25 minute read
9 A colônia
from 1808
profundo respeito, nunca questionando sua beneficência”, registrou Barman. O Correio Braziliense, que não apoiou a Independência brasileira, deixou de circular em dezembro de 1822. Hipólito foi nomeado pelo imperador Pedro I agente diplomático do Brasil em Londres, cargo que envolvia o pagamento de uma nova pensão pelos cofres públicos.47 Na América portuguesa de 1808 as tensões políticas eram agravadas por um fator adicional: a escravidão. Fazia mais de duzentos anos que o tráfico incessante de negros africanos sustentava a prosperidade da economia colonial. Os escravos eram o motor das lavouras de algodão, fumo e cana-de-açúcar, e também das minas de ouro e prata que drenavam a riqueza para a metrópole. Os cativos somados aos negros libertos, mulatos e mestiços — seus naturais aliados entre os pobres que viviam à margem da sociedade colonial — formavam mais de dois terços da população, o que deixava os brancos em minoria.48 Tratava-se de uma situação insustentável e potencialmente explosiva. O pavor das rebeliões de escravos tirava o [pág. 136] sono das famílias brancas, abastadas e bem-educadas. Em carta de 13 de fevereiro de 1799, D. Fernando José de Portugal ministro de D. João, afirmou:
O que sempre se receou nas colônias é a escravatura, en razão de sua condição, e porque é o maior número de habitantes delas, não sendo tão natural que os homens empregados e estabelecidos, que têm bens e propriedades queiram concorrer para uma conspiração ou atentado de que lhes resultariam péssimas conseqüências, vendo-se até expostos a serem assassinados pelos seus próprios escravos.49
Advertisement
Em 1794, uma rebelião de negros havia resultado num banho de sangue nas Antilhas Francesas, onde hoje é o Haiti. Poderia isso se repetir no Brasil? Certamente. Na chamada Revolta dos Alfaiates,
ocorrida em Salvador em meados de 1798, os revoltosos afixaram manifestos manuscritos nos lugares públicos da cidade exigindo “o fim do detestável jugo metropolitano de Portugal”, a abolição da escravatura e a igualdade para todos os cidadãos, “especialmente mulatos negros”.50 Os mais radicais pregavam o enforcamento de parte da elite branca de Salvador. A repressão do governo português foi imediata e duríssima. Quarenta e sete suspeitos foram presos, dos quais nove eram escravos. Três deles — todos mulatos livres — acabaram sendo decapitados e esquartejados. Pedaços de seus corpos foram espetados em estacas pelas ruas da capital, onde ficaram até se decompor totalmente. Dezesseis prisioneiros ganharam a liberdade. Os demais seriam banidos para a África.51 [pág. 137] O suplício judiciário, como era conhecido esse tipo de punição, tinha o objetivo de servir de exemplo e de reafirmação do poder do rei sobre seus vassalos. Essa forma radical de expiação de crimes ou faltas graves mediante a mutilação do corpo, ou mesmo queima dos culpados, era usada em Portugal desde a Idade Média e se tornou popular nos autos-de-fé da Inquisição. Um caso exemplar foi o “Processo dos Távora”, no qual um grupo da nobreza, acusado de tramar um atentado contra o rei D. José I, em 1758, foi executado e teve seus cadáveres mutilados e queimados em praça pública em Lisboa. As cinzas foram jogadas ao mar.52 Transplantado para a colônia brasileira, o suplício judiciário incluía mutilação física, marcação com ferro em brasa, açoite e esquartejamento.53 Foi aplicado sem dó nem piedade sempre que houve um bom motivo (do ponto de vista da Coroa portuguesa). Seria usado contra Tiradentes, na Conjuração Mineira, contra os líderes da Revolta dos Alfaiates da Bahia e em inúmeras outras pequenas rebeliões regionais. Em lugar da ameaça e da coerção, no entanto, o D. João que chegou ao Brasil em 1808 usaria para governar um outro atributo
