Revista da APL - nº 72 - Edição 2014

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Academia Piauiense de Letras



Revista da Academia Piauiense de Letras N° 72 - Ano XCVII - 2014

Casa de Lucídio Freitas


Revista da Academia Piauiense de Letras Dezembro de 2014 Ano XCVII – Nº 72 Comissão de Redação Organização Vera Lúcia Rocha Sales Digitação Isis Pinto do Nascimento Soares Diagramação Raimundo Araújo Dias raimundoad@yahoo.com.br Fone: 8838-5570

Revista da academia piauiense de letras. – Ano XCVII, n. 72 ( jul./2014) – Teresina: Academia Piauiense de Letras, 2014. 205 p. v. : il.; 21 cm. Anual ISSN 2236-5036 1. Literatura – Periódicos 2. Literatura Brasileira Piauiense.

3. Literatura CDD 805

ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS Av. Miguel Rosa, 3300-Sul Cep: 64001-490 - Teresina-PI Fone/Fax.: ( 0**86) 3221-1566 site: www.academiapiauiensedeletras.org.br e-mail: acadpi@ig.com.br


Diretoria da apl Biênio 2014/2015

Presidente Nelson Nery Costa Pice-Presidente Oton Mário José Lustosa Torres Secretário Geral Herculano Moraes da Silva Filho 1º Secretário José Elmar de Mélo Carvalho 2º Secretário Humberto Soares Guimaraes Tesoureiro Wilson Nunes Brandão



Sumรกrio



APRESENTAÇÃO

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Discurso de Posse da Presidência da Academia Piauiense de Letras do Piauí (APL), biênio: 2014-2015

Ilmo. Sr. Reginaldo Miranda da Silva, DD. Presidente da Academia Piauiense de Letras, a quem saúdo em nome dos membros da Augusta Mesa, Exmo. Sr. Secretário de Estado Wilson Brandão, representando o Governador do Estado, a quem saúdo os integrantes da mesa, já nominados, Senhores Acadêmicos, a quem saúdo em nome do meu mestre e amigo Prof. Manoel Paulo Nunes, Caríssimos confrades da Diretoria ora empossa, Des. Oton Lustosa, escritor Herculano Moraes, Juiz de Direito José Elmar de Carvalho, médico Humberto Soares Guimarães e Deputado Estadual Wilson Nunes Brandão, meus companheiros de jornada e de responsabilidade nos próximos dois anos, A meus familiares, a quem saúdo em nome de minhas três mulheres, Lavínia, amor de minha vida, diga-se, uma vida longa e prazeirosa, Glorinha, minha belíssima e amorosa matriarca, e Alice, minha princesa, hoje uma linda mulher, Senhoras e Senhores, Quando eu disputei a vaga para me tornar acadêmico, no limiar do novo século, não pensei muito. Ouvi os conselhos dos mais velhos e, especialmente, uma voz interior – como se fosse do mesmo anjo de Drummond que lhe convidou a ser gauche na vida; ou o anjo de Torquato Neto que lhe sugeriu desafinar o coro dos contentes. Talvez, nem tanto. Talvez, apenas orgulho e ambição. De qualquer maneira, mirei na Cadeira 33, que tem como patrono Abdias Neves, magistral jurista e historiador, e igualmente olhei o ilustre primeiro ocupante da cadeira, Wilson de Andrade Brandão,

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muito amigo do meu pai. Eu desejei muito a cadeira e lutei muito também, até que se abrisse uma fresta nos Campos Elíseos e eu pudesse ingressar na Academia Piauiense de Letras. Ainda torpe pelo sucesso, embriagado pela fama, adentrei na sua sede na Av. Miguel Rosa como quem ingressasse na Arcádia. Lá, discuti muito, mas na verdade ainda sabia muito pouco. No entanto, a cada sábado que participava de suas reuniões semanais, aprendia mais, com as lições que ouvia, com os “causos” que me compartilhavam e com os ensinamentos que só me fizeram um homem melhor. A mais preciosa lição foi segurar a arrogância do conhecimento e humildemente saber que, ao modo socrático, eu apenas sabia o que nada sabia. Só se conhece o que se ignora, daí a necessidade da dúvida, pois da interrogação é que se faz o conhecimento, não de suas certezas. Hoje, com mais de meio século de vida, sei menos do que em minha infância e tenho mais ânsia de conhecer do que em minha adolescência. Quem me fez assim foi a Academia Piauiense de Letras e por tal agradeço à instituição e aos meus confrades. A Academia, como o próprio nome indica, tem a influência de Platão, que nos seus jardins, em meio a caminhadas, recitava os diálogos que ouvira do seu mestre Sócrates e procurava entender a dialética. Este método, longe de levar à sapiência, constituía-se em um meio de se chegar a esta. Platão, apesar de acreditar na força da ideia, como se fosse algo vivo e imortal, conhecia a importância do argumento, que acabou legando ao ser mais conhecido discípulo – Aristóteles –, que também estabeleceu sua escola – o Liceu –, e, assim, fundou também sua academia e escrever os princípios da lógica argumentativa. Passados mais de dois mil anos da Grécia Clássica, onde o homem era a medida do homem, na França dos séculos XVII e XVIII, a dúvida também se fez presente entre seus pensadores. Quando Descartes disse “cogito erga sum”, talvez melhor do que a tradução clássica desta frase, verdadeiramente quisesse dizer “pergunto, logo existo”. Não só ele, mas uma plêiade de filósofos começou a reescrever a história do mundo, tendo também o

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homem como a medida das coisas. Os iluministas abriram a porta do conhecimento questionando os dogmas do passado e abrindo as mentes para a reflexão e para o estudo. Daí nasceu a Academia Francesa de Letras, ainda em 1635, fundada pelo Cardeal Richelieu, quando pela primeira vez uma assembleia de literatas eminentes teve a função de pensar e de prever o futuro da sociedade e do Estado. Inspirado pelo passado, mas imbuído da responsabilidade pelo Brasil, ainda um jovem país, escritores e intelectuais, em volta do maior deles, Machado de Assis, em 20 de julho de 1897, fundaram a Academia Brasileira de Letras. Dentre outros, Olavo Bilac, Graça Aranha, Joaquim Nabuco, Visconde de Taunay e Ruy Barbosa. Essa Academia não abrigou todos os maiores pensadores brasileiros, mas sem dúvida contou com a maioria destes. Não estavam ali apenas para uma tertúlia literária, mas para pensar o país e sua gente mestiça, sonhando com um destino melhor. De sua influência nasceram outras academias estaduais, até que, em 24 de dezembro de 1917, Lucídio Freitas, Antônio Chaves, Baurélio Mangabeira, Celso Pinheiro, Clodoaldo Freitas, Édison Cunha, Fenelon Castelo Branco, Higino Cunha, João Pinheiro e Jônatas Baptista fundaram a Academia Piauiense de Letras (APL), instalada no ano seguinte. Também os intelectuais e os escritores estavam contagiados pela ideia de refletir sobre o passado, traduzir o presente e imaginar o porvir. Ao longo do século passado e no início desse, a Academia contou com os mais representativos escritores e intelectuais piauiense, além de autoridades, de magistrados, de políticos e de líderes sociais. Não todos, certamente, mas a maioria deles está com a foto e o nome fixados em nosso auditório. Agora, mesmo, também contamos com os mais expressivos romancistas, poetas, historiadores, juristas, professores, cientistas e intelectuais do século XXI. É com essa força que ainda pretendemos mudar o mundo e, em especial, o Piauí. A ideia da Diretoria ora empossa, assim como de nossos demais confrades, é, em primeiro lugar, preparar a Academia

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Piauiense de Letras, para o nosso centenário, em 24 de dezembro de 2017. Não vai ser ainda com a nova Diretoria que tal vai ocorrer, mas vamos dar instrumentos para que a próxima o possa fazer com todas as condições possíveis para esse momento histórico das letras e do próprio Piauí. Nesse sentido, é nossa aspiração abrir as portas para as demais academias locais, sejam regionais, sejam de outras áreas e profissões. Juntos, sim, podemos ser mais fortes e decisivos para reescrever a história do nosso Estado. Gostaria de aproveitar também o trabalho que Reginaldo Miranda teve à frente da Academia Piauiense de Letras, nos últimos quatro anos. De seu esforço e de sua obstinação foi possível atualizar nossa Revista que, com o lançamento de hoje, referente ao ano de 2012, permite a regularidade de sua publicação, o que pretendemos cultivar como compromisso. No mesmo sentido, aproveitar o ambicioso plano editorial para publicar 100 (cem) obras, número relacionado com seus cem anos, as mais representativas das letras e da ciência piauiense, plano este já iniciado pelo atual Presidente, como os lançamentos de hoje também fazem prova. Penso que, no século XXI, não pode o conhecimento limitar-se ao papel, sendo imperativo o desenvolvimento do site da Academia. Não apenas para divulgar sua Revista e suas obras editadas, mas acima de tudo estabelecer um diálogo com a sociedade e com os intelectuais que não façam parte ainda dos seus quadros. Não só isto, porém, mas sonhar ainda mais, pensando que nossa voz e nossa imagem possam estar cotidianamente na televisão, nos rádios e na rede social. Não apenas para ensinar, mas especialmente para aprender mais e mais. E abrir nossos corações e mentes para todos os piauienses. Não penso aqui em fazer um relatório de todas as pretensões da nova Diretoria, que são muitas, mas tentar recuperar o espírito que instigou Lucídio Freitas e seus companheiros para criar a Academia, de que o Piauí pudesse ser pensado. Julgo eu, talvez seja nossa principal função e desafio: pensar o Piauí e o povo piauiense. Compreender suas misérias e frustrações e sonhar com

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suas riquezas e conquistas. De início, aquilo que nos compete mais – a cultura. Está na hora de preparar uma Conferência Estadual de Cultura, junto com as demais Academias e não só com elas, mas também com os movimentos culturais e com as ONG’s, e também as universidades e as instituições de ensino. Não só da literatura, mas também da música, do teatro, da dança, do folclore, da ciência, das artes visuais e do patrimônio histórico e cultural. É preciso pensar a cultura, porque ela é a alma do povo. É nela que se exteriorizam seus sonhos e suas aspirações, assim como suas fragilidades e suas dúvidas. Não só isso, porém, nas últimas décadas, talvez pela força do pensamento em favor do menor Estado, o Governo Estadual deixou de ter uma Secretaria de Cultura, regredindo para uma fundação autárquica. Então, senhores, queremos de volta a Secretaria Estadual de Cultura e logo, se possível agora! Não só isto, mas também a Secretaria Municipal de Cultura de Teresina, apesar de toda a folha de serviços que a Fundação Monsenhor Chaves deu para a cultura piauiense até agora. Nesse momento, não posso deixar de pensar em meu pai, Ezequias Gonçalves Costa, que vem protegendo meus passos desde que se foi desse mundo, em 2005. Ele não foi um escritor propriamente dito, mas deixou seus sonetos, alguns deles escritos para minha mãe e outros sobre seus ideais. Porém, fomentou em mim e nos meus irmãos – Ezequias Filho, Carlos Henrique, Rubens e Guilherme Nery Costa –, o gosto pelo estudo e pelo conhecimento. Somos uma família de pensadores e imaginamos que vamos legar isto aos nossos filhos, pelo menos tento o fazer para o André, o Ricardo e a Alice. Meu pai não nos ensinou apenas a inquietação intelectual, mas a dignidade sem orgulho, a generosidade sem propaganda e a hombridade sem excessos. Mais ainda, nos ensinou a lutar e nos legou sua história de combate para extirpar do Piauí a fraude eleitoral, no que se chamou de “Luta contra o Mapismo”. Bem, de um tempo para cá meu pai vem soprando em meu ouvido, talvez se lembrando dos babaçuais de Novo Nilo,

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em União, de que o melhor para o Piauí é o desenvolvimento sustentável. O desenvolvimento que implica, de início, em distribuição de renda. O desenvolvimento que significa edificar sem destruir a natureza. O desenvolvimento que seja compatível com o extrativismo, com o turismo e com a forma moderna de sustentabilidade. Em um Estado em que quase 10% (dez por cento) de sua área é de preservação federal, temos poucos parques estaduais e uma cultura de cidades sem praças, seu recantos ou suas estações ambientais. Nosso modelo de crescimento econômico não deve ser igual ao de São Paulo, mas o do Piauí mesmo, ainda a ser elaborado. É esse, sonho eu, que talvez seja a principal contribuição da Academia para o Piauí e sua gente, catalisar nossa energia e ideias em prol do desenvolvimento sustentável, materializado pouco a pouco, mas com firmeza e determinação. Não fiz, propriamente, um discurso com citações. Não poderia esquecer delas, porém. Vou recorrer, então, a alguém que marcou minha juventude e que reflete o que eu disse ao longo desses minutos que tomei de vocês. Vou repetir as palavras do maior poeta da América Latina, conhecido por sua militância política e pelo seu amor à natureza, que foi Pablo Neruda, com essas singelas palavras: “Para meu coração teu peito basta, para que sejas livre, minhas asas. De minha boca chegarás até o céu o que era adormecido na tua alma”. Obrigado. Teresina, 29 de janeiro de 2014. Nelson Nery Costa.

