidade que não podia mais oferecer para Blandine pois com ele traiam mais do que uma outra pessoa; traíam essas pessoas especificas: eles mesmos fiéis.
Atmosfera de musgo na casa. Notas de couro. Nem sabiam se ainda se dançava assim. O corpo suado se acostuma ao ambiente refrigerado. Desejaria eu para quem eu ame o sofrimento de uma vida como a minha, entre a demasiada loucura e a lucidez excessiva? Um momento para ser lembrado, apenas isso. A infelicidade, a felicidade que se sonha (sempre inatingível), as encarnações do amor (nunca o amor), a estirpe do acaso. O toque das mãos da mulher entrelaçadas em seu pescoço era a glória cujo acesso se perdera. Ela se tornara esposa de um executivo, mãe do filho de outro, dona-de-casa, pretendia abrir uma loja, se naturalizar. Uma vida na mais absoluta ordem.
Lâmpadas piscam, uma luz ao longe, da roça dá para ver o centro de Piumhi. Não podia mais possuir recordação dos cafezais. A memória da desordem que ela recusara. Mas e o quanto era importante para ela saber que ele estava vivo, ainda lutando, trabalhando, escrever, o que mais se pode fazer com — oh, sim — um dom? Ele não nascera para estabelecer família, seria como morrer. Não deveria fazer tal promessa.
Um beijo. Um beijo de consolação em meio aos sons da noite, ao longo do pulsar dos corações, no cheiro acre do centro de Lisboa, no frio que sensibiliza o ouvido, no gosto do vinho entre o prazer do primeiro gole e a náusea disfarçada pelo café. A nuca de Blandine fortuitamente exposta, como antes seus joelhos, numa curva do táxi.
Ela entrou no saguão e apanhou sua chave na portaria. Treme. Se ao menos tivessem feito esse tipo de coisa mais vezes (noitadas, tomar sorvete, andar de mãos dadas). Se as coisas não tivessem se resumido a tanto sexo...
Pára, hipnotizada pelo quadro atrás do porteiro. Flores. Quantas vezes ele me deu flores? Ele me deu flores alguma vez? Bombons? Ele esperou alguns minutos na friagem que despertava o ouvido, resfolegando de fraqueza. Caminhou e entrou. Blandine está no quarto 203; Francesca acabou de entrar no 404. Ele continua subindo as escadas pesadamente até o quarto andar, depois desce descalço. A porta se abre. Ângela está em seu próprio quarto, contíguo; Blandine recostada nos travesseiros superpostos. O bebê dorme a seu lado. Andrei sentou na beira da cama.
— É, eu sei, o Kleber me contou. — Ela era minha segunda mãe. Blandine diz Você leva jeito, olha só a carinha que ela faz. Que neném mais linda que ela é, talvez tenha visto algum detalhe, mas isso não estaria certo, então se calou diante do seio em que tantas... —Qual a idade dela? Não deveria pairar nenhuma dúvida a respeito. — Ela tem um ursinho de pelúcia. — Você não vai adivinhar o nome dele. Blandine sorri. — Posso adivinhar. — O ursinho garante sonhos bons. — É o que eu sou? — Sim, um sonho bom. Por isso era tão fácil amar Andrei nas noites. Nas responsabilidades cotidianas melhor não que não estivesse por perto. — Há tantas responsabilidades no seu cotidiano? Ela sabe o que estou perguntando. — Responsabilidade demais — disse ela. Não vou dizer o que ele quer ouvir — É preciso experiência e maturidade, equilíbrio. É preciso ambição. Saber o que se quer, ter metas e lutar para atingi-las. Como se a ouvisse dizer Estou viva apesar de todos os sonhos que ficaram para trás com sua partida de Piumhi. Estou viva. A mão de Blandine descansou na própria coxa. Dedos de asiática que faziam sentido em suas mãos. Questionamentos, o sentido da vida, dilemas, poesia, tudo isso é retórico, irreal demais para se
conciliar com os dias, com o dia-a-dia real e seus mecanismos de trabalho, de subsistência, de manutenção da saúde, de convivência com a família. Ambição. De ter uma boa casa, comer bem, usufruir de lazeres interessantes, ser respeitado na sociedade e (claro) viajar. Os questionamentos e o sonho inócuo cabem bem na noite, como Andrei, como Blandine mesma agora há pouco. Não nos dias. E o dia sempre chega. — Quem sabe num livro — concluiu ela.
