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15 O ataque ao cofre

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A TRANSFORMAÇÃO

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Não posso explicar-te a abundância e a fartura das fazendas e quinquilharias francesas que têm inundado esta cidade. Já não se vêem fazendas inglesas, que todas têm sido abandonadas, e toda a gente se vê ataviada ao gosto francês, menos eu, que sou Portugal Velho e ninguém me tira desta cisma. Relato do arquivista real Luiz Joaquim dos Santos Marrocos, em carta à irmã em Lisboa, sobre a invasão de produtos franceses no Rio de Janeiro em 1816.1

Passados os atropelos da chegada, era hora de colocar mão à obra. Os planos eram grandiosos e havia tudo por fazer no Brasil. Entre outras carências, a colônia precisava de estradas, escolas, tribunais, fábricas, bancos, moeda, comércio, imprensa, biblioteca, hospitais, comunicações eficientes. Em especial necessitava de um governo organizado que se responsabilizasse [pág. 213] por tudo isso. “O país era desmesurado e virgem, enquanto que o novo governo, adventício e indigente, tinha de improvisar e criar tudo”, escreveu o historiador Pedro Calmon.2 D. João não perdeu tempo. No dia 10 de março de 1808, quarenta e oito horas depois de desembarcar no Rio de Janeiro, organizou seu novo gabinete. O primeiro ministério do Brasil ficou assim constituído:

Negócios Estrangeiros e da Guerra: D. Rodrigo de Sousa

Coutinho, futuro conde de Linhares;

Negócios do Reino: D. Fernando José de Portugal, futuro marquês de Aguiar; Negócios da Marinha e Ultramar: D. João Rodrigues de Sá e

Menezes, visconde de Anadia.

Caberia a esse ministério criar um país a partir do nada. Havia duas frentes de ação. A primeira, interna, incluiu as inúmeras decisões administrativas que D. João tomou logo ao chegar para melhorar a comunicação entre as províncias, estimular o povoamento e o aproveitamento das riquezas da colônia. A outra frente era externa. Visava ampliar as fronteiras do Brasil, numa tentativa de aumentar a influência portuguesa na América. Era também uma forma de punir os adversários europeus de Portugal, ocupando seus territórios e ameaçando seus interesses americanos. Neste caso, os avanços foram precários e sem conseqüências duradouras. No final de 1808, uma tropa de quinhentos soldados brasileiros e portugueses, escoltada por uma pequena força naval, invadiu a Guiana Francesa e sitiou a capital, Caiena, cujo governador se rendeu sem resistência no dia 12 de [pág. 214] janeiro.3 Era uma retaliação à invasão de Portugal pelas tropas de Napoleão. Uma segunda ofensiva seria a anexação da chamada Banda Oriental do Rio da Prata, atual território do Uruguai, em represália à aliança da Espanha com a França napoleônica. Foram ambas conquistas efêmeras. A Guiana seria devolvida à França oito anos mais tarde pelo Tratado de Viena, que redesenhou o mapa da Europa após a queda de Napoleão. O Uruguai, ocupado por tropas de D. João em 1817 conseguiria sua independência em 1828. Com os planos de expansão territorial fracassados, restou a D. João se concentrar na primeira — e mais ambiciosa — de suas tarefas: mudar o Brasil para reconstruir nos trópicos o sonhado império americano de Portugal. Nesse caso, as novidades começaram

a aparecer num ritmo alucinante e teriam grande impacto no futuro do país. Na escala em Salvador, a decisão mais importante havia sido a abertura dos portos. Na chegada ao Rio de Janeiro, foi a concessão de liberdade de comércio e indústria manufatureira no Brasil. A medida, anunciada no dia 1º de abril, revogava um alvará de 1785, que proibia a fabricação de qualquer produto na colônia. Combinada com a abertura dos portos, representava na prática o fim do sistema colonial. O Brasil libertava-se de três séculos de monopólio português e se integrava ao sistema internacional de produção e comércio como uma nação autônoma.4 Livres das proibições, inúmeras indústrias começaram a despontar no território brasileiro. A primeira fábrica de ferro foi criada em 1811, na cidade de Congonhas do Campo, pelo então governador de Minas Gerais, D. Francisco de Assis Mascarenhas, o conde da Palma. Três anos mais tarde, já como [pág. 215] governador da Província de São Paulo, D. Francisco auxiliaria a construção de outra indústria siderúrgica, a Real Fábrica de São João de Ipanema, em Sorocaba.5 Em outras regiões foram erguidos moinhos de trigo e fábricas de barcos, pólvora, cordas e tecidos. A abertura de novas estradas, autorizada por D. João ainda na escala em Salvador, ajudou a romper o isolamento que até então vigorava entre as províncias. Sua construção estava oficialmente proibida por lei desde 1733, com a desculpa de combater o contrabando de ouro e pedras preciosas. Ainda em 1809, uma estrada de 121 léguas (cerca de 800 quilômetros) foi aberta entre Goiás e a região Norte do país. Seguindo um percurso semelhante ao da atual rodovia Belém-Brasília, tinha por objetivo facilitar a comunicação com a Guiana Francesa depois da ocupação de Caiena por tropas portuguesas. Também foram abertos novos caminhos entre Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo e o norte do atual Estado do Rio de Janeiro. A Estrada do Comércio, ligando as

