O pescador escandinavo

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O PESCADOR NORUEGUES

Ricardo de Almeida Rocha


Os dias de inverno em que o sol quase não aquece mas tanto ilumina são dias em que os que chegaram ao inverno da vida ainda podem sonhar. Mesmo quando doentes. Mesmo que se achem inúteis. Mesmo sempre inoportunos. Ele pensava assim naquele dia ao voltar do médico, o que era raro. Não pensar. Voltar do médico. O que significava que tinha ido. Não do médico. Da médica. Sim faz grande diferença. Houve por exemplo aquele momento em que pediu para ser internado. - Só autorizo internação em último caso - disse ela. - O que falta para que meu caso chegue lá? - É quando o paciente representa risco para os outros ou para si mesmo. Quando se torna agressivo ou pensa em suicídio. - Ah - disse ele. - Bom saber que não preencho os requisitos. - Graças a Deus. Com um homem parecido ela sonhou na noite anterior. Ombros largos, não troncudo. Cabelos curtos não penteados, penteados com a mão. Camiseta e jeans. Uma mochila como essa. Em dias assim se acentua no homem o desejo de uma companheira com quem partilhe essa vontade. Uma mulher que o receba e se tornem uma carne quente e una mas também possam depois calarem juntos nessa paz posterior que é tudo e que mulheres costumam matar com palavras. - Mas e o que eu contei sobre as noites de angústia em que penso que seria melhor nem ter nascido? - Você disse que sempre passa - disse ela. - Podemos tratar isso no ambulatório garantiu. E repetiu: - Internação só em último caso. O consultório está imerso em uma luz avermelhada que contraria a lógica do azul das paredes e do próprio frio. Ela pisca de um modo teatral. Os olhos não o acompanham quando ele se levanta e caminha até a janela. Em frente o prédio antigo no coração nervoso do centro da cidade. Entradas de pinho e escadas de mármore, espelhos de prata e arabescos


de gesso. Num lugar assim eu poderia morrer, ele pensou. Então se virou e a viu de costas pela primeira vez. Daquele ângulo era bondosa como a imaginara na época. E ao ouvir a voz dele sem o rosto ela se lembrou de modo ainda mais vívido do homem de seu sonho. Era o momento clássico em que o tempo fica em suspenso esperando para que lado a conversa irá e para onde levará as vidas. - E como seria esse tratamento? - Medicamentoso. Terapia. - Você quer dizer antidepressivos - especificou ele. Ela disse que sim e ele respondeu que não ia dar certo. Primeiro tomara remédios demais ao longo da vida e depois uma das poucas coisas que ainda restavam nessa vida era o afeto feminino. Ela continuava digitando e olhando o monitor. Tentou tranqüilizá-lo dizendo que hoje em dia existem antidepressivos que não afetam a libido. Ele pensou em dizer que não confiava em médicos mas recuou porque ela ficaria magoada e apenas perguntou se ao dizer terapia ela estava dizendo que iria colocar algum psicólogo entre eles. Não foi exatamente o que disse mas era isso. Ela disse que sim e ele concluiu que não ia dar certo. Ingenuidade pensar que daria. Que pudesse ter encontrado a solução para fazer suas traduções num lugar calmo em que não precisaria se preocupar com as refeições. Dias assim frios fazem esquecer a doença e a inutilidade como se o homem entrado em anos se sentisse de alguma forma preservado. Sim, pois estava na melhor idade. Até ofereciam lugar para ele no metrô. Não sempre. As vezes. Era portanto um velho. Não tão velho. Ao menos não se sentia assim. E estava doente. Não muito doente. Nada diferente do esperado para essa faixa etaria - aquele monte de dores ao acordar que um belo dia passam a fazer parte da paisagem. Ainda bem que existem os dias frios em que o sentir-se inoportuno é amenizado pela luz do sol que quase não aquece mas tanto ilumina em meio a casas encantadas onde o tempo não se decidiu se vai nos acompanhar ou se podemos continuar sonhando. Porque a maior parte do tempo não é assim mas uma sucessão de horrores presididos exatamente pelo tempo.


Exceto quando uma mulher se senta a seu lado na praça e o olha como agora. É um olhar inconfundível que ensina a um menino de treze anos que já é um homem e a um homem de sessenta que ainda é. ***

Johann Weingärtner chegou em Berna para estudar no ano em que a fábrica de chocolate começou a usar papel de alumínio e um pouco antes da Grande Guerra voltou ao Rio de Janeiro onde trabalhou como ilustrador até morrer de tuberculose. Sua filha Ana também desenhava e se tornou professora de pintura. Com vinte e um anos, ela se mudou para Porto Alegre e se casou com um outro membro do movimento expressionista. Tiveram dois filhos. A neta de Johann sempre foi o xodó do avô embora não tivesse qualquer propensão para seguir a vocação artística da família. Interessava-se pelas pessoas de mais idade e com 19 anos, já na faculdade, fazia a coleta de leite materno em domicílio para a Pro Matre Paulista. Quando saía à noite com seu irmão cada um com seu par ela em geral estava com algum estrangeiro mas nunca um alemão exceto quando namorou um ator parente de Karl Marx que tinha seu próprio teatro. Aos vinte e cinco anos conheceu num bar um arquiteto muito bonito e educado por meio de quem começou a se interessar pelas s expressões de arte e cultura norueguesa. – I'm Joachim and I'm from Bergen. – dissera ele com um largo sorriso, pedindo que ela e o casal se sentassem. Disse que acreditava ter também algum parentesco com Marx. – Are you serious? – espantou-se ela. – What a coincidence! – exclamou. Ficou com Joaquim por um pouco mais de dois anos. Aprendeu o idioma dele e a gostar de Grieg e Mari Boine. – Come with me and we'll see her concert at the Oslo Opera House – ele convidou.

A enfermeira ficou com o arquiteto em Oslo apenas na noite de natal. Ela estava com um casaco preto de couro com gola de pele e na saída do concerto ficaram vendo o pessoal patinar. Os enfeites iluminados caindo como gotas das árvores. As luzes amarelas.


O vozerio no mercado. Ele diz que ela está muito silenciosa e ela apenas sorri. Balança a cabeça tão de leve que não dá para entender se está ou não admitindo. Não tem a menor vontade de falar. É uma cidade tão linda, Oslo. Uma atmosfera quase bucólica em alguns momentos. E foi um concerto tão bonito. Mari estava tão elegante, ela canta tão bem. Se tiver de pensar em outra coisa que seja em trabalho. Em como ficar na Noruega. Conseguir o skilled worker. Ouviu dizer que a Noruega precisa de pessoal para a área da saúde. Afinal de contas, o idioma ela já fala e o dinheiro que guardou deve bastar.

*** Vinte mil longos sinuosos quilômetros de mar ladeado por penhascos glaciais. O menino caminha na pedra escura molhada e pisa no lago salgado diante da casa vinho de seu pai. - Det va en sjø-ørret, ikke en laks - disse o pescador. Debaixo d´água o esverdeado fundo de pedrinhas multicores e peixes amarelados por um sol como quase sempre oculto além do recorte pétreo das vertentes. - Veldig bra jobba gutter. - disse o avô. Outro menino gira o molinete com a mesma mão direita tremula à noite pensando na amiga e na mãe da amiga na varanda vindas do interior da casa porque era quase meianoite e tudo ficou laranja. Era assim o verão inteiro e nem ela se acostumava com a cor de tudo àquela luz nem ele com as formas daquela cor que a encontrava nos ombros do decote que nao se espera por esses lados. Essa mão. Esse céu inteiro laranja. E agora a pedra e o mar em tons de verde, o mar sinuoso dos fiordes. "Puxa o peixe meu filho. Puxa e me mostra" O menino estende o salmão como jóia numa bandeja e ri seu riso tímido ou triste. A superfície móvel e cintilante azul-escura quase negra respira também como os seios e arfa como a filha e o pescador entende e talvez aceite agora aceite que a menina pode ser mesmo uma coisa boa ou ao menos, se é inevitável, que seja ela, a filha de um amigo.


O retângulo da janela alaranjado destaca no centro o perfil da menina. Ela segura o porta-retrato em que o menino lhe sorri. Ele não sorri assim pessoalmente mas mantém esse agradável aspecto de amigo em quem se pode confiar. A filha do pescador entra com o copo de água e diz alguma coisa e se afasta de novo e senta-se no sofá. A menina bebe lentamente. A metade visível de seu rosto alaranjada. Um celular e um carregador na mesa de centro com as flores. As chaves do carro ao lado dos retratos sobre a arca de mogno. "Sou um ano mais velha", disse a irmã. "Sou de Libra". "Sou de Câncer" - disse a menina. "Acho que devemos enfrentar o sofrimento". O sol lá fora parece que será eterno. A luz lateral confirma o tamanho das coisas mas o que prevalecerá é a memória. As informações de uma representação da vida atualizada pela novidade. Pelo amor. "Ele está chegando", diz a irmã. "Parece que já te viu".

Faz tempo que está acordado mas permanece deitado e nao move sequer a cabeca. Não tem animo de sair para o mar e carece da vontade que daria sentido ao sair para o mar. A casa ficou deserta depois que a enfermeira morreu. Esse inverno sem fim. Essa escuridão. O lancinante lamento do gelado vento incontido sem contornos de folhagem ou troncos ásperos que o embalem pousa como uma camada de gelo sobre a memoria das coisas boas. Nenhum vestígio de luz sequer a lâmpada insone do abajur que faz as letras da monografia maiores e mais nítidas mesmo quando ele não está de óculos. Vulnerável está por demais vulnerável às harpas eólicas da vizinhança que ecoam em algum compartimento de sua alma e o quarto é um prolongamento da tundra e ouve os movimentos do gato como se ouvisse a si mesmo ancestral andando pela nave viking procurando fantasmas com seus olhos grandes e oblíquos. Você, musa transportada pelo vento! Se ao menos fosse triste como antes em sua solidão feita de atos reflexos e tranqüilos. Se ao menos fosse calmo como quando o assovio da lebre ártica era um aviso de dias bons e os sons da noite estavam carregados de consoantes pacificas como a espuma das ondas. Veio do nada e para o nada voltará. O conceito de despertar se desvirtuou na ausência de cheiros no ar exceto


obstinados feromônios. Wie der Wind heftiger herstößt, ele pensou. Meiner Sehnsucht allerheifsesten Schmerz.

