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3 O plano

roupeiro e seu médico particular, o conselho era o mais importante órgão de assessoria da monarquia, encarregado de propor, em tempos de guerra e de paz, as grandes medidas do governo.10 D. João leu os termos da intimação de Bonaparte: Portugal deveria aderir ao bloqueio continental, declarar guerra à Inglaterra, retirar seu embaixador em Londres (D. Domingos de Sousa Coutinho, irmão de D. Rodrigo), expulsar o embaixador inglês de Lisboa e fechar os portos portugueses aos navios britânicos. Por fim, teria que prender todos os ingleses em Portugal e confiscar suas propriedades. [pág. 49] Amedrontado, o conselho aprovou imediatamente as condições impostas por Napoleão, com duas ressalvas: os ingleses não seriam presos, nem suas propriedades confiscadas. Uma segunda reunião foi realizada, também no Palácio de Mafra, no dia 26 de agosto, na qual os termos da resposta a Napoleão foram aprovados e a correspondência imediatamente despachada para Paris.11 Era tudo um jogo de faz-de-conta, uma partida perigosa, na qual Portugal tentava blefar simultaneamente com Napoleão e com a Inglaterra. Enquanto fingia aceitar o ultimato da França, negociava com a Inglaterra uma solução diferente para o impasse. “Na guerra entre a França e a Inglaterra, Portugal fazia o papel do marisco na luta entre o rochedo e o mar”, assinalou o historiador brasileiro Tobias Monteiro.12 Logo depois de encerrada a reunião, o representante inglês em Lisboa, Percy Clinton Sidney, visconde de Strangford, escreveu ao seu ministro dos Negócios Estrangeiros, George Canning, dando uma versão dos acontecimentos bem diferente do que relatava a carta enviada a Napoleão. Segundo Strangford, Portugal tentava apenas ganhar tempo com “um aparente sistema de hostilidades”. A guerra com a Inglaterra seria oficialmente declarada, mas era apenas uma dissimulação. Enquanto isso, o governo português pedia que os britânicos não invadissem suas colônias nem atacassem os seus navios mercantes.

Espremido entre as duas potências rivais, Portugal tinha a seu favor a precariedade das comunicações e dos transportes. Em 1807, o envio de uma carta de Lisboa para Paris demorava cerca de duas semanas. Os correios viajavam por estradas de terra esburacadas, que ficavam praticamente intransitáveis [pág. 50] em dias de chuva. Para ir e voltar, gastava-se um mês ou até mais. De Lisboa a Londres, por mar, levava-se pelo menos sete dias.13 A lentidão permitia aos portugueses ganhar tempo enquanto tentavam, com a Inglaterra e com a França, uma saída mais honrosa ou aceitável para o seu frágil reino colonial. Ao receber os termos da contraproposta portuguesa, Napoleão reagiu como se previa: mandou avisar que, se D. João não concordasse com suas exigências, Portugal seria invadido e a dinastia de Bragança, sobrenome da família real portuguesa, seria destronada. No dia 30 de setembro, reunido no Palácio da Ajuda, em Lisboa, o Conselho de Estado finalmente recomendou que o príncipe regente preparasse seus navios para partir.14 No começo, pensou-se em enviar para o Brasil somente o príncipe da Beira, como era chamado o filho mais velho de D. João. Aos oito anos, o futuro imperador Pedro I do Brasil era o herdeiro natural do trono português. D. João chegou a assinar, em 2 de outubro de 1807, uma proclamação ao povo brasileiro, pedindo que recebesse e defendesse o príncipe.15 Rapidamente, no entanto, o plano evoluiu para algo mais ambicioso: transferir a corte inteira com o governo, os funcionários e o aparato de Estado. Em resumo, toda a elite portuguesa. Em meados de outubro, a decisão de transferir a corte para o Brasil já estava tomada de forma definitiva. Por intermédio de seu embaixador em Londres, D. João tinha assinado um acordo secreto com a Inglaterra pelo qual, em troca da proteção naval durante a viagem para o Rio de Janeiro, abriria os portos do Brasil ao comércio com as nações estrangeiras. Até então, só navios portugueses tinham

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autorização para comprar ou vender mercadorias na colônia. [pág. 51]