Quando soube, ficou preocupada. Tudo acontecia tão rápido que pouco sobrou de tempo para cismar. A explosão hormonal subiu ao rosto e o peso do útero desceu. Tanto xixi assim de pouquinho, vida escorrendo para tornar a existir. O enjôo, a tontura, a fome, a falta de fome. Coisa lunar, só pode. A crescente dizem é ótima para começos. O desconforto, a dor nos seios, tanto chorava, inchava. Com o humor oscilava a pressão arterial e as expectativas. O ardor da pele e o aumento da barriga. Contaria a Andrei. Estava excitada. Será ótimo. Se fosse menino, ia sugerir Diego. Se fosse menina, ia... Não.
Bruna é um bebê muito meigo, bonita, inteligente. Mostra a foto quando ela recém-nascera. Estamos pensando em mandá-la para Londres quando ela estiver na idade de escola. Octavio conheceu um casal de Finchley. Estiveram lá em casa esses dias. Vão arranjar uma vaga, quando ela estiver na idade. - Um internato?... - Porque não? Você mesmo viveu num. - Eram outros tempos. - Decerto Bruna já mostrou interesse por piano. - Você está zombando, Andrei; mas sei que no fundo se importa. Ele não disse nada. Ela falou, quase para si mesma: - O que afinal você faz na Europa? - Escrevo um livro.
Bruna, que dormia para a parede, voltou o rosto. - Olha. Não é igual mamãe?
Ele não pôde verificar a semelhança. Bateram à porta; - O senhor pode vir aqui um momento, se faz favor? - Sim? - Andrei pisou fora da soleira e encostou a porta. O porteiro sussurrava. Disse: — Sua mulher procurou o senhor várias vezes. — Minha mulher? Ouviu Blandine acarinhando Bruna. — Ela está bastante perturbada, se me permite dizer — continuou o porteiro. — O que devo fazer? Arrefece a fúria que o impulsionou escadas acima. No corredor do andar de nosso quarto, parou à porta ao ouvir o sono de Francesca. Voltou às escadas. Desceu devagar. Entrou de novo no quarto de Blandine. A água de uma descarga corre pela parede. Ouviu o canto de pássaros e apesar da escuridão entendeu que a noite acabara. Ela sussurrou. Estava quase dormindo. Ele queria dormir também. Deitou-se a seu lado e ela recostou a cabeça em seu peito. Foi assim, uma distração do destino. Não devia nos expor assim, Ângela pode entrar. Esse jeito eu não lembro. Ela cavalga. O frio de agosto em Piumhi. Os cascos no galope. Vendinhas abrindo, o primeiro ônibus dos cafezais para a cidade, o primeiro trator com boléia da cidade para os cafezais. Um movimento diferente do cavalo torna o amanhecer diferente. Não é mais pelo hóspede que será transtornada a rotina. Ela está falando. Ele não sabia que ela falava dormindo. O sol. O sol do sul de Minas. Ele ri. — Você disse alguma coisa. — O quê? — O sonho é seu... Ela olha, pisca, o colchão registra a perna que se moveu sob a coberta, o braço que se esticou fora dela. — Você é romântico demais — disse. — Não dá pra ser assim.
Dez horas da manhã no aeroporto. Enquanto esperam, o que fizeram por cerca de meia hora, Andrei avistou um conhecido. Octavio viu dois. Abraçou Blandine e a beijou. Pegou Bruna de Ângela para seu colo. — Octavio, esse é o... — Octavio? Com uma risada discretíssima, Octavio perguntou, num português carregado: — Vocês se conhecem? — Vocês se conhecem? — repetiu Blandine.
Perguntou se o Luis estava. Talvez chegasse no dia seguinte, disse Filomena. — Que pena. Sou o brasileiro que ele conheceu em Madrid. — Claro! ele falou muito acerca de ti. Falou muito bem. Ela pergunta se Andrei estava a querer entrar no negócio. — Que remédio. Não fique assim. Luis também era cheio de escrúpulos no começo, e agora... Ele imaginava. O lucro é tanto que torna o risco e quaisquer constrangimentos irrelevantes. Ela disse Vou arrumar a cama no sofá. — Não quero incomodar. — Não é incômodo — disse ela. Sou a Filomena, muito prazer. — Luis também fala muito de você. Ela sorriu. Estavam juntos há quatro anos, Luis e Filomena. Davam-se muito bem. Mas em dezembro ele arrumou uma cena no estrangeiro, na Itália, ela achava. Para lavar papel, imagina. Desde então passa muito tempo fora. Mas ela compreende. Nosso relacionamento continua muito bom, diz, até melhorou com a distância. — Nós nos conhecemos em Madrid — disse Octavio — quando fui tratar daqueles imóveis com o Paco, lembra?
