Da minha terra à Terra - Projecto de Design do Livro | Book Design Project

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Da minha terra Ă Terra

SebastiĂŁo Salgado


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Da minha terra à Terra Sebastião Salgado

Pela primeira vez, o maior fotojornalista do mundo conta a sua história


Ficha técnica:

Título original: De ma terre a la Terre Autor: Sebastião Salgado

Editora: Instituto Politécnico de Tomar Edição: Rita Isabel Pardal Impressão: XXXXXXX 1ª Edição

Capa: Direitos reservados

Data: 5 de Janeiro de 2016 ISBN : XXXXXXXXXX

Depósito Legal: XXXXXXXX


Indíce Prefácio 5 Para começar: «Génesis»

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A minha terra natal

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Em França e em nenhum outro lugar

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O clique fotográfico

50

África, o meu outro Brasil

58

Jovem militante, jovem fotógrafo

70

A fotografia, meu modo de vida

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«Outras Américas»

96

Imagens de um mundo em perigo

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Conclusão 114 Distinções honoríficas de Sebastião Salgado

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Fig. 0 - Sebastião a fotografar para a sua série «Génesis»

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Prefácio Contemplar uma fotografia de Sebastião Salgado, é ter uma viagem à dignidade humana. É compreender o que significa ser uma mulher, um homem, uma criança. Sem dúvida porque Sebastião nutre um amor profundo pelas pessoas que fotografa. De que outra forma poderíamos explicar o facto de elas estarem tão presentes, vivas e confiantes em suas imagens? E como explicar o sentimento de fraternidade que sente quem as contempla? Há muito que o seu trabalho me emociona. Adoro a estética barroca de suas imagens, a sua luz sempre extraordinária, a força que delas emerge, mas também a ternura que emanam e que me desperta o melhor de mim mesma. Os acasos da vida deram-me a oportunidade de conhecer Sebastião e Lélia, a sua esposa. Encantei-me com este casal pois, por trás da fama internacional de Sebastião, há uma parceria de raro êxito. Uma história de amor e de trabalho onde cada um tem seu papel, o seu lugar, e sabe tudo o que deve ao outro. Juntos constituíram uma família, fundaram a sua agência, a Amazonas Images, conceberam um projeto ambiental, o Instituto Terra, para reflorestar a Mata Atlântica brasileira, ao qual consagram grande parte do seu tempo. Percebi que apesar das imagens de Sebastião terem dado a volta ao mundo, a sua história pessoal, as raízes políticas, éticas e existenciais por trás do seu compromisso fotográfico, permaneciam desconhecidas. Quis corrigir esse erro e fazer a voz de Sebastião falar através da minha caneta jornalística. Ele teve a bondade de aceitar, na véspera da apresentação do seu projeto «Génesis»: uma série de reportagens dedicadas aos lugares ainda preservados do planeta. Entre dois aviões, entrevistas, a preparação de dois magníficos livros1 e a inauguração da exposição nos quatro cantos do mundo, ele mostrou-se sempre disponível. Com uma gentileza e uma simplicidade comoventes, redesenhou perante mim o seu percurso. Expôs as suas convicções, revelou-me os seus sentimentos. Foi um prazer imenso ouvi-lo e é o seu talento de narrador que desejo aqui partilhar. Esta é a autenticidade de um homem que sabe conjugar militância e profissionalismo, talento e generosidade. Isabelle Francq 1  Gênesis. Taschen, 2013 (um na coleção «Fo» o outro na coleção «Sumo»).

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Para começar:

«Génesis» Fig. 1 - Sebastião a fotografar para a sua série «Génesis» na Antártida

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Se não se gosta de esperar, não se pode ser fotógrafo. Um dia cheguei à ilha Isabela, nas Galápagos, ao lado de um belíssimo vulcão chamado Alcedo. Estávamos em 2004. Deparei-me com uma tartaruga gigante, enorme, com no mínimo 200 quilos, da espécie que deu nome ao arquipélago. Cada vez que me aproximava, a tartaruga afastava-se. Não era rápida, mas eu não conseguia fotografá-la.

Então reflecti.

E disse a mim mesmo: quando fotografo seres humanos, nunca chego de surpresa ou incógnito a um grupo, apresento-me sempre. Depois dirijo-me às pessoas, explico, converso e, aos poucos, vamo-nos conhecendo. Compreendi que, da mesma forma, o único meio de conseguir fotografar aquela tartaruga seria conhecendo-a; precisava adaptar-me a ela. Então me fiz de tartaruga: fiquei agachado e comecei a andar à mesma altura que ela, mãos e joelhos no chão.

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Nesse momento, a tartaruga parou de fugir. E quando ela se deteve, fiz um movimento para trás. Ela avançou na minha direção, eu recuei. Esperei um momento e depois me aproximei, um pouco, calmamente. A tartaruga deu mais um passo na minha direção, e eu dei imediatamente alguns para trás. Então aproximou-se de mim e deixou-se observar tranquilamente. Foi quando pude começar a fotografá-la.

Fig. 2 - Duas tartarugas que habitam as ilhas Galápagos

Levei um dia inteiro para me aproximar dessa tartaruga. Um dia inteiro para a fazer entender que respeitava seu território.

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Durante a minha vida produzi algumas histórias fotográficas que retratam a nossa época e as transformações de nosso mundo. Levei sempre vários anos para as concluir. Diz-se frequentemente que os fotógrafos são caçadores de imagens. É verdade, somos como os caçadores que passam muito tempo à espreita da caça, à espera que ela saia do seu esconderijo. Fotografar é a mesma coisa: é preciso ter paciência de esperar por aquilo que irá acontecer. Pois algo vai acontecer, necessariamente. Na maioria dos casos, não temos meios para acelerar os acontecimentos. Então é preciso descobrir o prazer da paciência.

Fig. 3 -Uma das tartarugas presentes nas ilhas Galápagos

Para começar: «Génesis»

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Antes de «Génesis», só tinha fotografado uma única espécie: o homem. Para este projecto que dediquei à natureza intocada, em que ao longo dos oito anos viajei pelo mundo, foi preciso aprender a trabalhar com as outras espécies. Desde o primeiro dia da primeira reportagem, graças à tartaruga gigante, compreendi que, para fotografar um animal é preciso amá-lo, sentir prazer ao contemplar a sua beleza, os seus contornos. É preciso respeitá-lo, preservar o seu espaço, o seu conforto na aproximação, na forma de observar e fotografar. A partir daí passei a trabalha com os outros animais, como sempre trabalhei connosco, os humanos.

Fig. 4- Fotografia da série «Génesis», nas ilhas Galápagos

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Fig. 5 - Exemplar do livro «A Viagem de Beagle» de Charles Darwin

Para começar esta série, decidi seguir os passos de Darwin, de quem tinha lido A viagem do Beagle2. Fiquei três meses nas Galápagos: por onde o próprio Darwin tinha passado, depois de dar a volta ao mundo, e onde concluiu a teoria da evolução. Esse arquipélago formado por 48 ilhas e alguns rochedos é uma síntese do mundo. Nele podemos encontrar espécies, como as tartarugas, que vieram do continente sul-americano, a cerca de mil quilómetros de distância. Elas chegaram ali depois de andarem à deriva no Pacífico em cima de troncos de árvores que tinham sido arrancadas pelas chuvas. Só as tartarugas têm onze espécies, que se encontram em certas ilhas do arquipélago, mas noutras não. 2  A Viagem do Beagle (The Voyage of the Beagle) é o título comumente

dado a Diário e anotações ( Journal and Remarks), o livro de Charles Darwin publicado em 1839 que o tornou célebre.

Para começar: «Génesis»

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Elas evoluíram de maneira diferente de uma ilha para a outra. Algumas apresentam o dorso completamente achatado, talvez por terem vivido sob pressão durante centenas de anos. Outras têm o dorso abaulado. Vi tartarugas com pescoços com vinte centímetros de comprimento, e noutras pescoços que podem chegar a atingi um metro, sem dúvida porque, naquelas ilhas mais ou menos áridas, para sobreviver precisam apanhar folhas a diferentes alturas. E contudo, estas tartarugas pertencem todas à mesma espécie.

Fig. 6 - Fotografia de uma iguana, nas ilhas Galápagos

Tal como Darwin, também vi iguanas. No continente sul-americano, são animais terrestres. Em Galápagos, nadam, mergulham.

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Darwin compreendeu que a aridez do meio ambiente as tinha forçado a aprender a nadar. No entanto são animais de sangue frio; se ficarem demasiado tempo num ambiente de baixas temperaturas, arrefecem e morrem. Muitas provavelmente terão morrido à chegada, ao atirarem-se à água para beber. Aos poucos, terão aprendido a sair a tempo e reaquecer-se ao sol. Também aprenderam a beber a água do mar e desenvolveram uma pequena glândula acima do nariz pela qual expelem o sal da água. Darwin viu tudo isso, e eu depois dele-e tenho certeza de que algumas das tartarugas que vi, verdadeiras «autoridades», também ele as terá visto, pois são animais que vivem cerca de duzentos anos.

Fig. 7 - Uma das fotografias principais da série «Génesis»

Para começar: «Génesis»

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No decurso dessa viagem, entendi uma coisa que depois me foi útil ao longo de todo o projeto «Génesis». Descobri que durante toda a minha vida, me contaram uma mentira, de acordo com a qual somos a única espécie racional. Cada espécie tem sua própria racionalidade. O importante é disponibilizar o tempo suficiente para compreender a racionalidades dos outros. Nas Galápagos, a maioria dos animais não é temerosa, nunca foram perseguidos pelo homem. Por isso não têm motivo algum para o temer.

Fig. 8 - Uma das lhas Galápagos

Por outro lado, as tartarugas não esqueceram que nos séculos XVIII e XIX, eram caçadas pelas tripulações dos navios que, a caminho do Novo Mundo ou de regresso à Europa, faziam escala no arquipélago - como as tartarugas podem estar vários meses sem beber ou comer, os marinheiros levavam as tartarugas vivas para o porão, assegurando assim um carregamento de carne fresca.

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Fig. 9 - Também se podem encontrar corcodilos nas ilhas

É por isso que, dois séculos mais tarde, continua a ser tão difícil aproximarmo-nos das tartarugas. Não foi por acaso que a tartaruga que fotografei demorou um dia para me aceitar. As suas tentativas de fuga nada tinham de irracional, pelo contrário, eram a prova de uma prudência totalmente justificada. As espécies transmitem através dos seus genes, durante várias gerações, o aviso de perigo de predadores. E o único predador destas tartarugas gigantes, é o homem; os falcões e outras aves de rapina cap turam e comem as crias, mas os adultos não se sentem ameaçados.

Para começar: «Génesis»

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À sua maneira, os gansos-patola, também têm um comportamento muito mais sutil do que se poderia imaginar. Chegámos à ponta Vicente Roca na ilha Isabela, na época de acasalamento. Foi colossal. Fiquei dois ou três dias n meio de uma colónia e observei as aves de perto. É a fêmea que escolhe o macho. Quatro, cinco machos apresentam-se, um após o outro, exibem-se, abrem as asas, dançam.