fortíssimo da monarquia: o da imagem do rei benigno, que tudo provê e de todos cuida e protege. D. João passaria à história como um monarca bonachão, sossegado e paternal, que todas as noites recebia pacientemente seus súditos no Palácio de São Cristóvão para o ritual do beija-mão, em que mesmo as pessoas mais humildes — incluindo índios e escravos — tinham direito de lhe fazer súplicas e prestar homenagem. “A corte e o poder real fascinavam-nos como uma verdadeira atração messiânica: era a esperança de socorro de um pai que vem curar as feridas dos filhos”, notou a historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias.54 [pág. 138]
10
O REPÓRTER PERERECA
A esquadra de D. João e da família real portuguesa entrou na Baía da Guanabara no começo da tarde de 7 de março de 1808. Havia sol e o céu estava azul, sem uma única nuvem. Um vento forte soprava do oceano para aliviar o calor ainda sufocante do final do verão carioca. Depois de três meses e uma semana de viagem, contando a escala em Salvador, centenas de nobres e ilustres passageiros se comprimiam na amurada dos navios para contemplar o soberbo espetáculo que se descortinam diante dos seus olhos: uma cidadezinha de casas brancas, apinhadas rente à praia, debruçavase às margens de uma baía de águas calmas emoldurada por altíssimas montanhas de granito cobertas pela floresta luxuriante, de tonalidade verde escura, como nunca se tinha visto em Portugal. Para os que estavam em terra, o momento era de festa e regozijo. Postado entre as milhares de pessoas ansiosas que se [pág. 139] comprimiam ao longo do cais para ver a chegada das naus portuguesas, um repórter registrou a cena da seguinte forma:
Eram duas para as três horas da tarde, a qual estava muito fresca, bela e aprazível. [...] Desde a aurora o sol nos havia anunciado como o mais ditoso [dia] para o Brasil: uma só nuvem não ofuscava os seus resplendores, e cujos ardores eram mitigados pela frescura de uma forte e constante viração.
Parecia que este astro brilhante, apartando a si todo obstáculo, como se regozijava de presenciar a triunfante entrada do primeiro soberano da Europa na mais afortunada cidade do novo mundo, e queria ser participante do júbilo, e aplausos de um povo embriagado no mais veemente prazer.1
Luis Gonçalves dos Santos não era um jornalista de profissão, mas um cronista por vocação. Aos quarenta anos, versado em latim, grego e Filosofia, exercia a função de cônego da Igreja Católica.2 Embora ocupasse um cargo importante da hierarquia católica, tinha um apelido engraçado, Padre Perereca, devido à estatura baixa e franzina e os olhos esbugalhados.3 É uma indicação de que, já naquela época, a irreverência e o humor faziam parte da personalidade carioca e não poupavam ninguém. Padre Perereca registrava tudo que via e defendia suas idéias de forma apaixonada. Por isso, tornou-se o melhor e mais detalhado repórter dos acontecimentos de 1808 até 1821, quando a corte retornou a Portugal. Em 1825, publicou os dois volumes do seu livro Memórias para servir à história do reino do Brasil, divididas em três épocas da felicidade, honra, e glória; escritas na [pág. 140] corte do Rio de Janeiro no ano de 1821, e oferecidas à Sua Majestade El-rei nosso senhor D. João VI. O tom é laudatório de bajulação e deslumbramento, mas os detalhes são de um observador atento e curioso. Os textos de Perereca flagram o encontro de dois mundos, até então estranhos e distantes. De um lado, uma monarquia européia, envergando casacas de veludo, sapatos afivelados, meias de seda, perucas e galardões, roupas pesadas e escuras demais sob o sol escaldante dos trópicos. De outro, uma cidade colonial e quase africana, com dois terços da população formada por negros, mestiços e mulatos, repleta de homens de grossa aventura:4 traficantes de
