SENSO INCOMUM 049 - novembro 2021

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Senso nº 49 Nov/2021

senso

comum

Jornal-Laboratório do curso de Jornalismo UFU ano 12 • 49ª edição novembro de 2021

Samba-enredo de uma história Referências do Carnaval uberlandense relembram momentos marcantes Páginas 6 e 7

Políticas

Ciência & Tecnologia

Esporte

Novo currículo escolar modifica os paradigmas da educação brasileira

Ritmo de vacinação provoca outros caminhos para a pesquisa de novos imunizantes

Presença feminina nos e-Sports enfrenta dificuldades e barreiras

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Página 11 FOTO DE CAPA: FERNANDA NEVES

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DA REDAÇÃO EDITORIAL//

Ansiedade pela volta É urgente que se planeje um retorno eficaz para a rotina sem isolamento Faz mais de um ano e meio que a indefinição sobre a vida se instalou e não quer mais ir embora. Tudo é feito pelos meios digitais - aulas, trabalhos, encontros e passeios - mas, não se pode colocar em dúvida que fora das telas reina a ansiedade. Existe o desejo de abraçar os colegas na sala de aula, de conversar a menos de dois metros de distância, de marcar um futebol para depois das 18h ou um barzinho mais tarde sem a preocupação de que alguém fique doente. Pesquisa realizada pelo instituto Ipsos aponta que 53% dos brasileiros acreditam que sua saúde mental mudou para pior desde o início da Covid19. Contudo, está equivocado quem crê que este estopim é isolado e teve início há apenas 20 meses. Um relatório divulgado pela instituição Royal Society for Public Health, do Reino Unido, já mostrava em 2017 que o Instagram é a rede que mais alimenta os sentimentos de ansiedade e solidão para pessoas de 14 a 24 anos. Nesse cenário, é fundamental que se caminhe rapidamente na direção do fim da insegura rotina de vida que a pandemia causou. Dados como o do Google Trends e Synthesio, que destacam a evolução dos índices de buscas na plataforma e de conversas em redes sociais sobre saúde mental e ansiedade no primeiro trimestre de isolamento em 2020, evidenciam o descuido de um governo negacionista e irresponsável que não antecipou políticas públicas para a saúde mental daqueles que na fase de transição para a vida adulta, tentam lidar com o luto das perdas causadas pelo vírus. Não é preciso muito para perceber que a população jovem está sob risco e angustiada com o desejo da volta ao normal. Ainda existem pontos na conjuntura mundial que precisam avançar para que a proteção contra a Covid-19 esteja completa. Porém, é razoável se deixar levar pelo sonho de encontrar rostos queridos no próximo carnaval, em uma rua qualquer. Todos vacinados. 

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Senso nº 49 Nov/2021

OPINIÃO//

Um soco no útero [doeria menos] Direitos reprodutivos ainda são um tema polêmico e que divide opiniões por todo mundo POR GABRIELA PINA

Cuba, México, Argentina, Guiana Francesa e Uruguai são os países latinos em que o aborto é legalizado. Em alguns deles, vitórias recentes, já do período pandêmico. Mas de qualquer forma, yay, certo!? Enquanto isso, temos também exemplos opostos. Em Nicarágua, Suriname, Haiti, El Salvador, Honduras e República Dominicana, o procedimento de encerramento de gravidez é totalmente proibido, mesmo em caso de risco à saúde da mãe. O Brasil, apesar de ser um pouquinho melhor, continua pertencendo aos 30% que correspondem às nações em que o aborto, em geral, é proibido, sendo permitido apenas em casos muito específicos. Desde 1940, com a criação do Código Penal vigente, o aborto é crime em território brasileiro e, apesar das contínuas lutas de movimentos feministas e de proteção aos direitos humanos, não houve muitos avanços desde então. Por aqui, está previsto em lei que é possível abortar em caso de estupro, de possibilidade de morte para a gestante ou feto anencefálo. Contudo, até mesmo essa já limitada legislação encontra resistência de grupos religiosos e é frequentemente ignorada por juízes. No mês de setembro de 2021, aqui em Minas Gerais, uma adolescente teve negado o seu direito de interromper a gestações oriunda de abuso sexual. Legalmente, não há muito o que lhe é permitido fazer, mas, aparentemente, criar uma outra vida, indesejada e fruto de uma violência, é o que lhe resta. Na história moderna, o primeiro país que permitiu legalmente a prática do aborto foi a extinta URSS pós-Revolução Russa, uma conquista das feministas socialistas e que foi aos poucos espalhando suas sementes pelo mundo. Todo esse progresso está começando a ser jogado no lixo, assim como o avanço em tantas outras áreas que estão sendo destruídas pelo obscurantismo, negacionismo e neofacismo, que diversos países têm enfrentado nos últimos anos. Os EUA, possuidor de uma das legislações mais brandas e permissivas em relação ao aborto desde 1973, tem visto isso de perto. Seu estado mais populoso, Texas, aprovou, em pleno 2021, uma lei restritiva chamada “Texas Heartbeat”. Como o nome indica, a normativa proíbe abortos a partir do momento em que o feto passa a apresentar uma

“pulsação”, que seria seus batimentos cardíacos, na quinta ou sexta semana. Além disso, também exclui o direito ao aborto em caso de estupro ou incesto e permite que qualquer texano ganhe milhares de doláres ao processar médicos que trabalhem em clínicas que realizam o aborto. Felizmente, suponho, um juiz federal suspendeu esta lei no início de outubro. Entretanto, essa guerra contra a autonomia corporal feminina está longe de seu fim. As próprias clínicas do Texas estão com medo de reabrirem. Outros estados conservadores podem tentar algo parecido a qualquer momento. Assim como tem sido constante a presença e a movimentação de grupos anti-aborto nas portas de lugares que deveriam ser seguros para gestantes que querem interromper a gravidez. A tática de intimidamento aliada à ameaça de exposição continua sendo usada contra indivíduos que procuram por um procedimento abortivo em todo o mundo. Uma gravidez, sobretudo quando indesejada, é um momento extremamente delicado e sensível e, infelizmente, ainda é necessário lidar com a repreensão e desaprovação social. A censura popular e os processos legais - em que pessoas envolvidas podem ser denunciadas e responderem por qualquer nível de assistência a um aborto - são frequentemente usados como armas de correção e vigilância. É triste constatar que a caça às bruxas nunca acabou, apenas se transformou. A nós, resta resistir. 

ARTE: BIANCA XAVIER

Reitor Valder Steffen Jr. - Diretora da Faced Geovana Ferreira Melo - Coordenador do Curso de Jornalismo Vinícius Dorne - Professores Ana Cristina Spannenberg, Nicoli Tassis, Nuno Manna - Jornalista Responsável Nuno Manna – Editores-Chefes Lauryn Fonseca e Andrei Gobbo - Revisão Júlia Alvarenga, Leonardo Jardim, Olívia Diniz Editores Beatriz Nascimento (Ciência e Tecnologia), Fábio Malvezzi (Políticas), Juliana Kopp (Cultura), Helder Reis (Esporte) - Opinativos Anna Júlia Lopes, Gabriela Pina, Júlia Barduco, Luís Felipe - Checagem Fernanda Neves, Heuler Reis, Lílian Karla, Matheus Dias, Beatriz Ferreira, Stéphane Vieira - Diagramação Edivaldo Carvalho, Kauê Altrão, Luciano Vieira, Bianca Xavier - Redes e site Isadora Braga, Maria Julia Araujo - Foto e arte Gabriel Magalhães, Jhenifer Gonçalves, Matheus Gomes, Fernanda Neves Finalização Danielle Buiatti e Ricardo Ferreira de Carvalho. www.sensoincomumufu.com