O barco subia a cada onda escura lançado no ar sobre a tempestuosa superfície de um banimento profundo e furioso e o pescador sentia a chibata lancinante e salgada inextinguível como o inferno e o barco estalando a cada golpe como o cabo de um machado subitâneo que concomitante à lenha rachada se mistura no mesmo grito de madeira não por virtude ou vício mas apenas um nível acima do que é humano. A dor que tanta passa por êxtase e maravilha de Deus. Ondas perfeitas em que o conhecimento não importa e não importa a suspeita e a volúpia se perdeu nos elementos. Se fosse um filme, a câmera focalizaria uma mulher, mãe. Uma criança nos braços e outras duas irmãs uma de cada lado. Ela usa um vestido largo e escuro de um tecido semelhante à lã e anda no pier avermelhada pelo horizonte em chamas e o rosto fulgura dessa mesma luz. Vê que o barco esta se aproximando e aperta o passo angustiado e esperançoso sem sentir os pés nos sapatos pretos de homem. Passaria pela moça desfocada, se fosse um filme. A mãe e seus filhos são protagonistas desse take e quando terminam de passar vê-se as águas escuras cuja superfície esta fracamente iluminada pela lâmpada do poste.

Se fosse um filme, as mulheres de luto estariam olhando com dolorosa inveja. Uma delas é mãe e perdeu o filho; a outra é filha e perdeu o pai. A câmera focaliza o rosto da médica. Outra tomada mostra o vulto do pescador desenrolando a corda. Ela se aproxima e agora o vulto dos dois são um só. Ela fala. A música sobe lentamente. Eles se afastam do barco. Seus passos ecoam na madeira pois não é um filme. Se fosse um filme, enquanto caminham pela vereda ele aponta para o alto. Leva em si condensado o mundo de onde se expande além de seus olhos.


As luzes esverdeadas movem-se no cĂŠu.


***

Segundo sua fome se aproximava a hora do almoço. Também o indicava toda aquela gente no largo. Havia uma névoa brilhante e as sombras do meio-dia no verão ocultas sob as pessoas moviam-se e se encompridavam ao lado delas. Era o que ele constatara desde cerca de uma semana quando passara a comparar dias e estações. Desde que começara a observar o comportamento dos pombos em torno das migalhas e dos cães rosnando para quem se aproximava demais de seus mendigos. Quando os dias lavados pela chuva do fim de semana se engalanaram para o período seco que deveria durar pelo menos três semanas. Então a moça se aproximou e se sentou no mesmo banco como se o homem não estivesse ali. Ela achava que o canto de um pássaro é bom presságio portanto sua lágrima não faz sentido mas nao pode evitar porque não pode evitar a própria lembrança. A paisagem de súbito iluminada e de súbito a esverdeada indicação de arestas na pequena encosta ao lado da casa. A rodovia traça o prateado contorno da varanda enquanto a porta do carro é aberta manchada pelas luzes da lanterna. Ela descera precedida pelas grossas pernas em sutil equilibro no imenso salto pontiagudo vistas num relance em toda exuberância pelos segundos que ficaram expostas. O motorista que ela ultrapassou um minuto antes se tocou de longe ao vê-la caminhando sob os faróis que indicavam o caminho para a garagem. Porém ela desvia antes e depois de três degraus de escada o hall se acende. A porta da frente se abre e ela entra e a porta se fecha de novo. Senta-se na sala. Brilho difuso de um perfil de boneca entristecida. O olhar distante entre as notas girando em setenta e oito rotações de melancólica ebonite. Ela nunca atualizava o diário que mantinha no trabalho. Na mesma gaveta o carregador que sempre esquecia. Manchada pelos ramos da segunda árvore à direita de quem entra viu surgir do balanço da perna o esmalte se desfazendo nas unhas cortadas rente. No dedo da mão apoiada na coxa o anel de aniversário. A marca do caderno é o nome da empresa. Tem saudades, inclusive da pressão. Da pressão em si não da competitividade. E agora as páginas todas cheias da letra redonda e chorosa de pensamentos depressivos


como o barulho dos carros. Ela que gostava de ficar quieta em seu canto quando chegava em casa e percebia que tinha esquecido o celular. E agora. Ele mediu o que havia no espaço entre os dois. A saia xadrez e a blusa branca engomada. O crachá balançando entre os seios. Viu que ela havia se levantado e se afastara um pouco. O celular no calor de seus dedos gordinhos bafejado pelo hálito de canela. Por hábito ele havia apanhado o papel de bala e se levantara para colocar no coletor de lixo. Quando voltavam os olhares se encontram no espaço exíguo de uma impressão. Não viam as pessoas que passavam em frente à banca de jornais do outro lado da alameda. O caminho estava inesperadamente limpo como se houvesse um homem solitário para cada bala de papel lançada fora. Ela já o tinha visto antes — a blusa de lã fina de um azul gasto e as luvas coloridas sem dedos e até as falhas na costura do bolso lateral do jeans — e agora ele ressuscitava do vazio de uma chamada encerrada. Os ruídos da praça se diluíam na névoa de silêncio entre os dois. — Com licença — disse ela como se tivesse acabado de chegar. Ele assentiu com um apenas perceptível ricto. O pássaro na gaiola sobre a banca emitiu outra nota e depois outra mais alta e então calouse como se tivesse alcançado um nível desejado. — Que frio, não é? — a voz da moça se propaga em ondas. Separa as sílabas como uma cantora de blues falado. — Você não gosta? — Depende. Ele retribui o sorriso, se é que foi um sorriso.

*** Depois do jantar ela atendeu o chamado e entrou no quarto precedida pela sombra azulada que se movimentava à cabeceira da filha. Havia comprado o livro no dia anterior quando voltava da empresa. Sorriu ao ver que estava aberto no colo da menina sobre a coberta xadrezada. — Essa história me lembra uma que você contava quando eu era bem pequena. —- Que história? —- disse a mãe, lembrando. —A do rei destronado e da moça


pobre no jardim de inverno. —- Como era mesmo? —-Você sabe. —-Eu sei. —- Conta. — Você está bem grandinha, pode ler. —Não tenho esse livro. Quando a menina era bem pequena o homem e a mãe costumavam contar juntos. Era um inverno muito frio como havia muito tempo não fazia. O rei tinha consultado uma sacerdotisa chamada Hilda e ela disse que ele desceria em paz à sepultura e seus olhos não veriam o mal porque no último momento se humilhou e enterneceu. O homem e a moça abraçados caminharam no sentido da porta do quarto para sair. —Terminem de contar — suplicou a menina. Dias depois o rei desceu ao jardim de inverno e disse: “Que monumento é esse que vejo?” E seus homens responderam... —Ela está dormindo — disse a moça. —Temos de ir também —disse o homem. —Temos de sair cedo. —Tudo bem. Mas vou pelo menos pedir para minha mãe dar uma passada por aqui. —Não precisa, por favor. Ela tem de aprender a se virar sozinha. —Tudo bem. De qualquer maneira vou voltar mais cedo amanhã. - insistiu a mãe. A menina se virou para o lado da janela, prateada pela lua, ressonando. —Ela precisa crescer — insistiu o homem.

—Não foi assim com você?

Então é isso a juventude, pensou a moça. Então isso é o amor. Essa dor inacreditável no peito, essas lágrimas. Então ela pensou que os dois homens eram parecidos apesar do modo como se vestiam e de um fumar e outro não e do jeito tão diferente de olhar. Foi nesse dia que ela esperou o amante até o último momento bebendo cerveja na estação. Afinal ela também não viajou, por causa do outro, o senhor na praça. Quando atravessaram a rua estava garoando. A subida da longa avenida. Dobraram na segunda à esquerda, uma rua estreita que dava para o crepúsculo. Casas de tijolos aparentes Nenhum carro estacionado. Reflexos dos postes e telhados se confundindo com os vultos nas janelas. Ninguém os conhecia. Talvez algum funcionário da padaria ou uma enfermeira, pois o hospital não era longe. Mas em algum momento deixaram de pensar nos outros como sempre acontece quando nasce a esperança. Ele não se sentia confiante o suficiente mas ainda assim a iniciativa partiu dele e ela sempre lhe atribuiu uma virtude que ele possuíra um dia mas como tantas outras perdera, razão pela qual inventou aquela história de destronado quando a moça colocou-o como rei na história que contava para a filha dormir. ***


Acima da latitude sessenta durante durante o solstício de verão no mesmo assento do lado esquerdo de onde o horizonte norte incendiou o plasma magnético, sobre o mapa vivo e verde, enquanto a menina falava e sorria deixava à mostra a ponta da língua e uma covinha se formava sob as maçãs. Passavam as nuvens como lençóis esfarrapados estendidos pela brincalhona arrumadeira de Deus amiga decerto dos pastores de rena com os quais desejava dessa vez comer escondidinho de purê de bata com mirtilo junto ao fogo Ouvia a própria voz e via o rosto do companheiro de viagem como um intruso em seu sonho, é como o via, pelo menos num primeiro momento, um intruso, mas depois disse a si mesma “Por que não? não vou me casar com ele”- pensou e sorriu e deu confiança àquela conversa fiada e os dois entraram num espaço comum entre as poltronas, o tipo de espaço que fazia muito a menina deixara de proibir. Então ela lenta e inocente abotoou o último botão da blusa e desfez o sorriso e olhou de novo para o encosto vermelho da poltrona do assento da frente.