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Posse da Acadêmica Maria do Socorro Rios Magalhães



Discurso de Posse da Acadêmica Maria do Socorro Rios Magalhães na Academia Piauiense de Letras Senhor Presidente da Academia Piauiense de Letras, acadêmico Nelson Nery Costa. Senhoras e Senhores acadêmicos, minhas Senhoras e meus Senhores, meu prezado amigo, acadêmico Manoel Paulo Nunes, que gentilmente se dispôs a me receber nesta noite, em nome desta Academia: Peço permissão para saudar de maneira especial a figura veneranda do Professor Joaquim Ribeiro Magalhães, meu pai, e para reverenciar, saudosa, a memória de minha mãe, Maria Alzira Rios Nogueira Magalhães, estes que me deram a vida! Quero, ainda, saudar de modo igualmente especial, Francisco de Vasconcelos Melo, que há mais de 30 anos a mim dedica a sua vida. Da mesma forma, saúdo Pedro Henrique e Flávia, continuação e perpetuação de nossas vidas. Uma saudação afetuosa a todos aqueles que compartilham comigo as suas vidas, meus irmãos e irmãs, cúmplices e parceiros, desde sempre. Meus sobrinhos e sobrinhas, uma convivência que me revigora e me rejuvenesce todos os dias, cunhados, tios e primos, amigos, colegas e alunos. Por causa de vocês, ao contemplar a vida, confirmo as palavras de Gonzaguinha: É bonita! É bonita e é bonita! Neste momento, em que ingresso na Academia Piauiense de Letras, pela distinção com que os seus membros generosamente me distinguiram, quero expressar a todos, a minha imensa gratidão, sobretudo, por avaliar o quanto esta honraria ultrapassa qualquer mérito intelectual ou qualquer outro merecimento, que, por ventura, eu seja detentora, sobremaneira, quando o antecessor da Cadeira que passarei a ocupar é um escritor da envergadura de O. G. Rego de Carvalho, cujo talento como romancista se estende para além das fronteiras do nosso Estado. Sabemos que é praxe, neste ritual de passagem, que o

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novo acadêmico preste às devidas homenagens ao Patrono de sua Cadeira e também aos seus antecessores, porém, peço permissão para, de maneira breve, recordar o meu próprio percurso pelos caminhos das Letras. Primeiro, devo lembrar que eu, a exemplo de vários membros desta Casa, venho de uma outra academia, a academia universitária, que, embora obedeça a regras diferentes, tem em comum com as academias de Letras o compromisso com a geração de conhecimento e com a sua difusão no meio social. Gostaria de me juntar aos esforços de outros membros da APL, na tentativa de promover o diálogo entre esta Academia e a Universidade, por entender que esta aproximação é muito importante para o desenvolvimento cultural do nosso Estado. A minha experiência no mundo das Letras tem origem na minha vida docente, no trabalho em sala de aula, na convivência com meus alunos, no ritual de orientação de pesquisas, nos níveis de graduação e pós-graduação, enfim no cotidiano do processo ensino-aprendizagem. E é nesta condição de docente e de pesquisadora, que, com muito honra, chego a esta Academia de Letras, para me associar aos que aqui já se encontram na luta para dar continuidade à história desta quase centenária instituição. Entendo que aqui representarei a crítica literária, já que faço parte do grupo de estudiosos que se dedica ao estudo e à pesquisa da produção literária, bem como ao ensino e à difusão de obras, autores, história, movimentos e tantos outros aspectos que envolvem o campo literário. Sou, acima de tudo, uma professora, atuante no ensino superior, na graduação e pós-graduação, na área de Teoria literária e literaturas de língua portuguesa, de forma especial literatura infantojuvenil e literatura piauiense, às quais tenho me dedicado com um empenho maior. Minha paixão pela leitura, sobretudo pela leitura literária começou muito cedo, antes mesmo de saber ler. A lembrança mais antiga que guardo do objeto livro é a de um volume de Alice no país das maravilhas, de Lewis Carrol, nas mãos de minha mãe, que lia em voz alta para mim, menina que ainda não tinha

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completado cinco anos de idade. Lembro até hoje a emoção daquele momento: o deslumbramento e ao mesmo tempo a ansiedade que me causavam as peripécias vividas pela menina Alice naquele estranho país das maravilhas. A minha formação de leitora continuou durante a adolescência no velho Liceu Piauiense. No curso ginasial descobri Machado de Assis e Rubem Braga. D. Casmurro e Ai de ti, Copacabana, em volumes de páginas amareladas nas estantes empoeiradas da precária biblioteca do Colégio. Ao final do Curso Científico, que hoje seria Ensino Médio, a decisão já estava tomada: a graduação no Curso de Letras na Universidade Federal do Piauí foi meu caminho natural. Ali muito mais que os conteúdos das diversas disciplinas, recebi preciosas lições de entusiasmo, ética e compromisso com o magistério, de mestres, hoje colegas e amigos, José Reis Pereira, que me apresentou Ferdinand Saussure e o seu Curso Geral de Linguística, Dorinha Santos e Socorro Neiva, com quem aprendi a gostar de Camões e de Fernando Pessoa. Quero lembrar, ainda, os professores Maria Figueiredo e Cassy Távora. Já a participação política na luta pela democratização da Universidade foi uma das lições que aprendi com o saudoso Professor Ubiraci Carvalho, que, recentemente, nos deixou. Ainda estudante, comecei a dar aulas de Língua Portuguesa no Colégio Diocesano, e em seguida, no Liceu e no Instituto de Educação. A paixão pelas Letras a vocação para o magistério me levaram a Porto Alegre para cursar mestrado em Teoria Literária na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Aos vinte e seis anos, já havia concluído o mestrado e retornava à Universidade Federal do Piauí, como professora do Departamento de Letras da Universidade Federal do Piauí. Foi mais um período de intensa aprendizagem, que marcou profundamente o meu jeito de ser como pessoa e como profissional.

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Perseguindo o objetivo de me aprimorar como docente do Ensino Superior, voltei a Porto Alegre, desta vez, para cursar o doutorado em Letras, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Ao lembrar minha temporada de estudo no Rio Grande do Sul, não posso deixar de citar a pessoa da Professora Vera Teixeira de Aguiar, não só pela orientação acadêmica, mas, sobretudo, pelo apoio e acolhida afetuosa, resultando numa sólida amizade que nos une desde a época do mestrado e que perdura até hoje. Após uma precoce aposentadoria da Universidade Federal do Piauí, voltei às salas de aula na Universidade Estadual do Piauí, onde, atualmente, trabalho no Curso de Letras-Português, dando continuidade ao trabalho que fazia na Universidade Federal, sobretudo em relação à pesquisa da literatura piauiense. Senhoras e senhores acadêmicos, eis a singela bagagem com que me apresento a esta Casa. Espero, todavia, poder compensar o que me falta em talento literário ou inspiração poética, me dedicando fielmente às causas da cultura piauiense, que são as causas desta Academia. Quanto ao fato de me alçar à condição de “imortal”, não resisto à tentação de citar as palavras de Cícero Sandroni, no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, ao se referir a perguntas que lhe faziam de maneira irônica ou zombeteira sobre o que havia mudado na sua vida, ao se tornar “imortal”. Eis a resposta precisa e irretocável, que endosso na sua totalidade: “O fato de ingressar nos quadros da Academia Brasileira de Letras não mudou nada em mim ou para mim, a não ser a circunstância de estar mais próximo de pessoas cuja convivência é extremamente proveitosa em todos os aspectos: o espiritual, o intelectual, o moral e o ético, sem falar no exemplo que nos dão de vidas dedicadas às letras e ao Brasil. A ilustre companhia é a melhor parte da glória que fica, eleva, honra e consola, pois, graças a Deus, desfrutamos dela em vida” Assim, o privilégio de ingressar nesta Academia é justamente o de poder gozar em vida a imortalidade, que nada

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mais é do que conviver e lidar, com a arte da palavra, esta sim imortal, ou melhor, eterna. Como ensinou Hipócrates “Ars longa, vita brevis”. Este é nosso desafio: viver a imortalidade na brevidade da vida. Assim fizeram os fundadores da Academia Piauiense de Letras, há cerca de cem anos atrás: Antonio Chaves, Aurélio Benedito de Freitas, Celso Pinheiro, Clodoaldo Freitas, Edson da Paz Cunha, Fenelon Castelo Branco, Higino Cunha, Lucídio Freitas, João Pinheiro e Jônatas Batista, nomes que se eternizaram na História. Estão todos mortos – poderiam dizer. Mas o que importa? Mario Quintana diz: “A vida é um incêndio: nela/ dançamos, salamandras mágicas/Que importa restarem cinzas se a chama foi bela e alta?” Senhoras e Senhores, sabemos que cada fundador desta Academia escolheu, entre escritores piauienses falecidos, um nome para patrocinar sua cadeira. Sem dúvida, a afinidade entre o acadêmico e seu patrono foi o critério dessa escolha. Assim podemos justificar a indicação de Teodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco por Benedito Aurélio de Freitas, o Aurélio Mangabeira, para dar nome a Cadeira número seis. São ambos poetas, nascidos no norte do Estado, autodidatas, por força das circunstâncias, que não lhes permitiram estudos regulares. Os dois cantaram a beleza da terra berço, a paisagem sertaneja e a vida simples do homem do campo. Teodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco nasceu na cidade de Barras. Clodoaldo Freitas, no livro Vultos piauienses, de 1903, foi o primeiro a divulgar o nome e a obra do poeta. Vejamos como Clodoaldo o apresenta: “O Poeta Caçador, Teodoro de Carvalho, filho legítimo de Leonardo de Nossa Senhora das Dores Castelo Branco, tão conhecido por suas letras e patriotismo, e de D. Judith da Mãe de Deus Castelo Branco, nasceu no município de Barras no dia oito de fevereiro de 1929. Teodoro Castelo Branco publicou apenas um livro: A harpa do caçador, do qual destaco o poema O Canto do Voluntário, no qual relembra a dura experiência na guerra do

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Paraguai. Diz o poeta: Gozando os afagos de mãe carinhosa, No teto paterno vivia contente; Dum pai ilustrado colhia as lições, - Ouvia os conselhos dum velho prudente. Deixei-os! É certo, deixei-os com mágoa; E o pranto saudoso meu rosto banhou! Deixei-os, que a pátria, se vendo ultrajada, - “AS ARMAS, ÀS ARMAS, MEUS FILHOS – bradou Em prêmio só peço: se o fero inimigo Em duro combate, meus dias ceifar, Que injúria a ti feita, não deixes impune; Que a morte dum filho tu saibas vingar! (p.27-28)

Teodoro Carvalho Castelo Branco é também autor de poemas líricos, delicados e graciosos à moda dos árcades, como Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antonio Gonzaga. Eis uma pequena amostra: “Lira saudosa, companheira terna, Que me acompanhas nas mortais fadigas, Solta os acordes desses sons divinos, Com que meus males, meu pesar mitigas”

A escolha de Teodoro Carvalho Castelo Branco para patrono da cadeira número seis da Academia Piauiense de Letras foi, sem dúvida, uma feliz escolha do seu fundador, Benedito Aurélio de Freitas. O primeiro ocupante da Cadeira número seis nasceu na fazenda “Pau d’Arco”, município de Piripiri, em 18 de julho de 1884, filho de Aureliano de Freitas e Silva e Izabel Rosa da Silva. Recebeu o nome de Benedito Aurélio de Freitas, que, mais tarde trocaria por Baurélio Mangabeira. Faleceu na cidade de Teresina, em 16 de abril de 1937, aos 53 anos de idade. A escolaridade do poeta resume-se ao curso primário. Trabalhou desde cedo, para sustentar-se. Estabeleceu-se como

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farmacêutico prático. Autodidata, passou a investir na compra de livros, tornando-se, em seguida, também um produtor literário, escrevendo poemas, que publicava nos jornais locais. A essas alturas, já havia adotado o pseudônimo de Baurélio Mangabeira. Sonetos Piauienses, publicado em 1910, constitui a única obra deixada por Baurélio Mangabeira. Trata-se de versos satíricos e humorísticos, em que o poeta critica fatos e costumes do Piauí daqueles tempos. O segundo ocupante da Cadeira número seis foi Alarico José da Cunha, nascido na vizinha cidade de Timon, no Estado do Maranhão, em 1882, falecido no Rio de Janeiro em 1965, viveu a maior parte de sua vida no Piauí, na cidade de Parnaíba, onde exerceu várias atividades, em que se destaca o jornalismo. Pertenceu também à Academia Maranhense de Letras. Sua obra divide-se em poesia, folclore, memória, estudos filosóficos, sociológicos e teológicos. Adepto da doutrina espírita, sua obra, segundo Edson Cunha, reflete seus conhecimentos metapsíquicos e transcendentais, dos quais, Alarico era verdadeiro entusiasta. Segundo testemunho de contemporâneos, ao andar pelas ruas de Parnaíba, costumava tirar o chapéu para cumprimentar velhos conhecidos, que só eram vistos por ele, posto que já haviam todos partido para o plano espiritual. Dentre suas publicações, as seguintes obras: Discurso Maçônico, Nostalgia do céu, Ode à mendiga, Cinema falado, Exaltação à beleza, Oração fúnebre e Panegírico de um justo. Após Alarico José da Cunha, ocupou a Cadeira número seis, o engenheiro e matemático, Petrarca da Rocha Sá, filho de Oeiras, como O. G. Rego de Carvalho, que viria sucedê-lo. Nascido em 1919, faleceu em 1982, na cidade de Fortaleza. Engenheiro formado na famosa Escola Politécnica do Rio de Janeiro, onde também estudaram João Luiz Ferreira e Lima Barreto. O acadêmico Wilson Gonçalves, no seu Dicionário históricobiográfico piauiense, dá notícia da publicação de um livro de autoria de Petrarca Sá, denominada Sistematização, um estudo de Matemática, ciência da qual era estudioso.