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POLÍTICAS

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Educação Básica brasileira em transformação Realidades e expectativas distintas circundam a implantação da nova base curricular POR RAFAEL GOBI E VALQUÍRIA VIEIRA

RETORNO AO PRESENCIAL ENCONTRA DIFERENÇAS NO MODELO DO ENSINO MÉDIO. FOTO: CRELLO

Aos poucos as escolas voltam. Salas com nú- que já era aplicada nas provas do Exame Nacional mero reduzido de estudantes e professores reto- do Ensino Médio, o ENEM, em termos de áreas de mam a rotina diária pré-Covid-19. Devido à conhecimento. Mas, de acordo com o mestre em pandemia, entre os 26 estados do Brasil, além do História e professor da rede estadual de ensino Distrito Federal, todas as em Uberlândia Geraldo instituições de ensino Junio, ainda se trata de O estudante só vai poder escolher haviam fechado as porum processo de adaptao que a instituição de ensino tas. O período postergou ção. “O Novo Ensino a implementação da ReMédio será implementaconseguir oferecer. forma do Ensino Médio, do em um contexto de MARILI PERES, SOCIÓLOGA que passa a ser realizada grandes deficiências de a partir deste ano. aprendizagem e acredito Uma das principais mudanças está no aumento que seu sucesso virá a longo prazo”, contextualiza da carga horária. De acordo com a Base Nacional o docente ao enfatizar a importância de investiCurricular Comum (BNCC), serão três mil horas mentos em aperfeiçoamento dos profissionais e divididas nos três anos. Destas, 1800 dedicadas à aparelhamento das escolas. Base Comum, e 1200 para os itinerários formatiCom a Reforma, as treze disciplinas oferecidas vos. Serão direcionadas, por ano, 600 horas obri- anteriormente passam a compor apenas quatro gatórias e 400 horas flexíveis, em que os áreas de conhecimento: Ciências Humanas e Soestudantes escolhem os cursos. ciais, Ciências da Natureza, Linguagens e MatePara cumprir a carga horária mínima, de acor- mática. Segundo a Diretora Estadual do Sindicato do com a nova disposição do itinerário formativo, Único dos Trabalhadores em Educação (Sindé preciso considerar mais tempo na escola. A UTE), Elaine Cristina, o viés da reforma é ideolódoutora em Sociologia Marili Peres, também gico e despreza os diversos avanços da educação aponta outra questão que influencia no processo: nas últimas décadas. "A priorização de conteúdos "O estudante só vai poder escolher o que a insti- em detrimento a outros deixa de oferecer o leque tuição de ensino conseguir oferecer. Nem toda de oportunidades de que o estudante precisa para escola tem aquilo que o discente deseja” , explica. formação integral dos saberes", argumenta. Os educandos veem a reforma do Ensino Apesar de seguir a BNCC, cada estado fica resMédio ainda longe da realidade. Rodrigo Bravo, ponsável por definir o próprio documento norestudante do nono ano em Novo Horizonte (SP), mativo. As mudanças estruturais, de acordo com a inicia a etapa no próximo período escolar. “Uma professora do Núcleo de Políticas e Gestão da mudança parece ser boa ideia, mas temos que Educação da UFU, Maria Vieira, poderão intensifiesperar. Muitva coisa não pode ser mudada. car desigualdades de formação entre os estudanPorém, outras têm que ser atualizadas”, comenta tes da escola pública e privada. Rodrigo. A especialista ainda destaca a importância em Em alguns aspectos, o modelo reflete a divisão avaliar o histórico da Lei 13.415-2017, que foi apro-

vada durante o governo Michel Temer. “Em um cenário com o Brasil dividido e muitas tensões, o clima político estava favorável ao Executivo Federal de natureza golpista", reitera a professora ao destacar como o contexto possibilitou a indução de medidas provisórias. A doutora em História, atual vereadora e membro da Comissão de Educação, Cultura e Ciência da Câmara Municipal de Uberlândia, Cláudia Guerra, também aborda a questão política desta transformação. “Trata-se de um projeto de poder baseado em estatísticas que mostram como a educação não avança e tem problemas, mas com o objetivo de destruí-la, ao invés de aperfeiçoá-la", destaca. O professor de Ensino Médio da rede estadual em Uberlândia, Leo Cruz, acredita que a nova proposta pode auxiliar os jovens na formação profissional e facilitar a inserção no mercado de trabalho. “Com a reforma, as escolas poderão escolher e personalizar seus itinerários, podendo suprir a demanda de profissionais que existe em sua região. Por exemplo: uma escola localizada em um território forte na área agrícola, pode montar projetos próprios para formar trabalhadores para esta área”, ressalta. Por outro lado, esta condição pode impactar negativamente um sistema educacional conflitante. “Da forma como foi colocado, esse novo Ensino Médio guia para uma realidade que a gente já viu no passado: os jovens mais pobres vão parar de estudar, sob o argumento de que já estão formados tecnicamente. Enquanto os mais ricos seguirão para a universidade, com melhores condições de se inserirem no mercado”, pondera o professor. 

INFOGRÁFICO: VALQUÍRIA VIEIRA

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POLÍTICAS

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Por que descredibilizam Paulo Freire? Professora de pedagogia discute os ataques ao educador e ressalta sua importância nos dias atuais POR BIANCA XAVIER E JULIA ALVARENGA

Paulo Freire é considerado um dos grandes nomes da educação em todo o planeta. Para ele, a alfabetização não deve se distanciar da leitura de mundo, pois o contexto em que os educandos estão inseridos precisa ser levado em consideração. Ainda na visão de Freire, a educação não é neutra, mas política. Por seus ideais revolucionários, o educador foi considerado inimigo do país e obrigado a fugir em 1964. Os ataques continuam até os dias atuais, mesmo após mais de 50 anos da publicação de seu primeiro livro. Edilane Teles é professora dos cursos de Pedagogia e Comunicação da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Formada em Pedagogia, é doutora em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Edilane estudou Paulo Freire na graduação e dedica-se em viver, além de partilhar, os ensinamentos do autor na prática, junto dos estudantes. Responsável por levar seu legado adiante, a professora percebe em Freire a oportunidade de “esperançar” por dias melhores. O Senso (in)Comum conversou com a professora para entender a importância dos métodos criados pelo educador em busca não só de melhores escolas, como sociedades. Senso (in)Comum: Como Paulo Freire se relaciona com a sociedade? Por que estudá-lo? Edilane: Porque ele dá esperança. É impressionante como as pessoas não sentem. Paulo Freire toca o coração e a alma no sentido de acreditar no outro, na inclusão dos demais. Ele também ativa minha curiosidade epistemológica de procurar saber, de conhecer, porém, ao mesmo tempo olhar para nós mesmos e ao próximo. O cuidado com o próximo é algo incrível da obra e parece que incomoda muita gente, infelizmente. Quanto mais as pessoas questionam, digo para elas conhecerem Freire. Ele nunca apresentou nenhuma panaceia, nenhuma solução, até porque isso não existe para educação. Ele apresentou possibilidades. A primeira delas é o olhar e a escuta cuidadosa daqueles que estão conosco. A educação está aqui para desvelar, por isso é tão importante.