***

- Tudo bem, vamos para sua casa- disse a moca. - Apenas por favor não me magoe. A situação havia mudado de tal sorte que ele temeu. O ambiente propicio a desastres está impregnado de felicidade. Tudo a tornou tão vulnerável e acessível, tão temerosa, que indiretamente tornou possível o breve período da felicidade que viveram, em grande parte por conta da confiança que ela passou a nele depositar. Assinou com o coração disparado o recibo que o carteiro estendeu na prancheta. Olhou uma vez para o destinatário e depois para o remetente e outra vez o destinatário. Não havia dúvida que era para ela e que era do hospital e parecia letra de mulher. Ou era a


rapidez com que o sol de inverno se movia ou ela perdia longos minutos com coisas tão simples como rasgar o envelope e desdobrar o papel de carta e sobretudo ler e sobretudo se conscientizar das palavras. Lembrará mais tarde que estava com os pés e mãos frios apesar das meias e luvas de lã. Entrou na cozinha e disse para a empregada que precisava sair, que dissesse para a filha que... não... - Não diga nada. Quando voltar eu converso com ela. - Está bem, madame. - Já disse para não me chamar assim — disse a moça, satisfeita por um momento que não podia durar. Logo via batida de carros e homens armados e becos escuros e se via no prédio do instituto médico legal com tamanha clareza que pensava quer eram lembranças do que ainda não acontecera, tinha esse dom, não era o que sua mãe dizia? - Desculpe por ter tomado o seu tempo — disse o homem - Não tomou — disse a médica. — Tenho pensado em você. - Reconsiderou quanto à internação? - Faz tanto tempo... Ainda pensa nisso? - Quero trabalhar e morrer paz. - E precisa ser em uma clínica? - Não importa onde. - E quanto aos efeitos colaterais da medicação? - Não me importo mais. - Eu sim — disse ela. Ficaram se olhando em silêncio. Ele pensou em dizer tudo: que havia saído da consulta anterior e encontrado a moça na praça e ela voltou com ele e moravam juntos e ontem lá estava o cara que não havia ido quando a moça o esperara e não deixara a esposa e agora aparece do nada. - Você ainda faz traduções? - Sim. - Como conhece tantos idiomas se não terminou sequer o ginásio? - Sou pescador. Fui pescador em muitos lugares. - Da outra vez vc falou em países escandinavos. Du snakker norsk? - Litt. - Ela passou as folhas impressas. “Bipolar lidelse: En sjelden tilfelle i Trondheim”. - Não sei se saberia fazer preço para você. - Cobre o que vem cobrando há anos: sua internação. - Sério? mas você disse que não podia, no meu caso. - Não podia em uma clínica. Mais ou menos naquele momento o amante saía do prédio com passos lentos. Mascava indolente um chiclete. Olhar hesitante de quem não se convenceu apesar de ter


ouvido e visto. A partir daí a moça não parou de olhar o celular e ver as horas e constatar que não havia ligações. Não de novo, pensou. Tinham marcado às oito. Súbito ela deu por si. Foi a hora em que ela desceu para falar com o antigo amante na porta do prédio e lhe dizer que acabou, que estava com outro homem, que tinham uma filha. - Vocês eram felizes? — perguntou a médica. Ela entrou no escritório amplo de teto alto seguindo a trilha invisível em meio às mesas quase encostadas uma na outra cercadas por rapazes pálidos em ternos impecáveis alguns ainda com pastas 007 e contornou aquela última em que o monitor era maior da qual se levantou a secretária que a seguiu levando em uma das mãos a xícara de café e uma resma balançando na outra. - A senhora caiu? — perguntou a secretária ao ver a mancha roxa no olho esquerdo da mulher. - São esses os documentos? - respondeu ela. A secretária fez que sim. A chefe apanhou os papéis e deixou-os no mesmo impulso cair sobre a mesa num baque surdo que curou a secretária do soluço e passou a assiná-los pensando em como crescera rapidamente na empresa e imaginando o quanto a secretária devia invejá-la e temê-la e nem sonhava o quanto ela invejava a secretaria e os programadores e toda aquela gente que a cercava. A moça do cafezinho e a da limpeza e sobretudo a projetista que assumiu o seu lugar quando ela foi promovida. Ainda pensa a respeito no bar do hotel. Estética de lâmpadas tubulares nos tampos prateados. Ângulos inesperados nos pés das mesas e suas sombras nos tacos. Ainda outro dia quando o conheci não estava muito melhor do que ele. Agora que a carreira é um sucesso, ele partiu. Decidira não ir ao teatro com os colegas. Era uma noite clara e a névoa apagava imperfeições como o desfoque em uma foto. Seria um efeito semelhante o distrair-se. Ainda espera ouvir a batida na porta. Não sabe se é o caso de alguém pedir perdão e por quanto tempo esperará e como sempre abrirá mão das lembranças para simplesmente voltar a viver.


As luzes dos carros passando brincavam no teto do apartamento. A varanda da sala dava para leste ali onde a médica costumava ver tomar o café da manhã no conforto de um sol recém-nascido. Mas agora vai anoitecer e viu o homem caminhando em direção ao prédio. A vermelhidão atrás dele como um apocalipse e a cortina fina atrás dela reproduzindo seu corpo no tecido. O corpo em que até ali habitara uma angústia sem remédio e agora a umidade mancha.

Atravessou o quarto e entrou no banheiro de onde saiu perfumada de camisola. Olhavam pela janela para a mesma região vívida no horizonte vermelho e lacrimoso. -- Você poderia vir com mais frequencia -- ela pede. -- Você pode? _ -- Não sei -- respondeu ele, pensando nas possibilidades. -- Sinto que vou perder você -- diz a médica. - É como se ela tivesse esse direito e como se eu não tivesse. Porque naquele dia você já poderia ter dormido aqui ou pelo menos na clínica onde... -- Eu estaria sob teu controle? -- completou ele. -- Você nunca estará sob qualquer controle -- disse ela.-- Nem o seu próprio - ele deu uma risadinha ao ouvir. - Pode se dizer que é uma sina - completou ela. A camisola também aponta para o céu. Ergueu o pé direito soltando a ave do tapete. Ele esperou. -Você vem? - repetiu ela. --A traducao acabou -- disse ele. Ela esperou. Depois disse:-- Não acabou. É um trabalho sem fim - disse. --Trabalho de uma vida. Quando era adolescente seus pais a levavam para grandes caminhadas aos domingos pelas ruas iluminadas do inverno e a medica manteve esse hahbito ao longo da vida soh falhando nos domingos em que dava plantão. Na época ela chamava a atencao por sua cabeleira sobre os ombros refletindo o sol e pela pele amarronzada evidente sinal de miscigenação e também os olhos verdes enormes e claros. Ouvia as vozes em torno


entrecruzadas como diversos filmes em abas de um navegador mas nao tentava mais imaginar o cotidiano de cada uma daquelas pessoas. Apenas ouvia. O exercício da psiquiatria a ensinara.

Ele continuava esperando. Então ela disse: -- Você a ama? Vai voltar para ela? -- Você sobreviveria? -- ele perguntou. Sorriu e ela entendeu e se aproximou, a mao esquerda apoiada no beiral de madeira. -- Quer um pouco? -- disse a médica estendendo a taça de vinho. *** Ela ficou horas contemplando o homem não muito longe das mulheres no raso lidando com os covos e coletando sargaços. Os dois parte de um mesmo sonho. A força dos braços do rapaz segurando o timbale. A serenidade diante do aparecimento do grupo de jubartes. Nem as baleias nem os pescadores se impressionaram e sumiram da vista uns dos outros em seguida. Ela ficou horas naquele dia e voltou no seguinte. Ficou fascinada quando ouviu das mulheres sobre a casa assombrada. Entendeu melhor quando conheceu os assombros da casa. Mas o que está feito está feito. Ela era enfermeira. Era alemã. Foi ela quem apresentou o homem ao rapaz de Trondheim, o pescador. Estavam num quarto amplo e o homem à mesa ereto e os dedos sobre o livro aberto - na verdade folhas mimeografadas encadernadas.


O dia amanheceu como sempre embaralhando as decisões da noite anterior imediatamente antes que ela adormecesse. O telefonema da médica emergiu desses pensamentos. - Um estudo sobre depressão nos pescadores escandinavos. - Um amigo norueguês? — disse a enfermeira. — Pescador? Teu amigo é pescador? - Meu paciente.

Ela ficou ali num canto sentada ouvindo as ondas nos intervalos da conversa entre os dois homens. A consciência derramava-se como um fogo que parecia incendiar até sua terceira blusa e o primeiro de seus dois jeans. Entre o arfar do colo e a garganta: se um enfarte naquele momento a fulminasse iria originar-se ali. Quando o viu pela primeira vez foi como se existisse ali uma morada na qual ele passou a habitar.

O menino quase correu com as compras nas mãos antes que a enfermeira chegasse. Lá estava ele sentado nas escadas esbaforido. Ela chegou uns minutinhos depois e deu-lhe as moedas que esperava. Tudo como se vivenciassem o enredo de alguma lenda nórdica nas quais com devoção. acreditavam. O homem recém-chegado nao destoou do ritual embora entrado em anos e queimado de sol.

Sou a moça que falava ao telefone junto à fonte. A moça abandonada. Precisava de alguém que me dissesse que eu ainda era desejável. Que ainda era qualquer coisa, que existia. Justo no momento em que voltou à praça pela primeira vez após ter ido morar com o homem, ela leu no jornal exposto sob o pássaro que ele iria viajar. Dera uma entrevista, imagine. E ia para longe. Pode levar a filha, por que não? Estou cansada. Cansada. Foi


encontrá-lo. Foi tudo estranhamente simples e rápido, indolor. As coisas aconteceram e a logo menina, uma mocinha toda orgulhosa num vestidinho azul, estava pronta à espera. O pai passou de noitinha. A rua estava azulada quase negra e fumaça saindo do chão. Assim que ele despontou na rua o gato passou a seguir seu passo lento e firme. Essa lembrança me machucará e fascinará para sempre. Nenhuma noite sem recuperá-la de sabe Deus que abismos há em mim. Estava escuro como agora. Ele deu uma passada em seu quartinho para apanhar o gel lubrificante.