— E você não sabe da coincidência maior — Luis Octavio ouvia atento. — Ele é rapaz que eu namorava no Brasil. Aquele. Portanto, não era, por exemplo, um policial do Departamento de Narcóticos se passando por viciado. Menos mal, o assunto estava naturalmente se afastando da noite madrilena, de Gaia, de Filomena. — Obrigado, Filomena. — Vai dar tudo certo. — Pois, Chaval. Ela ficou louca comigo porque descobriu que assumi com outra (que aliás é brasileira também) um compromisso que ela esperava eu assumisse com ela. Luis Octavio achava que não saberia viver sem Filomena. Seria capaz de matá-la se ela o deixasse. — Minha esposa, não a mataria.
Vitrines brilhantes, piso espelhado, pessoas, pessoas em todas direções, tocam-se no sentido contrário umas das outras, íntimas pelos pés em sandálias e as mulheres pelos ombros, fragmentos de frases, o verde e o negro dos táxis; a luz dos letreiros nas vidraças escapa sobre a fila sinuosa. A jovem de short com o joelho apoiado na bagagem. A bermuda do rapaz se confunde com o vermelho da fita. O olhar amarronzado de Luis. - Você deve pensar que eu a convidei com segundas intenções. Mas não. Aconteceu. - Curso de português para estrangeiros... - Tinha também aulas de italiano — antecipou-se Blandine. - Querida, está na nossa hora - aproximou-se e a beijou. - Adoro-te! Ela aperta a mão de Andrei. Recebe Bruna do marido, que a abraça. - Adeus! - Adeus - disse Andrei. O estalido da mudança de minuto estala no relógio. Quando caminham para o avião, ele faz sinais. Grita. Está passando. Só o tremor nas mãos.
Gritou em meio ao pesadelo. Chorava. Apenas um sonho. Respirou fundo. Levantou-se e tomou decisões para o dia seguinte. Era um renomado homem público, um escritor reconhecido. Lutara muito para chegar à sua posição. Purificara-se pela obediência às leis democráticas. Crescera nas campanhas eleitorais em virtude de sua opção pelos pobres. Aproveitara suas chances num mundo em que são iguais para todos — de que deveria se envergonhar? Por que então estava gritando no meio da madrugada? Pediria uma audiência no dia seguinte. Tantos lhe deviam favores. Foi do que precisou para livrar Antonio. Generoso, pouco queria em troca. Antonio é um homem livre. Se alguém vasculhasse seu passado, não descobriria as manchas pelo seu benfeitor apagadas. Antonio é um homem livre e começou a gostar de ser. Sexta à noite, o diplomata ele explica o negócio. Antonio responde: - Eu mudei, doutor. Quero uma mulher. Quero ser um homem de respeito. Quero conquistála. O homem respondeu que, sabe, Antonio, sinto algo estranho em ti. - Vou dizer duas coisas. Primeiro, você não é insubstituível. Não vou ameaçá-lo com seu passado, pois seria uma ameaça para mim mesmo, estamos juntos nesse barco. Mas se você morrer, quem chorará? E, se você morrer, hoje mesmo chamei a meu escritório um rapaz, um brasileiro. Tudo o que ele quer é um trabalho. Ou ainda menos, um livro publicado. Estou pensando seriamente. Não faça que me sinta desconfortável. O assaltante entrou pouco depois que António deixou o apartamento. O diplomata tomava banho. Cantarolava no chuveiro. Esquecera o pesadelo. Esquecera Antônio. Chegara a pensar que estava velho, esse Andrei caiu do céu. Estava cheio de planos. Segurava e lavava. Percebe o vulto.
Atravessou a transversal; passou por uma cabine telefônica, pelo metro Areeiro, entrou num barzinho da Almirante Reis. Havia ficado numa pensão cuja referência era a Igreja dos Anjos. Lembra de um homem que, na época, um mendigo pediu um cigarro, nessas mesmas escadas. É o mesmo homem. Chega a ressonar nas escadas, aquecido pela sopa da Assistência Social. Andrei aproximouse e colocou o maço. Deu uns cinco passos e tomou um gole no bebedouro público. Enxuga os lábios e a barba com a manga. O prédio imerso num efeito sombrio de aquarela. Desceu nos Anjos. O vento encanado dos subterrâneos. Passageiros esparsos na plataforma. Apanhou o trem. Jogava dum lado para outro na dança de truques e trilhos. Estados Unidos. Saiu.
