Só vai descobrir se abrir

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universidade federal de santa catarina . arquitetura e urbanismo projeto arquitetônico 7 . rodrigo gonçalves lucas fernandes de oliveira


INTRODUÇÃO

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Mais do que uma construção histórica formal e cronológica, os registros da cidade são também fundamentalmente constituído pelas histórias e conversas informais e casuais do cotidiano. Contadas por nossos familiares e amigos, essas histórias são uma extensão da nossa linha do tempo em direção ao passado e vividas por personagens muito próximos nós, que tiveram a experiência urbana inscrita em seu corpo, e por isso são o próprio registro da cidade. Paola Berenstein Jacques vai se referir aos registros dessa dinâmica cotidiana como corpografia urbana. Inúmeros são os fragmentos da cidade contidos na memória de cada indivíduo e seu corpo que podem ser descobertos, e assim, ter a memória urbana reescrita sob a ótica de um novo corpo, de um outro tempo. A espetacularização vem justamente ocasionando o empobrecimento dessa experiência urbana, isto é, reduzindo a casualidade e imprevisibilidade de mui-

tas das dinâmicas sociais. Horário marcado, caminho traçado, sem desvio de percurso, sem encontros fora do previsto, nem mesmo desencontros. Temos cada vez menos tempo e disponibilidade para ouvir uns aos outros, reduzimos as possibilidades de interação entre indivíduos e espaço, suprimindo até mesmo nossos comportamentos mais instintivos, como a curiosidade. A contação oral de histórias é uma das interações capazes de reforçar e valorizar os laços de comunidade e experiências coletivas, permitir a auto-identificação e assimilação do espaço em que vivemos. As diferentes narrativas também evidenciam emoções, anseios e expectativas que são resultado que pertencem exclusivamente a essa prática.

INTENÇÕES A partir do entendimento de que o compartilhamento de histórias é uma (re) ação do indivíduo com relação à construção do espaço em que vivemos, esta intervenção objetiva coletar esses diver-


sos fragmentos inscritos nas corpografias da cidade, expressados de forma espontânea. A intervenção faz uma alusão aos antigos encontros casuais do dia a dia,

nas filas, nos bancos de praça, nas reuni-

ões de família, em que frequentemente surgiam conversas e histórias contadas por personagens familiares, estabelecendo ligações mais diretas com entre o lugar e nossa própria linha do tempo.

O LOCAL DE INTERVENÇÃO 1. Praça XV de Novembro 2. Largo da Catedral 3. Rua Felipe Schimidt 4. Largo do Fagundes Duração da Intervenção: 3 horas e 30 minutos.

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O DISPOSITIVO O varal de cartas é um dispositivo objeto que busca provocar duas reações específicas: a curiosidade e a nostalgia. Se a curiosidade é a precursora da ação, a nostalgia é emoção que pode proporcionar a melhora do humor - ou não, se estimulada por uma memória triste, por exemplo -, criar conectividade com os lugares e as pessoas e também criar significados existenciais. As cartas admitem qualquer conteúdo, que certamente irão gerar (re)ações diferentes. Enquanto fechadas, as cartas apenas nos despertam a curiosidade, após abertas e lidas, a memória inscrita em nosso corpo define o desfecho da interação. Para coletar alguma informação

é necessário criar uma atmosfera propícia, gerar o conforto, liberdade de ação, confiança, e claro, uma boa história para quebrar o gelo. Para isso, foi utilizado pequenos contos do livro Histórias de Antigamente, escrito pela arquiteta Patrícia Auerbach, cuja família sempre viveu em Florianópolis. As histórias são contadas por seu bisavô e avós que retratam algumas histórias peculiares e engraçadas da década de 20, 30 e 40 em Florianópolis. Mesmo com a chance dos participantes não terem vivenciado tal época, os objetos e cenários das histórias contidas nas cartas continuam familiares, isto é, ainda tem a capacidade de gerar nostalgia baseada nas experiências mais atuais com o mesmo objeto e cenário, mas de um outro tempo.

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AS (RE)AÇÕES


Televisão de Antigamente...