Ela ouviu a voz dele pedindo licença e se virou atenciosa e alheia enquanto ele se aproximava na luz turva que envolvia o pequeno apartamento um tanto sórdido mesmo para os padrões da região. Era a luz da rua. A lâmpada havia queimado na noite anterior bem na hora em que eles chegaram. Ela não percebeu que ele trocara de roupa, uma camiseta cinza por outra, a última dentre as limpas que guardava justamente para ocasiões assim. Ele ajoelhou-se à beira do colchão no assoalho refletindo uma luz que não havia mais e as mãos se abriram sobre as pernas do jeans e ela notou o quanto era grande o espaço entre os dedos. Eram dez e meia. - Você não tem medo de andar pelas ruas desse bairro a essas horas? A menina seria gerada nessa noite ao menos assim ele pensava convicto e sempre que se aproximava da filha fazia essa relação. - Papai! Papai! — gritou a menina da varanda. Sim, essa lembrança me machucará por todo o sempre. - Talvez eles tenham mais medo de mim do que eu deles — respondeu. — Não tenho mais nada — acrescentou levantando com as pernas dormentes e tremores de frio nos braços. - Ah sim você tem alguma coisa — disse ela sentando-se e chegando mais perto e subitamente entendendo seu papel naquele universo de vulnerabilidade. Talvez da panela de feijão que ainda estava sobre a pia desde a hora do almoço ou talvez do brim amontoado que a calça dele se tornara tocando de leve o lençol marcado na ponta pelo taco do assoalho, subiu o cheiro inelutável acompanhado do pássaro distante como se o som sequer


fosse um canto real mas o espírito de um limbo degenerado que crescera em alguns segundos um tanto que nem um nem outro esperaria. As mãos da moça estavam apoiadas para trás mantendo o dorso reto a uma altura que parecia de antemão combinada. Sempre acontece, pensou ela lembrando do primeiro dia na empresa quando uma colega a alertou para a questão ergonômica dos computadores e da disseminação da LER de que ela nunca se ressentiu. Daí, lembrar-se do amante foi um estalar da memória e o homem notou como os traços dos olhos fechados se curvaram e o entorno umedeceu e a inspiração seguinte pareceu dolorosa antes que a hábil mão direita trouxesse para os lábios diferenças e semelhanças. Os olhos se abriram. No átimo em que ela olhou para cima o amarronzado da íris puxou para o violeta e depois para um falso púrpura que prevaleceu no andar da lua. Um gato miou e um cão respondeu. O pássaro silenciara. - Papai! — grita outra vez a menina da varanda. — Papai! O homem olha outra vez para cima e sorri. *** A menina vai à frente do rapaz. Segura as sandálias na mão esquerda. O olhar perdido no horizonte vermelho da Noruega. A areia fina e gelada. O mato de um verde palido tao perto das pequeninas ondas. A lamina de mar azul prateado e mais tarde as luzes do norte dançando no céu. Conhecera o rapaz numa espécie de bar ali perto. O mesmo onde anos antes seu pai assistira na TV o encontro da primeira-ministra com o presidente da terra corrupta da floresta devastada.

O horizonte se confunde com os telhados do vilarejo. Os passos do rapaz mantém certa distância. Pegadas é tudo o que ele vê embora tenha em seus olhos as pernas grossas luzidias no pub em que havia a confraternização. A festa de aniversário em que ela presenteou um outro pescador com o que tinha de melhor.


Mais à esquerda da direção que agora tomaram, montanhas. Um tom abaixo de verde em relação à vegetação da praia. Caso seguissem caminhando e deixassem a areia e chegassem ao asfalto veriam a luz do sol nos abetos que ladeavam a rodovia vazia exceto por um barulhento trator de cuja fumaça surgirão as caixas de correio. Uma casa e depois outra e uma e depois outra antena parabólica. Umas após outras ovelhas seguindo tranqüilas pelo meio da pista. Caso seguissem naquela direção, veriam.

Os cabelos ruivos esvoaçam. As sombrancelhas sao muito ben feitas. Seus olhos sob as pestanas negras e longas estao de novo distantes. - você nao devia fumar tanto - disse o rapaz (em noruegues - traduzir) - eu nao devia fazer nada do que costumo fazer. - principalmente sair com homens como o Knut - ela concordou cabisbaixa como se estivesse arrependida O rapaz argumentou que homens como Knut apenas a faziam lembrar o pai nao reencarnava neles. Ela bem o sabia. Disse a ele que bem o sabia. Seus cabelos contra a brancura salpicada de verde produziam um efeito de pintura que foi ainda úmida coberta de verniz. O rapaz disse que nao entendia o que ela estava falando Ela olhou para ele pensando o quanto era bonito. Em como seria amar um rapaz cuja idade regulasse com a dela. A madeira do pub é branca, envernizada. Os guarda-sóis das mesas balançam. - E você, deveria estar aqui? É diferente deles? Não estava namorando a Sigrid? *** O homem cresceu em uma cidade grande que jamais foi para ele maio do que seu bairro. Amava o mar sem conhecer outra praia além da que via da janela do apartamento de seu avós. Na medida em que ele se tornava adolescente, percebia-se a insegurança da


vontade e a firmeza dos passos; os cabelos despenteados e a barba aparada; a voz firme e a timidez. Herdou de sua mãe os olhos e do pai o corpo longilíneo e de seus avós o medo da miséria. Menininhas de seu prédio diziam entre si que deviam aproveitar enquanto ele era menor de idade para que não sofresse o risco de ser acusado e as mais velhas para não se incriminarem elas próprias. Eram boas com ele, as mulheres. As amigas da mãe mais que a própria. As primas mais que a irmã. Um tipo de sina. Pensava que a obsessão acontecia com todos. Que ereção matinal era como o sol. Que qualquer menino de treze anos remexe nas gavetas de lingerie das empregadas e dão um jeito de visitar as tias antes que tivessem tempo de trocarem a camisola ou com sorte o baby-doll. Seu avô foi um político respeitado desde quando prefeito de uma cidadezinha no interior de Minas Gerais e depois de chegar a assessor de um ministro de Dutra. Sua avó era adorada pelas vizinhas por conta de tantos bastidores e pelas suas famosas receites de peixe. Desse mundo o homem, criança, emergiu. Não entendeu logo. Tomava no café da manhã suco de frutas frescas e mingau de aveia e vitamina além do generoso filé coberto de queijo derretido. Para ele era normal o que não fazia idéia era impensável para a maioria de seus conterrâneos. *** O futuro patrão calculou o degrau de baixo segundo o passo da menina. Disse que ela gostaria do emprego. As sombras que os acompanham por todos os lados são esverdeadas e se seguem e se separam e tornam-se muitas e depois quase somem no verde luminoso das paredes. - I'm very good to my employees - repetiu. Ela não precisava olhar para ele para saber que olhar acompanhava suas palavras. Desce com a mão esquerda delicada deslizando pelo corrimão muito de leve quase sem tocá-lo. Seu vestido marron escuro não se parece nada com as roupas que costuma usar entre os pescadores. A alça da bolsa cruzada passa discreta entre seus seios pequenos. As


sombras desaparecem de vez no início da escada e o sol menos que morno contorna os cabelos da menina. Não vou desistir exceto se ele me tocar. O pai vai se orgulhar do quanto ela se tornou trabalhadora e responsável. Deve sentir saudades dela, esteja onde estiver. Na casa do pai há muitas moradas, não é assim? O futuro patrão recua e abaixa os olhos na direção da menina por um segundo de costas. O chão do pátio é arenoso e frio. A sensação do súbito sol sempre deliciosa. No chão na entrada da oficina há bergfrues e ao longe liljekonvalj. A menina estremece ao ver. Quando entram, ele a segura pelo cotovelo. Há uma bancada e logo à frente um barco emborcado. - Our work is a quality job - disse ele. Disse de novo que ela iria gostar. Explica que é um serviço muito fácil fazendo um parêntesis em dialeto do norte para um funcionário ao lado da bancada. Ela só terá de anotar os serviços. Nada mais do que isso. Se preferir pode escrever em inglês. Todos os clientes falam inglês, é claro. - Du må være veldig bra med dem, også — diz ela. Ele diz que sim, claro, mas que sobretudo é uma troca entre cavalheiros. A lâmpada de um abajur de ferro alto e torto incide sobre as peças que agora sem que ninguém as manuseie jazem na bancada erguida sobre cavaletes dourados pela luz do norte. ***

De pé na popa quando o barco virava a última curva do fiorde antes da vila elas viram a casinha vinho entardecendo em tons de setembro terminando no branco do horizonte anterior à linha dos montes com os quais se confundia. Aproximando-se da luz amarela que indicava a porta em contraste com a noite as duas mulheres olharam uma para a outra com indisfarçável orgulho. O pescador pediu para que por favor entrassem. A casa que estava abandonada desde a morte do avô do pescador fizera parte da política habitacional de Gerhardsen. Era uma casa de madeira revestida de pinho, assimétrica, e havia cascas de bétula pelo chão .As mulheres entram e se sentem acolhidas embora haja ali mais freezers que mobilia e o anfritriaão não seja de muitos sorrisos. As janelas dão para o sul. Privacidade ali não seria um problema, pensa a mulher mais moça,


tentando se lembrar qual foi o último ser humano que viu antes do pescador. O ambiente é escuro e as tábuas de madeira da parede lateral irregulares. O flue da chaminé é feito com duas tubulações metálicas interligadas que levavam a alma do pescador aos céus que escolhera. - Myndighetene er fornøyd med søket — disse a mais jovem. Haviam aceitado a teoria de controle e ele seria o capitão de um dos barcos. - En brigade for å bekjempe ulovlig fiske — disse a mais velha enquanto a outra via um homenzarrão de cerca de quarenta anos nem magro nem gordo à vontade como se fizesse parte da casa e em seguida viu a mão enorme que estendeu com um sorriso enigmático. Ela olhava para seu medo que tanto crescera desde que ouviu falar do pescador pela primeira vez havia um ano quando ele ainda morava em Trondheim. A medica sentara-se na mesa junto à janela e abrira seu caderno de anotações. O trabalho não estava rendendo. Levou os papéis para a poltrona e depois para a cama e por fim decidiu sair.