escravos, tropeiros, negociantes de ouro e diamantes, marinheiros e mercadores das Índias. No dia 14 de janeiro, ao saber que o brigue Voador chegara ao Rio de Janeiro com a notícia de que as tropas de Napoleão tinham invadido Portugal e que a família real estava a caminho do Brasil, Padre Perereca anotou:
Nunca correio algum trouxe notícias mais tristes e, ao mesmo tempo, mais lisonjeiras. Eu não sei explicar o assombro, a consternação, e o sentimento de todos por causa das desgraças da mãe pátria. As lágrimas corriam dos olhos de todos, e muitos ficaram sem articular uma só palavra ao ouvir tão infausta novidade. Se tão grande eram os motivos de mágoa e aflição, não menores eram as causas de consolo e de prazer: uma nova ordem de coisa ia a principiar nesta parte do hemisfério austral. O império do Brasil já se considerava projetado, e ansiosamente suspirávamos pela poderosa mão do príncipe regente nosso [pág. 141] senhor para lançar a primeira pedra da futura grandeza, prosperidade e poder do novo império.5
As notícias trazidas pelo Voador provocaram frenesi no Rio de Janeiro. Sem ainda saber da decisão do príncipe regente de fazer uma escala na Bahia, a cidade tinha poucas semanas para se preparar. Encarregado de organizar a recepção, o vice-rei, conde dos Arcos, deixou sua moradia, um prédio acanhado, de dois pavimentos, situado bem em frente ao cais do porto, onde hoje é a Praça 15 de Novembro. Nesse prédio, conhecido como Paço dos ViceReis, funcionava também o Tribunal da Relação do Brasil colônia. Ali deveriam ser hospedados o príncipe regente e sua família. Como não havia tempo para fazer uma reforma completa, o local foi caiado por fora. Seu interior recebeu uma nova pintura e forração de seda com várias cores. Era tudo que a urgência do momento permitia. O conde também determinou aos governadores das províncias vizinhas,
São Paulo e Minas Gerais, que enviassem carne de vaca, porco, carneiro e aves, mais uva, pêssego, goiaba, banana, cará, batata, batata-doce, milho, mandioca e feijão — alimentos e provisões para matar a fome de uma corte que chegava necessitada de tudo e maltratada pela longa travessia do Atlântico.6 Dois dias depois, em 16 de janeiro, o Senado da Câmara — espécie de Câmara de Vereadores da época do Brasil colonial, composta por representantes destacados da sociedade — reuniu-se para organizar a recepção da família real. Os festejos incluiriam cerimônias civis e religiosas e danças e diversões populares. As casas deveriam ser iluminadas e ter suas janelas enfeitadas em todo o percurso. Haveria músicas em [pág. 142] coretos espalhados pelas ruas. O badalar dos sinos de todas as igrejas e o troar dos canhões situados na barra da Baía da Guanabara completariam o tom grandioso do evento. Apesar da correria, tudo funcionou como combinado, segundo atestam os relatos do Padre Perereca. Mal os planos estavam traçados quando, no final da tarde de 17 de janeiro, sete embarcações portuguesas e três inglesas entraram na Baía da Guanabara. Era a parte do comboio que se havia perdido da comitiva real na altura do arquipélago da Madeira e chegava ao Rio de Janeiro depois de fazer uma escala em Cabo Verde. Traziam as duas irmãs da rainha Maria I, D. Maria Benedita e D. Maria Ana, e as princesas Maria Francisca e Isabel Maria, filhas de D. João e Carlota Joaquina. Convidadas a desembarcar pelo conde dos Arcos, as princesas preferiram ficar a bordo até receber a confirmação de que o restante da família tinha chegado a salvo à Bahia. Isso só aconteceu um mês depois, no dia 22 de fevereiro. Só então elas concordaram em descer dos navios.7 Duas semanas mais tarde, em 7 de março, o restante da esquadra fundeou em frente à Praça do Paço. Como determinado pelo vice-rei, foi saudada pelos disparos de canhões das fortalezas e navios de guerra estacionados na baía e pelo repicar dos sinos das igrejas e mosteiros.