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Neste breve momento seria impossível sintetizar a grandeza da obra de O. G. Rego de Carvalho e nem me sinto capaz de dar conta de tamanha proeza. O romancista oeirense, mesmo vivendo no Piauí, conseguiu produzir uma obra que chamou a atenção da crítica literária nacional. Aliás, O. G. Rego, ao lado de Da Costa e Silva, é o escritor piauiense que possui a maior fortuna crítica, grande parte reunida por Kenard Kruel , no livro O.G. Rêgo de Carvalho: fortuna crítica, editado pela Zodíaco em 2007. Além dos artigos publicados nas mais diversas cidades brasileiras, que o organizador pacientemente reuniu nesse livro, existe, ainda, uma série de dissertações de mestrado e de outros trabalhos, produzidos por professores e estudantes universitários, acerca da narrativa do escritor oeirense. A trilogia Ulisses entre o amor e a morte, Rio subterrâneo e Somos todos inocentes constitui um permanente desafio aos críticos e estudiosos da literatura. Nascido na primeira capital, Oeiras, em 25 de janeiro de 1930, O.G era filho de José e Aracy Rêgo de Carvalho. Ele, um comerciante culto, que lia obras em francês, ela, uma professora de música, que tocava vários instrumentos. Logo cedo, o menino Geraldo, como era chamado pela família, revelou sua vocação literária, escrevendo textos que foram publicados no jornal da Escola Armando Bulamarqui, onde estudou as primeiras letras. O processo de escritura iniciado na infância se prolonga por toda a vida do autor, que nunca parou de burilar a sua escrita enquanto esteve vivo. Em 1942, após a morte do pai, muda-se com a família para Teresina, passando a estudar no Grupo Escolar Engenheiro Sampaio, onde conclui o curso primário. Aprovado no exame de admissão no Colégio Diocesano, começa ali o curso ginasial, que iria concluir no Liceu Piauiense, e em seguida o curso clássico no mesmo colégio. Em 1950 ingressa na Faculdade de Direito do Piauí, formando em 1954. Já em 1951, havia ingressado no Banco do Brasil, aprovado em primeiro lugar concurso de âmbito nacional. Morou no Rio de Janeiro alguns anos, período em

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que escreve o romance Somos todos inocentes, que só viria a ser editado em 1971. Antes de decidir-se pelo romance O.G Rego escreveu e publicou muitos contos, tendo sido vários deles premiados por revistas de circulação nacional, como A Cigarra, O Cruzeiro, Alterosa, entre outras. É importante lembrar que o romancista, na sua juventude, participou do movimento cultural de Teresina, fez parte do grupo denominado Meridiano, juntamente com Manoel Paulo Nunes, H. Dobal, Vítor Gonçalves Neto e outros jovens intelectuais que se preocupavam com a renovação da literatura piauiense. Deste movimento resultou a revista Caderno de Letras Meridiano, que publicou apenas três e edições, nos anos de 1949 a 1950. O primeiro livro de O.G Rego, Ulisses ente o amor e a morte saiu com o selo da Meridiano, em 1953. O escritor considerava que a sua obra mesmo só se compunha dos seus três romances, desautorizando a publicação de seus escritos anteriores. Como o próprio O. G. declarou, por ordem de produção, vem primeiro o citado Ulisses entre o amor e a morte, escrito em 1949 e editado em 1953, Somos todos inocentes, escrito entre 1958 e 1961, e editado em 1971, pela Civilização Brasileira e Rio subterrâneo, iniciado em 1962 e concluído e editado em 1967, pela mesma editora. Os três romances compõem a saga oeirense. É da terra natal que o autor extrai a matéria-prima com que plasma sua obra. O próprio O. G disse, em entrevista, que não seria escritor, se não tivesse nascido em Oeiras. Repetindo suas palavras: “A atmosfera de Oeiras, não só histórica, mas também sentimental, a ambiência de mistério e a poesia que envolvem a cidade, suas tradições centenárias, suas igrejas barrocas, os morros que a cercam, tudo isso criou em mim uma condição favorável à criação literária”. No livro Teoria da Literatura, René Wellek e Austin Warron lembram que: “Todos os grandes romancistas possuem o seu mundo – reconhecível como justaposto ao mundo empírico, mas distinto na inteligibilidade autocoerente”. (p.265). O mundo de O.G Rêgo

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de Carvalho é a cidade de Oeiras, a vida, os costumes, as pessoas, não na sua exatidão factual, mas a cidade imaginária, recriada pelo artista, mediante sua memória e sentimento. Eis como ele descreve a importância de Oeiras em seus romances: “Como minha vivência sentimental, espiritual está ligada a uma Oeiras citadina, uma Oeiras com ressaibos de lusitanismo, uma cidade que conserva modos e tradições arcaicas, onde até mesmo a arquitetura tem caráter colonial, entendi que, se eu me voltasse para o meu mundo interior, tendo como fundo Oeiras, eu haveria de fazer uma ficção despojada de telurismo, de compromisso com o ambiente.” Assim, podemos dizer que a Oeiras do romance de O. G Rego é, como ele mesmo afirma, uma projeção de si mesmo e da sua fantasia, o que não impede que se possa reconhecer em suas obras alguma semelhança com pessoas e fatos reais. Contudo, é apenas no mundo de O. G., no mundo ficcional, que esses fatos e essas pessoas têm uma existência plena. Ulisses, Dulce, Lucínio só possuem a legitimidade de representantes da condição humana, no contexto narrativo a que estão vinculados, ou seja, dentro do romance de que fazem parte. A prosa ficcional de O G Rego, portanto, embora privilegie a ambientação em Oeiras, como ele próprio adverte, não tem compromisso com o regionalismo, com a realidade ou com os tipos locais, pelo contrário, são romances introspectivos, densos e voltados para os dramas internos dos indivíduos. Diz o romancista colombiano Gabriel Garcia Márquez, recentemente falecido, que “O escritor escreve seu livro para tentar explicar a si mesmo o que está além de sua compreensão”. Entendendo desta forma a obra de O. G. Rego de Carvalho, diríamos que esta consiste na tentativa obstinada de compreender o Amor e a Morte, a Loucura, a Culpa, Deus, o Diabo e todos os mistérios da vida. Assumindo corajosamente a missão de tentar explicar o que estava além da sua compreensão, O. G. Rego de Carvalho sacrificou sua própria saúde, ao enfrentar o sofrimento diário de

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conviver com os doloridos personagens de sua criação literária. Rio Subterrâneo foi o seu último livro, no qual investiu o que lhe restava de energia e poder criativo. O próprio O. G. assim o diz: “acho que não ultrapassei Rio Subterrâneo, porque o que aconteceu ali foi uma explosão de estrela. A estrela explodiu, brilhou e apagou”. Uma nova estrela, porém, volta a brilhar na vida do escritor. Seu nome: Divaneide. Sua doce companheira, desde o casamento, em vinte e três de março de 1996, até o dia do seu falecimento em nove de novembro de 2013. Divaneide, minha querida amiga e ex-aluna, me comprometo a trabalhar, para que a obra de O.G Rego de Carvalho seja cada vez mais lida e estudada pelas novas gerações, que muito têm a lucrar com a leitura dos seus romances. Para concluir, quero registrar minha gratidão a todas as pessoas que, de forma carinhosa, se manifestaram sobre minha eleição para esta Academia. Agradeço ainda a todos os presentes a esta sessão. É de vocês o brilho desta noite. Sei que muitos sacrificaram outros compromissos para virem até aqui. Há ainda os que viajaram muitos quilômetros para participar deste momento. Meu muito obrigada, a minha sobrinha, Ravenna, que veio de Chapecó, interior de Santa Catarina, e também aos amigos vindos de São Paulo, Carlos e Regina, e ainda a Adriana, uma quase nora, já muito querida. Finalmente quero homenagear os grandes ausentes nesta celebração: Minha mãe, Maria Alzira, e os meus tios, Francisco das Chagas Ribeiro Magalhães e Maria Alzirene Rios Nogueira. A eles, que me ensinaram, pelo exemplo, o valor do estudo e do trabalho, dedico a alegria desta conquista, acreditando que, de alguma forma e de algum lugar, eles nos veem e celebram conosco este momento. Muito grata pela atenção! Teresina, 25 de abril de 2014

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Discurso de Recepção*

M. Paulo Nunes

Na minha condição de velho, gosto muito de aplaudir os novos, lembrando-me sempre da observação do velho Goethe, reeditando esta sua meditação sobre a vida: “Se a juventude é um defeito tem em si mesma um corretivo: passa depressa.” Aquele remoto acontecimento provocado por Graça Aranha, em 1924, na Academia Brasileira, ao exaltar o Espírito Moderno, em sua famosa conferência ali proferida, há frases contundentes, como esta: “Se a Academia não se renova, morra a Academia”, completada por aquela outra de que a Academia não poderia continuar a ser “a câmara mortuária de Portugal” ou ainda, durante a réplica de Coelho Neto, já em seu discurso em resposta ao autor de Canaã, em aparte: “Morra a Grécia”, e Coelho Neto, numa tréplica de grande orador: “Mas eu serei o último heleno”. “Quarenta anos depois da conferência de Graça Aranha sobre o Espírito Moderno, segundo o memorialista e notável renovador de nossa romancística, Josué Montello, a quem estamos seguindo, em notas sobre o episódio, na releitura de seu Diário da Tarde, “muitos daqueles que o aplaudiram na tarde tumultuosa da Academia, não perderam o entusiasmo...” E continua: “A verdade é que Manuel Bandeira, Augusto Frederico Schimidt, Alceu Amoroso Lima, Murilo Araújo, Cândido Mota Filho, Agripino Grieco, Prudente de Morais Neto, presentes à sessão ruidosa, mantêm a vocação combativa, guardando ainda nos seus gestos e nas suas atitudes de hoje um pouco da veemência *

Discurso de recepção a Acadêmica Maria do Socorro Rios Magalhães, na cadeira nº 6, proferida pelo Acadêmico M. Paulo Nunes, na sessão solene do dia 25 de abril de 2014, às 20h, no Auditório da Federação das Indústrias do Estado do Piauí - FIEPI.

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juvenil com que aplaudiram a palavra desafiadora de Graça Aranha.” (Cf. ob. cit. p. 515) É assim com esse espírito desafiador, na plena posse dos dons com que Deus generosamente me cumulou e capaz ainda de realizar protestos ou erguer barricadas, que estou aqui para receber-vos, em nome da nossa velha e quase centenária Academia, minha estimada amiga e quase conterrânea, Socorro Magalhães, dada a origem regenerense de sua família, por parte dos Rios, esperando que, com o entusiasmo de sua juventude, venha somar esforços na defesa intransigente dos valores fundamentais da cultura piauiense, no contexto da cultura brasileira, que esta constitui a nossa luta diária contra o coro dos descontentes e dos aproveitadores, que são muitos. Sei que, como no poema de Bandeira, “a vida passa, a vida passa... e a mocidade vai acabar”, mas, antes que isto aconteça, aqui tendes um campo imenso para cultivar o vosso talento e a enorme capacidade de servir, de que sempre destes prova no desempenho de vossas funções públicas de professora e escritora, com que vos preparastes para a vida longa que tendes ainda pela frente, de que nos dá conta o vosso luminoso “curriculum vitae.” De passagem, desejaria relembrar um fato hoje talvez já esquecido, em nossa história literária. Sobre essa disputa entre velhos e novos, como ocorreu na Academia Brasileira, convêm relembrar aqui episódio antigo de que foi alvo nossa Academia que, ao que suponho, mal tomou dele conhecimento. Trata-se do manifesto antiacadêmico, de fundação do Clube dos Novos, de 1946, de que fomos signatários, com crítica ao espírito acadêmico de que reclamavam os novos escritores, em termos de uma nova postura em face dos problemas da cultura piauiense. Hoje, grande parte dos que o assinaram integram o quadro desta Academia, alguns deles já estudando a geologia do campo santo, como diria M. de Assis, o que vem a demonstrar que a vida é dinâmica e muda a cada instante e entre novos e velhos há mais interação que oposição.

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Outro fato merece aqui também ser lembrado. Em 14 de março de 1947, em sessão magna do Clube dos Novos, realizada no Auditório do Arquivo Público, pelo transcurso do primeiro centenário de nascimento de Castro Alves, o escritor Jorge Medauar profere uma conferência sobre o poeta dos escravos, com a presença do poeta Moura Rego, na condição de presidente da Academia, juntamente com outros acadêmicos, finda a qual, mediante proposta de Medauar, por delegação do então presidente da Associação Brasileira de Escritores (ABDE), escritor Guilherme Figueiredo, foi criada a secção estadual da ABDE e constituída sua Diretoria, provisória, mediante aclamação, assim composta: Moura Rego, presidente, Manoel Paulo Nunes, 1º secretário, Anísio de Abreu, 2º secretário, Guadalupe Lima, tesoureira. Para o Conselho Fiscal foram escolhidos Álvaro Ferreira e Arimathéa Tito, presentes àquela histórica sessão e ainda o historiador Odilon Nunes e os professores Felismino Freitas Weser e Antilhon Ribeiro Soares, segundo informa a professora Vanessa Soares Negreiros Farias, em seu brilhante estudo acadêmico Em busca da geração perdida, que constitui a sua tese de mestrado e procura restaurar a contribuição da chamada “geração Meridiano” ao processo literário brasileiro. Mas, desejaria salientar aqui, brevemente, aspecto que vos distingue no fazer literário. Ao lado do ofício de professora que vos toma praticamente todo o tempo de que dispondes, há a distinguir a vossa atuação como escritora que se vem notabilizando no exercício da crítica literária, seja de autores e temas piauienses, principalmente, seja daqueles que se têm projetado no campo mais vasto da literatura brasileira. A este propósito o vosso “currículum vitae” constitui uma excepcional amostra de uma personalidade de exceção, nas letras piauienses, no qual poderemos destacar os seguintes aspectos: O “curriculum vitae” da nova acadêmica é dos mais ricos já apresentados nesta Academia.