OBRA DE BRASILEIRO É REFERÊNCIA INTERNACIONAL FOTO: ACERVO PAULO FREIRE/INSTITUTO PAULO FREIRE

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Senso (in)Comum: De que forma o educador é abordado no currículo do curso de Pedagogia da UNEB? Edilane: Estou em um departamento em que a presença de Paulo Freire é muito forte. A educação em si, aqueles que pelo menos buscam e compreendem a coerência da obra e as intenções reais de Freire, concordam sobre a colaboração que ele deixou para a educação, de uma proposta otimista e esperançosa que abraça a educação como algo fundamental. A busca e escuta da comunidade por uma educação popular está na gênese do curso e, desta forma, vinculado a Paulo Freire. A conclusão que chego é que cada departamento e proposta curricular tem feito um caminho próprio e autoral, o que é muito positivo, mas, ao mesmo tempo, deixa uma lacuna de aproximação maior com o campo comunicacional, que é muito importante para dinamizar os processos educacionais. Senso (in)Comum: Você alia os ensinamentos de Freire à sua carreira atual? Edilane: O tempo todo. Na verdade, é uma referência fundamental. Não tem como pensar educação sem o cuidado freiriano, ainda mais agora. Estamos finalmente diminuindo o número de mortes e o número de infectados da Covid-19, mas nós somos o segundo país com maior número de mortos na pandemia. Um país com uma política nacional que é, de certa forma, um boicote. Sugerem-se remédios sem comprovação científica. O mundo inteiro diz para não tomar e no Brasil se diz: toma. Isso é um perigo porque é como se as pessoas acreditassem naquilo que não tem coerência, nem bom senso. Paulo Freire propôs a educação libertadora, onde você tem a capacidade de fazer as suas escolhas, não porque o outro me influencia, mas porque eu debato, discuto, dialogo e escolho. Nós somos sujeitos do mundo, então aquilo que deveria ser coerente para minha existência, deveria ser para a existência do outro também. Por isso Freire é tão fundamental, não tem como pensar a educação sem os ideais freireanos. Nessa onda dos contrários, eu como professora universitária já ouvi estudantes dizerem “tem obra que é contra Freire”. Eu respondo: “então traz essa obra, vamos estudá-la e de fato entender onde é que estão as incoerências, as coerências, os ganhos e se de fato tem razão ou não”. Antes de refutar a Freire, tenho que compreender e ler suas obras. Tenho que ter provas. Senso (in)Comum: Você já se deparou com informações falsas sobre Freire? Como lidar com esse tipo de situação? Edilane: Nunca, mas talvez, isso se deva pelas redes onde eu interajo, nossas bolhas. Como a gente estuda Freire na obra, digo ao estudante para ler Freire, não ver alguém falando de Freire. Não é para acreditar, por exemplo, naquilo que a gente interage o tempo inteiro, como as informações do Instagram, do WhatsApp ou do jornal, porque nessas situações você vê as interpretações

EDILANE APONTA DESINFORMAÇÃO EM TORNO DE FREIRE FOTO: ARQUIVO PESSOAL/EDILANE TELES

das pessoas. Se tivermos leituras superficiais quando vemos esse tipo de coisa, obviamente, tendemos a acreditar. Senso (in)Comum: Na sua opinião, por que Freire é tão descredibilizado? Edilane: Fico muito triste. Tenho 48 anos e nunca vi uma destruição tão grande. Essa descredibilidade, para mim, não tem valor, sabe por quê? Porque o mundo inteiro diz o contrário. Há anos, vimos uma força contrária a Freire com tamanha incoerência.Por que uma política educacional ataca a maioria dos brasileiros? Não faz sentido. Por que atacar uma obra em que diz “ouça, escute, olhe com cuidado para o teu semelhante”? Que diz para investir em uma educação que o liberte? Em que ele não vai ser um oprimido e quando ele seja, ou alcance aquilo que queira, não se torne um opressor, mas alguém que luta pela igualdade e tem o direito a trabalho, a salário e moradia dignas, a viajar, a ter o iPhone. Isso é ruim aonde? Isso não é ruim, é fantástico. É inadmissível que em 2021 alguém diga uma mentira e todos os outros a sigam, que alguém ataque uma pessoa que se tornou o grande filósofo da educação. Freire disse que seus livros são resultado das experiências, essas que podem ajudar outros a construir outras experiências para melhorar a educação. Freire vai continuar sendo atacado por aqueles que não conhecem suas obras e por aqueles que não querem conhecer, mas também temos que entender que o que esses grupos defendem é desumano, porque excluir o outro é desumano.


CULTURA

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Privilégio à memória Homenageando criminosos e lideranças regionais, Uberlândia resgata as faces da história em suas ruas POR LAURYN FONSECA E LÍLIAN KARLA

Ainda que Santa Mônica, mãe de Santo Agostinho, nomeie o bairro que abriga um dos campus da UFU em Uberlândia, é o empreendedor João Naves de Ávila e o proprietário de terras Segismundo Pereira que nomeiam suas principais avenidas. Caminhando em direção ao centro da cidade, passamos também pelos ex-presidentes e ditadores Floriano Peixoto e Getúlio Vargas, além do uberlandense e ex-governador de Minas Gerais, Rondon Pacheco. Não sozinhos, eles apontam para um padrão. De acordo com levantamento feito pelo Diário de Uberlândia, com base no Guia Sei, 77% dos logradouros levam nomes masculinos, ainda que a cidade seja majoritariamente feminina. Dados do Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, de 2013, mostram que 51,17% da população de Uberlândia é composta por mulheres. Pela Lei Municipal de nº 5626, de 13 de agosto de 1992, a nomeação dos espaços públicos deve homenagear personalidades de importância histórica, priorizando aqueles que trabalham pela paz e solidariedade humana. Nessa teoria, o gênero não está no checklist, mas, na prática, a regra é outra e aparenta ocultar algumas das partes negativas da história de certas figuras.

INFOGRÁFICO: GABRIEL MAGALHÃES

É o caso do ex-prefeito Tubal Vilela, que dá nome a uma das principais praças da cidade, mesmo sendo responsável pelo crime de feminicídio de Rosalina Buccironi, sua ex-esposa, em maio de 1926. Para a mestre em Direito e coordenadora do Escritório de Assessoria Jurídica Popular (ESAJUP), Neiva Flávia de Oliveira, que atua no enfrentamento às violações dos Direitos Humanos, a trajetória das pessoas lembradas pela cidade falam sobre a própria população. “No ponto de vista econômico, esses personagens podem ter trazido vantagens para a região, mas, tratando de violação de direitos humanos em uma democracia, nós questionamos a memória aos repressores. Eles representam a sociedade?”, indaga.