Enquanto fechava acordos secretos com a aliada Inglaterra, D. João persistia naquele seu jogo de faz-de-conta com os franceses. Nas vésperas da partida, chegou a anunciar a proibição da entrada de navios britânicos nos portos portugueses, a prisão e o confisco de todos os bens de cidadãos britânicos residentes em Lisboa. Ao mesmo tempo, enviou um embaixador a Paris, o marquês de Marialva, prometendo total capitulação aos franceses. Para adoçar Napoleão, o diplomata levou de presente uma caixa de diamantes. Também sugeriu que D. Pedro, o filho mais velho de D. João, se casasse com alguma princesa da família de Napoleão. Marialva teve seu passaporte confiscado e ficou preso em Paris, mas, ao agir dessa forma, D. João conseguiu enganar Napoleão, fazendo-o crer, até as vésperas da partida, que Portugal se sujeitaria às suas ordens. No dia 1º de novembro, o correio de Paris chegou a Lisboa com mais um recado assustador de Napoleão: “Se Portugal não fizer o que quero, a Casa de Bragança não reinará mais na Europa dentro de dois meses”. A essa altura, o exército francês já estava cruzando os Pirineus, a cadeia montanhosa na fronteira da França com a Espanha, em direção a Portugal. No dia 5 de novembro, o governo português ordenou finalmente a prisão dos ingleses residentes em Lisboa e o seqüestro de seus bens. Antes, fiel ao seu jogo duplo, preveniu Lord Strangford para se proteger. Como parte da política de fingimento, o próprio conde da Barca, líder do ”partido francês” na corte portuguesa, propunha o seqüestro dos bens ingleses em Portugal, mas às escondidas negociava com os britânicos a indenização das eventuais vítimas da medida.1 16 6 [pág. 52] No dia 6 de novembro, a esquadra inglesa apareceu na foz do Rio Tejo, em território português, com uma força de 7000 homens. Seu comandante, o almirante Sir Sidney Smith (o mesmo oficial que havia bombardeado Copenhague dois meses antes), tinha duas

ordens, aparentemente contraditórias. A primeira, e prioritária, era proteger o embarque da família real portuguesa e escoltá-la até o Brasil. A segunda, caso a primeira não acontecesse, era bombardear Lisboa. Obviamente, era um jogo de cartas marcadas, em que nenhum dos lados tinha qualquer ilusão a respeito do desfecho. Convencidos de que Portugal se alinharia à Inglaterra, os governos da França e da Espanha já haviam dividido entre si o território português. Pelo tratado de Fontainebleau, assinado pelos dois aliados em 27 de outubro de 1807, Portugal seria retalhado em três partes: a região norte, composta pelas províncias de Entre-Douro e Minho e batizada, pelo tratado, de Lusitânia Setentrional, caberia à rainha regente da Etrúria, Maria Luiza de Bourbon, da dinastia espanhola; Alentejo e Algarve, na região sul, passariam para D. Manoel de Godoy, o mais poderoso ministro espanhol, também chamado de príncipe da Paz; à França caberia a parte central e mais rica do país, composta por Beira, Trás os Montes e Estremadura.17 Para grande humilhação dos portugueses, esse pedaço de Portugal foi oferecido ao irmão mais novo de Napoleão, Luciano, que o recusou. “Naquele tempo em que os reinos mais apetecidos andavam quase sem donos, [...] ninguém queria o pequeno Portugal”, registrou Oliveira Lima. “Sobretudo sem aquilo que constituía a sua importância, [...] o império colonial.”18 Portugal foi invadido por 50000 soldados franceses e espanhóis.19 Se quisesse, D. João poderia ter resistido, com [pág. 53] boas chances de vencer. Os soldados enviados por Napoleão eram, em sua maioria, novatos ou pertencentes a legiões estrangeiras que não tinham nenhum interesse em defender as ambições do imperador francês.20 Seu comandante, o general Jean Andoche Junot, era um oficial de segunda linha — bravo combatente, mas péssimo estrategista. Devido à falta de planejamento e à pressa com que a invasão foi decidida, ao chegar à fronteira de Portugal as suas tropas eram uma legião maltrapilha e faminta. Metade dos seus