Padre Perereca reportou:
Rio de Janeiro, cidade a mais ditosa do Novo Mundo! Rio de Janeiro, aí tens a tua augusta rainha e o teu excelso príncipe com sua real família, as primeiras majestades que o hemisfério austral viu e conheceu. Estes são os teus soberanos e senhores, descendentes e herdeiros daqueles grandes [pág. 143] reis que te descobriram, te povoaram e te engrandeceram, ao ponto de seres de hoje em diante princesa de toda a América e corte dos senhores reis de Portugal. Enche-te de júbilo, salta de prazer, orna-te dos teus mais ricos vestidos, sai ao encontro dos teus soberanos, e recolhe com todo o respeito, veneração e amor o príncipe ditoso, que vem em nome do senhor visitar o seu povo.8
A família real permaneceu a bordo nesse primeiro dia, recebendo inúmeros cortejos que lhe foram dar as boasvindas: uma comissão do Senado da Câmara, magistrados, padres e bispos, oficiais do Exército, acompanhados do vice-rei. Primeiro iam cumprimentar D. João, na nau Príncipe Real. Depois, a princesa Carlota Joaquina, na Alfonso de Albuquerque. 9 Padre Perereca relatou o entardecer de 7 de março da seguinte forma: “Apenas começou a escurecer, toda a cidade se iluminou de tal sorte que não se fazia sensível a retirada do sol, pois não houve casa, ainda do mais pobre, que por meio de luzes não manifestasse exteriormente a alegria interior de seus moradores”. 10 O desembarque aconteceu só no dia seguinte, 8 de março, por volta das quatro da tarde. Da nau Príncipe Real, D. João foi transportado para a terra por um bergantim escarlate e dourado, coberto com um dossel púrpura. Esse pequeno barco é hoje uma das atrações do Centro Cultural da Marinha, no Rio de Janeiro. Desceram todos, menos a rainha D. Maria I, que ficou a bordo mais dois dias.
Para os brasileiros coloniais, que aguardavam em terra, foi inevitável um certo ar de decepção ao ver aquela corte foragida e castigada pela precariedade da longa travessia. Como já se viu, nunca antes um rei europeu tinha pisado o solo americano. Até então, a imagem que se tinha do príncipe regente era [pág. 144] a que aparecia nas moedas e nas gravuras que chegavam da metrópole: um soberano com o olhar decidido e a pose altiva envergando manto púrpura e o cetro. No desembarque, o que se viu era bem diferente do belo príncipe retratado nos quadros oficiais. Era “um homem muito gordo, muito fatigado muito simples, de suíças castanhas escorridas ao longo da face vermelha, de passo moroso em virtude da erisipela hereditária e uma velha casaca condecorada de nódoas”, segundo o relato do historiador Pedro Calmon.11 Na descrição de outro historiador, Tobias Monteiro, “D. João trajava casaca comprida de gola alta, colete branco bordado, calções de cetim, botas curtas, dragonas, um enorme chapéu armado, com enfeites de arminho, e trazia na cintura um espadagão, pendente de cordões de fios de ouro com as respectivas borlas”. Ao lado do príncipe, que “marchava dificilmente”, estava sua mulher, Carlota Joaquina. “Magra, ossuda, os olhos inquietos, a boca cerrada, os lábios finos, o queixo comprido, voluntarioso e duro, não ocultava a contrariedade de ver-se em terra de gentes que haveria de sempre detestar”, segundo Tobias Monteiro.12 Carlota, as filhas princesas e outras damas da corte tinham desembarcado com as cabeças raspadas ou cabelos curtos, protegidas por turbantes, devido à infestação de piolhos que havia assolado os navios durante a viagem. Tobias Monteiro conta que, ao ver as princesas assim cobertas, as mulheres do Rio de Janeiro tiveram uma reação surpreendente. Acharam que aquela seria a última moda na Europa. Dentro de pouco tempo, quase todas elas passaram a cortar os cabelos e a usar turbantes para imitar as nobres portuguesas.13