Entao o pescador caminou.... achar sequencia) Figura geommetrica indefinid O homem acordou... então o homem acordouseus olhos

*** ***


Pelo olhos azuis passavam as lembranças. As pestanas são negras e o cabelo está preso e os lábios grossos entreabertos. É uma mulher ainda jovem e vivida sentada na sala, lembrando. Como os acontecimentos levam as pessoas por caminhos que não planejaram e é inútil qualquer pretensao de ter algum controle sobre a vida

Naquele dia atendeu no ambulatório uma dependente química, uma menina linda. Sabe por que você é assim? Porque não é amada. - Você está ficando dependente disso também. - Tlavez você, porque pensa nisso quando não estou falando disso. - E do que está falando? - a médica quase perguntou, mas deteve-se. - Estou falando de generosidade. De misericórdia. De humildade. Agora o marido vai chegar. Médico também, bem mais velho. Ele providenciou a primeira receita para ela depois de uma noite em que fizeram plantão juntos. . COmo suportar sem algum tipo de ajuda? Mas era diferente. Era trabalho. E casar com ele foi diferente. Era trabalho. E agora o que é? “Vou embora” , pensou. "Vou hoje mesmo", pensou a médica. Ao fundo o disco de vinil repetia o mesmo lamento, repetia. "Vou embora agora mesmo. Estarei livre e será trabalho também".

*** A aura sedutora que de seu rosto emanava escurecia todas as coisas ao redor inclusive seu corpo considerado perfeito pelas colegas de quarto. Seu rosto. O resto é fundo, indefinição. Como não se apaixonar? Mas o filho do pescador era ainda um menino. E ela própria, já se tornara uma mulher? Em que ponto do tempo isso acontece? Estão na sala da casa do pai dele. As tábuas envernizadas da parede, o linóleo. Os estalos da madeira. Mudanças constantes de luz segundo os movimentos da cortina.


*** Círculo macio acinzentado em que nasce o desfigurado azul e ali e ali e ali uma duas três e tantas outras nuvens do puro branco a quase o cinza da parte interna da janela do avião no formato cujo fim é semelhante ao da dor e distribui o estresse pelo pulsar do corpo enfraquecido. O bico do avião em sentido contrário encosta na ponta da asa vista pela metade se estendendo ao winglet preciso o bastante para amenizar o arrasto e não demora a menina vê os campos verdes mais e menos escuros um pouco aquém da curva do horizonte e logo não mais verde e o branco das nuvens estará abaixo à direita móvel exceto pela turbina onde em branco sobre o vermelho repousa a palavra mágica: “scandinavian”. Os cinzas se tocaram quando ela atravessava as nuvens e de cristal se umedecia na nebulosa massa agora ruidosa em céleres jactos alimentados pela turbulência detectada no radar da memória e ela fecha os olhos. O filho do pescador quer ser arquiteto. Quer planejar a própria casa. A menina quer morar nessa casa. Mas não logo. Ele sim. Mas sem crianças. Ela quer. A estrada passando a traz de volta. Os abetos verdes e as casinhas vermelhas. O recorte dos montes. O céu desbotado. A neve esfarelada. O companheiro de viagem decora a linha dos olhos fechados da menina ainda nas nuvens e acompanha cada risco da franja e a luz dissolvida no ombro cortado pela alça trêmula na larga abertura do pulôver. - Estamos chegando — diz ele. Ela não abriu os olhos. O trem rompe devagar o branco gelado fumegante dentro do qual caminha o funcionário da estrada de ferro todo de negro ou talvez um azul bem escuro como um pássaro num quadro de paisagem invernal. Ela é esse pássaro. Voa e se dissolve no trecho de subúrbio em que a combinação de luz do sol com o som do vagão determina que sim ela estava chegando. Cansada tremia entregue aos arrepios. Morar logo. Sobre crianças, dá-se um jeito.


*** Era o começo do inverno. O pescador diante do mar com o olhar distante. Mulheres de luto passando cochichavam e apontavam com o queixo. Estava atraído por ela como um cardume pelo plâncton. Lembrava. O olhar dela distante e verde sobe de súbito e o encontra. Nesse momento. Desde então não sabe para onde caminha mas seja para onde for ela estará lá, como o sol da meia-noite. - Por que você não quer tomar a medicação? - Porque tenho esperança — disse ele. Salvo algum eventual cochilo, ele não dormira ao longo daquela noite. Pretendia chegar a Ålesund antes do pôr-do-sol. Estava cansado. Quanto mais fria a água, maior o peixe. Um homem que desafiava as tempestades de ondas geladas e gigantes tremer assim por causa de um sorriso? Um homem dos fiordes vencido por rios interiores e lagos montanhosos de um corpo feminino. “Meu Deus”, dizia para si mesmo. “O que está acontecendo?” E podia vê-la levantando o olhar e o encontrando. Podia vê-la ainda que diante de si houvesse apenas o mar imenso encrespado. A espuma qual cristais de uma neve inversa e branca. A superfície subindo e descendo, subindo e descendo; não se move para frente. Bem lá ao fundo o recorte azul-escuro das montanhas do qual se adivinhava as gaivotas e as casinhas do vilarejo. *** A enfermeira se sentia lisonjeada com a proposta mas como viveriam nessa época em que os pescadores mais cedo ou mais tarde se tornam urbanos e embarcam como operários e morrem à míngua nas cidades grandes? O pescador num sorriso indecifrável pelo menos num primeiro momento (ah ele era tão charmoso, o pescador!) disse que viveriam muito bem em uma pequena e bela comunidade diante daquele belo maciço de montanhas. E com efeito viveram por um tempo longo como o fiorde, criando e plantando em torno da casinha.


- Fra tid til annen kan jeg gå til det åpne hav og gi deg litt hvile ... Ela disse que não queria isso, entende, disse ela. - Jeg vil ikke ha det! — disse. Disse que não queria perdê-lo para o mar, preferia dividi-lo com a pobreza na cidade grande. Todo envaidecido o pescador a abraçoue disse que ela nunca o perderia, mas ele sim, ele a perderia e, quando acontecesse, não sabia como iria suportar. A expressão dele era tal que ela acreditou e essa convicção fez com que seus braços relaxassem e não mais resistiu. Se ele estava dizendo... Um tempo a menina acordava com a imagem do pescador e demorava para se levantar porque hesitava mas mais dia menos dia iria levantar e se vestir pensando como explicaria sua presença e de fato em uma manhan clara de verao, o sol concedendo ao azul dos lençóis tons de mirtilo, ela respirou fundo e abriu bem os olhos e levantou-se trazendo para junto de si o robe de cetim que lhe dava ares de uma debutante na manhã de sua festa e, por contraste, fazia pensar nos contrafortes dos muros de um palácio. Quando voltou do banheiro abriu o armario e pegou entre as blusas curtas coloridas e os jeans apertados seu velho querido vestido largo que mal tocava seu corpo. O pescador disse que nao era uma questao nova. Mas podiam competir justamente por causa da tecbologia. E, por exemplo, exploravam os nichos vedados a barcos maiores. Nesse mesmo dia a menina havia visto o rapaz andando de lá para cá na varanda e soube depois que era o filho. Devia ser muito esperto também. Sabia decerto lançar e reconhecer a rede como ninguém. O pescador disse que por isso eram chamados de mestres. A menina perguntou se o filho dele tambem seria. Ele respondeu que esperava que sim pois esse eh o desejo de um velho pescador artesanal.

O sol nascera. Pelas ruas do bairro onde o pescador morava ela pensava que estava próxima de conhecer alguém e o insight refletia em seu rosto no espelho. Seria um homem não havia dúvida. Um homem acostumado ao perigo. Sábio e seguro. Solitário. Deseja permanecer solitário. Sabe guardar segredo. Não se arrisca além do necessário.


Seu filho nao estava preparado para isso. Entao viu que os olhos da menina eram também muito azuis. Daria a vida para que o rapaz encontrasse o mundo duas vezes perfeito que um homem habita imediatamente antes e imediatamente depois do primeiro amor físico. Quando a lembrança nao está muito distante da esperança de conquista. Olhou a menina que subitamente desconhecia. Não era mais a filha do amigo mas sua nora. Simples e vibrante como uma resposta de Deus. Alguns anos mais tarde ao caminharem pela praia falavam alto para se sobrepor um ao outro. Depois se olharam e calaram. Ele saiu andando e voltou e ficou assim de lá para cá e ela perguntou: - O que foi? - Não está funcionando - disse ele. - Jeg er redd. Um homem corajoso. Que sabe se manter atualizado e em contato com as fontes de financiamento. Que não perde a noção de familia nem a necessidade de silêncio. Um homem que anda de lá para cá e sabe que nao há como controlar as marés. - No dia em que teu pai nos apresentou, eu vi vc na varanda e pensei “ Que rapaz bonito” e ele respondeu: - É que você me viu de muito longe.

Ela está de pernas cruzadas diante dos dois homens como se fosse uma acareação. Olha para um e outro mas nenhum dos dois percebe: parece que faz anotações e está muito concentrada. - O que achou? — - Que são dois homens muito atraentes. - Estou falando sério. - Eu também.


A coxa iluminada pelo último sol sobre os telhados cinzas. A luz que a acompanhou durante sua caminhada desde a estação. O olhar do pescador como o olhar dos franciscanos na esquina da rua. Os braços do homem estão imóveis como se fizessem parte da mesa sobre a qual os dedos do pescador tamborilavam. A moça havia passado bons tempos na firma. Subira rápido e rapidamente se tornou muito amiga do chefe. Ninguém percebe que tem um problema com álcool. É uma moça alegre. É competente no trabalho. Apenas gosta de sexo e fica triste quando o amante não está. Aceitou a viagem mesmo relutante por causa da outra porque se convenceu de que o relacionamento do amante com a esposa não iria muito longe, com ou sem ela. Ela foi para o bar e ficou tomando cerveja. Uma eternidade mas não chegou a uma hora. Então se levantou e saiu sem destino. Encontraria alguém que ou se compadeceria dela ou percebendo-a bêbada se aproveitaria. O homem na praça porém apenas pegou o papel da bala e começaram a conversar.