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Nasceu em Teresina, a 1º de junho de 1954, primeira filha de Joaquim Ribeiro Magalhães, natural de Piracuruca, neste Estado, e de D. Maria Alzira Rios Nogueira Magalhães, natural de Palmeirais, de família de Regeneração (Rios) e Valença(Castro Nogueira). Casou-se em 1983, com Francisco de Vasconcelos Melo, funcionário da Prefeitura Municipal de Teresina, natural de José de Freitas. Mãe de dois filhos, Flávio e Pedro Henrique, médico cardiologista, residente em São Paulo. Cursastes o antigo primário no Grupo Escolar Abdias Neves e o ginasial e colegial (científico) no Colégio Estadual “Zacarias de Góes”, (antigo Liceu Piauiense). Graduada em Letras pela Universidade Federal do Piauí, em 1977. Mestrado em Letras, em Porto Alegre, na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em 1977. Curso de Doutorado, na mesma Universidade, em 1980. Funções e cargos exercidos •

Professora de Língua Portuguesa do Colégio Diocesano – 19741977.

Professora de Língua Portuguesa do Liceu Piauiense e do Instituto de Educação – 1974-1980.

Professora do Curso de Letras da Universidade Federal do Piauí – 1980-1999.

Professora do Instituto Camilo Filho – 2000-2005.

Professora do Curso de Letras da Universidade Estadual do Piauí, desde 2008.

Secretária- Adjunta de Educação de Teresina – 2000.

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Obras Publicadas 1. Literatura Infantil: a fantasia e o domínio do real: Edufpi, 2001. 2. Literatura Piauiense: horizontes de leitura e crítica literária. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1977, v. 1. 3. Vem comigo, leitor: a pedagogia da leitura em Quincas Borba, 1977, v.1. 4. Um manicaca: romance – manifesto do positivismo no Piauí. Teresina: Associação dos Pesquisadores em Ciências Humanas/ UFPI, 1995 – v. 1. 5. O Curso de Letras da UFPi: um fio da FAFI: Edufpi. Artigos publicados em periódicos 1. A lenda do Cabeça de Cuia: estrutura e formação do sentido. Desenredo – Revista da Pós-graduação em Letras – Universidade Federal de Passo Fundo, 2011. 2. O jogo da leitura no romance Quincas Borba: Presença. Teresina, v. 39,2008. 3. O Bequimão, de Clodoaldo Freitas: um romance inacabado – Letras em revista: Teresina UESPi, vol. 01,2007 4. Lima Barreto e os piauienses de seu tempo: Revista da FACID, v. 2, 2006. 5. A imagem da mulher na obra de Amélia Beviláqua. Cadernos de Teresina: Fundação Cultural Mons. Chaves, v. 37, 2005. 6. O papel do intelectual e a condição feminina, em O Manicaca, de Abdias Neves. 7. Literatura piauiense: a formação de leitores e a emergência da crítica: Brasil, 500 Anos de Descoberta Literária, 2004. 8. A educação dos leitores e a formação do sistema literário piauiense. 9. Martins Napoleão: neoclássico ou modernista? Presença, v. 29, 2001.

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Comecemos assim pelos nossos autores: O primeiro estudo que quisemos figurasse nesta apresentação, pelo menos em respeito à condição da mulher piauiense nesta Academia, que também é constituída, embora em parte mínima, por uma simpática representação feminina, é o que se intitula “A mulher e a literatura piauiense”. Trata-se de trabalho sumamente oportuno na bibliografia da nova acadêmica, em que é traçado, com segurança, um perfil admirável de duas mulheres, na sociedade piauiense, ou como diz a autora do ensaio, da literatura das Amélias, na literatura piauiense ou como acrescenta a neoacadêmica, “da literatura das Amélias piauienses”; a primeira, Luísa Amélia e a segunda, Amélia Carolina. A primeira, poetisa e a segunda, romancista, que também publicou poesia e crítica. “Ambas, na opinião da autora”, enfrentaram a incompreensão e sofreram discriminação pela ousadia da manifestação através da escrita, porquanto, “essas escritoras inscreveram, no discurso literário, uma forma de denúncia do descaso com que era tratada a mulher brasileira no que diz respeito ao seu direito de acesso ao mundo das letras.” Ambas tiveram, como é bem de ver, um destaque especial em nossa sociedade, pela intransigente defesa da condição feminina na sociedade e não apenas em relação ao que escreveram, mas pela postura que assumiram em defesa da condição da mulher, nas lutas sociais em nosso meio. Este trabalho foi o primeiro apresentado, recentemente, nesta Academia, antes de vosso ingresso neste sodalício, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, ocorrido no mês passado. Luísa Amélia nasceu em Piracuruca, em 26 de dezembro de 1838 e faleceu, naquela cidade, em 12 de novembro de 1898, publicando duas obras, Flores incultas, em 1875, e Georgina, poema em cinco cantos, em 1893. Além dessas obras também colaborou ativamente em jornais piauienses. Foi casada, em primeiras núpcias, com Pedro José Nunes,

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e em segundas, com Benedito Madeira Brandão. Era muito bonita e não tinha pejo de proclamar os seus dotes físicos, ao que suponho, conforme o seu retrato, traçado por ela própria, no poema que transcrevemos a seguir: “D’estatura elegante, porte airoso e a tez levemente amorenada, a boca não pequena e nacarada, o olhar meigo, triste e languroso o cabelo corrido, mas lustroso, moldurando-lhe a face descorada, o nariz regular, fronte elevada prometendo um gênio grandioso.”

Comentando esses e outros versos, de Luísa Amélia, Clodoaldo Freitas, um dos espíritos mais lúcidos e abertos às novas ideias daquela época, faz sobre a autora os seguintes comentários: “Ferida no seu orgulho, espezinhada na sua justa vaidade, ela sente que transita por entre uma cáfila de bárbaros, de invejosos brutais que lhe negam, estupidamente, os merecidos louvores. É mulher e sente ter de arcar contra a onda do preconceito público que não permite à mulher ingresso no combate em que se aventuram as inteligências masculinas (Freitas, Clodoaldo op. cit. p. 112). Amélia Bevilacqua, nascida Amélia Carolina de Freitas, em Jerumenha, no sul do Piauí, em 1861, filha do Desembargador Freitas, como era mais conhecido José Manuel de Freitas, político e magistrado, um dos pró-homens do Estado, tornou-se Amélia Bevilacqua, a partir do casamento com o famoso jurista cearense Clóvis Bevilacqua, redator do nosso primeiro Código Civil. Faleceu no Rio de Janeiro, em 1946. Como escritora, também combatente, como Luísa Amélia e igualmente libertária como aquela, se notabilizaria como romancista, com os livros Através da vida, publicando ainda no gênero, os romances, Silhuetta (1906), Vesta (1908), Angústia (1913), Açucena (1920), Jeannette (1933) e Contra a Sorte (1933).

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É no romance Através da vida, entretanto, que a autora dá maior ênfase ao que considera, segundo as palavras de Socorro Magalhães, em seu estudo “a conquista da educação e dos direitos de cidadania”, numa sociedade em que os direitos sociais da mulher eram inteiramente desrespeitados. Sobre o maior dos nossos escritores, Machado de Assis, vosso enfoque é feito em livro e também em artigo sobre Quincas Borba, em que a técnica literária do romancista ganha aspectos novos, graças ao estudo dos personagens, ao transformar também os leitores em partícipes da ação que vem sendo desenvolvida, em sua conversa com o leitor ou a leitora que assim teriam tempo e condições para fruir melhor sua leitura. O fato constitui verdadeira revolução no âmbito da crítica literária sobre “o bruxo do Cosme Velho”, técnica esta que Machado apreendeu na romancística de Alexandre Herculano. Espero que voltemos ainda a este tema tão sedutor, em outra oportunidade, em que disponhamos de mais tempo para explorar melhor este aspecto fundamental na obra machadiana e na revolução que sua obra produziria, a partir daí, em nossa literatura, precisamente, com a publicação das Memórias Póstumas de Brás Cubas. A respeito do assunto, para não tomar mais tempo aos ouvintes, focaríamos nossa análise no ponto central da narrativa, a que intitulastes, com muita propriedade, “Vem comigo leitor: a pedagogia da leitura em Quincas Borba”, tão interessante quanto o livro, sobre o mesmo tema, O jogo da leitura no romance Quincas Borba, nos quais a leitura de livros, românticos sobretudo, da literatura francesa, em edições populares, teria levado Rubião à loucura. Leitura com a qual ele pretendia impressionar a mulher do Palha, a bela Sofia, e conquistar-lhe o coração e nada obtém a não ser desilusões e sofrimentos causados pela insanidade. Não esquecer que é este também o drama de Dom Quixote, de Cervantes, em que todos os leitores se divertem com as aventuras do Cavaleiro Andante, menos eu, que vejo nelas apenas a tragédia da condição humana, em relação à qual não acho graça nenhuma e sempre que leio o livro o faço como se mergulhasse na tragédia grega.

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Mas fiquemos por aqui, por hoje. Possivelmente, voltaremos ao assunto, pois esta Academia é rica em falatórios, não os da vida alheia, tema este que aqui nos é defeso, mas sobretudo dos personagens literários que compõem o universo maior do nosso interesse. Passemos então a outro autor também objeto da análise da recipiendária. Trata-se de Lima Barreto, a propósito de dois livros desse autor e objeto de estudo de Socorro Magalhães. Refiro-me aos livros Recordações do escrivão Isaías Caminho e Triste fim de Policarpo Quaresma, pelos motivos que vão expostos a seguir. Quanto aos romances de Lima Barreto, autor polêmico da nossa “bele époque”, contemporâneo, por acaso, do autor de Dom Casmurro, mas de quem não gostava, e para alguns críticos constitui o seu oposto, por representar, de certa forma, uma novidade no campo da crítica literária, mereceria algum destaque. Foi o piauiense Esmaragdo de Freitas o primeiro crítico brasileiro a manifestar-se claramente favorável ao romance de estreia de Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha, como nos informa a novel acadêmica. Além de Esmaragdo, foram partícipes na vida pessoal e literária do escritor fluminense os irmãos Félix Pacheco e João Luís Ferreira, filhos de Gabriel Luís Ferreira, o primeiro governador da fase republicana do Piauí. O último deles foi seu colega na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, no período de 1887 a 1901, ano da formatura do piauiense, enquanto Lima Barreto, ali permaneceria até 1903, quando abandona o curso. José Félix Pacheco era um dos homens mais influentes na primeira república. Proprietário do Jornal do Comércio, do Rio, foi o responsável pela primeira edição do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, segundo informação do próprio autor. Considerado um romance “à clef”, como nos diz a autora do estudo que estamos comentando, ali acrescenta ela: “A intenção do autor era fazer escândalo, afirmar-se como escritor... Premeditadamente, Lima Barreto escolheu como alvo de

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sua sátira o jornal Correio da Manhã, por ser o mais bem sucedido e por reunir grandes medalhões do jornalismo e das letras. O tiro saiu pela culatra. O nome de Lima Barreto foi proibido na redação do Correio.” Em torno da figura de Lima Barreto há outro fato bastante significativo, no que diz respeito ao convívio de João Luís Ferreira, com o escritor boêmio: o convite feito àquele para exercer uma função pública em seu governo, quando governador do Piauí, no caso, a Diretoria da Imprensa Oficial. O escritor não teria aceito, por achar o Piauí muito distante. Mas o que é certo é que a notável obra de Lima Barreto, embora não haja obtido, de início, a aprovação oficial, é hoje reconhecida pela crítica literária, como daquelas que vieram enriquecer a literatura brasileira, principalmente como retrato da vida carioca, de modo especial pela criação de personagens representativos do Rio de Janeiro da “bele époque”, a exemplo do que, no início do romantismo, fizera o notável romancista Manuel Antônio de Almeida, com o seu memorável romance Memórias de um sargento de Milícias, evocação perfeita da vida carioca, no tempo do rei D. João VI. Aqui chegais, senhora Maria do Socorro Rios Magalhães, em um momento solar da Academia Piauiense de Letras, no instante em que se acendem as luzes para os atos comemorativos do centenário desta instituição, a mais antiga e mais representativa do nosso Estado, no âmbito da cultura, acontecimento este que ocorrerá no final de 1917, ou seja, daqui a três anos, o que não é nada na vida das instituições. Vindes a ocupar a cadeira nº 6, de que é patrono o poeta Teodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco, o nosso “poeta caçador”, tendo como sucessivos ocupantes Benedito Aurélio de Freitas, Alarico José da Cunha, Petrarca Rocha de Sá e O. G. Rego de Carvalho, cadeira que ora vindes a ocupar e cuja obra será para vós um permanente convite à meditação e ao estudo de uma das maiores e mais ricas personalidades literárias de nosso Estado e de nosso tempo.

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Sois herdeira e continuadora da obra notável de uma geração de professores que modificaram profundamente o panorama educacional do Estado, mercê de uma formação específica para o mister de ensinar, de forma criativa e multiplicadora. Esta Academia muito irá lucrar com a vossa presença, a vossa prestimosa colaboração, servidas por onímoda cultura. O escritor Gabriel Garcia Marquez, recentemente desaparecido e que nos deixou obras-primas como Cem anos de solidão e O amor nos tempos do cólera, disse uma vez que “morrer é nunca mais estar com os amigos.” Para nós que aqui entramos com o propósito de sermos imortais, a amizade se torna assim um bem terreno com que ludibriamos a “indesejada das gentes”, da imagem de Manuel Bandeira. Deus vos abençoe e vos dê as boas vindas na Casa de Lucídio Freitas! Muito obrigado.