Fig. 10- O habitat dos gansospatola, na iha Isabela

Quando ela decide seguir um deles, levantam voo juntos, dão uma volta de dez, quinze minutos, e pousam. Chega outro, apresenta-se, exibe-se, e a fêmea levanta voo com ele. E assim sucessivamente. A corte dura cerca de duas horas, ao fim das quais a fêmea escolhe finalmente um dos pretendentes. Esse e nenhum outro será o seu companheiro durante a época, e com ele terá as suas crias.

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Para os albatrozes, a época de acasalamento é noutro período. Quando cheguei, os jovens estavam a ter as últimas aulas de voo. São belas aves que voam bem, mas pousam mal, tal como levantam voo com dificuldade. Precisam de uma pista, correm, correm, correm… e às vezes não chegam a levantar voo. É tão engraçado! Porém, para meu grande espanto, descobri que os albatrozes são fiéis: escolhem uma companheira que mantêm para toda a vida.

Fig. 11 - Um casal de albatrozes no ninho

Um dia, vi um macho dançar para uma fêmea. Rodava, rodopiava, abria as asas, e então ela começou a rodopiar com ele. Tocavam-se com a ponta das asas, o bico, e, de repente o macho fugiu. O meu guia explicou: «Acabou de descobrir que se enganou, não é sua companheira!». Eis o tipo de situações a priori inacreditáveis que podemos contemplar ser se dedicarmos um certo tempo para à observação dos animais.

Para começar: «Génesis»

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Foi isto que descobri ao iniciar «Génesis», nas Galápagos, e que continuei a sentir ao longo de todas as reportagens. Nunca mais me digam que os animais são bestas, sem cérebro e sem lógica. Não realizei estas reportagens como um zoólogo ou um jornalista, realizei-as para mim. Para descobrir o planeta. E tive um prazer imenso. Com os seus minerais, os seus vegetais, os seus animais, o nosso planeta está vivo, a todos os níveis. Compreendi que isso exige de nossa parte um respeito imenso.

Fig. 12 - Paisagem da mata atlântica

«Génesis» nasceu na sequência do projeto ambiental que criámos no Brasil, Lélia Deluiz Wanick Salgado, minha mulher, minha companheira e minha sócia em tudo na vida, e eu.

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Esse projeto, Instituto Terra, tem como objectivo reflorestar a mata atlântica3, cuja destruição, começou com a chegada dos portugueses, em 1500, e não parou devido à agricultura intensiva, à urbanização e, finalmente, à industrialização. Hoje em dia, restam apenas 7% da área inicial. Realizámos uma reconstituição ecossistémica na terra da minha infância. Uma terra que meus pais nos legaram nos anos 1990. Uma terra que devido à desflorestação ficou feia e pobre, apesar de eu ter tido sempre a sensação de ter crescido no paraíso…

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Dois tipos de floresta coexistem no Brasil: a mata atlântica, sob influência oceânica, e a floresta amazónica, de tipo equatorial

Para começar: «Génesis»

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A minha terra natal

Fig. 13 - Paisagem da mata atl창ntica, fotografada por Sebasti찾o Salgado

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Nasci em 1944, no estado de Minas Gerais. Numa quinta situada no centro de um enorme vale com o nome de Rio Doce, o mesmo nome do rio que o atravessa. É um vale tão grande como Portugal, célebre pelas suas minas de ouro e ferro. Na minha infância, a mata atlântica cobria metade do vale.

Mas isso foi antes de o Brasil entrar na economia de mercado e começar, como noutros lugares, a aniquilar suas florestas. A quinta do meu pai era grande e auto-suficiente, e viviam lá cerca de trinta famílias. Produzíamos arroz, milho, tomate, batata, batata-doce, fruta, um pouco de leite, porcos e carne de vaca.

Era uma boa quinta.

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O meu pai era o proprietário e tinha empregados, cada um deles possuía animais e cultivava um pouco de terra para sustentar a sua família. Uma parte do que produziam era entregue ao meu pai e o restante era para eles. Ninguém era rico, ninguém era pobre, esta era uma forma de exploração agrícola que existia no Brasil desde o século XVI.

Fig. 14 - O Vale do Rio Doce é conhecido pelos seus deslizamentos de terra

Tenho recordações maravilhosas dessa terra, de quando era criança. Brincava em grandes espaços abertos, havia água por todo o lado. Nadava em riachos repletos de jacarés - que não atacam as pessoas, ao contrário do que às vezes se pensa. Tinha um cavalo, saía com ele de manhã e só voltava à noite. Era uma região cheia de vales, galopava até o fim da quinta, até ao ponto mais alto, e, de lá, observava o fundo do vale. Sonhava ver mais longe, tentava imaginar o que existia depois. Estávamos ligados ao resto do Brasil através dos caminhos-de-ferro, da companhia Vale do Rio Doce.

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Às vezes, a estação das chuvas provocava deslizamentos de terra e ficávamos isolados durante um mês. Mas éramos auto-suficientes, não nos faltava nada. A minha infância continua a ser para mim um período fabuloso. Guardo um amor imenso por aquela terra.

Fig. 15 - Os caminhos-de-ferro de Minas Gerais, nos anos 40

Os projetos fotográficos que desenvolvo, sempre ao longo de vários anos e em diferentes locais do planeta, podem parecer de grande envergadura. Há quem diga: Salgado é megalómano. Mas eu nasci num país imenso. Com seus 8 511 965 quilómetros quadrados, a superfície do Brasil é quinze vezes maior que França. Estou habituado aos grandes espaços e às deslocações. Há muito que adquiri o hábito de dormir uma noite num sítio, e a seguinte noutro. Quando era novo, os meus pais deixavam-me ir visitar as minhas irmãs mais velhas, que já estavam casadas.

A minha terra natal

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Percorria sozinhas distâncias equivalentes às de Paris a Moscovo ou a Lisboa. As comunicações não eram fáceis. Assim apendi muito cedo a viajar. Além disso, eram precisos 45 dias para levar os animais do meu pai até ao matadouro, situado a centenas de quilómetros, serpenteando através de quintas, florestas e rios.

Fig. 16 - Comparação entre a área de França e a do Brasil

O meu pai, com alguns companheiros, fazia este caminho a pé. Conduzia 500 ou 600 porcos apenas com uma pequena varinha, e permanecia mais de 50 dias na estrada. Os homens tinham tempo para conversar, admirar a paisagem. Essa lentidão é a mesma da fotografia. Porque se o avião, o carro ou o comboio nos levarem rapidamente a um ou a outro ponto do planeta, depois disso, no local, no momento de fotografar, é preciso dar tempo ao tempo. Adaptar-se ao ritmo dos seres humanos, dos animais, da vida. Mesmo que, hoje em dia, o mundo tenha um ritmo rápido, mesmo muito rápido, a vida, essa, não tem essa medida.

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Para fotografar, é preciso respeitar a vida. Duas ou três vezes, acompanhei essas longas transumâncias, mas a cavalo, atrás de milhares de bois. Não havia estradas, parávamos a cada vinte quilómetros naquilo a que chamávamos estações, pois os animais não aguentavam mais que isso.

Fig. 17 - Construção de caminhos-de-ferro, que ligavam todo o Brasil

Todas as manhãs, quatro ou cinco mulas partiam antes de nós, transportando utensílios e lonas que, à noite, prendíamos a ramos, e era assim que instalávamos a cozinha. O jantar era leve, com diversos queijos, que a minha Mãe sabia preparar muito bem, e alguns bolos. Mas às quatro horas da manhã, quando no levantávamos, comíamos feijão tropeiro, um prato tradicional à base de feijão e carne-seca, que se conserva muito bem em viagem. Era a principal refeição do dia. Depois, no caminho, apanhávamos bananas, laranjas.

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A minha terra é muito bonita. Há montanhas não muito altas, mas magníficas. Se um ser superior criou este mundo, foi ali que o terminou, porque é verdadeiramente bela, diferente de tudo o que já vi noutros locais! É única. Foi lá que aprendi a ver e a amar essa luz, que me seguiu toda a vida. Na estação das chuvas, quando se formam as grandes tempestades, que são fenomenais, o céu fica repleto de nuvens. Nasci com imagens de céus carregados atravessados por raios de luz.

Fig. 18 - Estação de comboios da Luz

Na realidade, já estava nas minhas imagens antes de começar a fazê-las. Cresci com a contraluz: quando era criança, para protegerem a minha pele clara, colocavam-me sempre um chapéu, ou instalavam-me debaixo de uma árvore, na época, não havia protetores solares. Além disso, via sempre o meu pai aproximar-se de mim vindo da direcção do sol, em contraluz.

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Essa luz entrou nas minhas imagens. Portanto, essa luz, esses espaços, são a minha história. Nasci desses espaços, dessas viagens e dessa luz. Agora que vivo em França, quando tenho de ir à América ou à China, parece-me menos longe que a viagem da nossa quinta o matadouro.

Fig. 19 - Edificio munícipal de Aimorés,.

Aos quinze anos, deixei Aimorés, a pequena cidade de 12 000 habitantes nas proximidades da quinta do meu pai, onde andei na escola. Fui para Vitória, no Estado do Espírito Santo, para terminar os meus estudos secundários. Descobri outro planeta. Não conhecia, por exemplo, o telefone. Não existia na minha cidade. Só ouvíamos rádio de onda-curta, quando funcionava, fora da estação das chuvas. Por isso não podíamos seguir as notícias de forma continuada.

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Faço parte da primeira geração que veio do campo para estudar na cidade. O meu pai, antes de ser agricultor, foi farmacêutico, mas deixou de exercer. No início dos anos 1930, esteve envolvido numa revolução. Tendo a sua facção política perdido, partiu com a minha mãe e refizeram a vida no interior de Minas Gerais. Antes de ter adquirido a quinta, comprou primeiramente uma dúzia de mulas e lançou-se nos transportes, nomeadamente no de café.

Fig. 20 - Na década de 50, houve uma crescente vaga de imigração e exôdo rural no Brasil

Desde as plantações até a estação de caminho-de-ferro de Aimorés, caminhavam durante doze dias, com as mulas a carregarem as sacas através da floresta: sempre as viagens! Também fora assim com o seu pai, o meu avô, comerciante grossista e aventureiro que adorava conhecer novos horizontes. Morreu de malária numa região muito longe de casa, naquela época, seriam dois ou três meses de distância.

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A família só soube da sua morte dois ou três anos depois. Mas todas as pessoas da minha geração, e do interior do Brasil, têm histórias semelhantes para contar. Em Vitória, vivi com mais cinco ou seis jovens. Cada um geria o orçamento colectivo durante um mês. Foi assim que aprendi um pouco de gestão, ainda muito jovem. Precisei arranjar um pequeno trabalho. Apesar do meu pai ter uma grande quinta, ele reinvestia grande parte da sua produção, e portanto não tinha muito dinheiro. Trabalhei como secretário da Alliance Française, na tesouraria. Mais uma vez, tive de lidar com números.

Fig. 21 - A cidade de Vitória, nos anos 50

O meu pai sonhava ver-me agricultor, como ele, ou então queria que fosse advogado. Por isso, depois do ensino secundário, entrei para a faculdade de direito. Adorava a parte histórica, mas o resto não me entusiasmava.