Não esperava que o amante voltasse. Acreditava que ele tinha conseguido o que queria e tinha se servido até se esgotar e agora tinha meios de saber que ela estava com alguém, que tinha uma filha. Então ele apareceu. Insistiu. Queria vê-la, precisava. Deve ter dado algum ao porteiro. Afinal ela desceu bem na hora. Na terceira vez que o interfone tocou. Ela desceu bem na hora em que o homem voltava para casa. Não o esperava mais e ele apareceu e trouxe as lembranças e disse “Meu amor, me divorciei, podemos agora fazer nossa viagem”. Era o dia mais quente do inverno após aquele em que encontrou o homem no largo. O homem que deve tê-la surpreendido com o antigo amante. Que agora pode de novo ir ao médico, aa medica. E ela, a moça, uma mulher agora, e mãe, pode partir sem magoá-lo.


A menina, uma moca agora, agradeceu e disse que estava ótimo. Um brasileiro naquela situação ofereceria o próprio quarto mas o norueguês simplesmente arrumou o sofá na sala.

Na manhã seguinte a medica perguntou às colegas de apartamento se agira bem e elas riram e disseram naturalmente. Como deve ser. E acontecera algo a mais do que deve ser? — Não, nada — disse a médica. — De manhã ele me acordou e disse que o café estava pronto. Depois liguei para vocês e vim. — E nesse coraçãozinho, aconteceu algo? Refletindo a respeito a médica concluiu que não, até porque estava antes um pouco magoada com uma gentileza que bem podia ter sido simples rejeição. Se ela quisesse ouvir música, disse ele modificando o ângulo do aparelho de som em relação ao sofá. Não, estava tudo ótimo, agradeceu ela, sincera. Ele passou para ir à cozinha pela manhã e ficou contemplando absorto e muito sério a médica, que dormia.

Quando deixaram a marina havia um resquício de vento e as águas estavam onduladas. O rosto gelado da médica no capuz azulado fazia parte da linha do horizonte à altura do filtro labial. As montanhas nevadas no céu ambíguo. Luz do norte vazando as nuvens cinzentas e baixas qual um edredom flutuante. Ela escutava vozes falando sobre a monografia. A própria voz do pescador no café da manhã e a respiração dele no estreito catre do veleiro falavam sobre a monografia. E ele pensava em financiamento e arenques. Não se sentia mais culpada.


O homem acordou e ficou....

Estava determinado que nao deixariam.... O rapaz de Trondheim....

As vozes ao seu redor cresciam. Sentou no banco do largo e tirou o caderno da mochila. Ficou assim por alguns minutos, as linhas flutuando. Estava repetindo os caminhos. Primeiro parou de deixar currículos; depois não telefonava mais; pessoalmente, as coisas não aconteciam. Na época de seu primeiro emprego, lá se vão quarenta anos, as pessoas diziam “Não” até que alguém aceitasse. Não há mais alguem. Há departamentos; não há rostos mas avatares. Falam em robôs. Como transformarão a sociedade de robos. Se era um excelente tradutor, não faz diferença. Desviou o olhar para três homens que passavam conversando alto. Um rapaz pediu licença e sentou e instantes depois levantou e onde havia sentado apareceu um envelope pardo. O homem quis chamá-lo mas já ia longe. Pegou o envelope e levou até o jornaleiro. - Alguém esqueceu - disse. — O senhor pode guardar, pode ser que a pessoa volte, procurando. Parece que são documentos. - Tudo bem. Às vezes as pessoas voltam e procuram mesmo — disse o jornaleiro. O homem agradeceu e voltou para o lugar. Guardou o caderno na mochila e se levantou. Tem muita fome. Desce as escadas do metro. Fica juntos às portas do vagão para descer na estação seguinte. Uma jovem sentada a seu lado e as vozes crescendo.


Depois que as baleias se afastaram o pescador se lembrou de uma vez em sua infância quando uma jubarte encalhou na praia e conforme as pessoas iam sabendo toda a comunidade se se juntou em torno dela com cordas e depois de horas enfim sacudindo a cauda como se agradecesse ela desapareceu no mar e o pai do pescador tinha os olhos vermelhos. isso aconteceu quando tinha sete ou oito anos.

No dia em que fez dezoito anos o filho do pescador saiu de casa assim que anoiteceu. Era cerca de nove horas. Colocou o jeans muito surrado e limpo e com dois dedos apanhou o par de tênis branco que calçou pulando numa perna só. Perto do muro baixo decorado de hera uma sombra coincidiu com a sua. A menina acabara de se despedir do pescador. Seu vestido largo parecia nao tocar em seu corpo desenhado pela luz do radar de iluminação que destacava o vermelho de seus cabelos e dividia seu rosto. O rapaz a achará muito bonita quando de novo se encontrarem; agora está muito assustado com a aparição. Ele disse que sim, que era o filho, e seus olhos deviam estar arregalados e seus maxilares estavam duros. Respondeu que morava numa cidadezinha próxima mas passava na casa do pai quase todo dia e iam ao mercado, outras vezes a bancos, mas também saíam de barco. Por fim calou-se, perturbado. Era estranha a maneira como ela o encarava. Ela contou que viera do Brasil com seu pai que estava traduzindo uma tese do noruegues. - Våre foreldre er venner av ungdom - disse. - Egentlig var jeg bare med din far. Nesse momento, passou a lembrar as partes da conversa em que o pescador mencionara o filho e tentava colocar naquele rapaz que imaginara o rosto do rapaz aa sua frente. - Voce sabe guardar segredo? - perguntou. Quando de novo se encontraram era de dia e a menina parecia outra, radiante como o sol. O dia o apanhara caminhando sozinho, um vulto sob o céu ainda cinza, azulando. Respirava resedá. Aa sua silhueta se juntaram os tordos pintados de creme pela lenta luz da aurora. Sera um lindo dia. Logo essa neblina vai se dissipar. Ele pensava como a natureza eh maravilhosa; sobretudo a parte feminina da natureza; embora nao tivesse muita experiencia;


talvez exatamente por isso. Era uma menina recatada e simples, ele achava. Queria ser sua amiga pelo jeito. Nunca teve uma amiga. Pensando bem nem amigo, salvo a agonia do convivio com os filhos de outros pescadores envoltos pelo acaso, apenas lado a lado. Segue sob o ceu de agosto, o ceu de Arendal, falando baixinho. - Å, min Gud ... . Å, min Gud ... Pensando melhor talvez Grodun tenha sido sim um amigo, um bom amigo. Quando de subito os tordos se dispersaram no ceu cada vez mais azul mas cinza-brilhante ainda ele chegou aa casinha proxima do estadio e ela ja estava lah sob a garoa. Nao estava frio talvez uns quatorze graus - mas ele sentia. Ela apontou o celular e disse: - Lag en pose. Ele sorriu. Ele reparou que ela estava mais bronzeada. O que ela quer de mim? Com certeza vou decepcioná-la. Ele subiu as escadas na frente. No quarto nao olhou diretamente quando ela tirou a blusa que ficou sobre o banquinho ao lado da lareira para conforto do velho gato durante muitos dias.

Às nove horas e vinte e um minutos daquela manhã os trens do metrô circulavam com velocidade reduzida por causa de uma interferência em via. As pessoas se aglomeravam nas plataformas. O homem passou em sentido contrário ao fluxo e subiu as escadas e saiu da estação com passos largos e lentos em direção ao largo. Vive há quase um ano num quartinho que conseguiu graças a escambo e lava a roupa na máquina de uma vizinha. Não tem família. Come no refeitório municipal mantido por uma ong no centro da cidade mas nesse dia não porque perdeu a hora e consequentemente o número de acesso. Vinha de um bairro distante onde soube que contratavam tradutores para uma startup especializada em cursos online. Está com uma dor de estômago ainda não incapacitante mas muito incômoda; dói-lhe ambém a coluna e as costas; há uma aura de enxaqueca na cabeça. Não tem amigos. Fala pouco. Não foi sempre assim, ao contrário. Na infância era muito dado, era a atração das festas de final de ano na puberdade. Mas casou cedo. Aí começou a história da decadência. Também cedo se divorciou e começou a viajar de carona pelo País. Numa vila de pescadores no litoral da região sudeste aprendeu a pescar. Por um


bom tempo apenas fazia outras tarefas do barco tais como limpar e salgar, armazenar o peixe, cozinhar, limpar e consertar as redes. Viveu uma década entre pescadores sem jamais ter efetivamente ter lançado uma rede ou feito um nó clinch. Nos anos noventa, depois do confisco da poupança, viajou para a Noruega. Dois meses depois apresentou-se à polícia. Fez o curso da Rød Kors e teve visto aprovado. Não devia ter voltado mas acabou voltando. O inverno era demasiado escuro e tudo adormeceu na neve mas a luz está dentro das pessoas. A luz exterior é abundante no bairro em que vive agora e as calçadas estão cheias de moradores de rua. Olhando para elas, ele se vê e lamenta ter voltado. Sempre acontece. Pensava na aurora boreal e no sol da meia-noite, no silencio e nos fiordes e ficava abatido. As coisas ruins não trazem tristeza porque passam.