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Vida Acadêmica



Centenário de Odylo Costa, Filho

Celso Barros Coelho “É necessário mirar o mundo amavelmente, em especial o mundo dos poetas” Goethe

No ano passado – 20l4 – em sessão ordinária da Academia Piauiense de Letras, lembrávamos o nome de Odylo Costa, filho, na passagem de seu centenário de nascimento. A Academia não teve a oportunidade de tributar-lhe, naquele ano, a merecida homenagem com a realização de uma sessão solene em que se tratasse de sua vida e de sua obra. Como isso não foi possível, quero, em poucas linhas, trazer ao presente o seu passado, destacando sua poesia que ele colocou num plano que só o elevado sentimento alcança. Nasceu Odylo em São Luís do Maranhão em 14 de Dezembro de 1914, e, como lembra seu filho, Virgílio Costa, passou sua infância na Vila de Flores, à beira do Rio Parnaíba, diante da ainda pequena Teresina. Entre Flores e Teresina, portanto, encontrou o cenário de suas primeiras impressões e aí já se manifestava sua vocação para as letras, com a publicação de seu primeiro livro - Seleta Cristã - ao qual os estudiosos de sua obra não fazem qualquer referência, mas que eu tive oportunidade de ler, na fase de meus primeiros estudos, no seminário de Teresina. Veio depois, quando já se encontrava no Rio de Janeiro, outro livro “Graça Aranha e outros ensaios”, de 1933, com o qual estreou, e que obteve prêmio na Academia Brasileira de Letras. Em l935, Odylo Costa, Filho publicou seu primeiro livro de poesia: “ Livro de Poemas” em colaboração com Henrique Carstens. Indo adiante e ao longo de sua vida, dedicou-se ao

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jornalismo, como atividade exclusiva. Passou por quase todas as redações de grandes jornais e revistas do Rio de Janeiro, sem atender ao aceno das musas como se a elas fosse indiferente. Tão distante andava do amoroso convívio que não se sentia atraído pela Poesia. Era só jornalista, como indica seu aludido filho, ao dizer: “ O jornalismo é vício, tinta, que guarda na pele”. Manoel Bandeira, seu particular amigo, colocou-o entre os poetas bissextos, no seu livro Antologia dos Poetas Bissextos Contemporâneos. Isso mostra que, até então, não era aclamado como poeta. Foi a partir de l966 que penetrou na seara da poesia, sem deixar de ser jornalista. De sua obra, destacam-se “ Tempo de Lisboa e Outros Poemas” (1966), “Cantiga Incompleta” (1971), e sucessivamente, “Os Bichos de Céu” (1972), “Notícias de Amor” (1974), “Fagundes Varela, Nosso Desgraçado Irmão” (1975), “Boca da Noite” (1979) e “Um Solo Amor” (1979). Sua projeção como jornalista e homem de sólida cultura levou-o ao cargo de Secretário da Presidência da República, no governo Café Filho e às funções de Adido Cultural à Embaixada do Brasil em Lisboa, entre 1965 e 1967. É membro da Academia Brasileira de Letras, da Academia Piauiense de Letras e da Academia Maranhense de Letras. Estreitamente ligado ao Piauí, pois se casara com uma piauiense, sempre esteve presente à terra, onde tinha parentes bem próximos. Já agora podemos deleitar-nos com a poesia de Odylo, em toda a sua dimensão, com a leitura de sua obra Poesia Completa, em homenagem ao seu centenário. Abrindo-lhe as páginas, vamos acompanhar o poeta na efusão dos seus sentimentos e sentir-lhe a presença nas coisas mais simples, na pureza das palavras, no diálogo com a vida e com o sonho, invocando a presença do Senhor, a iluminar os corações para a conquista da paz de todos os homens.

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Essa presença vem traduzida no seguinte poema: Presença Esta paz de todos os homens, estas vozes de crianças, este mugido de bois, este cheiro de terra, estas cores do céu, e os cabelos de minha mãe,

são a Tua presença, Senhor!

A tarde é tão leve, e a terra tão simples, _ e a vida tão quieta _, que as palavras, de impuras, morrem no coração ...

Trazendo à nossa memória a figura simples e cativante de Odylo, é-nos grato reler seus poemas, muito ricos em sua mensagem de amor e fidelidade.

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Artigos e Discursos



De como a personagem foi mestre e o autor seu aprendiz* José Saramago Nobel de Literatura, 1998.

O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Ás quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo. Chamavam-se Jerônimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outros. No Inverno, quando o frito da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom caráter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismo nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável. Ajudei muitas vezes este meu avô Jerônimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que acionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinhos, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois *

Discurso pronunciado a 7 de Dezembro de 1998 na Academia Sueca.

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haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: “José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira.” Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para todas as pessoas da casa, a figueira. Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava... No meio da paz noturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando se apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: “E depois?” Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse para não as esquecer quer fosse para as enriquecer com peripécias novas. Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerônimo era senhor de toda a ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava de parte cultivado do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé a antes do meu aço, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mai sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me

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tranquilizava: “Não falas caso, em sonhos não há firmeza.” Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer.” Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprios filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era bonito, gente, e este foi o meu avô Jerônimo, pastor contador de histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver. Muitos anos depois, escrevendo pela primeira vez sobre este meu avô Jerônimo e esta minha avó Josefa (faltou-me dizer que ela tinha sido, no dizer de quantos a conheceram quando rapariga, de uma formosura invulgar), tive consciência de que estava a transformar as pessoas comuns que eles haviam sido em personagens literárias e que essa era, provavelmente, a maneira de não os esquecer, desenhando e tornando a desenhar os seus rostos com o lápis sempre cambiante da recordação, colorindo e iluminando a monotonia de um quotidiano baço e sem horizonte, como quem vai recriando, por cima do instável mapa da memória, a irrealidade sobrenatural do país em que decidiu passar a viver. A mesma atitude de espírito que, depois de haver evocado a

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fascinante e enigmática figura de um certo bisavô berbere, me levaria a descrever mais ou menos nestes termos um velho retrato (hoje já com quase oitenta anos) onde os meus pais aparecem: “Estão os dois de pé, belos e jovens, de frente para o fotógrafo, mostrando no rosto uma expressão de solene gravidade que é talvez temor diante da câmara, no instante em que a objectiva vai, fixar, de um e do outro, a imagem que nunca mais tornarão a ter, porque o dia seguinte será implacavelmente outro dia... Minha mãe apoia o cotovelo direito numa alta coluna e segura na mão esquerda, caída ao longo do corpo, uma flor. Meu pai passa o braço por trás das costas de minha mãe e a sua mão calosa aparece sobre o ombro dela como uma asa. Ambos pisam acanhados um tapete de ramagens. A tela que serve de fundo postiço ao retrato mostra uma difusas e incongruentes arquiteturas neoclássicas.” E terminava: “Um dia tinha de chegar em que contaria estas coisas. Nada disto tem importância, a não ser para mim. Um avô berbere, vindo do Norte de África, um outro avô pastor de porcos, uma avó maravilhosamente bela, uns pais graves e formosos, uma flor num retrato – que outra genealogia pode importar-me? a que melhor árvore me encostaria?” Escrevi estas palavras quase trinta anos, sem outra intenção que não fosse reconstituir e registrar instantes da vida das pessoas que me geraram e que mais perto de mim estiveram, pensando que nada mais precisaria de explicar para que se soubesse de onde venho e de que materiais se fez a pessoa que comecei por ser e esta em que pouco a pouco me vim tornando. Afinal, estava enganado, a biologia não determina tudo, e, quanto à genética, muito misteriosos deverão ter sido os seus caminhos para terem dado uma volta tão larga... À minha árvore genealógica (perdoe-se-me a presunção de a designar assim, sendo tão minguada a substância da sua seiva) não faltavam apenas alguns daqueles ramos que o tempo e os sucessivos encontros da vida vão fazendo romper do tronco central, também lhe faltava quem ajudasse as suas raízes a penetrar até às camadas subterrâneas mais fundas, quem apurasse a consistência e o sabor dos seus frutos, quem ampliasse e robustecesse a sua copa para fazer dela

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abrigo de aves migrantes e amparo de ninhos. Ao pintar os meus pais e os meus avós com tintas de literatura, transformando-os, de simples pessoas de carne e osso que haviam sido, em personagens novamente e de outro modo construtores da minha vida, estava, sem o perceber, a traçar o caminho por onde as personagens que viesse a inventar, as outras, as efetivamente literárias, iriam fabricar e trazer-me os materiais e as ferramentas que, finalmente, no bom e no menos bom, no bastante e no insuficiente, no ganho e no perdido, naquilo que é defeito mas também naquilo que é excesso, acabariam por fazer de mim a pessoa em que hoje me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo tempo, criatura delas. Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui a s personagens que criei. Creio que, sem elas, não seria a pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida não tivesse logrado ser mais do que um esboço impreciso, uma promessa como tantas outras que de promessa não conseguiram passar, a existência de alguém que talvez pudesse ter sido e afinal não tinha chegado a ser. Agora sou capaz de ver com clareza quem foram os meus mestres de vida, os que mais intensamente me ensinaram o duro ofício de viver, essas dezenas de personagens de romance e de teatro que neste momento vejo desfilar diante dos meus olhos, esses homens e essas mulheres feitos de papel e de tinta, essa gente que eu acreditava ir guiando de acordo com as minhas conveniências de narrador e obedecendo à minha vontade de autor, como títeres articulados cujas ações não pudessem ter mais efeito em mim que o peso suportado e a tensão dos fios com que os movia. Desses mestres, o primeiro foi, sem dúvida, um medíocre pintor de retratos que designei simplesmente pela letra H., protagonista de uma história a que creio razoável chamar de dupla iniciação (a dele, mas também, de algum modo, do autor do livro), intitulado Manual de Pintura e Caligrafia, que me ensinou a honradez elementar de reconhecer e acatar, sem ressentimento nem frustração, os meus próprios limites: não podendo nem ambiciosamente aventurar-me para além do meu pequeno terreno

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de cultivo, restava-me a possibilidade de escavar para o fundo, para baixo, na direção das raízes. As minhas, mas também as do mundo, se podia permitir-me uma ambição tão desmedida. Não me compete a mim, claro está, avaliar o mérito do resultado dos esforços feitos, mas creio ser hoje patente que todo o meu trabalho, de aí para diante, obedeceu a esse propósito e a esse princípio. Vieram depois os homens e as mulheres do Alentejo, aquela mesma irmandade de condenados da terra a que pertenceram o meu avô Jerônimo e a minha avó Josefa, camponeses rudes obrigados a alugar a força dos braços a troco de um salário e de condições de trabalho que só mereceriam o nome de infames, cobrando por menos que nada a vida a que os seres cultos e civilizados que nos prezamos de ser apreciamos chamar, segundo as ocasiões, preciosa, sagrada ou sublime. Gente popular que conheci enganada por uma Igreja tão cúmplice como beneficiária do poder do Estado e dos terra-tenentes latifundiários, gente permanentemente vigiado pela polícia, gente, quantas e quantas vezes, vítima inocente das arbitrariedades de uma justiça falsa. Três gerações de uma família de camponeses, os MauTempo, desde o começo do século até à Revolução de Abril de 1974 que derrubou a ditadura, passam nesse romance a que dei o título de Levantado do Chão, e foi com tais homens e mulheres do chão levantados, pessoas reais primeiro, figuras de ficção depois, que aprendi a ser paciente, a confiar e a entregar-me ao tempo, a esse tempo que simultaneamente nos vai construindo e destruindo para de novo nos construir e outra vez nos destruir. Só não tenho a certeza de haver assimilado de maneira satisfatória aquilo que a dureza das experiências tornou virtude nessas mulheres e nesses homens: uma atitude naturalmente estoica perante a vida. Tendo em conta, porém, que a lição recebida, passados mais de vinte anos, ainda permanece intacta na minha memória, que todos os dias sinto presente no meu espírito como uma insistente convocatória, não perdi, até agora, a esperança de me vir a tornar um pouco mais merecedor da grandeza dos exemplos de dignidade que me foram propostos na imensidade das planícies do Alentejo. O tempo o dirá.

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Que outras lições poderia eu receber de um português que viveu no século XVI, que compôs as Rimas e as glórias, os naufrágios e os desencantos pátrios de Os Lusíadas, que foi um gênio poético absoluto, o maior da nossa Literatura, por muito que isso pese a Fernando Pessoa, que a si mesmo se proclamou como o Super-Camões dela? Nenhuma lição que estivesse à minha media, nenhuma lição que eu fosse capaz de aprender, salvo a mais simples que me poderia ser oferecida pelo homem Luís Vaz de Camões na sua estreme humanidade, por exemplo, a humildade orgulhosa de um autor que vai chamando a todas as portas à procura de quem esteja disposto a publicar-lhe o livro que escreveu, sofrendo por isso o desprezo dos ignorantes de sangue e de casta, a indiferença desdenhosa de um rei e da sua companhia de poderosos, o escárnio com que desde sempre o mundo tem recebido a visita dos poetas, dos visionários e dos loucos. Ao menos uma vez na vida, todos os autores tiveram ou terão de ser Luís de Camões, mesmo se não escreveram as redondilhas de “Sôbolos rios...” Entre fidalgos da corte e censores do Santo Ofício, entre os amores de antanho e as desilusões da velhice prematura, entre a dor de escrever e a alegria de ter escrito, foi a este homem doente que regressa pobre da Índia, aonde muitos só iam para enriquecer, foi a este soldado cego de um olho e golpeado na alma, foi a este sedutor sem fortuna que não voltará nunca mais a perturbar os sentidos das damas do paço, que eu pus a viver no palco da peça de teatro chamado Que Farei com Este Livro? , em cujo final ecoa uma outra pergunta, aquela que importa verdadeiramente, aquela que nunca saberemos se alguma vez chegará ater resposta suficiente: “Que fareis com este livro:” Humildade orgulhosa, foi essa de levar debaixo do braço uma obra-prima e ver-se injustamente enjeitado pelo mundo. Humildade orgulhosa também, e obstinada, esta de querer saber para que irão servir amanhã os livros que andamos a escrever hoje, e logo duvidar que consigam perdurar longamente (até quando?) as razões tranquilizadoras que acaso nos estejam a ser dadas ou que estejamos a dar a nós próprios. Ninguém melhor se engana que quando consente que o enganem os outros...