Apesar da decepção à primeira vista com a aparência da corte, o povo do Rio de Janeiro lhe prestou todas as homenagens [pág. 145] que estavam ao seu alcance. A multidão que aguardava na rampa do cais, em frente à atual Praça 15 de Novembro, incluía vereadores, padres, cônegos, fidalgos, magistrados e a tropa com os estandartes portugueses. Ali, a família real foi aspergida com água benta, em meio à queima de incensos e rezas. D. João beijou a cruz e recebeu as benções do bispo. Depois, colocou-se debaixo do pálio de seda vermelha e frisos dourados, que o protegia do sol. Em seguida, formou-se um imenso cortejo composto pelos que recebiam e pelos que chegavam, todos caminhando lentamente em direção à Igreja do Rosário, então catedral da cidade. Arcos triunfais erguidos às pressas marcavam o percurso. As ruas foram cobertas “de fina e branca areia, folhas, ervas odoríficas e flores”, segundo a descrição do padre repórter Perereca. Da fachada das casas pendiam “cortinados de damasco carmesim; e das janelas, ricas e vistosas tapeçarias de lindas e variadas cores; umas de damasco, outras de cetim e outras de sedas ainda mais preciosas”.14 A música jorrava dos coretos nas ruas vizinhas. À frente do cortejo iam as autoridades do Rio de Janeiro, os oficiais militares, os juizes e os padres, monges e seminaristas dos numerosos conventos. Logo atrás, segundo Perereca, “seguia-se o estandarte da Câmara, trazido por um cidadão, o qual trajava vestido de seda preta, capa da mesma cor, colete e meias de seda branca, chapéu meio abado de plumas brancas e presilhas de pedras preciosas, cuja capa era ornada com bandas de seda ricamente bordada”.15 Era ladeado por duas compridas fileiras de homens trajados da mesma maneira, que formavam a “guarda do estandarte”.16 Por fim, fechando o cortejo, vinha o pálio sob o qual caminhava a família real. As [pág. 146] varas desse pálio eram sustentadas por oito pessoas, entre as quais se destacava Amaro
Velho da Silva, um dos maiores traficantes de escravos do Brasil na época.17 Na catedral foi celebrado o Te Deum, uma cerimônia de ação de graças pelo sucesso da viagem. Em seguida, houve o beija-mão, no qual os participantes do cortejo se prostravam diante de D. João para beijar-lhe a mão num gesto que significava, ao mesmo tempo, obediência e submissão dos súditos da colônia ao príncipe. Esse curioso ritual da monarquia portuguesa, que já era praticado pelos vice-reis da colônia, marcaria todo o período em que a corte esteve no Brasil. Já estava escuro quando a família real seguiu de carruagem até o palácio do vice-rei, convertido em Paço Real. Exaustos foram todos dormir. Nas ruas em volta, porém, a festa continuou noite adentro, com fogos, músicas e declamações de poesias em homenagem aos recém-chegados. D. Maria I, a rainha louca, só desembarcou no dia 10. Aos 74 anos, demente e alquebrada pela viagem, foi conduzida até o Palácio numa cadeirinha de braços sustentada pelos criados reais. “Até ao seu quarto seguiu a pobre rainha na cadeira de braços, com um olhar incerto de idiotia e senilidade rodeada por D. Carlota Joaquina, pela infanta D. Mariana e todas as suas netas e criadas, que a vieram receber com lágrimas de ternura e amor”, descreve o cronista Luiz Norton, com base nos relatos do Padre Perereca. 18 Os festejos prosseguiram até o dia 15 de março e foram encerrados oficialmente com mais uma cerimônia de ação de graças na Igreja do Rosário e um beija-mão no Paço Real. Nesses primeiros dias, D. João, Carlota Joaquina e os filhos ficaram hospedados no Paço Real, a residência reformada [pág. 147] pelo vice-rei conde dos Arcos. Foi um arranjo temporário. Dentro de pouco tempo, o príncipe regente iria morar num palácio muito mais amplo e agradável, situado no atual bairro de São Cristóvão, perto de onde se situam hoje o Morro da Mangueira e o Estádio do Maracanã. Sua mulher, a princesa Carlota Joaquina, de quem vivia separado,