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Nessa altura, a economia do país começava a mudar. De facto, as primeiras fábricas de automóveis apareceram no final dos anos 1950. Juscelino Kubitschek, o presidente brasileiro que ficaria em funções desde 1956 até 1961, foi sem dúvida o “desenvolvimentista” mais dinâmico que o país conheceu. Foi ele que construiu Brasília, inaugurada em 21 de abril de 1960. Com ele, o Brasil começou a despertar de um longo sono de quatrocentos anos e tivemos a sensação de viver num país novo.

Fig. 22 - Retrato do presidente Juscelino Kubitschek, um dos impulcionadores do desenvolvimento industrial do Brasi

Como muitos outros jovens tinha vontade de fazer parte desse movimento. Ora, Direito parecia-me tradicional, enquanto Economia representava, aos meus olhos, o que havia de mais moderno.

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Naquela época foram criadas a Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) e a Alalc (Associação Latino-Americana de Livre Comércio). As faculdades de economia abriam portas; e assim decidi tornar-me economista: tinha de embarcar naquela aventura moderna.

Fig. 23 - Logotipo da Alliance Française, associação presente em diversos países

Na Aliance Française, quando tinha 20 anos, apaixonei-me pela Lélia, uma estudante de 17 anos matriculada no quinto ano. Ela nasceu em Vitória, e já tinha atrás de si dez anos de conservatório de piano. Começou a trabalhar aos 17 anos, como professora numa escola primária, ao mesmo tempo dava aulas de piano. Ela era magnífica. Faz mais de quarenta e cinco anos que nos casámos, e continuo a achá-la igualmente bela. Desde que nos conhecemos, passámos a partilhar tudo. Juntos descobrimos a política, ainda muito jovens.

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O grupo com o qual vivia seguia de perto a evolução da situação do país. Víamos as pessoas do campo emigrarem para as cidades: a indústria precisava de mão-de-obra, e então eles mudavam-se com as suas famílias. Vimos aparecer as desigualdades sociais: até aquele momento, não tinha tido consciência delas. Vinha de um mundo que funcionava fora do sistema da economia de mercado. Não havia nem, ricos nem pobres. Como na quinta do meu pai, onde todos tinham o suficiente para poder ter uma casa, comer, vestir-se e sustentar a família.

Fig. 24 - A juventuda brasileira enfrentava diáriamente a ditadura

Com o sistema industrial, as pessoas do campo descobriram nas cidades toda uma outra vida, e a maioria caiu na pobreza. Comecei a ter amigos militantes nos partidos de esquerda. Naquela altura, o Partido Comunista era muito ativo. Alguns de nós militávamos em associações como a Juventude Universitária Católica.

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Dessas instituições cristãs de esquerda nasceram partidos bem mais radicais, como a Acção Popular, à qual aderi. Esse grupo tinha afinidade com as ideias cubanas, e estava disposto a iniciar uma luta armada.

Fig. 25 - Exemplar de propaganda para congresso organzado pela Juventude Universitária Católica

Quando entrei para a faculdade, o que se entendia por economia era muito diferente do que é hoje, quando por economia se compreende sobretudo economia empresarial. Isso era uma parte do nosso programa, mas este englobava sobretudo a economia política, a macroeconomia, as finanças públicas. A macro contabilidade interessava-me profundamente. Queria trabalhar em projetos a longo prazo, sobre modelos económicos em que, se controlarmos certas variáveis, podemos tentar impulsionar um verdadeiro movimento económico. A ideia de poupança em grande escala, isso é que me interessava, e assim decidi prolongar os meus estudos com um mestrado na Universidade de São Paulo. Esse Mestrado acabara de ser criado, era único no Brasil, só havia vinte vagas disponíveis.

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Tive a sorte enorme de ser admitido e conseguir uma bolsa. Recebi o meu diploma universitário a 15 de Dezembro de 1967; Lélia e eu, casámo-nos no dia 16 e mudámos-mos imediatamente para São Paulo, para eu começar o mestrado em janeiro.Eu tinha 23 anos, a Lélia 20.

Fig. 26 - Casamento de Lélia com Sebastião Salgado

Alguns dos nossos professores vinham de universidades americanas, e cheguei a ter como professor o Ministro das Finanças brasileiro, assim como o Presidente do Banco Central do Brasil. O objetivo era preparar altos quadros para responder às necessidades, imensas, do país. Tive o privilégio de fazer parte desse grupo.

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Em 31 de março de 1964, um golpe de estado levado a cabo pelo Marechal Castelo Branco derrubou o Presidente, João Goulart e, com ele, a Segunda República. Foi instituído um regime militar foi instalado que perdurou até à eleição de Tancredo Neves, em 1985.

Fig. 27 - Marechal Castelo Branco

Os militares justificavam o golpe de estado, levado a cabo alguns anos após o alinhamento do regime cubano com a URSS, com uma pretensa ameaça comunista. Houve, na população, um enorme movimento de contestação contra essa ditadura e todas as violações dos direitos humanos por ela cometidos. Também surgiu um enorme movimento de oposição contra a interferência dos Estados Unidos na América Latina sob o pretexto de manter da ordem, agindo sob a alçada da CIA.

A minha terra natal

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O sentimento de revolta foi tal que o nosso empenho, o da Lélia e o meu, se radicalizou ainda mais. Participávamos em todas as manifestações e em todas as ações de resistência contra a ditadura e estávamos, ao lado dos nossos camaradas, ferozmente determinados a defender os nossos ideais. Isso era, obviamente, muito perigoso.

Fig. 28 - Presidente João Goulart

O nosso grupo decidiu que os mais jovens, dos quais nós fazíamos parte, deveriam partir para o estrangeiro para se formar, continuando a trabalhar a partir do exterior, enquanto que os que tivessem mais maturidade passavam para a clandestinidade.

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Pouco antes da nossa partida, no Verão de 1969, entre Maio e Julho, a Lélia, perdeu a mãe, devido a um cancro, enquanto seu pai encontrou a morte num incêndio. Que drama na nossa vida! No espaço de dois meses ela ficou órfã. Tinha pouco mais de vinte anos. Em Agosto, deixámos o nosso país. Quando apanhámos o barco, sabíamos que, se fossemos identificados, seriamos atirados para a prisão e torturados. Lembro-me do nosso alívio ao deixarmos o último porto, depois do barco se ter afastado definitivamente da costa brasileira, rumo a França.

A minha terra natal

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Em França e em

nenhum outro lugar

Fig. 29 - Paris na dĂŠcada de 70

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Ir para França, para a Lélia e eu, era algo fenomenal!

Os Franceses, na sua grande maioria, ignora-o, mas os Brasileiros adoram França. Desde o fim do século XIX, todos os nossos intelectuais a visitavam, e a primeira Constituição Brasileira inspirou-se nos princípios republicanos franceses.

Todas as cidades brasileiras com mais de cem mil habitantes tinham sua Alliance Française, com um diretor francês. Começávamos a estudar a língua francesa em conjunto com o latim, desde o início do ensino secundário. A aprendizagem de inglês só começava dois anos mais tarde.

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Em Vitória, como já disse, era secretário ma Alliance Française, sob a direcção dos nossos amigos de sempre Juju e Pierre Merigoux. A Juju é de Juiz de Fora (Minas Gerais) e ele de Limoges. Havia um mapa de Paris sob o vidro da minha secretária. Quando cheguei a França, sabia perfeitamente onde ficava o boulevard Raspail, a rue de Rivoli e a place de la Bastille. Também foi na Alliance Française que conheci a Lélia que já falava e escrevia perfeitamente em francês.

Fig. 30 - Lélia e Sebastião quando fugiram para França

A França era para nós uma evidência: era a pátria dos direitos humanos e da democracia. Era a terceira opção entre o comunismo e os Estados Unidos. Admirávamos os comunistas, eram o principal apoio da esquerda, mas tínhamos dúvidas sobre um certo obscurantismo que manifestavam. Quanto à nossa confiança em relação aos americanos: era nula. Eles estavam na origem da repressão que nos oprimia.

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Nunca fizeram qualquer tipo de aliança com algo popular ou democrático. Contribuíram sempre para manter no poder os mais poderosos e os detentores de armas. França era para nós o país das ideias democráticas, mas também económicas - na altura, tinha excelentes economistas. Oficialmente, fui para lá para estudar na Escola Nacional de Estatística e Administração Económica, a Ensae.

Fig. 31 - Torre Eiffel, em 1969

Chegámos a Paris em Agosto de 1969: achávamos tudo maravilhoso: os dias que nunca mais acabavam, as manhãs que começavam muito cedo. Mas chegou o Outono, a luz diminuía e, em Dezembro, Lélia e eu estávamos à beira da depressão. Sentíamos uma falta terrível do nosso país. Sabíamos que não podíamos voltar para casa, estávamos demasiado implicados nos movimentos de contestação. Éramos muito jovens e foi muito duro.

Em França e em nenhum outro lugar

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Em França, a Lélia deixou de tocar piano durante longos anos. Agora, voltou a tocar, mas só para nós. A morte dos pais e a partida do nosso país foram uma ruptura tal, uma dor tão grande, que ela decidiu mudar de vida. Assim, ao chegar a Paris, inscreveu-se em Belas-Artes, em Arquitetura. Da minha parte, comecei a preparar o doutoramento. Não tínhamos bolsa. Alugámos um quarto da Cidade Universitária e, paralelamente aos nossos estudos, começamos a trabalhar. Eu descarregava camiões na cooperativa da Cidade U. A Lélia trabalhava na biblioteca.

Fig. 32 - Exemplar de um Citroën 2CV

Chegámos a França com pouco de dinheiro, 2 000 dólares com os quais comprámos imediatamente um 2CV. Conhecíamos Paris, pelo menos teoricamente, devido às nossas leituras, ao longo dos anos. Mas queríamos visitar o resto do país. Achámos França, toda ela, muito bela, a Alsácia, os Pirenéus, a Provença…

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A superfície do Brasil é quinze vezes o da França, mas a França é quinze vezes mais diversificada que o Brasil. Pouco a pouco, a França tornou-se o nosso país. Como o Brasil. Foi em França que descobrimos o significado da palavra solidariedade, uma vez conhecida, fica-nos no sangue. Aproximámo-nos dos Brasileiros que chegavam completamente destruídos pela ditadura.

Fig. 33 - Os protestos contra a ditadura continuavam no Brasil

Muitos tinham sido torturados. As organizações de esquerda conseguiam fazer sair alguns através da Argentina e do Uruguai, mas eles chegavam arrasados, física e mentalmente. Com o objectivo de recolher fundos para esses refugiados, fazíamos tournées com nosso 2CV, durante o fim-de-semana. Ao Sábado, partíamos com outros companheiros militantes brasileiros, para Verdun, Metz etc. Fazíamos comida brasileira, a Lélia cantava.

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A CGT, a CFDT, o Partido Comunista, a PSU, todos os movimentos de esquerda nos ajudavam, bem como os movimentos cristãos como o CCFD4 e a Cimade5.