Vias, logradouros, monumentos, edifícios e tantos outros espaços que recebem nomes de personagens icônicos, representam a vida real de pessoas que a geração atual aprova ou não. Na perspectiva da pesquisadora de obras urbanas e professora do Instituto de Arte (IARTE) da UFU, Tatiana Ferraz, é necessário questionar as representações que aparecem nas cidades como também suas significações. "Um monumento sobrepõe o tempo. É impositivo porque alguém decide o que será representado, onde será feito e quem vai construí-lo”, explica. Com mais passeios pelos bairros de Uberlândia, importantes líderes locais que contrapõem a hegemonia, também são destacados. A exemplo do busto do ator e compositor brasileiro, nascido em Uberlândia, Grande Otelo e também, da galeria que recebeu o nome da professora Iolanda de Lima Freitas, primeira Secretária de Cultura do Município. Suas vidas de superação são uma lembrança da força dos moradores e de como eles querem ser vistos. Assim, nomes outrora esquecidos, passam a ser lembrados. Como acredita Matheus Silveira, mestre em patrimônio histórico e conselheiro do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Cultural de Uberlândia (Comphac). “Não precisamos apagar um personagem para enaltecer o outro. No contexto urbano, de uma cidade que se expande, temos espaço para criar novas homenagens deixando a cidade mais rica”, aponta. A derrubada de monumentos vem gerando debates entre historiadores, ativistas e especialistas da área. De um lado, há quem lute pelo resgate da memória e pela remoção de certas homenagens. A desconstrução de ideias ultrapassadas parte de um contexto sócio cultural em que há maior acesso à informação e uma busca pela justiça e igualdade. Por outro, a democracia permite a discussão em torno desses objetos e figuras representadas para uma ressignificação de forma efetiva. Em meio a tantas opiniões sobre derrubar homenagens a figuras históricas que cometeram crimes, Matheus acredita que esses espaços resgatam uma memória que deve ser observada. “O patrimônio histórico gera identidade para cada local. Nunca é ideal degradá-lo porque ele não precisa, necessariamente, gerar orgulho. Mas pode servir como lição para que a gente não repita isso como sociedade”, opina. Neiva explica que existe um movimento chamado contra-monumento, que ganhou apoiadores por tentar relatar a narrativa completa de figuras importantes que cometeram violações contra os direitos humanos. O movimento propõe alternativas para inserir na memória cotidiana o que não está sendo contado. “Tem essa característica de completar a história. Na avenida Rondon Pacheco, a cada esquina teria uma menção de uma violação dos direitos humanos. Mantém o nome da praça Tubal Vilela da Silva, mas lá no

CRUZAMENTO QUE DESPERTA A DÚVIDA E O DESEJO POR MUDANÇAS. FOTO: KAUÊ ALTRÃO

meio teria um monumento como um tributo à Rosalina", explica. Ela também recorda que no Brasil, quando se trata de informações públicas, não existe direito ao esquecimento, por decisão do STF. “A partir do momento em que essas histórias são contadas inteiras, criam constrangimento. O segundo passo seria a retirada das homenagens. Acho um caminho que seria mais palatável, mais informativo e mais pedagógico”, completa.

EM

SUA

CIDADE

NATAL,

GRANDE

OTELO

RECEBE

HOMENAGEM POR SUA IMPORTANTE CONTRIBUIÇÃO NA CULTURA BRASILEIRA. FOTO: REPRODUÇÃO/PREFEITURA DE UBERLÂNDIA

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ESPECIAL

FOTO: ARQUIVO PESSOAL/ LUCIANO "MOICANO" E PRISCILA COSTA. COLAGEM: JHENIFER GONÇALVES

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ESPECIAL

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Entre confetes e serpentinas Identidade e resistência se misturam na história do carnaval uberlandense FERNANDA NEVES E GABRIEL MAGALHÃES

O som do apito anuncia que o espetáculo vai começar e, na avenida, os graves do surdo logo contagiam os convidados. A comissão de frente traz o primeiro capítulo de um desfile, colorindo o espaço com as diferentes alas e os casais de mestre-sala e porta-bandeira. Tamborins, chocalhos e agogôs se alternam em um ritmo intenso que faz as passistas sambarem, enquanto os carros alegóricos impõem presença e trazem brilho aos olhos do público. O samba-enredo já faz parte da memória de quem viveu esse momento e o último grito da bateria sela o fim de mais um carnaval. Em Uberlândia, as escolas de samba combinam festa e dedicação durante a folia desde 1954. Nos 67 anos de existência, inúmeras memórias se fundem e se transformam na história dessa manifestação cultural. Na primeira metade do século XX, a celebração realizada na região central uberlandense era tomada por pessoas brancas da elite, que impunham à população negra o direito de ocupar apenas o lado esquerdo da Avenida Afonso Pena. A resistência começa por volta de 1930, quando o rancho dos Tenentes Negros retoma esse espaço durante a festa e mostra para a sociedade uberlandense as raízes dessa expressão cultural. O ex-presidente da Associação das Escolas de Samba da cidade e membro da Unidos do Chatão, William Couto, defende que “quando falamos de carnaval, falamos de algo que é nosso, é a nossa raiz, nossa comunidade e o nosso povo negro.” A criação das escolas de samba gerou personagens irreverentes para a festa local. Arlindo de Oliveira Filho, conhecido como Mestre Lotinho, fundou, no bairro Patrimônio, a Tabajara Sociedade Recreativa. Ela é a escola mais antiga de Uberlândia e homenageia a Orquestra Carioca de Severino de Araújo. Olímpio Silva, o Pai Nego, deu início à escola Unidos do Chatão, que leva como símbolo a figura do Zé Carioca e se destaca pela união familiar. Desses ícones carnavalescos, nasceram histórias que marcam a cena cultural da cidade até os dias de hoje. O compromisso em levar elementos identitários para a avenida esteve presente na preparação dos temas da campeã mais frequente da celebração. Diretor de Carnaval da Tabajara durante seis anos, Luciano “Moicano”, que também é professor, explica que para escolher o enredo, a comunidade se baseava nas leis 10.639, de 2003, e a 11.645, de 2008, que regulamentaram o ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena do Brasil nas escolas. MEMÓRIAS DE FOLIA Tradicionalmente, a importância históricocultural do carnaval é passada para os membros mais novos desde cedo. Primeira porta-bandeira da Tabajara, Priscila Costa também é a única mulher que já ocupou o cargo de presidência da es-

cola. Com a sua trajetória, ela pretende incentivar meninas a ocuparem postos de liderança e defende a necessidade de reparação histórica para mulheres e negros. Priscila é a prova viva que vida pessoal e desfiles não se separam. O samba se misturou com o papel de mãe aos seus 14 anos, quando engravidou de seu primeiro filho, Flávio Junior. E se perpetuou ao desfilar grávida de Ana Beatriz, carregando as cores da escola: branco, preto e azul. Nos últimos anos de carnaval, o mestre-sala era seu primogênito, que cresceu em contato com a comunidade e também carrega esse amor. “Nós temos uma energia de mãe e filho muito forte. Quando estamos na avenida, isso triplica”, conta. A tradição familiar também está presente na história do mestre de bateria da Unidos do Chatão, Ederson Nascimento, que nasceu no ano de criação da escola, em 1986, e desde então desfila com ela. Para ele, é muito importante estabelecer o exemplo para as crianças, a fim de que elas desenvolvam esse encanto pela bateria e outras alas da comunidade. Além de ser uma manifestação que tece o fio da memória de diferentes gerações, o carnaval também promove a discussão de temas sociais e políticos. A avaliação das propostas de enredo, o concurso para o samba do ano, as pesquisas sobre e mergulho no tema escolhido, o trabalho das costureiras, músicos e ajudantes do barracão, tudo é pensado minuciosamente para que uma narrativa seja contada. “Moicano” afirma que essa difusão de conhecimento impacta toda a população da cidade porque “uma escola de samba tem uma maneira de contar história que é louvável no mundo inteiro”. CARNAVAL DE RECORDAÇÕES Graciliano Ramos afirmou que a única certeza do brasileiro é o carnaval do ano seguinte, porém, desde 2017, por motivos de inadimplência por parte da organização responsável pelos repasses financeiros, o desfile das escolas de samba não acontece na cidade e a manutenção desta tradição foi fortemente abalada. Para quem tem essa festa popular como parte da vida, restam apenas os risos e as lembranças dos dias de folia. A memória construída pelos integrantes das escolas preserva a cultura da cidade e perpetua o caminho de resistência do carnaval. Membro da diretoria e costureira da Unidos do Chatão, Sônia Alves se orgulha de ter aprendido a criar roupas com a sua mãe. “De repente, a sala de casa virou um ateliê e eu, sem saber costurar, fui aprendendo a fazer as fantasias”, relembra. Para ela, a preparação para o desfile é uma verdadeira “loucura” e o trabalho em conjunto da comunidade faz toda a diferença. Em relação a