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Aproximam-se agora um homem que deixou a mão esquerda na guerra e uma mulher que veio ao mundo com o misterioso poder de ver o que há por trás da pele das pessoas. Ele chama-se Baltasar Mateus e tem a alcunha de Sete-Sóis, a ela conhecem-na pelo nome de Blimunda, e também pelo apodo de Sete-Luas que lhe foi acrescentado depois, porque está escrito que onde haja um sol terá de haver uma lua, e que só a presença conjunta e harmoniosa de um e do outro tornará habitável, pelo amor, a terra. Aproxima-se também um padre jesuíta chamado Bartolomeu que inventou uma máquina capaz de subir ao céu e voar sem outro combustível que não seja a vontade humana, essa que, segundo se vem dizendo, tudo pode, mas que não pôde, ou não soube, ou não quis, até hoje, ser o sol e a lua da simples bondade ou do ainda mais simples respeito. São três loucos portugueses do século XVIII, num tempo e num país onde floresceram as superstições e as fogueiras da Inquisição, onde a vaidade e a megalomania de um rei fizeram erguer um convento, um palácio e uma basílica que haveriam de assombrar o mundo exterior, no caso pouco provável de esse mundo ter olhos bastantes para ver Portugal, tal como sabemos que os tinha Blimunda para ver o que escondido estava... E também se aproxima uma multidão de milhares e milhares de homens com as mãos sujas e calosas, com o corpo exausto de haver levantado, durante anos a fio, pedra a pedra, os muros implacáveis do convento, as salas enormes do palácio, as colunas e as pilastras, as aéreas torres sineiras, a cúpula da basílica suspensa sobre o vazio. Os sons que estamos a ouvir são do cravo de Domenico Scarlatti, que não sabe se deve rir ou chorar... Esta é a história de Memorial do Convento, um livro em que o aprendiz de autor, graças ao que lhe vinha sendo ensinado desde o antigo tempo dos seus avós Jerônimo e Josefa, já conseguiu escrever palavras como estas, donde não está ausente alguma poesia: “Além da conversa das mulheres, são os sonhos que seguram o mundo na sua órbita. Mas são também os sonhos que lhe fazem uma coroa de luas, por isso o céu é o resplendor que há dentro da cabeça dos homens, se não é a cabeça dos homens o próprio e único céu.” Que assim seja.

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De lições de poesia sabia já alguma coisa o adolescente, aprendidas nos seus livros de texto quando, numa escola de ensino profissional de Lisboa, andava a preparar-se para o ofício que exerceu no começo da sua vida de trabalho: o de serralheiro mecânico. Teve também bons mestres da arte poética nas longas horas noturnas que passou em bibliotecas públicas, lendo ao acaso de encontros e de catálogos, sem orientação, sem alguém que o aconselhassem com o mesmo assombro criador do navegante que vai inventando cada lugar que descobre. Mas foi na biblioteca da escola industrial que O Ano de Morte de Ricardo Reis começou a ser escrito... Ali encontrou um dia o jovem aprendiz de serralheiro (teria então 17 anos) uma revista – Atena era o título – em que havia poemas assinados com aquele nome e, naturalmente, sendo tão mau conhecedor da cartografia literária do seu país, pensou que existia em Portugal um poeta que se chamava assim: Ricardo Reis. Não tardou muito tempo, porém, a saber que o poeta propriamente dito tinha sido um tal Fernando Nogueira Pessoa que assinava poemas com nomes de poetas inexistentes nascidos na sua cabeça e a que chamava heterônimo, palavra que não constava dos dicionários da época, por isso custou tanto trabalho ao aprendiz de letras saber o que ela significava. Aprendeu de cor muitos poemas de Ricardo Reis (“Para se grande sê inteiro/ Põe quanto és no mínimo que fazes.”), mas não podia resignar-se, apesar de tão novo e ignorante, a que um espírito superior tivesse podido conceber, sem remorso, este verso cruel: “Sábio é o que s contenta com o espetáculo do mundo.” Muito, muito tempo depois, o aprendiz, já de cabelos brancos e um pouco mais sábio das suas próprias sabedorias, atreveu-se a escrever um romance para mostrar ao poeta das Odes alguma coisa do que era o espetáculo do mundo nesse ano de 1936 em que o tinha posto a viver os seus últimos dias: a ocupação da Renânia pelo exército nazista, a guerra de Franco contra a República espanhola, a criação por Salazar das milícias fascistas portuguesas. Foi como se estivesse a dizer-lhe: “Eis o espetáculo do mundo, meu poeta das amarguras serenas e do cepticismo elegante. Desfruta, goza, contempla, já que estar sentado é a tua sabedoria...”

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O Ano da Morte de Ricardo Reis terminava com umas palavras melancólicas: “Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.” Portanto, não haveria mais descobrimentos para Portugal, apenas como destino uma espera infinita de futuros nem ao menos imagináveis: só o fado do costume, a saudade de sempre, e pouco mais... Foi então que o aprendiz imaginou que talvez houvesse ainda uma maneira de tornar a lançar os barcos à água, por exemplo, mover a própria terra e pô-la a navegar pelo mar fora. Fruto imediato do ressentimento coletivo português pelos desdéns históricos da Europa (mais exato seria dizer fruto de um meu ressentimento pessoal...), o romance que então escrevi – A Jangada de Pedra – separou do continente europeu toda a Península Ibérica para a transformar numa grande ilha flutuante, movendo-se sem remos, nem velas, nem hélices em direção ao Sul do mundo, “massa de pedra e terra, coberta de cidades, aldeias, rios, bosques, fábricas, matos bravios, campos cultivados, com a sua gente e os seus animais”, a caminho de uma utopia nova: o encontro cultural dos povos peninsulares com os povos do outro lado do Atlântico, desafiando assim, a tanto a minha estratégia se atreveu, o domínio sufocante que os Estados Unidos da América do Norte vêm exercendo naquelas paragens... Uma visão duas vezes utópica entenderia esta ficção política como uma metáfora muito mais generosa e humana: que a Europa, toda ela, deverá deslocarse para o Sul, a fim de, em desconto dos seus abusos colonialistas antigos e modernos, ajudar a equilibrar o mundo. Isto é, Europa finalmente como ética. As personagens da Jangada de Pedra – duas mulheres, três homens e um cão – viajam incansavelmente através da península enquanto ela vai sulcando o oceano. O mundo está a mudar e eles sabem que devem procurar em si mesmos as pessoas novas em que irão tornar-se (sem esquecer o cão, que não é um cão como os outros...). Isso lhes basta. Lembrou-se então o aprendiz de que em tempos da sua vida havia feito algumas revisões de provas de livros e que se na Jangada de Pedra tinha, por assim dizer, revisado o futuro, não estaria mal que revisasse agora o passado, inventando um romance que se chamaria História do Cerco de Lisboa, no qual

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um revisor, revendo um livro do mesmo título, mas de História, e cansado de ver como a dita História cada vez é menos capaz de surpreender, decide pôr no lugar de um “sim” um “não”, subvertendo a autoridade das “verdades históricas”. Raimundo Silva, assim se chama o revisor, é um homem simples, vulgar, que só se distingue da maioria por acreditar que todas as coisas têm o seu lado visível e o seu lado invisível e que não saberemos nada delas enquanto não lhes tivermos dado a volta completa. Disso precisamente se trata numa conversa que ele tem com o historiador. Assim: “Recordo-lhe que os revisores já viram muito de literatura e vida, O meu livro, recordo-lho eu, é de história, Não sendo propósito meu apontar outras contradições, senhor doutor, em minha opinião tudo quanto não for vida é literatura, A história também. A história sobretudo, sem querer ofender, E a pintura, e a musica, A música anda a resistir que nasceu, ora vai, ora vêm, quer livrar-se da palavra, suponha que por inveja, mas regressa sempre à obediência, E a pintura, Ora, a pintura não é mais que literatura feita com pinceis, Espero que não esteja esquecido de que a humanidade começou a pintar muito antes de saber escrever, Conhece o rifão, se não tens cão caça com o gato, ou, por outras palavras, quem não pode escrever, pinta, ou desenha, é o que fazem as crianças, O que você quer dizer, por outras palavras, é que a literatura já existia antes de ter nascido, Sim senhor, como o homem, por outras palavras, antes de o ser já o era, Quer-me parecer que você errou a vocação, devia érea ser historiador, Falta-me o preparo, senhor doutor, que pode um simples homem fazer sem o preparo, muita sorte já foi ter vindo ao mundo com a genética arrumada, mas, por assim dizer, em estado bruto, e depois não mais polimento que primeiras letras que ficaram únicas, Podia apresentar-se como autodidata, produto do seu próprio e digno esforço, não é vergonha nenhuma, antigamente a sociedade tinha orgulho nos seus autodidatas, Isso acabou, veio o desenvolvimento e acabou, os autodidatas são vistos com maus olhos, só os que escrevem versos e histórias para distrair é que estão autorizados a ser autodidatas, mas eu para a criação literária nunca tive jeito, Então, meta-se a filósofo, O senhor doutor é um

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humorista, cultiva a ironia, chego a perguntar-me como se dedicou à história, sendo ela tão grave e profunda ciência, Sou irônico apenas na vida real, Bem me queria a mim parecer que a história não é a vida real, literatura, sim, e nada mais, Mas a história foi vida real no tempo em que ainda não se lhe poderia chamar história, Então o senhor doutor acha que a história é a vida real, Acho, sim, Que a história foi vida real, quero dizer, Não tenho a menor dúvida, Que seria de nos se o deleatur que tudo apaga não existisse, suspirou o revisor.” Escusado será acrescentar que o aprendiz aprendeu com Raimundo Silva a lição da dúvida. Já não era sem tempo. Ora, foi provavelmente esta aprendizagem da dúvida que o levou, dois anos mais tarde, a escrever O Evangelho segundo Jesus Cristo. É certo, e ele tem-no dito, que as palavras do título lhe surgiram por efeito de uma ilusão de ótica, mas é legítimo interrogar-nos se não teria sido o sereno exemplo do revisor o que, nesse meio-tempo, lhe andou a preparar o terreno de onde haveria de brotar o novo romance. Desta vez não se tratava de olhar por trás das páginas do Novo Testamento à procura de contrários, mas sim de iluminar com uma luz rasante a superfície delas, como se faz a uma pintura, de modo a fazer-lhe ressaltar os relevos, os sinais de passagem, a obscuridade das depressões. Foi assim que o aprendiz, agora rodeado de personagens evangélicas, leu, como ser fosse a primeira vez, a descrição da matança dos Inocentes, e, tendo lido, não compreendeu. Não compreendeu que já pudesse haver mártires numa religião que ainda teria de esperar trinta anos para que o seu fundador pronunciasse a primeira palavra dela, não compreendeu que não tivesse salvado a vida das crianças de Belém precisamente a única pessoa que o poderia ter feito, não compreendeu a ausência, em José, de um sentimento mínimo de responsabilidade, de remorso, de culpa, ou sequer de curiosidade, depois de voltar do Egito com a família. Nem se poderá argumentar, em defesa da causa, que foi necessário que as crianças de Belém morressem para que pudesse salvarse a vida de Jesus: o simples senso comum, que a todas as coisas, tanto às humanas como às divinas, deveria presidir, aí está para

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nos recordar que Deus não enviaria o seu Filho à terra, de mais a mais com o encargo de redimir os pecados da humanidade, para que ele viesse a morrer aos dois anos de idade degolado por um soldado de Herodes... Nesse Evangelho, escrito pelo aprendiz com o respeito que merecem os grandes dramas, José será consciente da sua culpa, aceitará o remorso em castigo da falta que cometeu e deixar-se-á levar à morte quase sem resistência, como se isso lhe faltasse ainda para liquidar as suas contas com o mundo. O Evangelho do aprendiz não é, portanto, mais uma lenda edificante de bem-aventurados e de deuses, mas a história de uns quantos seres humanos sujeitos a um poder contra o qual lutam, mas que não podem vencer. Jesus, que herdaria as sandálias com que o pai tinha pisado o pó dos caminhos da terra, também herdará dele o sentimento trágico da responsabilidade e da culpa que nunca mais o abandonará, nem mesmo quando levantar a voz do alto da cruz: “Homens, perdoai-lhe porque ele não sabe o que fez”, por certo referindo-se ao Deus que o levara até ali, mas quem sabe se recordando ainda, nessa agonia derradeira, o seu pai autêntico, aquele que, na carne e no sangue, humanamente o gerara. Como se vê, o aprendiz já tinha feito uma larga viagem quando no seu herético Evangelho escreveu as últimas palavras do diálogo no templo entre Jesus e o escriba: “A culpa é um lobo que come o filho depois de ter devorado o pai, disse o escriba, Esse lobo de que falas já comeu o meu pai, disse Jesus, Então só falta que te devore a ti, E tu, na tua vida, foste comido, ou devorado, Não apenas comido e devorado, mas vomitado, respondeu o escriba.” Se o imperador Carlos Magno não tivesse estabelecido no Norte da Alemanha um mosteiro, se esse mosteiro não tivesse dado origem à cidade de Münster, se Münster não tivesse querido assinalar os mil e duzentos anos da sua fundação com uma ópera sobre a pavorosa guerra que enfrentou no século XVI protestantes anabaptistas e católicos, o aprendiz não teria escrito a peça de teatro a que chamou In Nomine Dei. Uma vez mais, sem outro auxílio que a pequena luz da sua razão, o aprendiz teve de penetrar no obscuro labirinto das crenças religiosas, essas que com tanta facilidade levam os seres humanos a matar e a deixar-se matar.