Fig. 34 - Logotipo da Cimade, uma das ajudas de Lélia e Sebastião quando chegaram a França

Rapidamente, nós, que tínhamos chegado sem conhecer ninguém, não só não estávamos isolados, como estávamos envolvidos numa estreita rede de solidariedade. Reinava um verdadeiro sentido de partilha e de entreajuda. Tanto a nível material como moral. Tínhamos saudades do nosso país, mas sentíamo-nos acolhidos e da nossa parte, tentávamos ajudar os recém-chegados. Aquela época também foi de repressão em Portugal. Estávamos preocupados com os movimentos de contestação à ditadura salazarista, especialmente porque, enquanto brasileiros, sentíamo-nos muito próximos dos Portugueses. Mas também nos sentíamos solidários com os Polacos, os Angolanos, os Guatemaltecos, os Chilenos, e com todos os imigrados e ilegais. 4

Comitê Católico contra a Fome e para o Desenvolvimento.

5 Serviço ecuménico de entreajuda que se consagra ao acompanhamento de estrageiros migrantes.

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Actualmente temos provas de que fomos espionados, aquando a nossa chegada a França. Os arquivos brasileiros, abertos recentemente, comunicaram-nos a existência de documentos do Serviço Nacional de Informações (SNI) que nos diziam respeito. Descobrimos que, naquela época, toda a nossa vida tinha sido devassada. Pessoas que considerávamos amigas, que frequentavam a nossa casa, tinham-nos denunciado.

Fig. 35 - Exemplar português de um passaporte nos anos 70

O interior da nossa casa encontra-se descrito ao ponto de indicar que, tínhamos um vaso de flores em determinado local do apartamento… Está tudo registado. Até mesmo o nome do diretor da agência Gamma para a qual trabalhei, durante um período, depois de ter optado pela fotografia, Jean Monteux, que me ajudou quando, em 1976,o governo brasileiro recusou a renovação do meu passaporte.

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Ele foi comigo ao consulado para fundamentar o meu pedido: precisava de um passaporte para poder fazer as minhas reportagens no estrangeiro. Nos arquivos, encontrámos evidências de um pedido de investigação dos serviços secretos brasileiros sobre ele, como se a Gamma fosse um centro de subversão, sob o pretexto de que Jean me apoiava. Eis o que é uma ditadura, a sujeira da ditadura! Acabei por obter a nacionalidade francesa.

Fig. 36 - Augusto Boal, um dos amigos de Sebastião

Mas paralelamente, com um amigo, Augusto Boal, diretor de teatro brasileiro refugiado em Portugal, que estava na mesma situação, instauramos um processo contra o Ministério dos Negócios Estrangeiros brasileiro.

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Uma vez que é inconstitucional recusar passaporte a um cidadão, ganhámos. Isto abriu um precedente; depois de nós, todos aqueles que se encontravam na mesma situação contrataram advogados e atacaram o governo.

Fig. 37 - Presidente Fernando Henrique Cardoso

Que alegria sinto, quando vejo que hoje, aqueles que foram outrora perseguidos, torturados e espancados, estão no poder no Brasil. Que por fim foi a esquerda que possibilitou a renovação depois do Presidente Fernando Henrique Cardoso, antecessor de Lula.

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Que os nossos companheiros de luta se tornaram ministros. Que o Lula, esteve na contestação e que nunca deixou o Brasil, ele, que era proletário, que foi preso e perseguido, se tornou o maior Presidente que o Brasil alguma vez teve. Foi ele que conseguiu integrar, 35 milhões de Brasileiros que viviam no limiar da pobreza, na classe média.

Fig. 38 - Fotografia de Dilma Roussef, numa das detenções

Ela que também foi presa, espancada e torturada. A ditadura que causou tanto sofrimento acabou por colapsar: era um regime sem futuro, como todas as ditaduras.

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Tal como a Presidente Dilma Rousseff. Aliás, ao fazermos um balanço, podemos ver que nenhum desses regimes - o fascismo, o nazismo, ou o comunismo destorcido da União Soviética - resistiu.

Fig. 39 - Reunião feita pelo regime nazi, quando dominava a Alemanha

Como se houvesse uma ordem natural. Algo maior que orienta em direção a um destino mais nobre. Prova que, no final apesar de todos os conceitos, existe justiça.

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O clique fotográfico

Fig. 40 - Sebastião durante a viagem para concretizar «Génesis»,

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Assim que chegámos a Paris, graças à nossa rede de solidariedade, fizemos muitos amigos. Na primavera de 1970, a família Houssay emprestou-nos uma casa na aldeia de Menthonnex-sous-Clermont, perto de Annecy, para eu me recuperar. Tinha ficado doente, os meus gânglios estavam enormes.

Durante um período, receámos que tivesse cancro, antes dos médicos diagnosticarem a doença: febre do feno. De facto, estava a viver o meu primeiro encontro com a verdadeira Primavera - no Brasil não existe nada semelhante. Tínhamos Aproveitado a nossa estadia na Sabóia para irmos no 2CV a Genebra, onde na altura se praticavam os melhores preços da Europa em material fotográfico:

A Lélia precisava fotografar edifícios, para a faculdade de arquitetura.

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Ela decidiu-se por uma Pentax Spotmatic II com uma objetiva Takumar de 50mm, f: 1,4. Não sabíamos nada de fotografia, mas achámos aquilo fantástico. De regresso a Menthonnex, fizemos as nossas primeiras imagens; li as instruções e, três dias mais tarde, voltámos a Genebra para comprar mais duas objetivas, uma de 24 mm e outra de 200 mm.

Fig. 41 - Um exemplar da primeira câmara fotográfica de Lélia Salgado

Foi assim que a fotografia entrou em minha vida. De regresso a Paris, montei um pequeno laboratório na Cidade Universitária. Ao fim de alguns meses, deixei o trabalho nos armazéns da cooperativa e comecei a fazer revelações para os estudantes, o que me dava algum dinheiro. Em seguida realizei a minha primeira reportagem, graças ao escritor brasileiro Jorge Amado 6, que receberia um prémio na Académie Française, com o escritor português Ferreira de Castro. 6 Jorge Amado de Faria (1912-2001) autor de mais de trinta romances, nomeadamente Capitães da Areia (Gallimarde, 1984).

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Fig. 42 - Alguns amigos de Sebastião Salgado: Jorge Amado (frente), José Saramago (meio) e Caetano Veloso (trás)

Recebi mais algumas encomendas de pequenas reportagens. Pouco a pouco, comecei a pensar que poderia ser fotógrafo. Então começámos a sonhar, a Lélia e eu, comprávamos uma Volkswagen combi, onde instalávamos um laboratório de fotografia e percorríamos a África. Mas, antes tinha de terminar o doutoramento. Em 1971, depois do meu doutoramento, em Paris, arranjei um excelente cargo, em Londres, na Organização Internacional do Café, onde pretendia escrever minha tese de doutoramento. Acabei por nunca o fazer. Apesar de ter tentado voltar à razão, repetindo a mim mesmo: «Tens de ser um economista sério, trabalhaste muito para isso, enquanto a fotografia…».

O clique fotográfico

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Tornei-me funcionário internacional e, de repente, comecei a ganhar muito bem. Comprámos um carro desportivo, um magnífico Triumph, e alugámos um belo apartamento ao lado do Hyde Park. No entanto, a Lélia manteve o quarto na Cidade Universitária, em Paris, onde continuava a estudar. Encontrávamo-nos em Londres depois de minhas missões em África. Eu viajava imenso.

Fig. 43 - Lélia e Sebasteão Salgado, durante os anos em que estiveram separados

A minha missão consistia em implementar e financiar em conjunto com o Banco Mundial e a FAO 7 projetos de desenvolvimento econômico em África. 7

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Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura


Era responsável pelo Ruanda, o Burundi, o Congo, e sub-responsavél para o Uganda e o Quénia. Participámos na introdução do cultivo do chá no Ruanda. O objetivo era implementar uma maior diversificação agrícola nos países produtores de café.

Fig. 45 - Atualmente Ruanda continua a ter campos de cultivo para o chá

A Organização Internacional do Café tinha criado um fundo de investimento no qual cada país produtor e cada país consumidor deveria depositar o equivalente a um dólar por saca de café produzido ou comprado. Esse dinheiro servia para levar a cabo estudos para o controlo da produção de café, a fim de evitar que a oferta superasse a procura e que a cotação colapsasse.

O clique fotográfico

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Lembro-me da minha primeira viagem a África, em 1971. Fiz um périplo de cinquenta dias entre o Burundi e o Ruanda, numa carrinha pão de forma da Volkswagen, numa época em que as estradas no Ruanda não eram asfaltadas. Fi-lo com Joseph Munyankindi, diretor do Instituto da Cultura Industrial do país, que se tornaria um grande amigo.

Fig. 46 - Lago Faguibine completamente seco. Mali, 1985

Em conjunto com as equipas do Banco Mundial e da FAO, identificámos os locais mais susceptíveis de se transformarem em grandes plantações de chá, na região de Kivu. Onde as terras são extraordinariamente férteis e se situam a uma altitude perfeita. Instalámos a primeira unidade de produção de chá do país, então grande produtor de café.

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Tinha feito uma análise de rentabilidade ao longo de trinta anos, um projeto macroeconómico empregando 32 000 famílias que cultivariam o seu próprio lote de terreno. Quando voltei àquela região, em 1991, para fazer o projeto fotográfico «Trabalhadores», aquelas plantações tinham-se tornado magníficas. Na época, o Ruanda produzia o melhor chá do mundo. Não era a maior produção, mas a melhor, com um néctar muito procurado para enriquecer, com os seus perfumes, as grandes produções da Ásia. Atingia a cotação mais alta na bolsa de Londres. Graças ao meu trabalho como economista, descobri a África. Nesse continente, reencontrei o meu paraíso.

O clique fotográfico

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Ă frica, o meu outro

Brasil

Fig. 47 - Refugiado carrega o seu filho falecido, num campo de refugiado no SudĂŁo, 1985

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Descobrir o Ruanda, foi como reencontrar o meu país.

A África é a outra metade do Brasil: observando o planisfério, vemos bem que a África, a América Latina e a Antártica formavam um todo antes de se afastarem há 150 milhões de anos. Apesar da separação dos continentes, encontramos na África a mesma vegetação e os mesmos minerais da América do Sul.

No plano cultural, os escravos originários de Moçambique, da Guiné, de Angola, do Benim e da Nigéria, levados para o Brasil pelos Portugueses, deixaram uma marca profunda na sociedade.

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Fragmentos da história e do folclore desses povos penetraram naquilo que se tornou a cultura brasileira. Por isso a África é tão importante para nós. Além disso, desde menino, que sonhava lá ir. Assim que cheguei ao Ruanda, senti-me em terreno familiar: os nossos modos de vida assemelham-se, temos formas semelhantes de nos alimentarmos, de falar e de nos divertirmos. Ao longo da vida, fui o mais frequentemente possível a África. A minha história está inteiramente ligada a esse continente.