essa organização, a chefe da velha-guarda, Sirlene Silva, defende que “quem vê a escola desfilando na avenida, não sabe o [trabalho] que ficou para trás.” “Moicano” viveu o seu momento mais marcante no carnaval de 2015, que aconteceu no Parque do Sabiá. A escola tinha como enredo “Os ciganos do Brasil - Tabajara lança a sorte: magias e encantamentos” e como atual campeã, foi a última a entrar na avenida. Durante o aquecimento, uma forte chuva atingiu a cidade e toda a estrutura técnica ficou comprometida. O mau tempo não afetou a animação dos membros e do público, que cantou e sambou, durante 30 minutos, a música “O amanhã”. Luciano relembra que a multidão de telespectadores “pulsou” de alegria junto com a comunidade. CULTURA: DE TODOS PARA TODOS A união dos membros de uma escola de samba é fator determinante para que cor e alegria invadam a avenida durante o carnaval. Entretanto, essa festa também depende da gestão das cidades. Doutor em Administração Pública e Governo pela FGV, Fernando Burgos afirma que o primeiro passo para fazer uma boa festa é analisá-la como um espaço em que várias formas de cultura se manifestam e o lucro é consequência. Ele também aponta a relação entre a folia e o meio urbano: “O carnaval de rua é uma oportunidade de mostrar a cidade para pessoas que não conhecem aqueles espaços”. Para que haja uma boa governança durante a festividade, alguns elementos precisam ser levados em consideração. A democratização dos espaços públicos é um deles, já que parte significativa dos foliões residem em diferentes bairros e precisam se locomover aos locais do carnaval. Para Burgos, o investimento em transporte é uma política imprescindvel. O carnaval de Uberlândia é responsável por mostrar a cultura e resistência do povo negro para toda a cidade. Ele também promove discussões necessárias ao mesmo tempo em que leva música e história para a avenida. Além disso, as lembranças felizes constroem a folia e marcam os membros das escolas de samba. Diretor de ala e compositor da Unidos do Chatão, Milton da Silva relembra que em um desfile com chuva, o pessoal da sua ala ficou brincando na enxurrada, deslizando sobre o asfalto molhado e se divertindo com o momento. Essas memórias remetem ao que já cantava Chico Buarque em “Sonho de um carnaval”: na folia, adultos sabem ser crianças. Para William, “a tristeza no carnaval é a alegria. Não dá pra enumerar os momentos especiais.” Ele reforça que desde que se envolveu com o carnaval, vive essa mesma sensação. O carnaval é construído e sua história contada para aqueles que desejam vivê-la.

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CULTURA

Senso nº 49 Nov/2021

Nome a nome, rua a rua Andar pelas ruas de Uberlândia é uma verdadeira viagem: no espaço, na história e na aquarela POR LUÍS FELLIPE BORGES

Sempre fui muito curioso em saber porque as coisas têm os nomes que têm. Certa vez, descobri, por exemplo, que a palavra "músculo" veio do latim musculus - e significava, em sua origem, "rato pequeno". Aparentemente, os antigos romanos pensavam que alguns músculos pareciam com ratinhos debaixo de nossa pele e decidiram nomeá-los assim. A Antiguidade era realmente estranha. Bíceps e roedores à parte, em um de meus devaneios etimológicos, me ative a pensar sobre os nomes de ruas em Uberlândia (que, aliás, significa terra fértil), cidade onde nasci, cresci e onde, desde pequeno, comecei a questionar por que a manga fruta e a manga da camiseta têm o mesmo nome. Muitas dessas ruas têm nomes de personalidades históricas, como Getúlio Vargas, Floriano Peixoto e Afonso Pena. Pessoas que marcaram os rumos do Brasil e que, hoje, norteiam os trajetos dos motoristas de aplicativo. Não são esses personagens, porém, que mais me chamam a atenção. Prefiro os nomes que preenchem os catálogos, mas que não têm suas trajetórias conhecidas. Quem diabos foi Adomervil Moreira de Miranda? Um agricultor? Um advogado? Um vendedor de enciclopédias? Acho que essa dúvida nunca será respondida, nem mesmo pelos moradores que vivem na rua que leva seu nome, no Bairro Luizote de Freitas. Entretanto, os melhores logradouros, para mim, são os do bairro Tibery. Andar por lá é quase como dar uma volta ao mundo. É possível sair da Rua Londres, dobrar a esquina na Rua Montreal e sentar para tomar um café na Rua Paris. Posso dizer que já andei de Salvador a Curitiba em menos de 5 minutos, sem nem me cansar. Para não dizer que a região é total-

mente cosmopolita, há também ruas com nomes de cores. Rua Branca, Rua Amarela… Pensando bem, não deve ser legal para um atleticano dizer que mora na Rua Azul e deve ser divertido para um morador explicar ao amigo que mora em uma casa vermelha na Rua Verde. De toda forma, caso você não goste de viajar - ou se gostar muito de roxo, que não está na paleta de cores do bairro - fique tranquilo. Dá para escolher uma casa na Avenida Benjamin Magalhães ou na Rua Cristóvão Marra, outros endereços com nomes de pessoas que não marcaram a história. São personagens que não tiveram seus "ratinhos" expostos em estátuas de mármore ou em pinturas neoclássicas. Talvez, um dia, suas vidas sejam reconhecidas, e alguém encontre suas biografias em uma das enciclopédias do Seu Adomervil. 

LOCALIZADA NO CENTRO DO PAÍS, OS CAMINHOS DA CIDADE GERAM HISTÓRIAS CURIOSAS. FOTO: THIAGO MESQUITA

Uma vez, o tempo e outras coisas Sobre trilhar a estrada de memórias ao ir em direção ao futuro que não imaginei POR JHENIFER GONÇALVES

No caminho para casa, enquanto as luzes dos semáforos pareciam mais acesas e os cardumes de carros levantavam poeira quente ao meu lado, me lembrei da senhora sentada ao lado de Dona Sônia. Eu não consigo lembrar do seu nome, mas o jeito que ela me olhou durante o tempo todo permaneceu grudado na minha mente. Por algum motivo, era como se ela quisesse dizer: Ei, você mesma. De onde eu te conheço? Você não vai dizer nada? Talvez, ela tenha visto em mim algo que a lembrava de uma sobrinha distante ou só mais alguém que parecia com a filha de uma conhecida dos tempos antigos. Por uma fração de segundo, eu quis que ela se levantasse e me contasse uma história incrível de como ela havia segurado meu pai ainda bebê e que, definitivamente, ela sabia quem eu era. Quem sabe, a partir dali, eu poderia visitá-la sempre que quisesse. Não só a senhora que agora eu não lembro o nome, mas também a Dona Sônia, que em sua despreocupação em retirar os bobs do cabelo e os

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seus vestidos de flores, tanto lembrava a minha avó. Em todos os seus gestos, na fala suave e no jeito de olhar para os netos como se fossem as pessoas mais importantes do mundo (e de fato, eram e sempre vão ser). Enquanto eu voltava para casa e, mais uma vez, embalada pelas buzinas dos carros e o cheiro de fritura, eu pensei no que escrever, no que falar sobre família e tempo, sobre tradição ou qualquer coisa. E o que eu poderia dizer? Quando, na verdade, não fui nada mais que uma mera espectadora. Assisti de olhos vidrados o Primeiro Ato da família Chatão estrelando no teatro da sua varanda. Eu não sei fazer jus ao que senti lá e acho que ninguém pode. Eu pensei muito sobre o tempo durante aquelas horas e o que diria a ele se pudesse. “Ei, eu sei que nada nunca voltará a ser como era antes. É simplesmente a vida. Mas, você se importaria de me devolver uns minutinhos com a Dona Maria?”. Presumo que ele responderia: “Claro, você vai conhecer alguém como ela” .