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E o que fui novamente a máscara horrendo da intolerância, uma intolerância que em Münster atingiu o paroxismo demencial, uma intolerância que insultava a própria causa que ambas as partes proclamavam defender. Porque não se tratava de uma guerra em nome de dois deuses inimigos, mas de uma guerra em nome de um mesmo deus. Cegos pelas suas próprias crenças, os anabaptistas e os católicos de Münster não foram capazes de compreender a mais clara de todas as evidências: no dia do Juízo Final, quando uns e outros se apresentarem a receber o prêmio ou o castigo que mereceram as suas ações na terra, Deus, se em suas decisões se rege por algo parecido à lógica humana, terá de receber no paraíso tanto a uns como aos outros, pela simples razão de que uns e outros nele crêem. A terrível carnificina de Münster ensinou ao aprendiz que, ao contrário do que prometeram, as religiões nunca serviram para aproximar os homens, e que a mais absurda de todas as guerras é uma guerra religiosa, tendo em consideração que Deus não pode, ainda que o quisesse, declarar guerra a si próprio... Cegos. O aprendiz pensou: “Estamos cegos”, e sentou-se a escrever o Ensaio sobre a Cegueira para recordar a quem o viesse a ler que usamos perversamente a razão quando humilhamos a vida, que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo, que a mentira universal tomou o lugar das verdades plurais, que o homem deixou de respeitar-se a si mesmo quando perdeu o respeito que devia ao seu semelhante. Depois, o aprendiz, como se tentasse exorcizar os monstros engendrados pela cegueira da razão, pôs-se a escrever a mais simples de todas as histórias: uma pessoas que vai à procura de outra pessoa apenas porque compreendeu que a vida não tem nada mais importante que pedir a um ser humano. O livro chama-se Todos os Nomes. Não escritos, todos os nossos nomes estão lá. Os nomes dos vivos e os nomes dos mortos. Termino. A voz leu estas páginas quis ser o eco das vozes conjuntas das minhas personagens. Não tenho, a bem dizer, mais voz que a voz que elas tiverem. Perdoai-me se vos pareceu pouco isto que para mim é tudo. 64 |

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Breve Notícia do Ensino de Literatura Portuguesa no Piauí*

M. Paulo Nunes

Com a instalação da Assembleia Legislativa e Constituinte, em 3 de maio de 1823, D. Pedro elege como preocupação das mais sérias do governo Imperial a de uma legislação sobre a instrução pública no país. E dela resultaram dois projetos significativos: o chamado Projeto de Tratado da Educação para a Mocidade Brasileira e o da criação de Universidades. O projeto de criação de Universidades teve sua primeira apresentação na Constituinte de 1823, uma Assembleia bastante conturbada, vindo a ser dissolvida pelo próprio Imperador, com a outorga de uma nova Constituição, a de 1824. De acordo com o modelo instituído para as universidades, haveria uma no norte, na cidade de Olinda, em Pernambuco, e outra, no sul, em São Paulo, facultando-se às demais províncias a fundação de iguais estabelecimentos, mantidos por conta própria, ou seja, a cargo das demais províncias. Desse fruto peco da mente imperial prevaleceria apenas a ideia central de um curso em São Paulo, e outro, em Olinda, medida esta que se efetivaria com a criação dos dois cursos jurídicos nas duas cidades já nomeadas no referido projeto, em 11 de agosto de 1827, ao estabelecer as bases da criação dos dois cursos no Brasil. A nossa Faculdade de Direito, criada em 1931, segundo o modelo da Faculdade do Recife, passa a constituir, durante muito *

Palavras proferidas no V Congresso Norte/Nordeste da Associação Brasileira Professores de Literatura Portuguesa – ABRAPLIP, realizado na Universidade Federal do Piauí, em 6-8.10.2014.

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tempo, até o final da década de 60, o único estabelecimento de ensino superior no Estado. É ela assim herdeira e depositária do legado da Escola do Recife, que se fez em torno do legado da Faculdade de Direito de Olinda, que veio do Império e foi responsável, durante muito tempo, pela renovação dos estudos jurídicos e filosóficos do país. Em 1958, sob a inspiração de D. Avelar Brandão Vilela e atendendo ao reclamo da coletividade piauiense, é que surge a Faculdade Católica de Filosofia do Piauí, a nossa sempre lembrada FAFI, com o propósito de ampliar a formação pedagógica dos nossos docentes do ensino médio. Esta Escola, diferentemente da Faculdade de Direito, a par da formação profissional de docentes para o ensino de 1º e 2º graus, hoje, ensino fundamental e médio, é que vem criar uma nova atmosfera e uma nova feição educacional no Estado, transformando, por completo, o clima e a vivência acadêmica em nossa capital. Há um propósito de mudança e transformação social e política entre nós, fazendo com que velhos conceitos e velhas posturas sociais e acadêmicas sejam modificadas. Como aquele período coincide com o da repressão política exercida pelos agentes da ditadura militar imposta ao país, em 1964, e que duraria 21 anos, a nova Escola passou a ser visada pelo ambiente de repressão brutal que se seguiu á deflagração daquele Movimento, visando expressamente às manifestações públicas da classe estudantil. O recente livro do professor Antônio José Castello Branco Medeiros – 1968 – uma geração contra a ditadura (Quimera – Editora – Instituto Presente) traça um retrato vivo desse quadro de opressão e desrespeito aos direitos humanos e as liberdades públicas que vivemos em nosso Estado e em nosso país. O ensino secundário oficial no Estado foi instituído mediante a criação, em 1845, ainda em Oeiras, então capital do Estado, do Liceu Piauiense, pelo governador Zacarias de Góis e Vasconcelos. O Liceu, que para cá se transferiu, com a nova capital, passou a ser o estabelecimento padrão do ensino secundário no Estado e por ele transitaram as mais distinguidas personalidades

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do mundo intelectual do Estado, ora, como alunos, ora, como professores. O ensino da Língua Portuguesa e de sua Literatura, naquele estabelecimento de ensino e nos demais da rede particular do Estado, que inicialmente contaria apenas com o Colégio Diocesano e o Colégio Sagrado Coração de Jesus ou o das Irmãs, como era chamado, pôde contar com o concurso de três expressivas figuras do nosso magistério secundário – os professores Martins Napoleão, Clemente Fortes e Antônio Castro, agregando-se ainda a eles a do professor João Soares da Silva, principalmente no que diz respeito ao ensino do latim e da parte filológica do ensino da língua. Martins Napoleão, intelectual de renome, como inspirado e excelso poeta, é uma das individualidades mais fascinantes que conheci. Membro e expresidente da Academia Piauiense de Letras, e de cuja alta poesia é exemplo vivo o poema lírico “Balada de um olhar inigualável” de seu livro Cancioneiro Geral, uma coletânea de sua alta poesia, que a velha geração repetia sempre, em momento de celebração e euforia, é o nosso poeta neoclássico, por excelência. Vejamos a Balada: “Digam-me embora que o universo é cheio de maravilhas sobrenaturais. Digam-me embora, digam! que eu não creio e, ante os seus olhos, não crerei jamais! Inutilmente pelo céu brilhais, estrelas mortas! nem a luz do luar é, na glória das noites tropicais, profunda e bela como o seu olhar. Cintile, embora, pela terra, o veio dágua, partido em feixes de cristais. Pode a terra trazer, do ignoto seio, toda a fulguração dos minerais – pedras que finjam verdadeiros ais de sombra, em luz a se cristalizar... Brilhem embora: não há nada mais profundo e belo do que o seu olhar.

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Voem as almas, num supremo anseio, acima das esferas siderais. Desçam, depois, aqui, que não receio haja outra luz de brilhos imortais que aclare tanto, que ilumine mais: não é sequer a lâmpada do altar, nem um farol, em meio aos temporais, profundo e belo como o seu olhar. Esta balada, trêmulo, receio não seja digna de vos ofertar: não vejo nada, desta vida em meio, profundo e belo como o vosso olhar.”

Cedo mudar-se-ia para o Rio de Janeiro, onde passou a exercer funções de alta relevância na área jurídica do Banco do Brasil, e onde veio a falecer. Quanto a Clemente Fortes, foi ele meu professor, da primeira série ginasial ao último ano do curso jurídico, com o breve intervalo do curso clássico do Liceu, quando passei a ser aluno do Professor João Soares da Silva, que ali o substituiu, quando de sua opção pela então Escola Técnica Federal do Piauí. Devo ao Prof. João Soares a indicação da leitura de Eça de Queiroz, eciano que era, leitura esta que nunca mais abandonaria. Os Maias, obra sobre a qual tenho escrito com regularidade, e já li inúmeras vezes, assinala a minha agradável iniciação em Eça. Na 1ª série do Colégio Diocesano, tive como professora, excelente mestra, por sinal, que vivia com persistente dor de cabeça, a Profa. Maria Isabel Gonçalves Vilhena (D. Neném Vilhena), poetisa de renome, membro efetivo de nossa Academia, autora de uma obra de fina sensibilidade e alta inspiração – Seara humilde e figura marcante também do nosso magistério de Língua Portuguesa. Quanto a Clemente Fortes, tenho-lhe uma devoção particular, feita de um grande respeito por sua personalidade de intelectual dos mais brilhantes que já transitaram entre nós e a quem devo muito de minha formação de professor e de homem de

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letras. Que ele descanse em paz em qualquer lugar em que esteja. Em relação ao alunado do Liceu e posteriormente do curso de Letras da Faculdade, devo dizer-lhes que este convívio foi para mim dos melhores e dos mais gratificantes. Comecei a lecionar no Liceu, aos 22 anos, vindo do ensino particular, que iniciei aos 19 anos incompletos, no Ginásio Demóstenes Avelino. Foi uma experiência fascinante, porquanto ali teve início o meu magistério de literatura portuguesa e brasileira pelas quais logo me apaixonaria. Trazia as lições de literatura portuguesa, desde os seus primórdios, com os cancioneiros medievais, passando pela poesia palaciana que, apesar da sentença condenatória de Teófilo Braga, muito me encantaria e dela guardo as melhores lembranças, como a daquele poemeto de João Roiz de Castelo Branco, “Cantiga sua, partindose”, que ainda hoje guardo de memória, ou o Cancioneiro Geral, de Garcia de Rezende, no qual me encantaria com o tema do amor e morte de Inês de Castro, um dos mais férteis da Literatura Portuguesa, que continuaria com a bela tragédia A Castro, da autoria de Antônio Ferreira, na fase clássica daquela literatura e com a qual se anteciparia de um século à tragédia amorosa francesa, que culmina em Racine. Ou o episódio de Inês de Castro d’Os Lusiadas, do genial Luís de Camões, sobre o mesmo tema. Vou ficando por aqui porquanto seria este assunto para muita tinta e papel, até os dias atuais, com a primorosa romancista e historiadora Agustina Bessa Luiz, com Advinhos de Pedro e Ynez ou o clássico estudo D. Pedro e D. Inês, que Fernão Lopes chamou O grande desvairol, da autoria de Antero de Figueiredo, cuja 7ª edição guardo com o maior carinho. E viria assim, ainda no século XVI, a figura ímpar de Gil Vicente e o seu teatro popular, que há pouco evocaria em estudo sobre Ariano Suassuna, que lhe retoma o modelo com o Auto da Compadecida, para chegar afinal a Garrett, com a ressurreição do teatro, através da peça Um Auto de Gil Vicente e a tragédia Frei Luís de Sousa, a que acresce a poesia lírica com o poema Camões, e o romance histórico. Aquela bela tragédia se alteia com as figuras

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dramáticas de Manoel de Sousa Coutinho, que professara com o nome de Frei Luís de Sousa, com o qual subscreve seus trabalhos literários, e de D. Madalena de Vilhena, vivendo aquela tragédia de um lar desfeito pelo reaparecimento do primeiro marido, seguindo-se-lhe Alexandre Herculano e o sempiterno Eça, mal chegando aos modernistas, já ao final do curso. Também, para finalizar, desejaria incluir aqui outra face, supostamente, a última fase do meu magistério de literatura, esta através de jornais e publicações especializadas, notadamente, após meu retorno ao Piauí, quando assumi, por breve período, a presidência de nossa Academia. Refiro-me a autores como Miguel Torga, o contista dos Contos da montanha e o memorialista; Vitorino Nemésio, com o seu belo romance Mau tempo no canal, Fernando Namora e Vergílio Ferreira e o seu romance existencial, com quem cheguei a corresponder-me ainda e cheguei a prometer-lhe um estudo mais denso sobre sua obra, promessa infelizmente não cumprida. Esta fase vem registrado nos dois últimos volumes de minha obra de crítica literária – Modernismo & Vanguarda, que virá a público ainda este ano, complementando a parte anteriormente publicada em dois volumes e que assim complementam meu curso completo de literatura (portuguesa, brasileira e hispano-americana). No Liceu, tive excelentes alunos, alguns dos quais se fizeram também professores, mais professoras do que professores, como Cecília Mendes, Maria Figueiredo, Raimunda das Dores Santos, a homenageada de hoje, a nossa querida Dorinha, criatura doce, inteligente e culta, a quem cederei, mais uma vez, a cátedra, para dar continuidade a este ato, como quando tive que deixá-la para servir no Ministério da Educação, em Brasília, num momento de profundo desencanto com a nossa terra que tanto amo e amarei sempre, até o alento final.