Fig. 48 - Ditador Idi Amin que governou o Uganda durante a década de 70

No decurso das minhas viagens pelo Ruanda, o Burundi, o Zaire, o Quênia e o Uganda, apercebi-me que as fotos que tirava me faziam muito mais feliz do que os relatórios que tinha de escrever quando regressava. Redigia-os com seriedade, e aquele trabalho era inegavelmente apaixonante. Mas a fotografia…

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Lembro-me que, em Londres, a Lélia e eu, alugávamos um pequeno barco, ao Domingo, e íamos para o meio da Serpentine, o pequeno lago artificial do Hyde Park. Deitávamo-nos dentro do barco e, ali, conversávamos durante horas sobre o meu desejo de trocar a economia pela fotografia. Não parava de me questionar: deveria fazê-lo? Até ao dia em que o meu desejo falou mais alto. E decidi: «Vou deixar a economia!» Estávamos em 1973, tinha 29 anos, e decidi, em conjunto com a Lélia, abandonar a minha promissora carreira para ser fotógrafo independente.

Fig. 49 - As primeiras experiências de Sebastião como fotógrafo independente ocurreram no continente africano, quando ainda trabalhava como economista

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Acabou-se o grande salário, o belo apartamento, o carro desportivo. Regressámos a Paris e alugámos um chambre de bonne (um quarto tipicamente parisiense), que servia de laboratório durante o dia e de quarto de dormir à noite. Na altura, a Lélia estava a preparar um mestrado em urbanismo; além disso, fazia «noitadas» em ateliers de arquitetura, para nos sustentar. Isto é, dava uma ajuda a terminar projectos.

Fig. 50 - Apesar da distância, Lélia Salgado sempre apoiou Sebastião nas suas escolhas

Era sempre muito intenso, ela nunca tinha horas para acabar. Em paralelo, participava na elaboração de um pequeno jornal dos Brasileiros em Paris. Foi onde aprendeu a trabalhar a paginação, a iconografia, a edição: tudo o que nos viria a ser profundamente útil para a publicação dos nossos livros. Investíamos todas as nossas economias em material fotográfico. Tínhamos um objetivo e, para o alcançar, não poupávamos esforços.

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Lembro-me que não tínhamos duche, mas tínhamos muitos amigos, então íamos tomar banho a casa deles. Nesse mesmo ano, partimos em reportagem… para a África, claro! A Lélia estava grávida do nosso primeiro filho, Juliano, e mesmo assim percorremos o Níger juntos. Estávamos no Verão, o calor era terrível, mas podíamos sentir a África e adorávamos lá estar. Trabalhávamos com o CCFD - do qual nossos amigos Choly e Marcos Guerra, ela Argentina e ele Brasileiro, eram representantes no Níger - e com a Cimade para fotografar a fome.

Fig. 51 - Imagem captada por Sebastião, que demonstram a fome e pobreza em África

Visitávamos os locais onde essas associações tinham programas de combate à seca. Viajávamos nos caminhões e aviões que transportavam os alimentos. Foi difícil, vimos cenas muito duras. Mas ao mesmo tempo, era apaixonante e sentíamos que as nossas imagens poderiam ser úteis.

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Éramos dois fotógrafos: o nosso amigo António Luiz Mendes Soares, outro jovem Brasileiro, era responsável pelas imagens a cores e eu pelas imagens a preto e branco. Quando regressámos do Níger, nos instalámo-nos em Enghien-les-Bains, na bela casa da família Bassé, grandes amigos que também nos tinham emprestado o dinheiro necessário para a reportagem no Níger. Em casa deles, revelámos os filmes e imprimimos as fotos. E eu fiquei doente.

Fig. 52 - Fotografia do rio que passa por Enghien-les-Bains

No final da viagem, depois de ter passado semanas a comer mandioca, não resisti à tentação de comprar um pedaço de carne no mercado de Agadez. Devia estar contaminado, e eu contraí toxoplasmose. Felizmente, graças ao seu sexto sentido de mulher grávida, a Lélia não lhe tocou.

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Por isso foi ela que contactou as revistas e vendeu as fotos - na época, ela também trabalhava no laboratório, revelava os filmes, fazia cópias; enfim, ela participava de tudo. Uma de minhas imagens agradou muito ao CCFD: Uma mulher em contraluz, perto de uma árvore, com um pote na cabeça.

Fig. 53 - Logotipo do CCFD, uma das organizações solidárias com quem Sebastião colaborou

O CCFD decidiu fazer um poster com essa foto e assim ilustrar a campanha «La terre est à tous» (A terra é de todos). Desta forma a minha foto foi afi xada em todas as igrejas da França, em todas as casas paroquiais e em muitos centros da CFDT . Eu não sabia quanto cobrar. O CCFD ajudou-me a fi xar um preço. Recebi uma grande quantia para a época, suficiente para comprar um pequeno apartamento.

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Mas, a Lélia e eu preferimos investir esse dinheiro em equipamento. Comprei todas as Leica8 de que precisava, uma excelente máquina de secar e um ampliador profissional que ainda utilizamos. Não tenho a pretensão de ser um especialista em África, mas adoro fotografá-la. Quando trabalhava na agência Gamma, entre 1975 e 1979, oferecia-me como voluntário sempre que aparecia uma oportunidade de ir à África.

Fig. 54 - Imagem captada por Sebastião Salgado, quando trabalhava para a Gamma

As histórias a longo prazo fascinavam-me mais do que acontecimentos pontuais. Na altura, ganhava-se muito bem a vida a fotografar Conselhos de Ministros ou celebridades. 8 Câmaras alemãs 24 x 36 mm, verdadeiros Rolls-Royce do equipamento fotográfico.

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A minha área não rendia muito dinheiro: cobria acontecimentos cujas imagens só são publicadas uma vez, quando ainda estão na ordem do dia, antes de irem parar aos arquivos.

Fig. 55 - A evolução avançava de modo diferente

Mesmo assim, o meu trabalho contribuía para sustentar a nossa pequena família, e realizava-me.

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No final, fiquei a ganhar: foi graças às cerca de quarenta reportagens que realizei em África, ao longo dos últimos trinta anos que pude publicar o meu livro (África), em 2007.

Fig. 56 - Sebastião trabalhava na Gamma mas voluntariava-se para tirar este tipo de registos, uma vez que não era com estes temas que se ganhava dinheiro

E poderia publicar um segundo volume, tamanho é o número de imagens que tenho desse continente. Sinto-me muito privilegiado de por o ter visitado com tanta frequência ao longo de todos esses anos. Finalmente, foram essas múltiplas viagens que deram coerência ao meu trabalho, que permitiram tantas ocasiões para ver e aprender e que me permitiram mostrar, graças às minhas fotografias, as evoluções nesses diferentes países.

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Fig. 57 - Fotografia de uma aldeia africana. É inevitavél as comparações com outros continentes

Desde que descobri a fotografia, nunca mais parei de fotografar, e de cada vez sinto um enorme prazer. A minha formação de economista, permitiu-me converter esse prazer instantâneo em projetos a longo prazo.

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Jovem militante,

jovem fotógrafo

Fig. 58 - Captada para «Trabalhadores», vê-se uma manifestação de mineiros

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Quando me decidi pela fotografia, experimentei tudo: nu, desporte, retrato. E um dia, sem saber como ou porquê, dei comigo no social.

Na realidade, era natural que isso acontecesse. Tinha pertencido a essa juventude do início da grande industrialização brasileira, muito preocupada com as questões sociais. Logo depois de termos chegado a França, enquanto ainda era estudante de economia, a Lélia e eu, pensámos ir para a União Soviética aperfeiçoar a nossa cultura de esquerda.

Em 1970, fomos de 2CV até Praga para visitar um amigo do tio da Lélia - o tio dela era um dos fundadores do Partido Comunista brasileiro.

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Esse amigo era membro do Comitê Central do Partido Comunista brasileiro e estava refugiado na Checoslováquia. Em Praga, ele disse-nos: «Esqueçam a União Soviética. Aqui, acabou, a burocracia tomou o poder ao povo. Se querem militar, façam-no em França, com os emigrantes.» Que golpe terrível! Apesar de não sermos filiados no PC, ficámos abatidos por vermos aquele homem que, vivia dentro do sistema, e tinha perdido a fé no comunismo internacional sobre o qual tinha baseado a esperança de construir um Brasil melhor.

Fig. 59 - Rua em Praga na década de 70

Decidimos ir a Leipzig, onde naquela altura estava a ser organizada uma reunião geral dos países comunistas. Deixámos de Praga debaixo de neve, o que nos lembrou como era conduzir nas estradas enlameadas do Brasil. Em Leipzig, tivemos acesso à mostra do produtivo do mundo comunista, depois tentámos voltar a Praga.

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Mas quando chegando à fronteira, fomos proibidos de entrar pela segunda vez na Checoslováquia. Ficámos bloqueados, num 2CV, entre dois países comunistas. As autoridades alemãs deram-nos um visto para regressarmos a Leipzig, mas no caminho a neve deteve-nos durante vários dias. Finalmente conseguimos chegar a Karl-Marx-Stadt9, não muito longe da fronteira com o Ocidente, onde decidimos procurar um hotel.

Fig. 60 - Estação Karl-Marx-Stadt

Enquanto procurávamos cruzámo-nos com um polícia; dois minutos depois, estávamos cercados por metralhadoras apontadas por sujeitos cheios de cicatrizes, com um aspecto terrível. Eles nos perguntaram o que é que tínhamos andado a fazer durante quase uma semana na Alemanha comunista. Os interrogatórios sucediam-se. Felizmente, a Lélia acabou por encontrar na mala uma factura do hotel provando que tínhamos estado em Leipzig. 9  A cidade Karl-Marx-Stadt retomou o nomde de Chemnitz em 1990 e situa-se no estado da Saxónia.

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Após a verificação, os polícias intimaram-nos a deixar o país antes das seis horas da manhã e antes do render da guarda em Berlim, porque então, quem sabe, talvez os próximos funcionários já não nos deixassem sair…

Fig. 61 - Checkpoint em Brelim

Já não tínhamos gasolina, então forneceram-nos m jerrican, gratuitamente, e ajudaram-nos a chegar à fronteira o mais rapidamente possível. Onde passámos por uma inspeção completa, com espelhos debaixo do carro e tudo. E, finalmente pudemos regressar ao Ocidente. Mas tínhamos sentido o que era o comunismo. Apercebemo-nos de que o sistema que representava para nós um certo romantismo era desprovido de qualquer sensibilidade e de qualquer ternura, tal como o nosso amigo nos tinha dito em Praga, algo que tínhamos tido dificuldade de acreditar…

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Quando me perguntam como é que cheguei à fotografia social, respondo: aconteceu como um prolongamento de meu envolvimento político e das minhas origens. Vivíamos rodeado por refugiados que tinham fugido, como nós, das ditaduras da América do Sul, mas também da Polônia, de Portugal, de Angola…

Fig. 62 - Imigrantes portugueses, em direção aos altpes franceses

Então, naturalmente, comecei a fotografar os imigrantes, os clandestinos. Primeiro em França e depois em diferentes países da Europa. Como já disse, o meu amor por África levou-me a dedicar-lhe a minha primeira grande reportagem; mas não foram as suas paisagens ou o seu folclore que decidi retratar, mas a fome que assolava os Africanos. Foi por isso que comecei a trabalhar em conjunto com o CCFD e a Cimade.