Por detrás do prestígio Nova lei incentiva a reflexão sobre as homenagens a violadores dos direitos das mulheres em vias de Uberlândia POR: STÉPHANE VIEIRA E KAUÊ ALTRÃO

Enquanto o Centro Municipal de Cultura destaca em seu interior mulheres artistas importantes no cenário Uberlandense, os logradouros ao redor contam outra história. Uma das principais avenidas da cidade leva o nome de Rondon Pacheco, violador de direitos humanos com participação no massacre do povo indígena Krenak, incluindo mulheres e crianças. Além dele, Tubal Vilela, que é homenageado na praça central do município, assassinou com três tiros pelas costas a esposa grávida. Em 2017, o nome do local foi simbolicamente alterado para Ismene Mendes, em tributo à advogada que lutou pelos direitos dos trabalhadores rurais e sindicalistas na região. Na tentativa de dar um novo rumo para a situação, em agosto de 2021 foi aprovada a lei de nº 13.562 que veta a nomeação dos espaços públicos de Uberlândia em homenagem a pessoas condenadas por crimes contra a mulher. A autora é Amanda Gondim, vereadora do PDT eleita em 2020 e formada em Direito pela UFU. Durante a graduação, fundou o “Todas por Ela”, atuando como voluntária em casos de violência doméstica e de gênero. Ela participou do Conselho Municipal de Direito das Mulheres e de iniciativas nacionais de defesa das mesmas. Em entrevista para o Senso (in)comum, Amanda fala sobre o direito à memória como instrumento para garantir à população o conhecimento da sua história local e coletiva. Também reflete sobre questões sociais que não devem ser esquecidas nem banalizadas, e a importância de resgatar narrativas que foram ocultadas pelo "padrão" hegemônico hétero, branco e masculino.

"O direito à memória é uma forma de superação dos traumas coletivos através da lembrança, é um ato que ultrapassa as questões individuais." AMANDA GONDIM, VEREADORA

Acesse a Entrevista completa no site:


CIÊNCIA E TECNOLOGIA

Senso nº 49 Nov/2021

Covid-19: desafios no desenvolvimento de vacinas Alta contaminação e crescente índice de vacinação aumentam dificuldade de produção de imunizantes POR HEULER REIS E HELDER REIS

No final de 2019 o mundo conheceu um novo vírus respiratório com potencial pandêmico que começava a assolar a China: o Sars-Cov-2. Meses depois, com o genoma do patógeno sequenciado, empresas e instituições ao redor do planeta iniciaram pesquisas para vacinas contra a doença, a Covid-19. Para a elaboração dos imunizantes, foram necessárias uma etapa de estudos pré-clínicos e três etapas de estudos clínicos. Na fase inicial, o enfoque era observar, dentro do genoma do vírus, quais seriam as partes capazes de gerar respostas imunológicas mais robustas. O resultado chegou. “A partir dessas investigações que envolvem biologia computacional e análise do material genético, chegou-se na Spike; aquela proteína que forma a coroa do coronavírus, que é bastante abundante”, destaca a biomédica e divulgadora científica, Melanie Dutra. São muitas as fases até que uma vacina chegue à população. Ainda no estudo préclínico, são analisados os efeitos da proteína em animais para indicar qual é a resposta imune e o nível de segurança. Esses dados são analisados por um comitê de ética, que pode autorizar o próximo ciclo. Já na etapa clínica, a primeira parte é composta por dezenas de voluntários que recebem uma dose da candidata à vacina, para analisar a segurança e as reações adversas mais frequentes. Depois, 100 a 300 participantes, são divididos entre placebo e vacinados, com o intuito de entender quantas doses devem ser aplicadas, qual o intervalo ideal entre elas e o tipo de médio de resposta imune. A “prova final” é feita em larga escala com dezenas de milhares de voluntários, em vários países, quando se verifica a eficácia do imunizante.

PARA ESPECIALISTAS, O TESTE DE DESAFIO HUMANO (TDH) É ALTERNATIVA PARA A FALTA DE CANDIDATOS NAS PESQUISAS POR NOVAS VACINAS. FOTO: FREEPIK

Segundo Dutra, os participantes, em especial na última etapa, têm que seguir um padrão de diversidade e não ter contraído a doença. "Estudos clínicos assim têm algumas peculiaridades. Basicamente, pessoas acima de 18 anos, que podem ter comorbidades, mas que não tenham histórico da doença. Então, a gente vai ver a defesa que a vacina proporciona", explica. Além disso, o voluntário não pode ter sido imunizado, algo cada vez mais difícil de se encontrar com o avanço da infecção e vacinação. Segundo dados do site Our World In Data, até meados de outubro de 2021, o número de infectados no Brasil passou de 21 milhões oficialmente e mais de 72% da população já recebeu ao menos uma dose das vacinas contra a Covid-19. De acordo com o analista de dados e coordenador da Rede Análise Covid, Isaac Schvarstzhaupt, o Brasil vivenciou um cenário de contaminação sem controle. “Em 2020 os picos foram em torno de 69 mil casos. Em janeiro de 2021, houve novo pico, em torno de 68 mil casos. Já no dia 25 de março, tivemos 100 mil casos detectados. E em junho tivemos a terceira onda, com pelo menos três dias registrando mais de 100 mil casos”. A mestre em Imunologia Letícia Sarturi acrescenta que, apesar da vacinação avançar, investimentos em imunizantes nacionais são fundamentais para romper com a dependência das vacinas estrangeiras, facilitando o planejamento das próximas campanhas ao baratear o custo. Nesse sentido, uma alternativa para contornar o problema da falta de candidatos para a pesquisa das novas vacinas, principalmente as nacionais, seria o Teste de Desafio Humano (TDH). Como explica o professor de Bioética da UFU Alcino Bonella, o TDH é uma espécie de etapa intermediária, entre a segunda e a terceira, em que poucas centenas de voluntários saudáveis são expostos à uma versão atenuada do vírus após serem vacinados com o imunizante do estudo. “O TDH poderia descobrir quais candidatas são as mais promissoras. Então se faz a fase três com menos pessoas, algo entre centenas e alguns milhares, e não com dezenas de milhares de indivíduos”, explica Bonella. Não seria ético pedir para que alguém não se vacine na visão do professor de olho em um novo imunizante e, por isso, aponta o TDH como o caminho mais viável nesse caso. Ele chama a atenção também para o fato de que os riscos de morte são estatisticamente pequenos em comparação à doação de um rim. A estudante de biomedicina e voluntária para o TDH na ONG 1 DAY Sooner, Catarina Souza, compreende os possíveis problemas, mas acredita que os benefícios sobressaem. Ela resolveu se voluntariar principalmente pela oportunidade de contribuir com outros países que ainda não conseguiram acesso aos imunizantes.“Decidi fazer parte por mais de um motivo. Entrei na

biomedicina porque queria ajudar as pessoas, contribuir para a ciência. Então soube do TDH e me apaixonei pela ideia de acelerar o processo de desenvolvimento de uma vacina”, declara. Souza também destaca que os Testes de Desafio Humano são mais eficientes na obtenção de respostas. No modo tradicional, o voluntário seria “devolvido” à sociedade e se esperaria uma infecção. Com o TDH, o indivíduo já é exposto a uma carga viral controlada e de forma muito mais segura. “Tudo na vida tem um risco, mas nesse caso não vejo como um grande risco. Haverá supervisão médica, equipe de apoio, para que o voluntário entenda o que está acontecendo. Ninguém estará à deriva. Inclusive, parte das obrigações da ONG é defender os direitos dos voluntários. É tudo bem estruturado”, conclui. 