Que gente toda é essa empurrando pedras com os peitos em carne viva, uivando de dor, expoentes outrora? A lua bate num telhado e a noite ali se condensa enquanto a sombra repete a nuvem. Na segunda hora da terceira sessão a pesada porta se abriu. Pessoas entrando e saindo esbarram na funcionária. Apagam-se a luzes de novo. O vínculo com a sanidade reside na dor. As pernas vacilantes, o desconforto, a dor de cabeça, o espasmo extrapiramidal, o ouvido eterno, a fraqueza mórbida. Eram os dias em que o papa João Paulo II excomungou o bispo. Os chiados do rádio ficaram para trás enquanto ele se aproximava da janela. O assoalho estalava sob seus passos. Raios revelavam o pó que seus movimentos levantam. O sino badalou na noite e sagraria a noite enquanto vibrasse.
A cabine. - Querido! Elo inquebrantável, Francesca e Andrei se encontraram de madrugada.
Som forte de chuva. -Mulher tu não sabes! Risadas altas. Francesca. - Vou ter que caminhar até a pensão debaixo dágua. - Poderia pedir boléia - argumentou a amiga. - Não pegaria bem. - Ai que esse brasileiro é uma doença, mulher! Acabara de sair do pub, ligou avisando.
Sobre a suave aspereza do cobertor, as mãos ágeis e ardorosas. A roupa cheirava bem, pela bondade de funcionários do comércio que permitiam os banheiros e pela dona da pensão que deixou que usasse a máquina e o varal. Os fios de cobre, encostados na janela, não haviam chamado a atenção da vez anterior.
Ela está linda assim toda produzida. Está feliz. Ele abraçou o corpo molhado. Como ela se calará se ele não a beijar? - Senti tanta tanta saudade, querido! pensei que não te veria nunca mais! As mulheres vivem em chamas. Elas sabem o caminho.
Os dias passam. Agosto chega e nada muda. De novo juntos na pensão. Ele escrevia e cuidava dos afazeres domésticos. - Estás estranho, estou a me preocupar, está tudo bem, amor? - Sim, claro - disse ele. - Tudo muito bem. Costumava dormir oito da noite. Acordava à meia-noite. Acordava, se arrumava e ia buscá-la. Quando voltavam e ela logo adormecia. Lá pelas quatro da manhã, refugiava-se na varanda. Nas madrugadas em que Francesca dorme ou naquelas em que a leva ao longo da Avenida Liberdade, nos bares do parque até fecharem, na volta da avenida no inicio da noite ou a esperando à saída, indo e vindo pela avenida esvaziada, escrevia desesperadamente pelo direito de escrever a palavra Fim.
A avenida iluminada como quando voltava outro dia com Blandine. - Vê como o meu italiano está ótimo? - disse Octávio. Putana! Acaso achou que não percebi?
Seu rosto no espelho da penteadeira, Francesca se perguntou o que fazia num relacionamento que da fidelidade de antemão havia prescindido. Não se incluía no rol das mulheres que se conformam em estar com um homem dividido, que ama outra, das mulheres que toleram a relação assim maculada. No inicio, quando soube de Blandine, pensou que fosse apenas uma forma de ele se defender da existência de Franco. Na verdade, quando soube, pouco se lhe deu. Andrei, era apenas uma aventura, como os outros. Olhou-se mais, fundamente. De seus olhos, a lâmpada escorria pelo quarto. Talvez verdadeiramente o amasse e precisasse dele para ser feliz; e Blandine passou a ser ameaça à felicidade.
Então ela dormiu pensando que, a partir do dia seguinte, seria a mais amável das mulheres. Controlaria seu gênio, seu ciúme, seu desejo. Tentaria descobrir onde havia no sentimento dele a mágoa de Blandine e se superaria para agir de modo oposto. Mas não se mostrará subserviente. Não se deixará envolver por suas emoções. Esse tipo de coisa — essas pequenas determinações — são eficientes mas pouco perduram, pensou Andrei pela avenida. Queria paz com Francesca; era o que restava. E ela estava disposta. Irá encarar seus defeitos, ser positiva, otimista, alegre. Conseguirá outro emprego. Devotar-se-á. Por amor dele e dela mesma, que teria assim ao lado o seu homem, inteiro. Parará de se comparar com outras mulheres: aquela é mais magra, essa tem um bom salário, o trabalho dessa outra não é estressante. Agora ele pensa que ela dorme. Ao amanhecer, com a camiseta rosa e o par de tênis novo, daria sozinha uma caminhada até a empresa de Cintia. - Claro que sou capaz! Claro que aceito! obrigado, obrigado! — disse Francesca, feliz como uma criança. - Te espero então amanhã - disse Cíntia no abraço. O mundo era belo e da beleza do mundo ela se impregnou. Dormiu.