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Mesmo não sendo nós crentes, a nossa sensibilidade aproximava-nos, à Lélia e a mim, do cristianismo social. Publiquei as minhas primeiras reportagens nas revistas Christiane e La Vie. Na época, chamava-se à imprensa cristã «pequena imprensa», contudo era mais importante que a «grande». La Vie tinha uma tiragem semanal superior a 500 mil exemplares; a SOS, publicação mensal do Secours Catholique, para a qual trabalhei bastante, tinha uma tiragem superior a 1 milhão.

Fig. 63 - Logotipo atual da revista francesa La Vie

Também trabalhei para a revista Croissance des jeunes nations, da Bayard Presse, e publiquei diversas fotografias nas revistas do grupo Fleurus. Todas estas publicações tinham tiragens enormes, pois existia uma França cristã militante. Aquele era o meu mundo: os cristãos que se empenhavam no apoio aos exilados e aos países subdesenvolvidos, ora, eu próprio era oriundo de um país subdesenvolvido.

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Quando me tornei fotógrafo, procurei retratar esse mundo explorado. Em toda a sua dignidade. Com o passar dos anos, trabalhei muitas vezes em conjunto com a Unicef10, os MSF11, a Cruz Vermelha, o UNHCR12, etc. Desde então, mantive-me sempre próximo do mundo humanitário. Ao trabalhar para a Organização Internacional do Café, no Ruanda, vi homens trabalharem doze horas seguidas por dia, nas plantações, debaixo de um calor tórrido, de pés descalços. Não tinham qualquer protecção social. Os salário que recebiam não lhes permitiam ter habitações dignas, ter acessos a cuidados de saúde e garantir instrução aos filhos.

Fig. 64 - Trabalhadores, em Ruanda, a transportar sacos de café para venda

10  Fundo das Nações Unidas para a Infância. 11  Médicos Sem Fronteiras. 12  Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.

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Trabalhavam tanto ou mais que os operários europeus, mas sua a produção era exportada a preços negativos. Era como se eles nos pagassem para consumirmos o café deles, e ainda nos ofereciam a sua saúde, o seu conforto e as suas necessidades básicas. Achava que era uma enorme injustiça.

Fig. 65 - Sebastião ftografou durante muito tempo as injustiças sociais, pricipalmente em África

A Lélia e eu, constatámos que o mundo está dividido em dois, de um lado a liberdade para aqueles que têm tudo e do outro a privação de tudo para aqueles que não têm nada. E foi esse mundo digno e carente de quase tudo que procurei mostrar, através das minhas fotos, a uma sociedade europeia suficientemente alerta para ouvir o apelo.

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Durante a minha formação académica, estudei essencialmente economia política, ou seja a sociologia quantificada. Também estudávamos história, as diferentes teorias económicas, o que no fim das contas equivalia à filosofia e à história das ideias. Na Ensae, também havia econometria (matemática aplicada à economia). No grupo de estudos sobre o marxismo ao qual a Lélia e eu pertencíamos, seguimos os cursos de geopolítica do professor Anouar Abdel-Malek, da Universidade do Cairo, também ele exilado em Paris.

Fig. 66 - Antes de se dedicar a fotografar profissionalmente, Sebastião começou por fazer retratos

Rapidamente, a minha formação tornou-se muito completa. Quando desembarcava pela primeira vez num determinado país, compreendia a situação, e sabia situar a minha fotografia naquele contexto. Sempre consegui colocar as minhas imagens dentro de uma visão histórica e sociológica.

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O que os escritores relatam com as suas canetas, eu relatava com as minhas câmaras. Para mim a fotografia é uma forma de escrita. É uma paixão, porque amo a luz, mas é também uma linguagem, poderosíssima. Quando comecei, não tinha limites. Queria ir a todos os locais onde a minha curiosidade me levasse, onde a beleza me comovesse. Mas também a todos os locais onde houvesse injustiça social, para a descrever melhor.

Fig. 67 - Um dos colegas de Sebastião na agência Gamma, Raymond Depardon

Nessa altura, integrei a maior escola de fotojornalismo, a agência Gamma. Fiquei de 1975 a 1979, depois de ter passado um ano na Sygma. Na Gamma, reinava uma harmonia extraordinária.

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A maioria dos fotógrafos tinha acabado de chegar; havia um outro grupo mais experiente, com pessoas que não necessariamente muito mais velhas, mas que, ao contrário de mim, eram fotógrafos há muito tempo: Raymond Depardon, Marie-Laure de Decker, Hugues Vassal e Floris de Bonneville, um super redator-chefe.

Fig. 68 - Ao centro está Floris de Bonneville, chefe de Sebastião Salgado na agência Gamma

Eles não partilhavam a minha ligação com a esquerda, mas também tinham uma verdadeira visão de mundo: sabiam onde ir e o que procurar. Era um prazer imenso trabalhar com Floris, ele ensinou-me as bases do ofício. Chegávamos de manhã à agência, o rádio estava permanentemente ligado, acompanhávamos os telexes da France-Presse, da Associated Press, da Reuters… À medida que as notícias chegavam, víamos nascer as histórias.

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Como por exemplo no caso de Bangladesh. Ao meio-dia, já tínhamos um esboço de reportagem. Às quatro da tarde, Floris me perguntou: «Sebastião, estás pronto para partir?» Corri para casa, fiz a mala e às dez da noite, estava a embarcar num avião rumo a Daca. Entretanto, a Gamma tinha conseguido assegurar a publicação da reportagem em diferentes revistas. Por isso não podia falhar.

Fig. 69 - Exemplar da revista Match, de 1969

Antes de partir, o Floris entregava-me um dossier de imprensa e, à luz da minha formação académica, em pouco tempo estava em condições de fazer uma análise e saber sob que aspecto abordar o país. Na maioria das vezes em que trabalhava para a Paris Match, o Times, a Stern ou a Newsweek, podia haver um correspondente ou intermediário no local.

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De qualquer forma, quando desembarcava arranjava maneira de me encontrar com outros fotógrafos e jornalistas. Procurava entrevistar o maior número de pessoas possível. Na altura, as coisas eram mais simples: o mundo estava basicamente dividido em dois blocos. Para começar a compreender uma situação, a primeira etapa consistia em situá-la numa coerência geopolítica entre a União Soviética e os Estados Unidos - considerando que os Franceses formaram sempre um pequeno bloco à parte.

Fig. 70 - Rolos fotográfico utilizados para captar imagens, antes da era digital

Depois, começava a trabalhar e, à noite ia ao aeroporto e entregava as minhas películas a passageiros. Encontrei sempre voluntários e nunca se perdeu um rolo.

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Avisava a Gamma por telex, descrevia as minhas fotos e os passageiros que as transportavam, para facilitar a tarefa ao nosso estafeta que arranjava maneira de estar à porta do avião para as receber. Assim que as fotos chegavam à Gamma, eram reveladas e, nessa mesmo dia, eram distribuídas pelas revistas.

Fig. 70 - Rolos fotográfico utilizados para captar imagens, antes da era digital

Se acontecesse algo noutro lado do mundo, seguia para lá directamente. Do Congo, partia por exemplo para o Sudão ou para o Egipto antes de regressar a Paris.

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Para aqueles que tiveram a sorte de serem seus fotógrafos, a Gamma era uma verdadeira escola. Devo muito ao Floris. Além disso, volto a salientar, os meus estudos deram-me ferramentas fantásticas para fazer este trabalho. E o gosto de ir até ao fundo das questões. Ao longo do tempo, acabei por conhecer bem alguns países, por compreender as engrenagens e ver emergir as problemáticas do nosso mundo em mutação.

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A fotografia,

meu modo de vida

Fig. 71 - Sem informação sobre o autor, eta fotografia foi captada quando Sebastião viva em Londres

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Alguns dizem que sou fotojornalista.

Não é verdade. Outros que sou um militante. Também não é verdade. A única verdade, é que a fotografia é a minha vida. Todas as minhas fotos correspondem a momentos que vivi intensamente.

Todas essas imagens existem porque a vida, a minha vida, me levou até elas. Porque havia uma raiva dentro de mim que me levou àqueles locais.

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Por vezes, fui guiado por uma ideologia, outras, simplesmente pela curiosidade ou pelo desejo de estar em determinado local. A minha fotografia não é nada objetiva. Como todos os fotógrafos, fotografo em função de mim mesmo. Daquilo que me passa pela cabeça, daquilo que estou a viver e a pensar no momento. E assumo-o Todas as minhas fotos acabaram num jornal: a imprensa é o meu principal suporte, a minha referência.

Fig. 72 - Uma das inúmeras fotogafia que Sebastião c Salgado captou em África

Mas, para mim, fotografar, é muito mais que publicar imagens. Num jornal, trabalhamos quatro, cinco dias, uma semana no máximo num projecto, especialmente hoje em dia. Para mim, o meu trabalho nunca está terminado. O que me interessa é produzir relatos fotográficos, decompostos em diferentes reportagens, distribuídas ao longo de vários anos.

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Trabalhar um tema profundamente durante cinco ou seis anos, e não saltitar de um tema para outro, de um local para outro. A única forma de contar histórias, é regressar ao mesmo lugar diversas vezes; é nessa dialética que evoluímos. Procedo assim há mais de quarenta anos. Isto deu uma certa coerência ao meu trabalho. Também a devo certamente ao meu equilíbrio emocional. Ao facto de ter passado toda a minha vida ao lado da mulher que amo; graças a tudo o que partilhamos em conjunto e com os nossos filhos. Hoje em dia, quando olho para trás, encontro uma harmonia entre aquilo que sou, aquilo que faço e de onde venho. Mas é claro que, na altura, só sabia que estava a viver intensamente.

Fig. 73 - Além de apoiar emocionalmente, Lélia também se encarregar da edição dos livros de Sebastião

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No início, a Lélia e eu, não tínhamos muito dinheiro e não era fácil. Mas eu não me arrependia de ter abandonado a carreira de economista. Com o passar dos anos, isso não mudou, continuo a amar profundamente a fotografia, o enquadramento da câmara. Além disso, a fotografia permitiu-me sempre seguir o rumo da história. Outra linguagem, talvez um dia a substitua, mas, até lá, continuará a proporcionar àqueles que a praticam momentos extraordinários.

Fig. 74 - Testes de luz vistos atravês dos negativos

Uma vida privilegiada. Os primos mais próximos dos fotógrafos são os arquitetos, descobri-o através dos estudos da Lélia. Como nós, eles navegam entre volumes e vazios; nas questões de luz, linhas e movimento; na busca de coerência entre o seu próprio modo de vida, a sua ideologia, a sua história.

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Uma vida privilegiada. Os primos mais próximos dos fotógrafos são os arquitetos, descobri-o através dos estudos da Lélia. Como nós, eles navegam entre volumes e vazios; nas questões de luz, linhas e movimento; na busca de coerência entre o seu próprio modo de vida, a sua ideologia, a sua história.