Assistir televisão era um evento. saíamos de casa para ir na casa da nossa vó só para assistir algum programa com a família em qualquer um dos poucos canais que tinha.

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Banheiro de Antigamente...

Fiquei morrendo de curiosidade, fui obrigada a voltar pra descobrir o que ĂŠ!!!

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Escolhe pra mim aí, meu filho.

Interessante... É só escolher?

Lê pra mim, querido... Não enxergo essa letrinha.

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TELEVISÃO DE ANTIGAMENTE....

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Trabalho na feirinha aqui no centro faz 39 anos...

WOW! Essa mulher jĂĄ deve ter visto um bucado de coisas por aqui...

Sempre morei aqui pertinho, minha famĂ­lia cresceu toda por aqui...Minha filha trabalha na feira comigo jĂĄ faz 19 anos.

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Vamos minha filha! Escolhe logo...

UNI DUNI TÊ... ......

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VIAGEM DE CHARRETE...


Meu sogro conta que ele acordava as 4:00 da manhã e vinha andando da Tapera até o Centro para trabalhar, todos os dias. Não pode ser...

O homem era incrível!

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Viagem de Charrete

Uma mulher me contou que o sogro dela acordava todos os dias 4:00 da manhã e vinha andando da Tapera até Centro.

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Sim menino! É verdade! Meu pai tinha que vir para o Centro todos os dias andando lá do Campeche!


HAHAHA! BOA! Tadinho do menino... SĂł queria um Sorvetinho. Se vocĂŞs tiverem aqui quando eu sair do trabalho, eu volto pra ler todas as outras

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Banheiro de Antigamente...

E aí carinha, deixa eu descobrir também o que tem aí! O que é?

Só abrindo pra descobrir...

Hmmmmm... “Demorô”, agora não vai dar tempo, to no meio do serviço...

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QUEM ABRIU DESCOBRIU... O BANHEIRO DE ANTIGAMENTE

Vovó estudou em um colégio interno só de meninas, onde freiras tomavam conta da criançada. Neste tal colégio, as crianças dormiam em um único grande quarto com as camas uma ao lado da outra. Naquela época, com poucos banheiros, a solução foi dar um penico pra cada menina e pedir pra que guardassem embaixo da cama; assim, quem acordasse à noite e precisasse ir ao banheiro, poderia usar o penico e voltar rapidinho para cama sem atrapalhar as outras pessoas (Mas e as mãos? Não precisa lavar?). As meninas nunca gostaram muito da madre, que era brava e brigava por qualquer coisa. Até que um dia, as alunas tiveram uma ideia genial. Sem ela perceber, elas amarraram os penicos de todas as meninas um no outro com um barbante bem fininho, e pra finalizar prenderam também o penico da madre. Quando ela despertou foi a maior bagunça! A coitada levantou ainda sonolenta e puxou seu penico que estava de baixo da cama. Com isso arrastou todos os outros penicos amarrados, fazendo o maior barulhão. Todas viram escorrer pelo chão do quarto o conteúdo dos penicos cheios, o que deixou a madre vermelha de tanta raiva. Ah! É claro que as meninas tiveram que limpar a bagunça. VIAGEM DE CHARRETE Durante a infância da vovó, entre a década de 30 e 40, ela contava das longas horas de viagem pelas estradas esburacadas, comendo poeira da estrada durante todo o caminho. Só para ter uma ideia das condições do percurso, a rota entre Lages e Florianópolis, que hoje é feita em menos de cinco horas, demorava cinco dias naqueles tempos. Até aí tudo bem, mas uma das crianças da família tinha alergia a leite de vaca, e como era um bebê, sua única alimentação era leite de cabra. Não havia geladeira em casa, por isso o leite precisava ser tomado fresco, logo após a ordenha. E, como durante os cinco dias do trajeto seria muito difícil comprar leite de cabra pelo caminho, a solução era levar o animal com eles na viagem. Então, além das seis crianças espremidas no banco de trás, o casal levava também uma cabra amarrada ao carro num degrauzinho chamado estrbo, que normalmente era usado como apoio na hora de subir no automóvel. Assim, quando dava fome no bebê era só tirar o leite da cabra empoeirada e servir ainda morno. E a gente aqui reclamando do trânsito! 18