instalou-se numa chácara na praia de Botafogo. A rainha Maria I ficou no convento dos carmelitas, ligado ao Paço Real por um passadiço improvisado sobre a Rua Direita, atual Primeiro de Março. Os religiosos que até então ocupavam esse convento foram transferidos às pressas para o seminário da Lapa. Também no convento foram colocadas a cozinha, as oficinas e a Real Ucharia, como era chamada a despensa que guardava os mantimentos da corte. Situada ao lado do convento, a Igreja do Carmo foi transformada em Capela Real. As vizinhas Casa da Câmara e a cadeia pública também foram anexadas ao Paço por um passadiço para servir de alojamento para as criadas reais.19 Mais complicado foi encontrar habitação para os milhares de acompanhantes da corte, recém-chegados à cidade que ainda era relativamente pequena, com apenas 60000 habitantes. Por ordem do conde dos Arcos, criou-se o famigerado sistema de “aposentadorias”, pelo qual as casas eram requisitadas para uso da nobreza. Os endereços escolhidos eram marcados na porta com as letras PR, iniciais de Príncipe Regente, que imediatamente a população começou a interpretar como “Ponha-se na Rua”. Hipólito da Costa, editor do Correio Braziliense, dizia que o sistema de aposentadorias era um regulamento “medieval”, um “ataque direto ao sagrado direito de propriedade”, que “poderia tornar o novo governo no Brasil [pág. 148] odioso para seu povo”.20 Os novos moradores, porém, não só reclamavam do preço dos aluguéis como achavam as moradias mal construídas e desconfortáveis. A arrogância e a prepotência dos que chegavam de além-mar resultaram em vários casos de abuso no sistema de aposentadorias. O conde de Belmonte apoderou-se de uma casa recém-construída pelo patrão-mor do porto, e jamais habitada. Ali permaneceu por dez anos, sem pagar aluguel, enquanto o proprietário se alojava com toda a numerosa família numa pequena moradia erguida ao lado da mansão ocupada pelo conde, que assumiu até seus escravos sem lhe
dar satisfação alguma. A duquesa de Cadaval, cujo marido havia morrido na escala em Salvador, alojou-se numa chácara do coronel de milícias Manoel Alves da Costa e lá ficou também sem pagar um tostão de aluguel. Quando o proprietário decidiu reclamar a casa, a nobre inquilina respondeu que não tinha outro lugar para morar e se ofereceu para pagar um aluguel anual de 600000 réis (equivalente hoje a 34000 reais). O dono achou pouco e recusou. A duquesa se fez de surda e permaneceu na chácara até 1821, quando voltou para Portugal em companhia de D. João VI e mandou depositar no banco a importância correspondente a 600000 réis por ano, sem agradecer ou dar explicações ao coronel.21 Esses não foram os únicos transtornos que a cidade sofreu com a chegada da corte. Os aluguéis dobraram, segundo um abaixoassinado dos moradores guardado no Arquivo Nacional. Por uma casa térrea fora da cidade, o diplomata Maler, encarregado de negócios da França, pagava 800000 réis por ano, o equivalente hoje a cerca de 45000 reais. Uma excursão numa carroça puxada por mulas até a fazenda de Santa [pág. 149] Cruz, situada a menos de cem quilômetros da capital, saía por quase 400 francos, cerca de 4000 reais em valores atuais. Era nessa fazenda que D. João costumava passar os meses de verão. Numa certa ocasião, como ainda não tinha recebido o salário, o cônsul francês teve de recusar um convite do príncipe para acompanhá-lo até lá porque não tinha dinheiro para pagar o aluguel da carroça. “Não há cantinho do universo onde se seja pior alimentado e pior alojado e por preços tão excessivos”, escreveu Maler.22 Tudo isso contribuiu para que o entusiasmo dos primeiros dias da chegada logo se dissipasse. A colônia brasileira ganharia muito com a vinda de D. João, a começar pela sua independência, mas os problemas e o custo dos primeiros anos da família real no Rio de Janeiro foram enormes. Era preciso alimentar e pagar as despesas de uma corte ociosa, corrupta e perdulária. Isso aconteceu de duas