Fig. 75 - Tirada em 1999 no telhado da FEBEM, esta fotografia fez parte do projeto «Êxodos» (2000)

E tudo isso acaba por se interligar. Esta é a magia da arquitetura assim como a fotografia. Ao contrário do cinema ou da televisão, a fotografia tem o poder de produzir imagens que não são planos contínuos mas sim cortes de planos. São frações de segundo que contam histórias inteiras. Nas minhas imagens, a vida de cada pessoa com quem me cruzei é contada através dos seus olhos, das suas expressões e daquilo que estava a fazer no momento.

A fotografia, meu modo de vida

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Para tirar boas fotos, é preciso sentir muito prazer. Não se pode passar cinco anos da nossa vida em África se não amarmos verdadeiramente esse continente. É inútil forçares-te a contemplar pessoas a trabalhar se isso não te interessar. Para se ficar diversos meses dentro de uma mina, é preciso ter uma motivação real. É preciso amar o que está a fazer.

Fig. 76 - Frame retirado do documentário «O Sal da Terra» onde se pode ver a equipa que acompanha o fotógrafo

Todos aqueles que convivem com um fotógrafo sabem-no bem: a coisa mais maçadora do mundo, é acompanhá-lo. Pode passar horas a fio imóvel no mesmo sítio, os olhos cravados no visor. Adoro ficar assim, horas, a observar, a enquadrar, a trabalhar a luz até ao limite. Depois tudo acontece no laboratório. Trata-se de reconstituir as minhas emoções numa linguagem que não é real, uma vez que o preto e branco é abstração, constituída através de gamas de cinzento do filme fotográfico.

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Antigamente, eu mesmo tinha esse prazer, sozinho no laboratório, mas, actualmente confio a revelação a Dominique Granier. Antes de passar para a fotografia digital, quando partia para longas reportagens, tinha de esperar, às vezes vários meses, para revelar os filmes que trazia bem rebobinado em caixas metálicas. Só quando regressava a Paris é que podia constatar se a magia que se tinha sentido in loco estava patente na película.

Fig. 77 - Sebastião Salgado e o seu filho mais velho, Juliano, na sua casa em Paris a ver as sua fotografias reveladas

Se tinha conseguido ou não capturar essas imagens pelas quais esperara tanto tempo, permanecendo durante dias perto de uma comunidade, participando do seu dia-a-dia, tomando parte das suas atividades. Observando, às vezes durante horas, plantado em qualquer lado, à espera.

A fotografia, meu modo de vida

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Ao colocar-se numa situação de total integração com aquilo que o rodeia, o fotógrafo sabe que assistirá a algo inesperado. Quando ele se funde com a paisagem, na situação, a construção da imagem acaba por surgir diante dos seus olhos. Mas, para conseguir vê-la, ele tem de fazer parte do fenómeno. Então todos os elementos se voltam a seu favor. Nesse instante, que deslumbramento! Isso lembra-me um trabalho que fiz para um livro encomendado pelo Conselho de Administração da SNCF13. Estava na estação de Aurillac, no Maciço Central, onde trabalhavam umas vinte pessoas.

Fig. 78 - Gare da estação de Aurillac, França

Estava com Antoine de Giaglis, um amigo da CGT, que a dado momento me disse: «Repara, Sebastião, a estação trabalha para a tua máquina.» Era verdade. 13

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Sociedade Nacional de Caminhos de Ferro Franceses.


Cada um fazia o seu trabalho, mas era como se estivéssemos todos ligados e formássemos um grande teatro. Estávamos todos a interpretar a mesma peça, em conjunto. A fotografia é isso. Num determinado momento, todos os elementos estão interligados: as pessoas, o vento, as árvores, o pano de fundo, a luz. Quando aciono a câmara, estou por inteiro nesse gesto. É mágico e é um prazer individual. Hoje em dia, estou a envelhecer, e preciso de um assistente, de um companheiro de viagem. Mas durante muito tempo, andei sozinho. Como na América Latina, onde vivi durante meses, nas montanhas, com os Índios.

A fotografia, meu modo de vida

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«Outras Américas»

Fig. 79 - Capturada no México, em 1980, esta foi a capa do livro «Outras Américas» 1999

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Tal como África, a América do Sul também tem um papel importante na minha vida de fotógrafo e na minha vida em geral. Na Gamma, quando comecei a falar dessa América, não interessava a ninguém.

Contudo para mim era essencial visitá-la. Tinha desejo de fotografar esses países, era uma forma de me sentir mais próximo da minha cultura.

As diversas regiões da América Latina são diferentes do Brasil, mas eu tinha necessidade de sentir essa América.

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Desde pequeno, que ouvia falar das montanhas do Chile, da Bolívia, do Peru. Elas faziam parte de meu universo onírico. Precisava conhecê-las, vivê-las. Foi o que fiz, e regressei frequentemente entre 1977 e 1984. Também visitei o Equador, a Guatemala e o México. Em 1979, graças à Lei da Anistia, pude regressar ao Brasil, e comecei a fotografar o meu país. Adorei trabalhar com as diferentes comunidades indígenas: com os trabalhadores do campo e das cidades, com os habitantes das montanhas e as minorias autóctones.

Fig. 80 - Guatemala, 1978

Descobri o misticismo do Sertão, o Nordeste do Brasil, com os seus homens vestidos de cabedal, conheci a sua luta para sobreviver em terras terrivelmente áridas. Também percorri a Sierra Madre, a cordilheira de montanhas mexicanas que se perde na bruma…

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Esse trabalho durou sete anos, às vezes digo que durou sete séculos: e permitiu-me viajar através de culturas onde o tempo se desenrola ao ritmo do passado.Para me aproximar dessas diferentes populações índias, de cada vez foram necessários diversos meses.

Fig. 81 - Brasil, 1981

Para montar o projeto, preparar as minhas reportagens e entrar em contacto com os organismos que estabeleceram a ligação com os autóctones. Depois, era necessário conseguir alcanças essas comunidades. Depois do avião, apanhava o autocarro como os índios. Por fim, só me restava andar a pé. Demorava sempre vários dias para encontrar este ou aquele grupo nas montanhas. Ao chegar ao local, tinha de dar tempo para que me aceitassem, mesmo tendo obtido autorizações previamente.

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Ao chegar ao local, tinha de dar tempo para que me aceitassem, mesmo tendo obtido autorizações previamente. Esses índios, gentes de grande cultura, foram quase totalmente massacrados pela nossa civilização ocidental. São sempre desconfiados. É preciso falar longamente, viver com eles, se quisermos fotografá-los. Ficava longe de casa diversos meses, sentia uma saudade enorme da minha mulher. Pensava nela muitas vezes e no Juliano, o nosso filho, que ainda era muito pequeno.

Fig. 82 - Lélia Salgado e o filho Juliano, nos anos 80

Quantas vezes chorei escondido num canto! Ao mesmo tempo, sentia um prazer incrível na busca daquelas fotos. E depois não podia partir para tão longe, fazer uma viagem tão cara e ficar apenas alguns dias. Aprendi muitas lições naquelas altas montanhas.

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Senti muito frio, pois a temperatura baixa muito à noite - levei anos para comprar um bom saco-cama! - , mas vi tanta beleza, descobri tantas riquezas culturais e espirituais que não me arrependo de nada.

Fig. 83 - Sebastião sempre foi bem acolhido durante as suas viagens. Guatemala, 1978

As imagens que de lá trouxe, não foram feitas unicamente por mim. Foi preciso que as populações as autorizassem, as oferecessem. Elas fizeram-no porque me dei ao trabalho de viver com elas. O facto de estar sozinho também foi essencial. O ser humano é um animal gregário, quando chega sozinho a qualquer lado, é rapidamente integrado pelos que ali vivem. Quando estava com frio, quando tinha fome, quando sentia falta de minha família, dizia-o aos meus anfitriões. Falava-lhes do meu filho pequeno que crescia longe de mim.

«Outras Américas»

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Compartilhei com eles o essencial, tal como eles compartilhavam comigo as imagens. Eles ofereceram- me essas fotos e eu recebi-as. Para mim, elas estão impregnadas de uma verdadeira força.

Fig. 84 - Equador, 1982

Quando as observo, elas evocam o meu isolamento aliado ao conforto que aqueles índios me proporcionaram. E quando as mostrei, elas, às vezes, transmitiram essa força. A força da vida dessa gente e do tempo que passámos juntos. Quando regressei, esse trabalho que a priori não interessava a ninguém recebeu o Prémio da Cidade de Paris para a publicação de um livro.

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Foi assim que pude editar Autres Amériques (Outras Américas) com Claude Nori., para a Éditions Contre-jour. Claude, também é fotógrafo, e é um editor fenomenal: fez livros maravilhosos com Doisneau, Willy Ronis, Jeanloup Sieff… Infelizmente fez uma longa interrupção, felizmente hoje em dia voltou à edição. O prémio da Cidade de Paris permitia publicar 49 fotografias, mais a da capa. Foi o primeiro livro que a Lélia concebeu, o primeiro que realizou. O nosso primeiro livro. Também montámos uma exposição em Paris, em 1986, na Casa da América Latina. Exposição essa que viajou pelo mundo.

«Outras Américas»

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Imagens de um

mundo em perigo

Fig. 85 - Uma mulher desidratada num hospital em Mali, 1965

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Em 1984, a Médicos Sem Fronteiras lançaram uma grande campanha de assistência alimentar e médica pra as populações vítimas da seca que devastava o Sahel e matava à fome as suas populações.

Realizei com esta organização uma grande reportagem de dezoito meses no Mali, na Etiópia, no Chade e no Sudão; uma série de imagens que mostravam grupos de refugiados da sede e da fome, e, em certos casos, da guerra.

Nelas vêem-se multidões de expatriados a afluir para campos, como o de Korem, na Etiópia, o maior que existia e onde se amontoavam 80 mil desterrados.

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As minhas fotos foram publicadas na imprensa internacional. O Libération acompanhou a reportagem de perto, eu trabalhava diretamente com Christian Caujolle, na altura redator-chefe de fotografia. Esta série de publicações contribuiu muito para a causa humanitária. Em 1985, recebi o prémio World Press e o prémio Oskar Barnack por este trabalho. No ano seguinte, em França, Robert Delpire concebeu um livro editado pelo Centro Nacional de Fotografia, intitulado Sahel. L’ homme en détresse (Sahel, O homem em pânico).

Fig. 86 - Fotografia de capa do livro «Sahel: O fim do caminho» Etiópia, 1984

Em 1988, a Lélia concebeu um segundo livro para a criação da delegação dos Médicos Sem Fronteiras de Espanha, sob o título Sahel. El fin del caminho. (Sahel: O fim do caminho). Ao longo da minha vida realizei inúmeras reportagens sobre populações em dificuldade e refugiados.

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Como em todas as minhas histórias fotográficas, fui apresentado àquelas pessoas e comunidades por instituições e organizações que trabalham com elas. Dediquei o meu tempo a conhecê-las, a falar com elas. Fico sempre de frente para as pessoas que fotografo, no seu ambiente. Nunca lhes peço para posar, mas elas percebem perfeitamente que as estou a fotografar, e tacitamente autorizam-no. Nenhuma foto, por si só, pode mudar seja o que for na pobreza do mundo.