cavalos tinha perecido no caminho. Restavam apenas seis canhões. Dos 25000 soldados que deixaram a França, setecentos já tinham morrido sem entrar em combate.21 Um quarto da infantaria tinha desaparecido porque, no desespero para encontrar comida, os soldados haviam se afastado da coluna principal e se perdido.22 Nas suas memórias, a duquesa de Abrantes, mulher do general Junot, diz que o marido entrou em Portugal “mais como fugitivo do que como enviado para anunciar ao povo a missão de tomar-lhe o país”.23 Ao chegar às portas de Lisboa, os soldados franceses estavam tão fracos que não conseguiam se manter de pé. Muitos obrigavam os portugueses a carregar suas armas. “Estávamos numa situação difícil de acreditar”, escreveu o barão Paul Thiébault, que participou da invasão como general-de-divisão de Junot. “Nossas roupas tinham perdido a cor e o formato. Meus dedos saíam das botas.”24 “Sem cavalaria, artilharia, cartuchos, sapatos ou comida, cambaleando de fadiga, a tropa parecia mais a evacuação de um hospital do que um exército marchando triunfalmente para a conquista de um reino”, anotou o historiador inglês Alan K. Manchester, ao descrever a invasão de Portugal.25 “Não há exemplo na história de um reino conquistado em tão [pág. 54] poucos dias e sem grande resistência como Portugal em 1807”, escreveu Sir Charles Oman, professor da Universidade de Oxford e autor do livro A history of the Peninsular War, a mais importante obra sobre a campanha de Napoleão na Península Ibérica. “É surpreendente que uma nação, habituada desde os tempos mais remotos a se defender repetidas vezes com sucesso de inimigos muito mais fortes, desta vez tivesse se rendido sem disparar um único tiro. Era um testemunho não apenas da fraqueza do governo português, mas também do poder que o nome de Napoleão inspirava nessa época.”26 [pág. 55]

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O IMPÉRIO DECADENTE

Em 1807 parecia não haver limites para a imaginação humana. Na Inglaterra, um império era movido a vapor. A nova tecnologia, inventada por James Watt em 1769, dera origem ao tear mecânico, máquina propulsora da Revolução Industrial, à locomotiva, ao navio e à impressora a vapor, entre outras novidades. Por toda a Europa, os salões, cafés, teatros, museus e galerias fermentavam idéias e criações inovadoras, que haveriam de marcar definitivamente a história da cultura e das artes. Na Alemanha, o escritor e poeta Johann Wolfgang von Goethe terminava a primeira parte de Fausto, sua obra-prima. Em Viena, Ludwig von Beethoven compunha sua Quinta sinfonia. Os ecos da Independência americana, de 1776, se faziam sentir por todo o planeta. A Revolução Francesa, de 1789, tinha redesenhado o mapa da Europa. [pág. 56] Poucos períodos na História foram tão repletos de aventuras, invenções e conquistas e também de rupturas e convulsões políticas, mas nada disso parecia afetar os portugueses. Três séculos depois de ter inaugurado a era das grandes navegações e descobertas, Portugal nem de longe lembrava a metrópole vibrante dos tempos de Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral. Os sinais de decadência estavam por todo lado. Lisboa, a capital do império, havia muito tinha sido ultrapassada por suas vizinhas européias como centro irradiador de idéias e inovações. A chama do empreendimento, da curiosidade e da

busca pelo desconhecido havia se apagado no espírito português. Os tempos de glória pareciam ter ficado para trás. O que tinha acontecido com Portugal? Havia duas explicações. A primeira era demográfica e econômica. Com uma população relativamente pequena, de três milhões de habitantes, Portugal não tinha gente nem recursos para proteger, manter e desenvolver seu imenso império colonial. Dependia de escravos em quantidades cada vez maiores para as explorações de suas minas de ouro e diamante e suas lavouras de cana-de-açúcar, algodão, café e tabaco.1 Com uma economia basicamente extrativista e mercantil, enfrentava escassez de capital. Embora os navios continuassem a chegar de todas as partes do mundo, a metrópole portuguesa era uma terra relativamente pobre porque a riqueza não parava ali. Lisboa funcionava apenas como um entreposto comercial. De lá, o ouro, a madeira e os produtos agrícolas do Brasil seguiam direto para a Inglaterra, principal parceira comercial de Portugal. Os diamantes tinham como destino Amsterdã e Antuérpia, nos Países Baixos. [pág. 57]

