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16 A nova corte
from 1808
acompanhadas de bailados. As óperas italianas representamnas de maneira toda especial. Durante minha estada, foi apresentada muitas vezes a ópera Tancredo, mas eu mal a reconheci de tão mutilada e estropiada por uma péssima orquestra. Demoiselle Faschiotti, irmã de um dos castrati da Capela Real, e Madame Sabini cantam passavelmente, sobremodo ajudadas pelos seus dotes físicos. A orquestra é muito reduzida em número, numa palavra, miserável: apenas um flautista, francês, e um violoncelista chamaram-me a atenção. Os violinistas, então, são abaixo da crítica.21
O Rio de Janeiro definitivamente estava longe de se comparar a Londres ou Paris, mas os novos hábitos e rituais importados pela corte logo produziram efeito no comportamento dos seus moradores. “A abertura dos portos e a nova dignidade do Rio de Janeiro como capital de todo o império lusitano atraíram para a cidade legiões de negociantes, aventureiros e artistas”, relata o historiador Jurandir Malerba.22 Ex-combatente do Exército prussiano na guerra contra Napoleão, o príncipe e naturalista Alexander Philipp Maximiliano de Wied-Neuwied chegou ao Rio em 1815, esperando encontrar [pág. 222] um pacato vilarejo colonial adormecido nas selvas tropicais e surpreendeu-se com o que viu. “Melhoramentos de todo gênero foram realizados na capital”, escreveu o príncipe. “Ela muito perdeu de sua originalidade, tornando-se hoje mais parecida com as cidades européias.”23 Surpresa semelhante teve, três anos mais tarde, o oficial da Marinha americana Henry Marie Brackenridge ao entrar na Baía da Guanabara a bordo da corveta Congress. “O número de navios entrando e saindo continuamente do porto nos deu uma idéia da importância comercial da cidade que estávamos prestes a visitar”, anotou em seu diário. “Quando entramos na baía, uma
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cena magnífica se abriu diante de nós. [...] Colinas e vales, escondidos entre majestosas montanhas, estão cobertos de conventos, igrejas e lindos jardins, enquanto as faixas de areia junto ao mar são ocupadas por elegantes casas de campo, a maioria delas construída por fidalgos portugueses ou por comerciantes ingleses que ficaram ricos depois da abertura dos portos.”24 A maneira mais divertida de observar a sofisticação dos hábitos da sociedade carioca é ler os anúncios publicados na Gazeta do Rio de Janeiro a partir de 1808. No começo, oferecem serviços e produtos simples, reflexo de uma sociedade colonial ainda fechada para o mundo, que importava pouca coisa e produzia quase tudo que consumia. Esses primeiros anúncios tratam de aluguel de cavalos e carroças, venda de terrenos e casas e alguns serviços básicos como aulas de Catecismo, Língua Portuguesa, História e Geografia.25 Dois exemplos de anúncios publicados em 1808: [pág. 223]
Quem quiser comprar uma morada de casas de sobrado com frente para Santa Rita, fale com Anna Joaquina da Silva, que mora nas mesmas casas, ou com o capitão Francisco Pereira de Mesquita, que tem ordem para as vender.
Vende-se um bom cavalo mestre de andar em carrinho. Quem o pretender comprar procure Francisco Borges Mendes, morador da esquina do Beco de João Baptista por cima de uma venda.26
De 1810 em diante, o tom e o conteúdo dos anúncios mudam de forma radical. Em vez de casas, cavalos e escravos, passam a oferecer pianos, livros, tecidos de linho, lenços de seda, champanhe, água de colônia, leques, luvas, vasos de porcelana, quadros, relógios e uma infinidade de outras mercadorias importadas. Na edição de 2 de março de 1816 da Gazeta, o francês Girard se anuncia como “cabeleireiro de Sua Alteza Real a Senhora D. Carlota, Princesa do Brasil, de Sua Alteza Real a Princesa de Galles e de sua Alteza Real a