Ao aproximar o rosto do rosto dela não sentiu o familiar alento e sentiu um calafrio. Não levava a sério quando Francesca dizia sofrer do coração, pois ela era muito hipocondríaca. - É claro que seu coração sofre: sofre por me amar! Segue-se o ritual. Chama por ela, sente o pulso, cobre os lábios dela com a mão direita. Fim do ritual. A transitoriedade se transforma em imortalidade. Descanse, então. Que o hades seja um lugar melhor.
Soube na recepção que ele também deixara o hotel no dia em que ela saiu. Foi ao Palácio Foz, à Universidade, à Fundação, a todos os lugares mencionados desde que se encontraram na sala de TV. Nada. Na policia tampouco. Ficaram com o telefone dela, para o caso de alguma novidade. No
consulado disseram que oficialmente ele jamais esteve em Portugal. E ela? Estava com a situação regularizada? Blandine empurrou o funcionário e saiu. Começou a se desesperar.
Chegara de Trieste, pela manhã. Quando decidiu vir a Lisboa, não pretendia abandonar o marido. Havia justificado a necessidade da viagem dizendo que não era justo que Andrei ignorasse acerca de Bruna. Estava certa de que Luis Octavio compreenderia. Estava errada. Luís não imagina que ela terá essa coragem. O alerta se acende quando Michel o visita no escritório. - Negócios ilícitos? Ora, não me aborreça! Aliás, fique quietinha e arrume tuas coisas. E se me denunciar nem vai ter tempo de se arrepender. - Você está fora de si, Octávio. Estava fora de si, responde ele, quando não percebeu que ela apenas o usara para ter uma vida confortável na Europa. - Sua puta! Vagabunda! Blandine está próxima da janela. Venta muito. É possível que neve, mais hoje mais amanhã. - Aliás, salvei a vida desse veado e agora ele cospe no prato. E por causa de uma putinha que nem você. Vocês se merecem! Agora some! Em Lisboa, antes de procurar Andrei, ela vai para o quarto de hotel. Está exausta. A menina ressona. Deita-a e fecha as cortinas, depois se deita ela própria e fecha os olhos.
Eram três horas da madrugada. Ela se virou de lado, de frente para a lua pela fresta da cortina. O peso da cabeça afunda o travesseiro. Houve então o silêncio pleno que liga um dia ao outro.
Desci as escadas com os olhos ardendo por ter chorado tanto. Bati a porta da dona da pensão, bati, bati. Não atenderam. Sai sem destino pelas ruas de Lisboa. Ao atravessar a praça da igreja, ali estava ele. Não o reconheci a principio, de terno e gravata. Com ele, dois sujeitos igualmente elegantes. Vendo-os, veio a velha vontade de ser normal, próspero, feliz.
Pedi fogo. - Mas claro! És um gajo queimado. Ao sinal, os dois outros o agarraram e levaram para o beco. Um dava pontapés; o outro, socos no ouvido. Afinal ele não teria a chance de saber se era eficaz a receita de Beatrice, dissolver camomila em óleo de cozinha, coar e pingar umas duas gotas. — É um anti-inflamatório natural. E para os males do tratamento anterior com antibióticos, própolis e muito sol antes das nove e depois das três. E abusar de iogurte.
Do galinheiro, Blandine escutou o choro da filha. Correu, atravessou a horta, chegou ao lugar onde a menina estava. - Mamãe, se Deus realmente ouvisse as orações, o gatinho não teria morrido. A menina orara por ele a noite inteira. - Deus deve ter coisas mais importantes com que se preocupar. A mãe sentiu o choque. Novamente o corpo. Debruçada sobre o animalzinho, diz à filha que traga leite pois o gatinho estava vivo. Bruna obedece, tremula de expectativa. Blandine usufrui o momento de tornar a presenciar os acontecimentos. - Mami! ele tá bebendo! Blandine agora deve voltar ao trabalho. A chuva parara. Ainda bem. A umidade é ruim para o gatinho doente.