formas. A primeira foram as listas de subscrição voluntária, que os ricos e poderosos da colônia assinaram de muito boa vontade porque tinham a certeza de obter em troca rápidas e generosas vantagens. Como se verá nos próximos capítulos, muita gente se enriqueceu com a chegada da família real. A segunda foi o aumento indiscriminado de taxas e impostos, que o povo todo pagou sem conseguir avaliar de imediato que benefícios teria com isso. No longo prazo, o descontentamento resultante se tornaria incontrolável. [pág. 150]
11
UMA CARTA
Mergulhada na escuridão do Oceano Atlântico, às 10 horas da noite de 12 de abril de 1811, uma Sexta-Feira da Paixão, a fragata Princesa Carlota vencia as ondas na altura das ilhas de Cabo Verde, perto da costa da África, a caminho do Rio de Janeiro. Em seus porões seguia a última remessa de livros da preciosa Biblioteca Real, abandonada no cais de Belém três anos e meio antes, durante a fuga da família real portuguesa para o Brasil.1 Sozinho na sua cabine iluminada pela chama indecisa de um candeeiro, o arquivista Luiz Joaquim dos Santos Marrocos escreveu a seguinte carta ao pai, Francisco José, que ficara em Lisboa:2
Meu pai e senhor do coração
Esta [carta] é feita entre céu e água, sobre mil aflições, desgostos e trabalhos, que nunca pensei sofrer; pois tendo [pág. 151] saído da barra de Lisboa com vento de feição, mal chegamos ao mar largo nos saltou vento de travessia, que nos impeliu para a costa da África. Eu tenho passado muito incomodado da garganta, boca e olhos, de maneira que estou em uso de remédios. Não tive enjôo algum ao sair da barra de Lisboa, porém causou-me a maior compaixão ver o vomitório geral da gente da Fragata; pois dentre 550 pessoas que aqui há foram poucas poupadas do enjôo. De noite não posso dormir mais de
uma hora, porque o resto fica-me para eu pensar nos lances presentes e futuros da minha vida. Ao oitavo dia de viagem já era corrupta e podre a água de ração, de maneira que se lançam fora os bichos para poder beber-se. Tem-se lançado ao mar muitos barris de carne salgada podre. Enfim, tudo aqui é uma desordem, pela falta de providências. Todas as cordas da Fragata estão podres [...]. Todas as velas estão avariadas, de sorte que se rasgam com qualquer viração. A tripulação não presta. Em semelhante estado, ficaremos perdidos se, por alguma desgraça, formos acometidos de algum temporal rijo. Não há botica suficiente para os doentes, pois não consta mais do que meia dúzia de ervas, sendo aqui as moléstias em abundância. Não há galinhas nem carnes frescas. Finalmente, para dizer tudo de uma vez, se eu soubera o estado em que existe a Fragata Princesa Carlota, repugnava de meter-me nela e a Livraria.
PS: Saudades à Mana e à Ignez; e tendo tanto para dizer ainda, e tal a pressa, que me obrigo a levantar pena, reservando este sossego para o Rio, se Deus permitir que eu lá chegue.3 [pág. 152]
12
O RIO DE JANEIRO
A cidade que acolheu a família real portuguesa, em 1808, estava para as rotas marítimas transoceânicas como o aeroporto de Frankfurt, na Alemanha, está hoje para os vôos intercontinentais. Era uma espécie de esquina do mundo, na qual praticamente todos os navios que partiam da Europa e dos Estados Unidos paravam antes de seguir para a Ásia, a África e as terras recém-descobertas do Pacífico Sul. Protegidas do vento e das tempestades pelas montanhas, as águas calmas da Baía da Guanabara serviam como abrigo ideal para reparo das embarcações e reabastecimento de água potável, charque, açúcar, cachaça, tabaco e lenha. “Nenhum porto colonial do mundo está tão bem localizado para o comércio geral quanto o do Rio de Janeiro”, ponderou o viajante John Mawe. “Ele goza, mais do que qualquer outro, de iguais facilidades de [pág. 153] intercâmbio com a Europa, a América, a África, as Índias Orientais e as ilhas do Mares do Sul, e parece ter sido criado pela natureza para constituir o grande elo de união entre o comércio dessas grandes regiões do globo.”1 Era uma escala fundamental nas longas e demoradas navegações ao redor do mundo. No começo do século XIX, uma viagem da Inglaterra ao Rio de Janeiro durava entre 55 e 80 dias. Do Rio até a Cidade do Cabo, na África do Sul, eram mais 30 a 50 dias. Até a Índia, de 105 a 150 dias. Para a China, 120 a 180 dias. Até a