O TELEFONE DE ANTIGAMENTE

Antigamente, quando foi inventado, as pessoas tiravam o fone do gancho, giravam uma manivela e esperavam pela voz conhecida da telefonista que surgia do outro lado da linha. Minha avó conta que todos os dias às sete horas da manhã o telefone tocava e d. Joaninha, a telefonista da cidade, dizia: - Bom dia, a ligação está chegando bem? Além de cuidar pra que a ligação sempre chegasse direitinho em todas as casas, a d. Joaninha se procupava também com a vida das pessoas. Na verdade, o trabalho das telefonistas era apenas conectar as pessoas e logo em seguida parar de ouvir o que os outros estavam dizendo, mas às vezes a curiosidade era tanta que elas simplesmente não conseguiam resistir. Certa vez, durante os preparativos para o casamento dos meus avós, eles se falaram por telefone pra combinar a viagem de lua de mel. Foi uma ligação demorada e cheia de detalhes. Ao fim da conversa os dois mandaram beijos e se despediram. Mas quando meu avô desligou, a tal d. Joaninha, que também estava na linha disse à noiva: - Ei, Ei, Não desligue ainda, minha querida. Que delícia saber que vocês vão para Buenos Aires. Nossa, essa vai ser uma viagem linda! Queria até aproveitar pra fazer uma encomendas...E seguiu listando os itens que minha avó deveria trazer pra ela da viagem de lua de mel. Dá pra acreditar?

O SORVETE DE ANTIGAMENTE Meu vô contou que lá pelos seus nove ou dez anos, num final de semana muito quente, estava jogando bola na rua com os irmão, quando a sua mãe apareceu na porta da casa e gritou: - Meninos, vocês querem sorvete? É claro que todos disseram que sim. Mas como naquela época ninguém tinha geladeira, só dava pra comer sorvete se alguém fosse até a cidade comprar gelo para misturar com suco de fruta. Era isso que eles chamavam de sorvete. E claro que o escolhido para buscar o gelo naquele dia foi o vovô, que pegou sua bicicleta e pedalou o mais rápido possível até o marcadinho. Ele estava com a boca seca, mas comprar uma bebida significaria comprar menos gelo para o sorvete, então deixou a sede de lado e entregou o dinheiro contadinho para o seu João, que deu pra ele um saco cheio de gelo. “Quanto sorvete!”, ele pensou. Com o saco pesado de gelo , equilibrando-se para não cair, pedalou como um foguete até em casa para não derreter o gelo. O vovô contou que se sentiu como um herói vitorioso chegando da guerra: suado, exausto e com uma deliciosa sensação de missão cumprida, esperando ansiosamente pelo pote de sorvete caprichado como recompensa. Os potes de sorvete terminaram de ser servidos e a mão dele se sentou no sofá. Sem entender o que estava acontecendo, vovô foi até ela e perguntou: - Mãe, e o meu sorvete? E sabe o que ela disse? - Meu filho, você está muito suado e com o corpo quente demais. Sorvete não vai te fazer bem. Apesar de todo trabalho, vovô ficou sem sorvete aquele dia. 19


A TELEVISÃO DE ANTIGAMENTE

Muitos não entendiam como a televisão funcionava e ficavam procurando os atores dentro do aparelho, como se eles fossem miniaturas de gente que morassem dentro da televisão. O fato é que, por causa de toda essa suspresa e da euforia que ela causava nas pessoas, a escola inteira queria ver o tal aparelho funcionando, e minha mãe e seus três irmãos sabiam disso. Um belo dia, quando meus avós chegaram em casa, encontraram uma fila enorme no portão. Sem entender o que estava acontecendo, foram até a porta da casa o mais rápido que puderam e seguiram desviando das pessoas na fila até conseguir chegar à sala onde a televisão estava instalada. Lá encontraram minha mãe e meus irmãos vendendo ingressos improvisados para alunos da escola que tinham ido até lá dispostos a gastar a sua mesada inteira para assistir a um simples programa na TV da família.

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