O mendigo fazia sinais. O guarda se limita a olhar. O homem atravessa a avenida. Há firmeza nos passos andrajosos. - Ali, nos fundos do prédio!
Sim. Realmente. O corpo ensanguentado. Logo as sirenes. Aumentam. De todos os lados. Os carros da televisão chegam ao local da tragédia. - Aqui, aqui! - Que horas são? Amanhecia. Como assim Não venham para a Baixa? E que caminho vou tomar? O rio. Uma mulher acena. — Oh meu Deus! Que horror... - O que é isso, está louco? Outro carro e outra manobra arriscada. Mais bombeiros.
Ah se você soubesse, se ela soubesse — Tomás dizia — o quanto ele a amava e o quanto a vida passara a valer a pena desde que a conheceu. Isabelle sabia, ela sentia o mesmo. - Nunca acreditei que isso pudesse acontecer. Estavam mesmo mais e mais apaixonados. Mas agora ela está triste por causa de sua mãe, uma mulher generosa, mas não tinha sorte no amor, sempre atrás de relacionamentos impossíveis. Tomás pára e pensa em dizer alguma coisa mas não diz nada é o tipo do assunto. E como sempre acontecia depois desses silêncios, eles se beijaram e de tudo se esqueceram. Mesmo se estivessem atentos à TV e tivessem o pronunciamento do presidente da União Europeia, não teriam pensado no amigo.
O fogo se reanima e alastra ao fundo da rua Garret. A tóxica fumaça se concentra na zona do Camões. Todos os haveres do homem estão ali, milhares de contos incinerados. - Está lá? Quem? A neta? Um brasileiro? O homem segura o pulso da esposa. - Mulher, não sabemos. - Sim sabemos. - Querida... - Me deixa!
O homem se afasta, deita-se no sofá; num instante estará dormindo. Acordaram muito cedo, como já não costumavam acordar desde que se mudaram para Póvoa. - Acalme-se, minha senhora, O cenário é dantesco, mas isso é tudo.
Um homem pára agora e se inclina no miradouro. Lá embaixo o bombeiro vai entrar por uma janela, a água das mangueiras como uma chuva de filme. Parece que o vento está mudando. Súbito a cinza é varrida em rodamoinhos. Muito plástico por aqui. Uma profissão dessas. O homem no miradouro vê que o bombeiro já entrou, imagina como conseguirá respirar naquele inferno e pensa em sua própria vida. Jamais devia ter se aproximado daquela mulher, sempre soube o que acontece quando um homem se envolve com essas mulheres de pub. Cíntia inclina um pouco o pescoço para ver pela janela do carro. Lembra-se. Francesca não morava aqui perto?
Alguém começa a tossir. Dá para ouvir de dentro da sala da pensão onde a mulher fala ao telefone. - Aquele rapaz não foi para lá, aquele que teu marido hospedou uma época? - As pessoas aí no Brasil se iludem, a situação em Portugal não é bem assim, sobretudo em relação a emprego.
A fumaça entra com maior intensidade, o homem tosse mais alto e ao desligar o telefone a mulher vai à janela e fecha a fresta que havia.
O homem não gosta de acordar tão cedo, está com um mal humor dos infernos. Vê a mulher no carro, avalia o quanto é bonita. Acha que a viu no pub. Mas parece uma mulher fina, não é possível que trabalhe ali, um ambiente no mínimo tão masculino. Quando os carros se cruzam, escuta a voz, é contralto, combina com ela, mas parece que fala de outra dimensão. Diz para o homem que está dirigindo que ele não se preocupar, tudo vai ficar bem, eu mesma tratarei de tudo. Lá fora o fogo crepita ao fundo da chegada ruidosa de mais um carro dos bombeiros ao sul do elevador de Santa Justa.