Soberano dos mares dois séculos antes, Portugal já não tinha condições de se defender sozinho. Sua outrora poderosa Marinha de guerra estava reduzida a trinta navios, dos quais seis ou sete eram imprestáveis — uma frota insignificante, comparada com a da Marinha britânica que, nessa época, dominava os oceanos com 880 navios de combate.2 Como resultado dessa fraqueza, entre 1793 e 1796 mais de 200 navios mercantes portugueses haviam sido capturados pelos franceses.3 Também devido ao ataque de corsários franceses, de 1794 a 1801 o comércio do reino sofreu prejuízos avaliados em mais de 200 milhões de francos, quase tudo em cargas embarcadas do Brasil.4 Em valores de 2007, seria o equivalente a 414 milhões de euros ou 1,2 bilhão de reais.5 A segunda explicação para a decadência era política e religiosa. De todas as nações da Europa, Portugal continuaria sendo, no

começo do século XIX, a mais católica, a mais conservadora e a mais avessa às idéias libertárias que produziam revoluções e transformações em outros países. A força da Igreja era enorme. Cerca de 300000 portugueses — ou 10% da população total do país — pertenciam a ordens religiosas ou permaneciam de alguma forma dependentes das instituições monásticas. Só em Lisboa, uma cidade relativamente pequena, com 200000 habitantes, havia 180 monastérios. Praticamente todos os edifícios mais vistosos do país eram igrejas ou conventos.6 Por três séculos, a Igreja havia mantido submissos o povo, seus nobres e reis. Por escrúpulos religiosos, a Ciência e a Medicina eram atrasadas ou praticamente desconhecidas. D. José, herdeiro do trono e irmão mais velho do príncipe regente, D. João, havia morrido de varíola porque sua mãe, D. Maria I, tinha proibido [pág. 58] os médicos de lhe aplicar vacina. O motivo? Religioso. A rainha achava que a decisão entre a vida e a morte estava nas mãos de Deus e que não cabia à Ciência interferir nesse processo.7 A vida social pautava-se pelas missas, procissões e outras cerimônias religiosas. O comportamento individual coletivo era determinado e vigiado pela Igreja Católica. Para impedir o contato entre homens e mulheres durante os serviços litúrgicos, em meados do século XVIII foram erguidas grades de madeira que dividiam o interior de todas as igrejas de Lisboa.8 Portugal foi o último país europeu a abolir os autos da Inquisição, nos quais pessoas que ousassem criticar ou se opor à doutrina da Igreja, incluindo infiéis, hereges, judeus, mouros, protestantes e mulheres suspeitas de feitiçaria, eram julgadas e condenadas à morte na fogueira. Até 1761, menos de meio século antes da transferência da corte para o Brasil, ainda havia execuções públicas desse tipo em Lisboa, que atraíam milhares de devotos e curiosos. “Saímos de uma sociedade de homens vivos, movendo-se ao ar livre, e entramos num recinto acanhado e quase sepulcral, com uma

atmosfera turva pelo pó dos livros velhos, e habitado por espectros de doutores”, lamentou Antero de Quental, poeta e escritor português, ao analisar o quadro desolador da metrópole e de sua vizinha, a Espanha, no século XVIII. “Nos últimos dois séculos não produziu a Península um único homem superior, que se possa colocar ao lado dos grandes criadores da ciência moderna. Não saiu da Península uma só das grandes descobertas intelectuais, que são a maior obra e a maior honra do espírito moderno.”9 Embora Quental tenha incluído a Espanha no rol do atraso, Portugal era, dos [pág. 59] dois países, de longe o mais decadente e o mais avesso à modernização dos costumes e das idéias. Os dois fatores combinados — a escassez de recursos demográficos e financeiros e o atraso nas idéias políticas e nos costumes — haviam transformado Portugal numa terra nostálgica, refém do passado e incapaz de enfrentar os desafios do futuro. Com uma população pequena e desproporcional à vastidão de seu império, não tinha meios de se defender ou movimentar sua economia colonial. Era como um animal sedentário e obeso, com um coração enfraquecido, sem forças para irrigar todas as partes do corpo monumental, cujos membros se espichavam da América aos confins da Ásia, passando pela África. “O imenso império colonial, tão vasto quanto vulnerável, estava no mais completo desacordo com os meios de ação de que a metrópole dispunha para o defender e o manter”, observou o historiador Oliveira Lima.10 A riqueza de Portugal era resultado do dinheiro fácil, como os ganhos de herança, cassinos e loterias, que não exigem sacrifício, esforço de criatividade e inovação, nem investimento de longo prazo em educação e criação de leis e instituições duradouras. Numa época em que a Revolução Industrial britânica começava a redefinir as relações econômicas e o futuro das nações, os portugueses ainda estavam presos ao sistema extrativista e mercantilista, sobre o qual tinham construído sua efêmera prosperidade três séculos antes.