cidades do Vale do Paraíba, reduziu pela metade o percurso que os tropeiros tinham de percorrer para ir de São Paulo ao Sul de Minas.6 As regiões mais distantes foram exploradas e mapeadas. O Pará e o Maranhão ganharam uma nova carta hidrográfica. Goiás, a sua primeira companhia de navegação. Expedições percorreram os rios tributários do Amazonas até as nascentes e estabeleceram a comunicação fluvial entre o Mato Grosso e São Paulo. 7 A navegação a vapor foi inaugurada em 1818 por Felisberto Caldeira Brant, futuro marquês de Barbacena e primeiro embaixador do Brasil em Londres depois da Independência. D. João concedeu a Brant o privilégio de explorar o negócio com exclusividade por catorze [pág. 216] anos, decisão que o jornalista Hipólito da Costa criticou por considerar que a falta de concorrência inibiria a expansão do novo meio de transporte. Outra novidade foi a introdução do ensino leigo e superior. Antes da chegada da corte, toda a educação no Brasil colônia estava restrita ao ensino básico e confiada aos religiosos. As provas eram ministradas muitas vezes dentro das igrejas, com platéia para assistir ao desempenho dos alunos.9 Ao contrário das vizinhas colônias espanholas, que já tinham suas primeiras universidades, no Brasil não havia uma só faculdade. D. João mudou isso ao criar uma escola superior de Medicina, outra de técnicas agrícolas, um laboratório de estudos e análises químicas e a Academia Real Militar, cujas funções incluíam o ensino de Engenharia Civil e Mineração. Estabeleceu ainda o Supremo Conselho Militar e de Justiça, a Intendência Geral de Polícia da Corte (mistura de prefeitura com secretaria de segurança pública), o Erário Régio, o Conselho de Fazenda e o Corpo da Guarda Real. Mais tarde seriam criadas a Biblioteca Nacional, o Museu Nacional, o Jardim Botânico e o Real Teatro de São João.10 A Gazeta do Rio de Janeiro, primeiro jornal publicado em território nacional, começou a circular no dia 10 de setembro de

1808, impresso em máquinas trazidas ainda encaixotadas da Inglaterra. Com uma ressalva: só imprimia notícias favoráveis ao governo. “A julgar-se o Brasil pelo seu único periódico, seria um paraíso terrestre, onde nunca se tinha expressado uma só crítica ou reclamação”, observou o historiador John Armitage.11 Hipólito da Costa, que lançou o seu Correio Braziliense em Londres três meses antes da estréia da Gazeta no Rio de Janeiro, reclamava de se “gastar [pág. 217] tão boa qualidade de papel em imprimir tão ruim matéria” e que “melhor se empregaria se fosse usado para embrulhar manteiga”.12 As transformações teriam seu ponto culminante em 16 de dezembro de 1815. Nesse dia, véspera da comemoração do aniversário de 81 anos da rainha Maria I, D. João elevou o Brasil à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves e promoveu o Rio de Janeiro a sede oficial da Coroa. Havia dois objetivos na medida. O primeiro era homenagear os brasileiros que o haviam acolhido em 1808. O outro era reforçar o papel da monarquia portuguesa nas negociações do Congresso de Viena, no qual as potências vitoriosas na guerra contra Napoleão discutiam o futuro da Europa. Com a elevação do Brasil à categoria de Reino Unido de Portugal, a corte do Rio de Janeiro ganhava direito de voz e voto no congresso, embora estivesse a milhares de quilômetros de Lisboa, a sede até então reconhecida pelos demais governos europeus. Ao lado dessas iniciativas grandiosas, o príncipe também adotou providências paroquianas, como a ordem para mudar a fachada das casas do Rio de Janeiro. Quando a corte chegou, a maioria das residências cariocas tinha janelas em estilo mourisco, chamadas rótulas ou gelosias. Era uma abertura na parede, protegida por treliças de madeira, com um vão na parte inferior, onde os moradores podiam observar o movimento na rua sem serem vistos. As grades de madeira impediam a entrada do sol e tornavam o interior das casas escuro e sufocante. D. João detestou esse