Focos de fumaça súbitos ressurgem em labaredas. - Calma, calma. A mocinha conforta a senhora, passando a mão pelos cabelos dela. - Minha filha o que será de mim? Sua loja estava a arder. -Deixem-me passar! - gritou o homem com a cabeça para fora do carro. - Aguente firme, já vai chegar ajuda. Outra explosão. Pode ser gás ou um aparelho de ar condicionado. Na pensão o telefone não pára. - Não, ele não voltou, deve chegar logo. De nada. Na verdade, a proprietária não sabe a que horas ele voltará, nem mesmo se tinha saído. Repete-se, enfadada. Não, não está. - Sim, um jornal do Brasil. - Senhor, o senhor sabe que horas são aqui? Uma hora dessas e o número não pára de dar ocupado. Maria das Dores teria uma oferta irrecusável, caso tivessem atendido. Mas não é tão grave, há montes de jornalistas por aqui; cobrarão mais, mas é um momento único, vale a pena. De longe e do alto, do castelo de São Jorge por exemplo, a visão parecia maquete a que uma criança tivesse deitado talcos. O vento sopra em direção ao sul. Umas quatro e meia da manhã. O inferno em directo da rua Garret. Os prédios cospem labaredas. - Agora vou pá li a ver se de facto. Mas não, não dá para entrar pela Rua do Carmo. A fumaça aumentou e há pouco as chamas tornaram a lavrar no primeiro quarteirão à esquerda. Os prédios cospem labaredas, o rio ao fundo. Um ardor imenso e ruidoso. Que cenário!
Como chegou a tanta amargura esse homem que dá a impressão de ter sido outrora feliz? Bruna se pergunta por que tanta dor, por que erra assim, sem amigos, por que não tem descanso exceto talvez essas horas que passa no cybercafé. O terror noturno todas as noites. O terror, a vontade de morrer. Tenta pensar que logo, quando amanheça, estará lá, perto dela, que tanto o ajudou no comecinho, quando nada sabia sobre computadores.
Além das seis horas na loja, ela trabalha como voluntária. Sua roupa é simples, muito limpa. Não usa maquiagem. E o homem outrora feliz está por assim dizer esfarrapado — não tem proteção social, não tem renda ou trabalho. Mas a culpa é dele mesmo. Ela não entende nada dessas coisas
Algo os une. Bruna. É esse seu nome, ontem ele ouviu alguém dizer. Cheia e forte, contornos forjados pelo trabalho doméstico, talvez até na roça. E, como a massa de pão, será coberta e crescerá. De noite ele a cobrirá também, caso ela se descubra. Fica observando como ela dorme, tão serena. A filha que não teve, a mulher que fugiu. Nem a presença súbita do noivo para buscá-la o desperta. Ela está ainda deitada, um ligeiro tremor nos olhos fechados, depois vai até ele, que está lendo na sala, e lhe dá um beijinho no rosto. Tem um copo de leite nas mãos, pergunta se ele quer também.
Bruna o vê, a rua escurecida, o dia ofegante, os efeitos da insônia. Ninguém à volta deles. Não, não há esperança. Ele é a rua, o cansaço, o sono que não concilia; ela, a loja, o trabalho, a luz. — Oi, como vai o senhor?
Eram vinte para as cinco, quando o homem se deu conta, era numa montra, num buraco, não pela janela - pela montra - tem essas montras corridas, o senhor sabe, e aquilo era tipo duma turbina que estava a puxar o fumo para fora, antes dessa hora não percebi nada, quem chamou os bombeiros foi o polícia lá de serviço, mais ou menos cinco para as cinco, mas os bombeiros só chegaram entre cinco e um quarto e cinco e vinte. Quando lá chegaram o fogo já estava em grandes proporções, os armazéns praticamente destruídos. - Aqui, aqui! - Deus de misericórdia, o corpo está todo queimado... - Vai ficar tudo bem. Já está chegando ajuda. O que esse senhor está dizendo? já o vi por aqui. - Calma, vai ficar tudo bem - repete o mendigo. Não consegue articular palavra, quer perguntar o que é essa claridade, esse sangue, mas não consegue - Não fale - diz o mendigo. O policial se agacha e repete
- Não fale. A ambulância já vai chegar.
Em algum momento começou a se ouvir o murmúrio das tempestades que se tornam chuva, após a ventania e as trovoadas. O momento em que o fogo abranda e se percebe que legara faces fantasmagóricas aos edifícios. As pessoas atingidas devem se dirigir às juntas de freguesia, entrar em contato com a Câmara Municipal ou com a Casa de Misericórdia. Podem eventualmente olhar para trás.
O homem não faz idéia do que ainda pode acontecer. Nada de nada, não vi o administrador, não vi ninguém; do total eram quinhentos ou seiscentos empregados dos armazéns, ninguém sabe o que será deles; mas pelo menos ninguém morreu, quero dizer, aquele vigia parece que não resistiu às queimaduras, e aquele bombeiro, mas enfim, é pouco pelo que poderia ter sido — como se a tragédia pessoal fosse um mal menor, como se males pudessem ser menores porque atingiram um número menor pessoas.