A médica teve uma infância feliz. A imagem que tem de si mesma na época é a de uma garota sorridente dentro do carro esporte dos pais sempre indo ou vindo de algum lugar onde se divertia muito. Um cinema, uma lanchonete, um parque. Um vestido branco de crochê. Sua sombra na parede da varanda à luz da lua. Seu corpo diante da cadeira de costa alta no quarto com papel de parede florido; seus bichos de pelúcia.E de súbito as apostilas do cursinho, os livros de Daniel Carlat, a escala de plantões. O corpo pronto. O relógio. O carro de um modelo antigo não mais fabricado. O sol lá fora e os olhos fechados. O nariz apontado para o céu e os olhos fechados. Não é uma juventude tão feliz, pensou um dia. Talvez não exista juventude feliz. Quando se divorciou, aos vinte e sete anos, pensou “nunca mais”. Abriu a própria clínica num sobrado branco em uma região nobre da cidade. O imóvel era lindo de fora mas muito mal cuidado e demorou um tempo para a vizinhança acreditar que havia acabado o tempo do famoso especialista em reprodução humana, o proprietário anterior, agora na penitenciária. Alguns meses depois da inauguração, a clínica ia de vento em popa. Ninguém podia imaginar que além de ser uma médica experiente assim novinha ela também era uma empreendedora, uma mulher de negócios. Mas a escuridao continuava nao importava a luz de eventos, que eh exterior. Medica, cura-te a ti mesma, pensava. Tinha de fazer esforço


para se vestir e para comer. Deveria estar feliz. Era mais facil dedicar-se aos estudos. E tirou da gaveta a monografia de mestrado abandonada. Estava triste. Eatava constantemente triste. A tristeza nao era um sintoma nem uma sindrome mas uma doenca. Era uma doenca. A propria doenca. O que a causou? Como evoluiu? Qual o tratamento? Ficou gravida aos dessesseis. O irmao a manteve em carcere privado e ainda irah a julgamento. O filho a visita, eh carinhoso com ela. O casal que o cria diz que ele eh carinhoso com ela. Esteve no consultorio na sexta antes do dia das maes. Pediu a bencao. Ela chorou. Mas eh uma tese nao uma biografia. - Esse pescador foi um dos entrevistados no estudo de caso que usei na pesquisa. - Uso bilhete de transportes nesta cidade - disse o homem. - Se eh soh esse o problema, estah resolvido

Era o mês de junho. O pescador caminhou com suas botas pretas na direção do barco e subiu. O mar estava excepcionalmente calmo e cintilava. O rosto da médica desaparecia na luz. Aproximou-se mais e o semblante dela correspondia à sua generosidade - ele a reconheceria por essa luz ainda que a não conhecesse. Ela olhou para ele e os ombros eram largos e os cabelos estavam não despenteados mas penteados com a mão. Ele examinou-se mentalmente e percebeu que tudo estava com deveria. Trêmula não dirá nada ao acabarem e reavivarão a chama. Depois apanhará as roupas que pusera na cadeira e sorrirá ao ajeitar a saia diante do espelho e sairá ao sol e irá para a biblioteca - um paraíso no paraíso - e o trabalho renderá e sentirá prazer por nao ser mais enfim inatingível.

O apartamento ficou grande demais depois que o homem partiu. Foi fruto de mais de um mes de procura. Tempo bom, a moca lembra, de apaziguamento diario. Proximidade do metro e sol da manha. Ao olhar o espelho do armario embutido ela quase ve o desejo e a letargia nos volumes de sua blusa. A mesma de quando o conheceu. Andou ate a janela e


sentiu o calor do sol em seu rosto. Poucas pessoas caminhando na rua - poucas pessoas, o que a deixava um tanto melancolica. Subiam lentamente a ladeira e a escadaria da igreja, quase se arrastando. Na lingua pastosa um sorvete e um cafe pegariam bem. Talvez o dinheiro jah esteja no banco mas nao se sente confortavel ao entrar na agencia em feriado. No dia anterior uma mulher foi estuprada, o que, se uma vizinha lhe contasse, ela iria pensar que era exagero, licenca poetica de fofoca. Mas nao. A idiossincrasia nao anula a realidade e a realidade do Pais eh essa. Sorte sua, amor, essa viagem. Deus te abencoe aih aa margem dos fiordes, Deus abencoe a Noruega. Mais tarde passou como sempre na casa do amante Poderia recebe-o em seu apartamento. Todavia, tinha esse pudor em relação aos outros moradores do prédio. Quando trocava a blusaq, apalpou o seio esquerdo cheio e pensou que seus cuidados tinham a ver com a possibilidade de um dia a menina tornar a morar com ela. Se for isso não é comsciente. Gosta assim, de amar à distância, de amor aos pedaçõs. Não é uma pessoa fácil de comviver. Mas por que afinal estou chorando? Está tudo bem. Tudo terminou da melhor maneira. Aamnhã o dinhneiro será depositado. Comprará uma blusa que valorize os seios, que desfoque o rosto. Tudo está como deve estar, pensava quando o telefone tocou. - Estou comendo pizza, minha filha. Marguerita. - Estou ouvindo rádio. Randsfjord. Staut. Ei varmare. - Estou contente por você. Talvez eu vá.Veremos juntas o sol da meia-noite com os rostos alaranjados. Quem sabe meu amado suba as escadas nessa hora depois de ter me visto ainda lá debaixo, pensou a menina, do outro lado de tudo. Quando a mãe desligou a chamada estava nua esparramada como o jornal sobre a cama manuseada como um e a noite ia avançada. Podia sentir o cheiro do amante. O que era hálito e o que era suor. O que era desejo.

A formação rochosa seguia seu caminho no limo e onde encontrava a água sumia na luz. Está para conhecer o pescador de sua tese. Sentada na pedra sob o sol. Conhecê-lo sem a intermediação do homem. Ondas entram por impensáveis interstícios onde a química modifica a pedra. Agora mais que vê o barco antes apenas um ponto na vastidão do mar e


escuta o motor mais e mais alto. A passarela rangente do atracadouro balança sob os homens que desceram e seguem em fila indiana. Num momento o farol e noutro a voz atrás dela. - Solen Skinner. - Ingen sier nei. - Har du vært her lenge?

Eram mais de três horas quando por fim adormeceu, o sono vencendo a fome. Todos os seus esforços para conseguir traduções acabavam vencidos ora porque precisava fazer uma ligação e não tinha créditos, ora porque a pessoa que ia encomendar o trabalho desistia, ora simplesmente porque passava o dia de um órgão a outro de assistência social até enfim conseguir uma refeição. Acordou cedo e tomou dois copos de água da torneira porque tinha sede também mas sobretudo para aguentar um pouco mais de tempo de tempo sem comer.

Quando chegou ao apartamento naquela noite recebeu uma ligação do filho do pescador. Era para ela sair e olhar para o céu. Desceu e procurou um lugar menos iluminado, talvez ali, pensou caminhando perto da garagem do conjunto no sentido do fiorde. Distraiu-se porém com a memória de vozes masculinas lhe dizendo o que fazer. Eram vozes muito antigas, praticamente de sua infância, pouco mais que isso, e nunca vozes conhecidas, nunca esses homens tinham um rosto. Fazia quatro graus lá fora. A primeira aurora de seu primeiro outono. O céu subitamente verde entre os dois prédios do conjunto. Um pouco de rosa no verde e ela lembrou que sempre se arrependia e se arrependia a ponto de se julgar não mais louca e sim perversa, de uma perversidade nata. Encheu-se então de pureza e seus olhos lacrimejaram. Ela, a menina, pensou que não era mais menina e viu-se menina num mundo sem lugar que lhe oferecesse para habitar porque os puros eram mais ou menos puros e os perversos parcialmente perversos.


São quase três horas da manhã. O rosto meigo quase tao branco quanto o cachecol e o gorro e os olhos azuis quase tao tristes quanto a neve acumulada ao lado da vereda feitos aparicao de andar aberto de pato por causa do tanto de roupa achegaramse aa mulher de nome estranho e a aparicao disse Oi e enquanto a outra respondia abriu um imenso sorriso amigavel. Era noite e nao iria amanhecer. Perguntou se a outra era a enfermeira e diante da resposta afirmativa abriu ainda mais o sorriso no rosto iluminado. Dentes e seios da face. O reflexo da lampada da patinacao nos cabelos escapando do gorro emaranhados no cachecol Ela fala balancando a cabeca. Nao se sente aa vontade como seria de supor. Entao uma mulher madura de perto eh assim. Como eh morena e corada. A fala eh mansa e as maos inquietas. Segura as bordas do casaco e olha para baixo. - Am I good enough?

Ela se manteve pura e linda em sua memória. Descera do sonho num corpo mais cheio e ele pode ouvi-la descalça sobre o tapete esgarçado junto à cama. “Jeg hadde søvn, min kjærlighet”. – disse ele. “– Tilgi meg”. A realidade se movia então para a sala onírica e prateada onde a esposa surgia ao mesmo tempo em que a voz infantil mostrando ao papai a caixa de papelão cheia de brinquedos. - Må de marine naturressursene bærekraftig. O pescador ouve de um lugar muito distante. A menina diz para a mãe que o pai está dormindo; diz e cai na risada. A mãe diz que eles devem deixar ele dormir sossegado, tem trabalhado muito. Mas o filho mais velho não está convencido. Está emburrado e murmura que o pai não está ajudando em nada com as caixas. Estão de mudança. O menino anda de lá para cá com outras caixas e parece zangado, parece evitar o pai. Está evitando o pai. Não quer ouvir nada acerca garantir as espécies da cadeia alimentar, de gestão da pesca ou dos recursos haliêuticos. Quer acabar


logo com tudo aquilo e se mudar de uma vez para a casa nova no sul. Pergunta para a mãe se o pai não vai ajudar com a mudança. Ela olha para o menino e olha para o marido adormecido no sofá com o notebook no colo e pensa o quanto é bom ter esses dois homens por perto, ter por perto essas duas espécies de conforto, mas se eles nunca ficarem em paz tampouco ela terá paz e pensa por que é tão difícil. Quando estavam sozinhos, a enfermeira e o pescador, era tão bom quando isso acontecia. Ela o acordava lentamente e as luzes da sala se dissipavam e última vez anteontem ainda ele sentado ressonando primeiro depois meio que dizendo tentando dizer alguma coisa que logo se revelaria irrelevante. Depois respirou fundo e disse no meio da inspiração que isso era tão bom. Ela respondeu baixinho sussurrando que, sabe, podiam passar uns dias no sul, há quanto tempo não iam. Ele sempre respondia não a essa pergunta porque estava tão bem, tão acomodado às noites eternas e sóis sem fim dos solstícios e também a momentos como esse, sobretudo a momentos como esse – disse e segurou o rosto o rosto dela e perguntou se ela amanhã ia ao hospital. Ela tem de ir. Eles têm de arrumar as coisas. Estão de mudança. O novo emprego dele é de suma importância para o país e para eles. Fiskeriforvaltningens em nome do futuro. Precisam terminar de arrumar as coisas antes do jantar. Na sala não se ouvia outros sons além dos que eles faziam, como esse estalo sutil do braço da poltrona. Naquela noite dormiram cedo no colchão puro que só então descobriam que estava com a capa de proteção toda manchada. Ela nunca se recuperará da infecção da garganta causada por um vento encanado entre as folhas da janela que o filho fechou com os lados invertidos, naquela noite. O estalo foi quando ele se levantou. Ficou olhando para ela e para si mesmo sem acreditar. Estava muito frio e ele só entendeu que ela não vinha mais e emergiu do mundo onde estava e se endireitou ao ouvir a voz da filhinha crescendo enquanto os passos da mulher diminuíam dizendo que o irmão não queria ajudá-la a arrumar a cama. O pescador perguntou onde ele estava. O pescador perguntou onde ele estava. “Der ute!”, disse a menininha.