detalhe arquitetônico. Mandou que todas as treliças fossem removidas imediatamente e substituídas por vidraças, “no termo de oito dias”, segundo edital assinado no dia 11 de junho de 1809.13 [pág. 218] Numa outra decisão pitoresca, declarou guerra contra os índios botocudos que infernizavam a vida de fazendeiros e colonos na Província do Espírito Santo. Segundo o relato do inglês John Mawe, “o príncipe regente publicou uma proclamação na qual convida os índios a habitar nas aldeias, a se fazerem cristãos, prometendo-lhes, se viverem em boa inteligência com os portugueses, que seus direitos serão reconhecidos e, como os outros vassalos, gozarão da proteção do Estado; mas, se persistirem em sua vida bárbara e feroz, os soldados do príncipe terão ordem de lhes fazer guerra de extermínio”.14 De Londres, Hipólito da Costa ironizou a medida num edito real do Correio Braziliense: “Há muito tempo não leio um documento tão célebre; e o publicarei quando receber a resposta de Sua Excelência o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra da Nação dos Botocudos”.15 O esforço de mudar o Brasil não se limitou ao aspecto administrativo. Enquanto mandava abrir estradas, construir fábricas e escolas e organizar a estrutura de governo, D. João também se dedicava ao que o historiador Jurandir Malerb; chamou de “empreendimentos civilizatórios”. Nesse caso, a meta era promover as artes, a cultura, e tentar infundir algum traço de refinamento e bom gosto nos hábitos atrasados da colônia. A maior dessas iniciativas foi a contratação, em Paris, da famosa Missão Artística Francesa. Chefiada por Joaquim Lebreton, secretário perpétuo da seção de belas artes do Instituto de França, a missão chegou ao Brasil em 1816 e era composta por alguns dos mais renomados artistas da época: Jean Baptiste Debret, discípulo de Jacques-Louis David, o pintor favorito de Napoleão Bonaparte; Nicola Taunay, pintor de paisagens; seu irmão Auguste Taunay, [pág. 219] escultor;

Grandjean de Montigny, arquiteto; Simon Pradier, gravador e entalhador; Francisco Ovide, professor de mecânica aplicada; Francisco Bonrepos, ajudante de escultor; Segismund Neukomm, músico e discípulo do compositor austríaco Franz Joseph Haydn. Além desses artistas, a missão incluía dois surradores e curtidores de peles, um serralheiro, três carpinteiros de carros e um mestre de obras de ferraria.16 D. João pagou as despesas da viagem e garantiu a todos generosas pensões, com a condição de que permanecessem pelo menos seis anos no Brasil.17 Oficialmente, o principal objetivo da Missão Francesa era a criação de uma academia de artes e ciências no Brasil. Esse plano nunca saiu do papel.18 Em vez disso, o que os franceses fizeram mesmo foi paparicar o rei e a corte que garantiam seu sustento nos trópicos. Coube a eles organizar e ornamentar as grandes celebrações que a monarquia faria no Brasil nos quatro anos que antecederam a volta para Portugal e que incluiriam o casamento de D. Pedro e a princesa Leopoldina, o aniversário, a aclamação e a coroação de D. João VI. Para essas ocasiões, os franceses ergueram arcos monumentais nas ruas do Rio de Janeiro, organizaram peças e concertos e pintaram cenas que se tornaram célebres. A missão foi, portanto, útil enquanto serviu a esse propósito. Passado o período de celebrações, ela se desarticulou. Foi também duramente afetada pela morte, em 1817, do seu principal inspirador e protetor, Antônio de Araújo e Azevedo, o conde da Barca. Lebreton caiu no ostracismo e retirou-se para uma casa na praia do Flamengo, onde morreu em 1819.19 “Os artistas tiveram as maiores desilusões”, observou o historiador Tobias Monteiro. “Com exceção da música, [pág. 220] a corte não se interessava pelas belas-artes. Nem os fidalgos nem a gente rica possuía quadros.” Apesar das dificuldades, Debret ficou quinze anos no Brasil. É o mais conhecido de todos os artistas franceses, responsável pela melhor e mais ampla iconografia da época. Seus quadros, gravuras e

anotações registram de forma meticulosa a paisagem, os hábitos e costumes do Rio de Janeiro e arredores, os integrantes da família real — incluindo os retratos mais famosos do próprio D. João VI —, os rituais que cercavam a corte e a coroação de D. Pedro I. São imagens que tentam imitar o brilho e a sofisticação das monarquias européias, quando na verdade tratava-se de uma nobreza caipira, sem cultura. Debret documentou ainda a escravidão nas cidades e fazendas brasileiras. Também nesse caso, são cenas acadêmicas, assépticas, que retratam negros e negras com perfis gregos, curvilíneos, de roupas limpas e bem assentadas. Em momento algum, conseguem refletir, em toda a sua crueza, a brutalidade dos espancamentos e dos maus-tratos a que eram submetidos os escravos. A música era, de longe, a arte preferida pela corte portuguesa no Rio de Janeiro. Debret estimou que, em 1815, D. João gastava 300000 francos anuais na manutenção da Capela Real e seu corpo de artistas, que incluíam “cinqüenta cantores, entre eles magníficos virtuosi italianos, dos quais alguns famosos castrati, e 100 executantes excelentes, dirigidos por dois mestres de capela”.20 Em 1811, chegou ao Rio de Janeiro o mais famoso músico português, o maestro Marco Antônio Portugal. Até a partida da corte, em 1821, ele comporia inúmeras peças e músicas sacras em homenagem aos grandes eventos da Coroa. [pág. 221] Os concertos eram realizados na Capela Real e no recéminaugurado Teatro São João, com 112 camarotes e lugares para 1020 pessoas na platéia. Theodor von Leithold, capitão de cavalaria da Prússia, que visitou o Rio de Janeiro em 1819, descreveu esses espetáculos da seguinte forma:

São quatro ou cinco apresentações semanais, que variam entre comédias, dramas e tragédias em português e óperas italianas

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