Lisboa, as velhas casas de Alfama. Sobre o rosto transparente e o sol nos cabelos negros, os frames na janela do carro com destino ao cais se multiplicavam com os números do taxímetro. O Tejo passa do lado esquerdo, se confunde com a bruma, retira contornos, perde-se na transitoriedade do motor e na pele de Blandine. As mãozinhas de Bruna aparecem no reflexo e se penduram na blusa azul esgarçada. Logo descansariam, descansariam em casa. Na mochila umas poucas roupas, cadernos e blocos de notas. Poemas, artigos, crônicas, um diário e até o esboço de um romance, manuscrito.
Quando despertou, o sol oblíquo traçava um caminho desde a janela sobre o berço até a porta, chegando quase ao fogão, junto à lenha. Ela herdara a terra e possuía quatro mil pés que ela mesmo plantou. É ela quem decide se vai ter uma poda ou o tipo de capina. Faz o trabalho todo da lavoura, das carpas até as colheitas, a adubação, tudo é ela que faz. De seu jeito exigente resulta um café de melhor qualidade. Uma vez a terra não estava produzindo; devido à sombra, as folhas estavam velhas. Aí a gente tira, disse ela, e vai dar mais força para a planta. Naquele ano, produziu trinta sacas. O processo da industrialização agrega valor ao produto. Ela seleciona os melhores e a torra é leve, quando o café é bom não precisa queimar. Não fica amargo. É suave e tem um fundinho adocicado.
O calor das lembranças vivifica os pés de café, à luz do dia pleno cintilando, rios verdes que sombreiam as ruas de café à frente. Do delírio europeu se originou essa realidade de que seus olhos podem ser editores; cada flor invisível na mata possui um aroma, uma beleza e um significado. Na ultima curva há a visão da luz enquadrada na janela ao longe. A terra exala cheiros de amada satisfeita. Outros pingos tamborilam no telhado a percussão de uma remota cantiga infantil. Um sentimento fecundo se reflete nas poças e no riacho — as águas, as águas — as águas correndo límpidas entre a florescência, levando as folhas do bosque para a cidade. Um dia, a ausência consentirá na sinfonia que só ali existe. O vento leva o que se vê e verá o vento quando não mais a olho humano for possível — quando as folhas secas, partidas, misturarem-se ao pó. E a vida gesticulará em ciclos como notas de suítes assistidas pelo tempo. E o tempo caminhará largo para a eternidade, vendo a vida como a vê um adágio.
Os apanhadores de café subiam na carreta engatada ao trator, prontos para mais um dia de trabalho, em meio à algazarra com que zombavam da faina diária. Ao avistarem a mulher e sua filha, calaram-se. Depois que elas passaram, até não mais que pontos no pó da estrada, emaranharam-se num crescendo os mexericos. Uma lenda se fizera em torno da mulher por causa de seu isolamento desde que voltou com a criança da viagem misteriosa e foi viver na chácara de seu pai — sozinha, exceto pela menina e os bichos. Com sua loucura. Sua história, os camponeses adaptavam à própria capacidade de compreensão, o que multifacetava a lenda. Mas em nenhuma versão se achava a verdadeira historia. E os jovens ou os velhos, os nativos ou os aventureiros do café, os que pensavam de um modo ou de outro e falavam de diferentes maneiras — todos concordavam em que havia na mulher uma aura de pérola. O trator começa a se deslocar e nas conversas outros temas se entrecruzam. A luz da manhã se derrama na bruma sobre os cafezais — a manhã se derrama, como todas as manhãs. E todas as águas — todos os oceanos do mundo e todos os riachos do bosque —, todas as águas sobre a face da terra entendiam. E o universo.
Em 2008, no dia de seu aniversário, tão logo Isabelle desligou, o telefone tocou. Não é possível. Mas reconhecia a voz, se reconhecia nela. E quem fala um inglês tão peculiar? Lágrimas azuis como há vinte anos naquela plataforma.
Vosges. Ele não vê ninguém, exceto pelo ruído das pedrinhas, mais perto cada vez, mais perto cada vez. Sente a mão em seu ombro. Levanta-se e a acompanha. A noite desce no frio de dezembro. Não percebem o quanto andaram, ou percebem, mas passam pelo prédio — estão quase na ponte. O rio ao anoitecer, um cenário esperado. As nuvens passam mas as ruas estão vivas. Eles não dizem nada. Não dizem nada há vinte anos.
FIM @2016