O vento seguia soprando monótono entre as montanhas, monótono e sombrio, gelado. Ele adormeceu novamente por uma fração de segundo devolvendo a esposa e as crianças para o limbo.

O rapaz está muito doente, o filho do pescador. Ela chorou quando ele contou a respeito da mágoa que tinha do pai, como implicava com ele como quando estavam se mudando para o sul. Naquele dia, ele perguntou para a mãe se papai não ia ajudá-los com as coisas e ficou ainda com mais raiva porque ela em vez de brigar com o marido pelo contrário chegou perto dele e ficou toda carinhosa e o filho deduziu sem precisar imaginar muito o que eles andavam fazendo no sofá justamente onde o menino gostava de ficar vendo TV ou jogando ao longo das madrugadas, justo aí, que nojo. A menina disse em resposta que entendia, que sabia como ele se sentia e passou a lembrar da raiva que tinha da mãe quando ela praticamente se livrou dela, a filha, deixando-a com o pai para que ele a levasse para o exterior, pois a mãe estava cansada, cansada, e não jamais daria mesmo boa mãe. No fim foi até bom. A menina nem se imagina crescendo num lugar em que tivesse receio de sair de madrugada e não fosse essencialmente silencioso. Quando voltou ao Brasil para passar as férias com a mãe, na noite em que descobriu sua vocação para o amor, descobriu também o quanto deveria ser acompanhada pela dor e sempre renovada pela memória, não nos novos momentos de dor, que se bastam, e sim nos de felicidade, por contraste. O homem com quem estava, um engenheiro que morava em Cosme de Farias, que viajara com ela e convidou-a para o súbito desvio, levantou-se da cama antes da consumação de seu prazer, depois de atender no celular a ligação de casa, o que até aquele momento evitara. E a menina ali, satisfeita e atônita, olhando o corpo nu de um homem pela primeira vez, ouviu-o perguntar o que tinha acontecido e depois, num pranto histérico que ela julgava não ser próprio de homens, dizer-se culpado porque não estava lá, porque seu filhinho tinha sido assassinado e ele não estava lá, dezessete anos, dezessete anos, seu único filho, porque não estava em casa, porque nunca estava em casa. Ele dissera a mesma coisa quando subiam de carro a ladeira mas então não chorava, antes


parecia feliz com uma boa escolha que fizera. “-Eu moro neste bairro”, dissera ele. “Mas quase nunca estou por aqui e, quando estou, é sempre em meu recanto, no lugar que você vai conhecer”. Era um lugar estranho, ela lembra. Até então o mais longe de casa que tinha ido era Oslo e mesmo assim com o pai, tudo sempre com o pai. Ao andar pelas ruas da capital fingia não perceber os olhares e não ouvir, preocupada que o homem percebesse e ouvisse e quisesse brigar. – Du kom tilbake til Meg – ouviu uma voz no centro antigo, perto do castelo. – Não é um castelo como os castelos que você visitou na Itália – explicara o pai. – É só um palácio administrativo, digamos assim. – Mas é bem bonito – dissera a menina ouvindo uma outra voz: – Sexy dame!... Passando pelos restaurantes da galeria ela sorriu discretamente. – Skal vi ta noe å drikke sammen? – Reparou filha como tudo é ao mesmo tempo super moderno mas também simples e funcional? Vakre Angel! Era agosto e estava fazendo mais de vinte graus. Pegaram o bondinho elétrico e passaram em casa, do lado da faculdade. – Ah pai vamos sair de novo? É o meu primeiro verão depois da festa de debutante. - Vil du ha litt kjærlighet i kveld? – ouvirá ela mais tarde na região do pub. - Ah vamos entrar um pouco – dissera ela. – Melhor não – respondeu o pai. Dois meses depois ali estava, não ali, mas na casa da mãe; não na casa da mãe, mas subindo a ladeira de Cosme de Farias com o engenheiro. – Recanto? – a menina riu, embaraçada. Tampouco escutando vozes na rua e sequer num pub. Só a do pai do garoto morto. Então isso é o amor, pensava vendo o engenheiro nu ao telefone, chorando. – Não chore - disse ela - Vai ficar tudo bem... Ele a olhou como se nunca a tivesse visto. Deitou em seu colo da menina e depois de alguns minutos parou de soluçar.


***

O homem desembarcou na França em uma tarde branca e calma de abril. Era uma primavera chuvosa e o termômetro do moderno terminal portuário marcava onze graus. Viajava com a filha francesa de um pescador portugues que trabalhava havia uma década no mar da Normandia, uma mulher exuberante chamada Josephine. Tinham se conhecido numa tasca no alto de Lisboa onde voltaram um mês depois para comemorar Maastricht. Nada mais iria separá-los. Ela tentou comprar uma casa na região de São Martinho do Porto mas o proprietário insistiu num contrato de aluguel e agora sequer iria renová-lo. Ela disse que não importava, que achariam outro lugar, que seriam felizes. Josephine crescera apegada à idéia romântica de felicidade junto a um homem embora nunca tivesse aberto mão de uma participação agressiva no mercado de ações, o que afastava a muitos; mas só afastava os que tinha de afastar, os que a amassem superariam essa dificuldade. Ela não achava que perdia o encanto por viver em ambientes masculinos tanto em casa quanto na bolsa, pelo contrário, e havia provado sua teoria conquistando esse pescador de ombros largos que ainda por cima era também um intelectual. Agora ele e o pai falariam por horas sobre financiamento de barcos e marés e período sazonal e ela estaria pronta para quando voltassem ao hotel, para o tempo de descanso em que nunca descansava e tudo conseguia. “Uma vez na costa norueguesa,” disse o pai ao namorado da filha, “o faroleiro de Bremstein me contou que a tripulação de uma balsa viu ao longe uma imensa criatura flutuando a oeste da ilha de Ylvingen. Era um tubarão de vinte e cinco toneladas. Levaram a criatura para terra. Não puderam estimar o tamanho devido à escuridão do final da noite”. O homem disse que pelo jeito parecia um tubarão-frade. “São inofensivos”, disse. Conhecera no ano anterior um surfista que foi atacado por um, mas era um tubarão-tigre. O surfista contou que chutou o bicho e conseguiu fugir. Levou quarenta e dois pontos. O pai derramou mais champanhe na taça do homem e disse que no oceano o homem é o intruso. Josephine ainda não voltara. Disse para o homem ir na frente que o pai estava esperando, ela tinha de passar na casa de uma amiga. Pouco depois o negro entrou no barco Uma camisa azul berrante aberta no peito e um olhar terno e aterrorizante. Lá fora os


guindastes e escavadeiras como monstros pré-históricos. Os filhos dele estão no campo de refugiados. Não estão passando fome mas quase isso. “- Je paierai – disse o negro. Do outro lado é Londres. Os africanos ficavam ali o tempo todo tentando atravessar de barco. Uns conseguem e outros não, é a vida. – Je paierai – repetiu ele. Ela abriu a perna direita até o encosto do assento e o puxou para si pela gola. O presidente do conselho regional falava no rádio. O governo britânico deve acelerar o processo de transferência para o Reino Unido. Trata-se de uma questão de humanidade. O vento balançava o barco. As gaivotas bicavam a espuma.

A menina caminhou pelo corredor e parou diante da porta de madeira manchada com almofadas quadradas de moldura fina. Bateu e a luz da casa entrou em seus olhos juntamente com o rosto da mãe e o rosto e a luz sumiram igualmente em simultâneo e a menina apertou os olhos e balançou a cabeça como quem diz “o que foi isso?” O sol se punha e as sombras bruxuleavam no pátio conforme as pessoas passavam. No prédio, a filha tornou a bater três vezes e outras três. Os olhos azuis arregalados sem acreditar. A arandela dourada pulsando e definindo seu rosto. O hall avança contra ela trêmulo de vozes que se erguiam umas sobre as outras. Ela e o amante da mãe que agora vive com ela pararam um diante do outro onde a porta de um outro apartamento entreaberta lança um triângulo luminoso que se expande até as unhas pintadas de vermelho vivo nas sandálias. – Você realmente não presta! Você não vale o que come – diz ela baixinho e ele sorri, irônico sussurrando – Mas você bem que estava gostando. Ele diz alguma coisa que ela pensa ter entendido mas não tem certeza e não tem ânimo de perguntar então simplesmente se afasta na direção das escadas e começa a subir e quando olhar para trás verá do alto que o pai de sua criança insepulta chega ao edifício pela entrada dos fundos e respirará fundo quase desfalecendo e balançando sempre a cabeça. O rosto bronzeado. A musculatura expressando perplexidade. O supercílio corrugado e o depressor da boca contraído. A menina vê a mãe passar com as mãos ocupadas com o cinto do robe e o rosto anguloso como pedras jogadas contra o amante parado olhando para as costas da menina que se afastavam. Naquele momento quaisquer ações ou palavras estavam


fadadas a excitar ainda mais a hipersensibilidade generalizada e o que nĂŁo fosse descoberto seria suposto sem que ain da assim ninguĂŠm chegasse perto da verdade.


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