Duquesa de Algouleme”. Em seguida, oferece os seguintes serviços: “Penteia as senhoras na última moda de Paris e de Londres; corta o cabelo aos homens e às senhoras; faz cabeleiras de homens e senhoras; tinge com a última perfeição o cabelo, as sobrancelhas e as suíças, sem causar dano algum à pele nem à roupa; e tem uma pomada que faz crescer e aumentar o cabelo”. Em 13 de novembro do mesmo ano, Bellard, na Rua do Ouvidor, número 8, avisa ter recebido ”um novo sortimento de falsa e verdadeira bijuteria, chapéus para senhoras, livros franceses, vestidos e enfeites de senhoras modernas, cheiros de todos os gêneros, pêndulos, espingardas e leques”. [pág. 224] A influência francesa é marcante. As lojas do Rio de Janeiro estavam repletas de novidades que chegavam de Paris. Pela edição de 26 de junho de 1817 da Gazeta, o comerciante Carlos Durante avisava a seus clientes que havia se mudado da Rua do Ouvidor, número 28, para a Rua Direita, número 9, primeiro andar, onde oferecia os seguintes produtos: “Cheiros, água de Cologne, pomadas, diversas essências e vinagres para toucador e para mesa, luvas, suspensórios, sabão, leques de toda a sorte, escovas e pentes de todas as qualidades, sapatos, chinelas para homens e para senhoras, vestes de seda e de marroquim, todas de Paris, caixas de tabaco de toda espécie, necessário para homem, caixas de costura para senhoras, velas, azeite para luzes clarificado. Chapéus de palha e de castor para homens e para meninos; chapéus de palha para senhora, guarnecidos e não guarnecidos; chapéus de seda, penachos, fitas, filós bordados de ouro e prata, flores artificiais, casimiras, luvas, garças, véus, retrós, seda crua etc.; mesas, espelhos de toucador, espelhos de todo o tamanho com molduras, e sem elas; estampas, painéis preciosos; bijuteria verdadeira e falsa, como colares, brincos, anéis e enfeites; pêndulas, relógios de repetição e de música para homens e para senhoras; vinho de Champagne a 480 a garrafa; um moinho portátil para grão, (que) um
só negro pode moer; um sortimento de livros franceses, e muitas outras mercadorias a preços cômodos”.27 Em 1824, três anos depois da partida da corte, o cronista alemão Ernst Ebel visitou uma loja chamada Vivienne, situada na Rua do Ouvidor, que o fez se sentir em Paris: “Por trás de uma mesa bem polida, senta-se Madame ou Mademoiselle elegantemente posta, ocupando meia dúzia de negrinhas, vestidas com esmero e escolhidas pelo físico, ocupadas a [pág. 225] costurar [...]. Aí vendem tudo o que de mais exigente a dama mais elegante possa desejar; naturalmente, por bom dinheiro. No salão do maître-coiffeur, se quiser cortar o cabelo, será conduzido a um caprichoso gabinete, guarnecido de espelhos, onde poderá fazê-lo à la française ou à l’anglaise e com huile antique, à vontade, por preço deixado à sua discrição; será, todavia, malvisto se der menos de mil-réis”.28 A indumentária e os novos hábitos transplantados pela corte eram exibidos nas noites de espetáculo do Teatro São João ou nas missas de domingo. Nessas ocasiões, um símbolo indiscutível de status era o número de escravos e serviçais que acompanhavam seus senhores nas ruas do Rio de Janeiro. Os mais ricos e poderosos tinham as maiores comitivas e faziam questão de exibi-las como símbolo de sua importância social. O prussiano Von Leithold diz que até as meretrizes de primeira classe — “que não são poucas” — exibiam orgulhosas suas escoltas pelas ruas. Quem não dispunha de criados particulares, os alugava para as funções dos dias santos ou missas. “É um ponto de honra apresentarem-se com um numeroso séquito. Caminham solenes, a passos medidos, pelas ruas.” “É nos domingos e nos dias de festa que se exibem toda a riqueza e magnificência das famílias brasileiras”, relatou o viajante inglês Alexander Caldcleugh, que esteve no Rio de Janeiro entre 1819 e 1821. “Logo cedo o dono da casa se prepara para ir à igreja, e marcha, quase sem exceção, na seguinte ordem: primeiro, o senhor, com seu chapéu alto, calças brancas, jaqueta de linho azul, sapatos
de fivelas e uma bengala dourada. Em seguida, vem a dona da casa, em musselina branca, com jóias, um grande leque branco na mão, meias e sapatos brancos; flores ornamentam seus cabelos escuros. Em [pág. 226] seguida, vêm os filhos e filhas, depois as mulatinhas favoritas da senhora, duas ou três, com meias e sapatos brancos; o próximo é um mordomo negro, com chapéu alto, calças e fivelas; por fim negros dos dois sexos, com sapatos, mas sem meias, e vários sem um nem outro. Dois ou três garotos negros, mal cobertos com alguma roupa, fecham a fila.”29 Obviamente, era uma aparência enganadora. Apesar do esforço e da velocidade das mudanças empreendidas por D. João, transformar o Brasil seria uma tarefa muito mais árdua do que se poderia imaginar observando as lojas e a pompa das famílias nas ruas da nova sede da corte portuguesa. [pág. 227]