Austrália, de 70 a 90 dias.2 A importância estratégica do Rio de Janeiro para essas rotas era tão grande que, após a vinda da família real ao Brasil, a cidade se tornou sede do quartel-general da Marinha Real Britânica na América do Sul, sob o comando do contraalmirante William Sidney Smith, o mesmo que escoltara a esquadra portuguesa na sua partida de Lisboa, em novembro de 1807.3 Para os tripulantes e passageiros, a chegada ao Rio de Janeiro, em meio a uma viagem perigosa e monótona, era sempre um evento agradável e surpreendente. Todos os relatos se referem à grandiosidade da natureza, à imponência das montanhas e à vegetação espetacular dominando tudo. Ao passar pelo Rio de Janeiro a bordo do navio Beagle, em abril de 1832, o naturalista inglês Charles Darwin, pai da teoria da evolução e da seleção das espécies, usaria uma inacreditável seqüência de adjetivos para descrever o que tinha diante dos olhos: “Sublime, pitoresca, cores intensas, predomínio do tom azul, grandes plantações de canade-açúcar e café, véu natural de mimosas, florestas parecidas, porém mais gloriosas do que aquelas nas gravuras, raios de sol, plantas parasitas, bananas, grandes folhas, sol mormacento. [pág. 154] Tudo quieto, exceto grandes e brilhantes borboletas. Muita água [...], as margens cheias de árvores e lindas flores”.4 O registro mais detalhado da paisagem e dos costumes do Rio de Janeiro no tempo da chegada da corte foi feito por um inglês. John Luccock, comerciante de Yorkshire, desembarcou no Rio de Janeiro em junho de 1808, três meses depois da família real portuguesa. “Igrejas, mosteiros, fortes e casas de campo, faiscantes de brancura, coroam cada colina e enfeitam as fraldas das suas alturas simétricas e caprichosas, enquanto que, fazendo fundo, uma cortina de mata a tudo ensombra”, anotou.5 Morou dez anos no Brasil, período em que viajou também por São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Bahia. Tinha uma curiosidade insaciável. Inteligente e perspicaz, registrou tudo
que fez e viu no Brasil. Além de seus relatos de viagem, fez um dicionário de tupi-guarani. Em 1820, publicou na Inglaterra um livro que o tornaria famoso na história do Brasil, pelo testemunho vivo que oferece de um país em acelerada transformação.6 Na introdução, Luccock dizia que seu objetivo era dar “ao leitor a opinião imparcial sobre os usos e costumes do povo, sobre os acontecimentos políticos, sobre toda a paisagem social de um país imenso e desconhecido”. No livro, Luccock relata que, logo ao pisar em terra firme, foi informado que a população do Rio de Janeiro era de 80000 habitantes. Achou o número exagerado e o refez com seus próprios cálculos. Segundo ele, a cidade teria nessa época 4000 residências, com 15 moradores, em média, cada uma. Isso totalizava 60000 habitantes, número que a maioria dos historiadores considera bastante preciso. O detalhista Luccock dividiu a população da seguinte forma: [pág. 155] 16000 estrangeiros 1000 pessoas relacionadas com a corte de D. João 1000 funcionários públicos 1000 que residiam na cidade, mas tiravam seu sustento das terras vizinhas ou dos navios 700 padres 500 advogados 200 profissionais que praticavam a medicina 40 negociantes regulares 2000 retalhistas 4000 caixeiros, aprendizes e criados de lojas 1250 mecânicos 100 taberneiros, “vulgarmente chamados de vendeiros” 300 pescadores 1000 soldados de linha 1000 marinheiros do porto 1000 negros forros (libertos)