INFOGRÁFICO: FERNANDA NEVES E JHENIFER GONÇALVES

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CIÊNCIA E TECNOLOGIA

Senso nº 49 Nov/2021

Geração Pix A nova ferramenta se tornou a “queridinha” dos jovens, mas especialistas alertam para os riscos dessa tecnologia POR ANNA JÚLIA LOPES, ISADORA BRAGA E LUÍS FELLIPE BORGES

Pedir delivery de comida, pagar uma corrida para o motorista de aplicativo, enviar dinheiro para amigos na fila do restaurante e emprestar para familiares. Em todos esses e outros momentos típicos do cotidiano do jovem brasileiro, o Pix se tornou um dos principais métodos de transferir valores. Lançado em outubro de 2020 e colocado em funcionamento no mês seguinte, a ferramenta caiu no gosto popular pela praticidade, velocidade e ausência de taxas para transações. Dados do Banco Central (BC) apontam que o Pix movimentou cerca de R$ 480 bilhões no Brasil, somente em setembro de 2021, possuindo mais de 102,6 milhões de usuários cadastrados. Para a economista Isabela Amâncio, o uso desse tipo de operação foi impulsionado pela pandemia da Covid-19, que aumentou a necessidade de movimentar dinheiro de forma virtual. Diante das mudanças nas relações presenciais, as transações financeiras também se transformaram, sendo o Pix considerado a materialização desse novo cenário. “Ele trouxe para a população a clareza de que o dinheiro em papel moeda não é tão necessário quanto se imaginava, de que o online é confiável e que essas transferências são grandes facilitadoras”, explica. Ainda segundo o BC, o uso da ferramenta é maior entre os jovens, de forma que 38,7% das transações por Pix foram realizadas por pessoas de até 29 anos, também no mês de setembro deste ano. A economista atribui essa preferência ao já intenso contato entre essa faixa etária e a tecnologia. “É uma ferramenta que já demonstrou que acompanha seus próprios desdobramentos ao estar em constante desenvolvimento, assim como o público jovem”, afirma Isabela. É o caso da estudante Jordana Rocha, de 20 anos, que trabalha no bar mantido por sua família em Patos de Minas (MG). Ela relata que o Pix mo-

dificou a forma como os pagamentos são realizados no estabelecimento. “Os clientes, principalmente os mais novos, vêem muita praticidade em resolver tudo pelo telefone, e a maioria já nem carrega dinheiro ou cartão só pelo fato de poder resolver tudo com um clique”, conta. De acordo com Jordana, a dinâmica de caixa e de atendimento no bar também foi intensificada com a implantação da ferramenta. “As máquinas de cartão cobram uma parcela de juros e o Pix não, o que é melhor para nós. Além disso, o dinheiro cai na hora na conta e contribui também para o fluxo de pessoas dentro do bar”, avalia. O Pix também é a forma de pagamento mais utilizada pela estudante de Pedagogia e professora de Literatura, Laryssa Borges, de 21 anos. Ela relata que a ferramenta faz parte de seu cotidiano. “Uso com frequência. Ele facilitou muito as operações no dia a dia, seja o pagamento de contas ou transferência entre amigos”, relata. Apesar da praticidade e da velocidade, o Pix também pode trazer alguns riscos. De acordo com o delegado chefe do 9º departamento de Polícia Civil em Uberlândia, Marcos Tadeu de Brito Brandão, o número de crimes virtuais cresceu exponencialmente na cidade desde 2019. Dentre essas ocorrências, estão os golpes realizados por meio da ferramenta. “Nós temos centenas de casos desse tipo de ilícito, não só em Uberlândia, mas em toda região. Quanto mais tecnologia foi sendo agregada, mais pessoas passaram a utilizar essa ferramenta de forma leviana”, revela. Como forma de frear os golpes, o BC determinou, em outubro deste ano, um limite de R$1.000,00 para transações realizadas pelo Pix entre 20h e 6h. Junto a essa medida, os especialistas recomendam que os usuários tenham cuidado ao transferir dinheiro por qualquer ferramenta digital, especialmente, o Pix. “A principal dica é ter atenção às informações e

MUITO UTILIZADO PELOS JOVENS, O PIX VEIO PARA FICAR E JÁ POSSUI MILHÕES DE USUÁRIOS NO BRASIL. FOTO: FERNANDA NEVES

dados de transações financeiras. Respirar antes de só fazer cliques automáticos como muitas vezes estamos acostumados, ter cuidado e lembrar que se trata do seu dinheiro, e não somente de uma mensagem enviada.”, aconselha Isabela. Para o delegado, apesar da medida ser um mecanismo de segurança e de ajuda, ela não será suficiente se as pessoas não tomarem cuidado com os próprios dados. Um exemplo relatado por Tadeu é o uso do CPF. "Quando pedem em troca de desconto, os estabelecimentos estão montando um banco de dados, que pode ser vendido para infratores", explica. Tadeu também orienta realizar a checagem de informações, já que golpes em que pessoas se passam por amigos próximos da vítima são comuns. "Se alguém te pede para fazer um Pix, ligue e peça para essa pessoa responder perguntas que só ela saberia, como 'qual foi a última vez que nos vimos?' ou 'qual o nome do seu pai?’ ”, finaliza.

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ESPORTES

Senso nº 49 Nov/2021

A batalha de ser mulher na comunidade gamer Após a luta secular por aceitação nas modalidades olímpicas, espaço nos e-sports é uma nova preocupação POR JULIA BARDUCO E EDIVALDO CARVALHO

Miriã Del Gatto acorda quase diariamente para a mesma rotina. Levantar-se, sentar-se em frente ao computador, ligá-lo, esperar os breves minutos que o sistema operacional leva para se iniciar, clicar duas vezes com o botão direito sobre o ícone de um militar segurando uma arma e começar a jogar “Counter-Strike: Global Offensive”, um dos jogos online mais populares do mundo. Ela está sempre animada e joga muito bem. Tudo muda, contudo, quando ela liga o áudio para falar com as pessoas com quem está jogando e demonstra ser uma menina. Houve, inclusive, várias vezes em que garotos lhe perguntaram o que ela estava fazendo ali. Histórias como as de Miriã são velhas conhecidas daquelas que tentam adentrar espaços majoritariamente masculinos. Nas modalidades esportivas olímpicas, por exemplo, apesar de sua primeira prática ter ocorrido em 776 a.C., as mulheres só puderam assistir aos Jogos a partir de 1896 e competir, ainda sem direito a medalhas, em 1900. A primeira vez que a participação feminina ocorreu em todas as modalidades em que os homens participaram, foi em Londres, no ano de 2012. Hoje, com a presença já conquistada na maior competição esportiva do mundo (mas ainda com um longo caminho a percorrer contra o machismo no universo das Olimpíadas), o público feminino luta por espaço em outro tipo de desporto: os e-sports. De acordo com a Pesquisa Game Brasil (PGB) realizada em 2021, a modalidade ganhou muitos adeptos nos últimos anos. No período da pandemia, por exemplo, o mercado consumidor, já gigantesco, se tornou ainda maior. Segundo a PGB, 75,8% dos gamers brasileiros afirmaram ter jogado mais durante o período. Na mesma pesquisa, nos anos de 2020 e 2021, destacou-se a maior presença das mulheres entre os “gamers casuais”, ou seja, aqueles que não se profissionalizam. Logo, por que, mesmo sendo maioria entre os consumidores, elas ainda são minoria nos campeonatos e ligas profissionais? No Campeonato Brasileiro de League Of Legends (CBLOL), a maior competição de e-sports do Brasil e que garante vagas para os mundiais, dentre as dez equipes que disputaram o torneio em 2021, apenas quatro têm jogadoras em sua escalação. A única equipe que conta com mais de uma mulher é a LOUD, com Elizabeth "Liz" Souza e Letícia "Miss" Porto no elenco. Rensga Sports, INTZ e Netshoes Miner contam com uma atleta em seus plantéis, sendo elas, respectivamente, Gabriela "Harumi" Silverio, Tainá "Yatsu" dos Santos e Larissa "LAWI" Santos. Ou seja, elas representam apenas quatro por cento do total de jogadores da competição. Miriã, a jogadora de Counter-Strike que também é streamer iniciante, afirma que os problemas para as mulheres se iniciam antes de elas sequer pensarem na profissionalização. “Ao jogar, existem três tipos de garotos nas plataformas: um