Baseava-se na exploração pura e simples das colônias, sem que nelas fosse necessário investir em infra-estrutura, educação ou melhoria de qualquer espécie. “Era uma riqueza que não gerava riqueza”, escreveu a historiadora Lilia Schwarcz. “Portugal se contentava em sugar suas colônias de maneira bastante parasitária.”11 [pág. 60] Sérgio Buarque de Holanda, autor do clássico Raízes do Brasil, mostrou que no Brasil colônia se tinha aversão ao trabalho. Segundo ele, o objetivo da aventura extrativista era explorar rapidamente toda a riqueza disponível com o menor esforço e sem nenhum compromisso com o futuro: “O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho”.12 A dependência da economia extrativista fez com que a manufatura nunca se desenvolvesse em Portugal. Tudo era comprado de fora. “A tendência de a abundância de riquezas naturais enfraquecer as instituições e solapar o desenvolvimento sustentado das nações é quase uma maldição”, apontou a economista Eliana Cardoso, Ph.D. pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) e professora visitante da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo. “Os países cuja economia se assenta principalmente sobre o comércio de produtos naturais são levados [...] a cometer uma série de erros e desmazelos que impedem a modernização da sociedade.”13 Os cinco principais produtos das colônias portuguesas — ouro, diamante, tabaco, açúcar e tráfico de escravos — compunham o eixo comercial do Atlântico Sul. Eram, ao mesmo tempo, a salvação e a condenação de Portugal. “Faltavam manufaturas, não se produziam alimentos ou roupas em quantidade suficiente para atender às necessidades mínimas da população, mas, mesmo assim, vivia-se de maneira ostentatória, por conta do ouro que não parava de afluir da América”, descreve Lilia Schwarcz. “Era assim, toda cheia de contrastes, a capital do império português, onde conviviam o luxo da

corte, que se fartava de metais preciosos dos trópicos, com a falta de víveres e a dependência financeira.”14 [pág. 61] O primeiro carregamento de ouro do Brasil chegou a Lisboa em 1699. Levava meia tonelada de minérios. A quantidade foi aumentando até chegar a 25 toneladas em 1720. No total, estima-se que entre 1000 e 3000 toneladas de ouro foram transportadas do Brasil para a capital do império.15 O historiador mineiro Pandiá Calógeras calculou em 135 milhões de libras esterlinas o valor desse metal enviado para Portugal entre 1700 e 1801. Em moeda atual, seria o equivalente a 7,5 bilhões de libras esterlinas ou 30 bilhões de reais. Um quinto desse total, ou seja, 6 bilhões de reais em moeda de 2007, foi para os bolsos do rei na forma de impostos.16 Outro historiador, Tobias Monteiro, estimou que só de Minas Gerais foram despachadas para Portugal cerca de 535 toneladas de ouro entre 1695 e 1817, no valor de 54 milhões de libras esterlinas da época, ou 12 bilhões de reais corrigidos. Outros 150000 quilos de ouro teriam sido contrabandeados no mesmo período, no cálculo de Monteiro.17 Em 1729, o fluxo de riquezas para a metrópole aumentou ainda mais com a descoberta das jazidas de diamante na colônia. Pandiá Calógeras avaliou em cerca de 3 milhões de quilates, aproximadamente 615 quilos, o total de diamantes extraído no Brasil entre meados do século XVIII e começo do século XIX — incluindo pedras comercializadas legalmente e contrabandeadas.18 A prosperidade e o fausto aparentes gerados por esse comércio não resultavam em cultura ou sofisticação na metrópole. Além de ter sido o último país europeu a acabar com a Inquisição, como já se disse, Portugal foi também o derradeiro a abolir o tráfico de escravos e a assegurar a liberdade de expressão e os direitos individuais. “Em Portugal não há ciência, nem há política, nem há economia, nem há educação, nem [pág. 62] há nobreza e não há corte”, escreveu o diplomata português José da Cunha Brochado, inconformado com a comparação que ele próprio fazia entre os

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