Fig. 87 - Captada no Tuareg, dizse que a mulher cega desta foto influenciou a criação do filme «O Sal da Terra»

Contudo, aliadas a textos, a filmes e a toda a acção das organizações humanitárias e ambientalistas, as minhas imagens fazem parte de um movimento mais vasto de denúncia da violência, da exclusão, ou da problemática ecológica.

Imagens de um mundo em perigo

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Esses meios de informação contribuem para sensibilizar aqueles que os contemplam para a capacidade que todos temos de mudar o destino da humanidade. Não sou oriundo do hemisfério norte e não partilho do sentimento de culpa de alguns dos meus colegas. Não fotografo a pobreza material para culpabilizar os outros, a pobreza faz parte do mundo de onde venho. Desde que a esquerda tomou as rédeas, e principalmente sob o impulso de Lula, o Brasil começou a desenvolver-se.

Fig. 87 - Etiópia 1984

Quando eu era jovem, era um país subdesenvolvido e, antes de partir, tinha visto a pobreza aumentar. Desde sempre qur considero injusta a forma como a riqueza se encontra distribuída entre o Norte e o Sul. É injusto repartir a riqueza com um só lado do planeta e nunca com o outro.

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Quis mostrar a fome em África aos habitantes dos países ricos para que tivessem consciência da principal consequência do desequilíbrio mundial. Pela mesma razão, quis fazer ouvir a voz dos sem-terra do Brasil.

Fig. 88 - Ciranças sem terra, Paraná, 1996

Em 1979, quando pude regressar ao Brasil, a pobreza saltou-me dos olhos. Durante a ditadura, de 1964 a 1984, uma grande parte dos pequenos proprietários rurais brasileiros vendeu as suas terras a «preços sedutores» às grandes empresas agrícolas e foram apanhados pela hiperinflação da época. Era como se tivessem sido expropriados, e a partir de então, passaram a viver na precariedade.

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As primeiras fotos que tirei, ao regressar, mostram a situação desses camponeses que chamamos boias-frias. Viviam à margem das imensas propriedades agrícolas criadas pelo reagrupamento das suas antigas terras. Durante muito tempo, somente a Teologia da Libertação agiu naqueles locais. As comunidades de base assim como a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetag) possibilitaram que formassem um grupo de desfavorecidos. Constituíam uma voz de protesto contra aquela injustiça.

Fig. 89 - Região do lago Faguibine, Mali, 1985

Em 1984, foi criado o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST); que englobava 4,8 milhões de famílias camponesas. Acompanhei as suas reivindicações durante quase quinze anos. O MST recenseou todas as terras deixadas ao abandono no país.

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Ao ocupá-las, tentavam obrigar o Governo a comprar aquelas propriedades para as redistribuir aos camponeses desfavorecidos. Em 1996, no Paraná, um Estado do Sul do Brasil vi 12 mil pessoas, ou seja cerca de 3200 famílias, ocuparem uma propriedade de 83 mil hectares, dos quais apenas 12 mil eram cultivados.

Fig. 90 - Fome domina Sahel. Mali, 1985

O MST agia legalmente e não lesava ninguém, só ocupava terras que não estavam cultivadas. A Constituição Brasileira estipula que é interdito possuir terras se não as explorarmos. Mas isso não impediu os grandes latifundiários de violar a lei: muitos deles mandaram os seus capangas ou a polícia, expulsar as famílias que ocupavam suas terras.

Imagens de um mundo em perigo

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Contudo, graças ao MST, muitas dessas terras foram finalmente redistribuídas, na época, a cerca de 200 000 famílias. Ao fim de quinze anos, apercebi-me que as minhas imagens contavam essa história. E então a Lélia concebeu um livro com um texto de José Saramago, poemas das canções de Chico Buarque e as minhas imagens. Terra, foi publicado em 1996, era um verdadeiro manifesto escrito a quatro mãos para o MST.

Fig. 91 - Esta menina sem-terra foi capa do projecto Terra, lançado em 1997

A Lélia também concebeu a mais original das exposições, com o formato de 2 000 kits de 50 posters fáceis de instalar. O objetivo era angariar fundos, mas também divulgar a história desses combatentes da terra.

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Estas exposições-vendas foram organizadas na América Latina, nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia. Todos os lucros foram entregues ao MST. Em França, Itália e Espanha, organizámos exposições itinerantes, em conjunto com a Associação Frères des Hommes. Cada uma das minhas fotos é uma escolha. Mesmo nas situações difíceis, é preciso querer estar presente, e assumir essa presença. Aderindo ou não àquilo que está a acontecer, mas sempre sabendo porque é que lá estamos. Seguir os sem-terra foi minha forma de participar no seu movimento. Mostrar as imagens da fome em África, uma forma de a denunciar. Essas imagens suscitaram reações, por toda parte. A fotografia é uma forma de escrita, ainda mais forte porque pode ser lida em todo o mundo sem tradução.

Imagens de um mundo em perigo

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Conclusão

Fig. 92 - Esta fotografia pertence ao filme documental «O Sal da Terra» realizado por wWim Wnders

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Terminei as reportagens de Génesis na véspera dos setenta anos.

Elas esgotaram-me fisicamente. Enfrentei climas rigorosos, dos mais frios aos mais quentes, dos mais húmidos aos mais secos, e, acima de tudo, percorri a pé distâncias colossais. Na cidade, temos o costume de caminhar em superfícies planas, mas na floresta, com os índios, avançamos por terrenos instáveis, saltamos por cima das árvores.

Algumas são grandes demais, precisamos sentar em cima delas, girar o corpo de um lado para o outro para conseguir passar. Caímos o tempo todo. Os índios nunca caem.

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No primeiro dia de marcha na floresta, ficamos exaustos, pois utilizamos músculos que não trabalhavam desde a infância. Alguns deles eu nem sabia que tinha. Resumindo, diria que a mente recebe a graça e o físico, um castigo. Ao fim de oito anos, fiquei muito cansado, mas regenerado. Em Êxodos tinha enfrentado o que nossa espécie tinha de mais grave e violento, e deixei de acreditar que ela tivesse salvação. Com Génesis mudei de opinião.

Fig. 93 - Lélia e Sebastião Salgado, na atualidades, no terreno da sede do Instituto Terra

Vi o que éramos antes de nos lançarmos à violência das cidades, onde nosso direito ao espaço, ao ar, ao céu e à natureza se perdeu entre quatro paredes. Erguemos barreiras entre a natureza e nós. Com isso, nos tornamos incapazes de ver, de sentir…

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Acredito muito mais na evolução, sou um discípulo de Darwin. Acredito que as coisas se formam graças à dialética, ao acúmulo de experiência, à maturação. Génesis deu-me a oportunidade de observar a idade do planeta. No Saara, vi pedras talhadas há 16 mil anos; na Venezuela, montanhas de 6 bilhões de anos. A vida adquire outra dimensão. Percebemos que não passa de uma brevíssima passagem. Génesis fez-me ter consciência de que de tanto nos afastarmos da natureza, com a urbanização, nos tornamos animais muito complicados; de tanto nos tornarmos estrangeiros no planeta, nos tornamos seres estranhos. Mas não se trata de um problema insolúvel. A solução passa pela informação - e ficarei feliz se puder ter contribuído com ela. Com Lélia e nossos companheiros do Instituto Terra, plantamos 2 milhões de mudas. Calculamos que, até o momento, capturamos 97 mil toneladas de carbono. Mas, dentro de suas possibilidades, cada um pode fazer alguma coisa Minha fotografia não é militância, não é profissão. É minha vida. Adoro a fotografia, fotografar, estar com a câmara na mão, olhar pelo visor, brincar com a luz. Adoro conviver com as pessoas, observar as comunidades - e agora também os animais, as árvores, as pedras. Minha fotografia é tudo isso,. O desejo de fotografar está constantemente levando-me a recomeçar.

Conclusão

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Distinções honoríficas de Sebastião Salgado 1982 Prémio Eugene Smith para Fotografia Humanitária, Estados Unidos. Recompensa pelo trabalho de pesquisa sobre os camponeses na América Latina e ajuda para completá-lo, Ministério da Cultura, França. 1984 Prix de la Ville de Paris e Kodak pelo livro Outras Américas, França. 1985 Prémio World Press, Holanda. Prémio Oskar Barnack, Alemanha. 1986 Prémio Íbero-americano de Fotografia, Espanha. “Photographer of the Year”, International Center of Photography, Estados Unidos. Prémio do Livro para Sahel: O homem em pânico, Rencontres Internationales d’Arles, França. Prémio ASMP (American Society of Magazine Photographers), Estados Unidos. Grande Prémio e Prémio do Público do “Mês da Fotografia” para a exposição “Outras Américas”, Paris Audio Visuel, França. 1987 “Photographer of the Year”, American Society of Magazine Photographers, Estados Unidos. “Photographer of the Year”, Maine Photography Workshop, Estados Unidos. Prémio Olivier Rebbot, Overseas Press Club, Estados Unidos. Journalistenpreis Entwicklungspolitik, Sociedade Alemã de Fotografia, Alemanha. Prémio Villa Médicis Hors les Murs, Ministério das Relações Exteriores, França. 1988 Prémio Erich Salomon, Alemanha.

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Prémio Rey de España, Espanha. “Fotógrafo do Ano”, International Center of Photography, Estados Unidos. Prémio do Art Directors Club, Estados Unidos. 1989 Prémio Erna et Victor Hasselblad, pelo conjunto da obra, Suécia. Medalha de Mérito “Josef Sudek”, Checoslováquia. 1990 Prêmio “The Maine Photographic Workshop” para o livro Um incerto estado de graça, Estados Unidos. Visa d’Or, Festival International de Photoreportage, Perpignan, França. 1991 Prémio “CommonWealth Award”, Estados Unidos. Prémio Grand Prix de la Ville de Paris, França. Prémio de Ouro do Art Directors Club, Estados Unidos. 1992 Eleito membro honorário da American Academy of Arts and Sciences, Estados Unidos. Prémio Oskar Barnack, Alemanha. Prémio The Art Directors Club, Alemanha. 1993 Prémio do Livro por Trabalhadores, Rencontres Internationales d’Arles, França. Troféu “Match d’Or” pelo conjunto da obra, França. Prémio “The World Hunger Year’s Harry Chapin Media” de fotojornalismo pelo livro Trabalhadores, Estados Unidos. 1994 Prémio de Publicação pelo livro Trabalhadores, International Center of Photography, Estados Unidos. Prémio “Centenary Medal” e “Honorary Fellowship” da Royal Photography Society of Great Britain, Reino Unido.

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O testemunho exclusivo de Sebastião Salgado, um dos grandes fotógrafos da actualidade, sobre o seu compromisso em prol da presevação do planeta. As fotografias de Sebastião Salgado deram a volta ao mundo. As suas imagens a preto e branco, os seus retratos anónimos, especialmente de trabalhadores e refugiados e, mais recentemente, o projeto «Génesis» consagrado aos lugares intocados do planeta, são conhecidas pela sua luz, pela força e dignidade dos seres por ele retratados.


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