A estudante de Design da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Caroline Ricardo Felício, que trabalha com o desenvolvimento de jogos virtuais, já enxergava a problemática desde muito nova, quando começou a se interessar por vídeo games ao ver seu irmão mais velho jogar. Em seu plano atual, desenvolve a história de três mulheres que têm suas vidas cruzadas em um drama espacial. No chamado Projeto Y as três personagens centrais — uma mãe que é afastada do filho, uma assassina e uma "superprotetora" — provam que as mulheres podem ser protagonistas em jogos e podem ter inúmeras faces e narrativas. Outras organizações e grupos feministas batalham pela inserção de mulheres na comunidade. É o caso do Projeto Valkirias, que treina garotas para competições, seja apenas para melhorar nas filas ranqueadas, ou para seguir carreira no modo competitivo. You Go Girls, Sakuras eSports, Rexpeita Elas e Projeto Fierce são outras ações que contam com objetivos semelhantes: atender o público feminino em um espaço que já devia ser delas por direito e proporcionar um espaço seguro para jogar, competir e criar conteúdo. Hoje, profissionais como Caroline trabalham por uma visão mais justa da figura da mulher nos games e abrem um caminho de esperança. A desenvolvedora de jogos virtuais ainda completa: "Estamos nos jogos como uma parte pequena dele, que serve para satisfazer os olhos dos personagens masculinos e jogadores, e isso não está certo. As personagens podem, sim, ser sexy, mas não apenas isso".

quando descobre que você é mulher, não sai do seu pé, o grudento; o outro que começa a te pedir provas de que é mulher e pede fotos íntimas, o assediador e o último, que te protege contra tudo, o jogador normal que tá ali para se divertir”. Para lidar com o assédio que Miriã e outras meninas sofrem ao jogar e competir, ações afirmativas como a Associação Feminina Gaming Brasil (AFGB) foram criadas com o objetivo de dar respaldo jurídico a mulheres vítimas de violência sexual, abuso e outras formas de machismo dentro da comunidade gamer. Para além da ausência de mulheres em campeonatos, outra face machista do universo gamer pode ser vista ao entrar em contato com qualquer jogo online. Ali, é possível notar a enorme diferença entre a forma como os personagens femininos são retratados em relação aos masculinos.

EMBORA SEJAM MAIORIA ENTRE CONSUMIDORES, ELAS AINDA SÃO MINORIA NOS CAMPEONATOS. FOTO: SHUTTER

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OPINIÃO

Senso nº 49 Nov/2021

Pobreza menstrual no Brasil É preciso defender a dignidade das 60 milhões de brasileiras que sangram todo mês POR STÉPHANE VIEIRA

Quando minha mãe menstruou pela primeira vez, precisou aprender a usar panos para conter o sangue. Tornou-se responsabilidade sua lavar, passar e cuidar dos paninhos que usaria durante o ciclo. Quando foi a minha vez, minha mãe me ensinou a usar o absorvente externo, que ela chamava de “mods”. Quando for a vez das minhas sobrinhas, ou, quem sabe, de uma possível futura filha minha, as opções serão inúmeras. Hoje em dia, quem menstrua pode escolher entre várias marcas e tipos de absorventes descartáveis, externos ou internos. Se quiser uma opção eco-friendly, tem o coletor, a calcinha, ou os absorventes ecológicos. Opções com diversos tamanhos, formatos e que se adequam a diferentes necessidades.

Mas, uma coisa fundamental infelizmente não mudou, seja na época da minha mãe, na minha ou ainda hoje. Existem mulheres e meninas que não têm acesso a nada disso. São pessoas em situação de pobreza menstrual. Não é só a falta de absorventes suficientes, é mais que isso. Imagine sentir cólicas e não ter medicamentos. Não ter informações básicas sobre os cuidados necessários. Precisar fazer a higiene pessoal e não ter um banheiro seguro com boas condições de uso. Não ter acesso a água, saneamento básico e coleta de lixo. Pobreza menstrual é o fenômeno vivenciado por quem menstrua e não tem pleno acesso a produtos, recursos, informação e infraestrutura adequada para cuidar de forma plena e segura da própria menstruação. Mulheres encarceradas, em situação de rua ou em vulnerabilidade econômica enfrentam a falta de recursos para cuidar com dignidade da própria menstruação. Mas, o problema é mais abrangente. No começo deste ano, o Unicef e o "Fundo de População das Nações Unidas" UNFPA lançaram o relatório "Pobreza menstrual no Brasil: desigualdade e violações de direitos". O estudo aponta que a

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falta de itens adequados para o cuidado com a higiene menstrual pode causar problemas de saúde, como infecções, irritações e alergias. É também um problema para a saúde emocional, porque atrapalha o bem-estar, gera desconfortos, insegurança, privação de oportunidades e discriminação. Além disso, as meninas nessa situação sofrem impactos negativos em sua vida escolar. Algumas mulheres adultas ainda se sentem desconfortáveis para falar sobre o assunto, e muitas se tornam menos confiantes durante o ciclo menstrual. Homens trans e pessoas não binárias que menstruam passam por constrangimentos para comprar absorventes. Meninas morrem de vergonha de ficarem menstruadas na escola, com receio de um vazamento que pode manchar a roupa ou a cadeira. Vergonha, porque não falamos sobre isso. Aliás, a forma como às vezes falamos pode ser parte do problema. Expressões como “estar de chico” ou “ela está naqueles dias” não ajudam em nada e contribuem para a invalidação dos sentimentos das mulheres.

COLAGEM: OLIVIA DINIZ

Cerca de 30% do Brasil menstrua, de acordo com o relatório “Livre para menstruar”, realizado pelo Girl Up. Parte das pessoas que estão de fora dessa parcela, ainda vão menstruar, ou já entraram na menopausa. São 60 milhões de pessoas no Brasil que ficam menstruadas todo mês e ainda tratamos o assunto como tabu.

No dia 7 de outubro, Bolsonaro vetou o trecho de uma lei que previa a distribuição gratuita de absorventes e outros produtos para a saúde menstrual. O veto jogou luz no assunto, que não deve ser tratado como tabu, mas como questão de saúde pública. Desde então, alguns estados começaram a votar projetos similares, a nível estadual. A dignidade menstrual é um direito básico e deve ser assegurado a todas que menstruam.


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