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O PARAÍSO NA OUTRA ESQUINA*

M. Paulo Nunes

Não fora a recomendação expressa do velho Herculano Moraes, confrade ilustre de nossa Academia Piauiense de Letras, para que escrevesse o discurso, e não o improvisasse a fim de atendermos à praxe acadêmica, com certeza já estaríamos aqui metidos de ponta-cabeça em velhas lembranças, amarantinas ou teresinenses, do agradável e iluminado convívio com esse príncipe da convivência, que é Olemar. Como os escritores vivem de lembranças, conforme costumo dizer, teríamos muitos assuntos a evocar aqui, a partir daquele momento em que iniciamos esse agradável convívio. Começaremos pelo encontro da nossa geração, a brilhante geração do velho Diocesano, que revelou figuras públicas do maior realce, como Petrônio Portella, Djalma Veloso, ambos depois governadores, Raimundo Santana, os dois Leal, Raimundo e Sebastião, depois outros mais de outras turmas, como Dirceu Arcoverde, também governador, morto em pleno exercício da função pública, já como senador, vítima de um acidente vascular cerebral; Expedito Rezende, embaixador, morto também em plena função pública, como nosso embaixador no Vaticano; Lucídio Portella, também governador e senador, já fazendo o último ano do curso, quando ali chegamos; em suma, todos integrantes daquela geração gloriosa do Colégio Diocesano que, à exceção de quem vos fala, marcaram por longos anos sua presença na vida pública do Estado. Mas, vamos ao nosso encontro singular. Encontramonos à noite, em pleno salão de estudos do velho Colégio, em dias de janeiro de 1938, quando ali adentra aquela figura alta, um tanto alourada, com ar espantado e ligeiramente desconfiado, *

PDiscurso de recepção a Olemar de Souza Castro, na Academia de Letras do Médio Parnaíba, em Amarante-PI.

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suscitando o comentário de um dos veteranos mais afoitos: – quem é este calouro “galalau” que aí vai entrando? o que motivou imensa gargalhada de todo o salão. Ali realizamos a primeira etapa da nossa aprendizagem, seguindo depois rumos diferentes. Olemar, cuidando logo da vida prática, deixaria os estudos em meio ao último ano do curso secundário, no Liceu, e se tornaria um eficiente gerente de vendas, numa firma exportadora de renome e eu, concluído o ginásio, já sob a reforma Capanema, que dividira o antigo curso secundário de cinco anos sob a reforma Campos, em duas fases, o ginásio e o colégio, de quatro e sete anos, respectivamente, encaminhandome para o magistério secundário e superior, aos dezenove anos incompletos, realizando, em seguida, o curso superior de direito, em nossa velha Faculdade de Direito, a única escola superior existente no Estado, fundada em 1931, e seguindo a tradição da antiga Faculdade de Direito do Recife, uma vez que todos os seus professores ali se formaram. Aos 22 anos de idade, já era professor do Liceu, num trânsito de função pública que hoje me pergunto ainda como consegui transpô-lo com segurança. Seguimos assim destinos diferentes, e a vida nos separava para nos juntar mais tarde, depois de ambos seguirmos uma longa jornada. O orador que vos fala veio a unir-se, pelo matrimônio, à sua prima irmã, Clara, também amarantina, como Olemar. Depois de casar-se com a Heleny, oriunda de tradicional família oeirense, filha do então deputado estadual e homem de empresa, Miguel Pereira Dias de Oliveira, que cheguei ainda a conhecer, e de D. Gerusa Rego de Oliveira, ilustre dama da sociedade de nossa ex-capital. Em seguida após o nascimento, ainda em Oeiras, da primeira filha, a doce Virgínia, nossa princesa bávara, vão residir em São Paulo. Naquela cidade, se realiza como empresário, nascemlhe as belas filhas, Marlene e Vânia, que ai estão compondo este belo cenário. Lá se casam as três com altas figuras da aristocracia empresarial e quatrocentona daquela estonteante capital, uma das mais ativas e emocionantes cidades do mundo, à qual dedica

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o papa do Modernismo, Mário de Andrade, aquela bela estrofe da Paulicéia Desvairada: “São Paulo, comoção de minha vida!/ Galicismo a berrar nos desertos da América.” Após aposentar-se, como empresário bem sucedido, no ramo industrial, dando seguimento ao seu espírito industrioso e criativo, a vida do nosso recipiendário sofre uma inflexão surpreendente. Volta-se ele então para as artes e as letras, tornando-se pintor e escritor. Como artista plástico, o maior motivo de inspiração do novo pintor é a sua encantadora Amarante, uma das mais belas cidades do mundo, em sua concepção, ele, que bem conhece boa parte do mundo. Ali está a comprová-lo o belo quadro que se acha exposto no Museu da cidade, a Casa Odilon Nunes, em que retrata o “morro do pontal”, com a sua belíssima escadaria construída por seu pai, Olegário Veríssimo de Castro, eficiente prefeito desta velha urbe. Como escritor, é ele autor de duas obras significativas, a primeira delas, Sol poente, publicada em 1991 e reformulada em sua 2ª edição, em 2008, e a segunda, Minhas duas pátrias, (2009), aqui lançada, com pompa e circunstância, na Academia Piauiense de Letras e de que fui o apresentador, e também nesta cidade. A primeira é um livro de lembranças, da “Boa Nova”, uma bela propriedade rural de seu avô materno, o Cap. Marcelino Luís de Souza. Dizem que a vida imita a arte. Eu às vezes chego a pensar o contrário: a arte, ao contrário, é que imita a vida. Vejam um fato bastante expressivo, para nos limitarmos apenas a ele, e não enchermos este discurso de recepção de um amontoado de fatos da vida literária, em que é fértil a imaginação do orador que vos fala, em sua sedução pelo fazer literário. Trata-se de um episódio da vida e da obra do pintor francês Paul Gauguin, recomposto em duas obras literárias das mais expressivas, no gênero: Um gosto e seis vinténs, romance da

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autoria de Somerset Maugham, romancista inglês que esteve em voga nas décadas de 40 e 50, e hoje totalmente desconhecido, a despeito de ser autor de uma obra-prima, que é o romance Servidão Humana. (Não morram antes de ler este livro!). A outra obra que explora o mesmo tema, já aí de forma mais prospectiva, é o livro de contos O Paraíso na outra esquina, do grande romancista peruano Mário Vargas Llosa, Nobel de Literatura de 2011. O primeiro, que dá título à coletânea, trata também, com mais profundidade da vida de Gauguin, e um outro tão grandioso quanto este, da pintora Frida Kahlo. Não deixem de lê-los também, pois perderiam parte significativa de suas vidas. O enredo da vida de Gauguin, contido nessas duas obras é fascinante. É ele funcionário de um banco localizado em Paris. Um dia, quando menos se espera, sai ele do banco, toma um navio no Havre e empreende a aventura mais emocionante de sua vida. Chega ao Tahiti, no Pacífico, ali se instala e começa a realizar, na pintura, a obra monumental que transforma por completo a sua vida e o converte num dos gênios da pintura contemporânea. Não vou mais prosseguir nesta história, deixando-vos o prazer de concluí-la, lendo, é claro, as duas obra antes indicadas, como ponto de partida. Olemar parece ter, inconscientemente, seguido de perto a trajetória de Gauguin, sinal de que a vida, no caso, imitou a arte. Falei já em sua pintura. Quanto às obras literárias, na primeira delas, Sol Poente, reconstitui ele aqui, primorosamente, o ambiente social e político da Boa Nova. Recompõe o autor, no caso, o memorialista, o meio social daquele modelar núcleo populacional, um dos mais belos daquele espaço social, a exemplo do que fizeram os representantes do chamado romance moderno de 30 ou de documentação social da vida brasileira, como é o caso de José Lins do Rego com Banguê e Fogo Morto, por exemplo. Aqui, recompõe Olemar, com mão de mestre, o meio social daquela comunidade, tão ativa e cheia

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de vida, com os seus festejos na igrejinha que o preside, com as animadas festas promovidas pela banda de música de seu tio Aníbal, os casamentos familiares, como o de sua genitora, D. Mariquinha, no registro civil, Maria de Souza Castro, cujas bodas duraram quase uma semana, a tudo presidindo a figura animosa de seu chefe, o Cap. Marcelo, ele próprio uma figura de romance. Seu tratamento dispensado á comunidade do povoado Canto, hoje município, com o nome de Santo Antônio dos Milagres, que lhe ficava vizinha e com a qual comerciava mercadoria e serviços, era dos mais peculiares, lembrando a figura de um senhor feudal humano e justo. Não vamos mais nos aprofundar no assunto que demandaria o concurso de ensaístas políticos e da qual já se ocuparam linguistas como a Profa. Catarina de Sena Mendes da Costa, da Universidade Federal, que fez um levantamento linguístico e etnográfico daquela comunidade, para a sua tese de mestrado, reconstituindo aquela aldeia primitiva com um sabor de vida e um encanto peculiar. Em seu outro livro, Minhas duas pátrias, está presente, de forma perfeita, o memorialista, contando, em linguagem evocativa e prenhe de significados emocionantes, sua experiência de vida, uma aventura humana exemplar, até chegar à serenidade e tolerância de que hoje desfruta e é para mim traço admirável, porquanto o considero um belo exemplo de vida e de sabedoria. Em relação a esta obra eu diria que, se dependesse de mim, se por acaso fosse eu secretário de educação no Estado, a adotaria como obra obrigatória no currículo das escolas do Estado, pelo exemplo e a bela lição de vida que encerra. Quando estava escrevendo este breve discurso de recepção em nossa Academia, pedi ao recipiendário de hoje que me mandasse alguns dados biográficos seus para nele incluí-los e completar assim o seu perfil de homem múltiplo, e sou gratificado com esse auto-retrato tão singelo e ao mesmo tempo tão perfeito de sua onimoda personalidade de cidadão exemplar que aqui simplesmente transcrevo, da forma que o recebi, passando assim ele a fazer parte deste perfil acadêmico.

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Nasceu Olemar em Amarante-PI, em 10.09.23, filho de Olegário Veríssimo de Castro e de Maria Souza Castro. O pai exerceu o mandato de prefeito, na década de 1950, tendo deixado, em sua gestão, a escadaria “Da Costa e Silva”, considerada o mais importante marco da cidade. Fez o curso ginasial no Colégio São Francisco de Sales, conhecido como Colégio Diocesano, tendo se matriculado depois no curso colegial do Liceu Piauiense, hoje Colégio Estadual Zacarias de Góis. Aos 19 anos interrompeu seus estudos, no último semestre do terceiro ano do curso científico. Pouco tempo depois foi admitido na empresa Moraes S.A, importadora e exportadora, de Parnaíba-PI, na sua filial de Floriano do mesmo Estado, onde passou a residir. Durante sua permanência na cidade, fundou o Aeroclube local. Na década de 1959 foi destacado para uma pesquisa para avaliação da capacidade de produção de cera de carnaúba, no município de Oeiras-PI, onde permaneceu por algum tempo e se casou, no ano de 1951. Após um ano de casado, mudou-se com a família para a capital do Estado de São Paulo, atendendo a um convite para administrar uma empresa de produtos odontológicos. Em seguida, ocupou o cargo de sócio-diretor de uma Agência Publicitária que explorava anúncios internos em ônibus coletivos na cidade. Enquanto preparava a abertura de sua própria indústria, trabalhou no departamento de expansão de assinaturas da extinta revista “Visão”. Publicou seu primeiro livro em 1991, intitulado Sob o Sol Poente, no qual salienta o aspecto social incomum vivido na região, em uma fazenda do sertão piauiense, na década de 20, reeditado e ampliado, no ano de 2010. É portador de carteira de redator, emitida no ano de 1954, pela Associação dos Profissionais de Imprensa de São Paulo. Fez sua primeira mostra individual de Artes Plásticas em 1994, na Agência Metropolitana do Banco do Brasil S.A, no bairro de Pinheiros, da capital paulista. Fundou na cidade de São Paulo, no ano de 1955, uma indústria produtora de spaghetti plástico, que em seguida se

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direcionou para a produção de condutores elétricos especiais, tendo sido pioneiro no setor, que perdurou até início da década de 2005. Foi sócio fundador e secretário da Ong. Sociedade dos Amigos da Amazônia, criada em 1965, uma das primeiras do País. Possui registro de inventos de alguns dispositivos elétricos registrados no INPI - Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Em 18.04.09, lançou em Teresina, na Academia Piauiense de Letras, seu segundo livro, que recebeu o título de Minhas Duas Pátrias, editado pela Câmara Brasileira de Jovens Escritores do Rio de Janeiro, em que narra suas memórias no Estado do Piauí, bem como sua longa existência na capital do Estado de São Paulo, além de andanças por vários países da Europa e das Américas. A partir de 2010, tem publicado, com alguma frequência, alguns artigos de interesse geral, no Diário do Povo, desta capital, principalmente de estímulo ao desenvolvimento do Estado. Pediria vênia à ilustrada Presidência dos trabalhos para incluir, de memória, especial referência a duas figuras notáveis de amarantinos ilustres que compõem a galeria de luminares que integram a cadeira 22 desta Academia. Trata-se de Afrânio Messias Alves Nunes, seu anterior e primeiro ocupante, e de Luís Mendes Ribeiro Gonçalves, seu ilustre tio e patrono da cadeira, pessoa visceralmente unida ao Dr. Afrânio. Pertencia Afrânio àquela geração dita gloriosa do Colégio Diocesano, de que aqui já falei e viria a ocupar também posição de relevo no Estado, como servidor público, professor da Escola Normal e Secretário de Estado. Nosso convívio foi longo e demorado. Iniciamos, ele, como Secretário de Estado da Educação e Saúde, eu, como Inspetor Seccional do Ensino Secundário e na condição de representante do MEC, iniciamos a primeira experiência de planejamento educacional, que foi o Programa Educacional de Emergência, no ministério Darcy Ribeiro, no

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primeiro governo parlamentarista do país, em 1961, ampliando significativamente o número de salas de aula em nível de primeiro e segundo graus e portanto, criando novas oportunidades educacionais em nosso Estado, até então carente delas. Depois fizemos juntos o curso de direito em nossa velha Faculdade, hoje reduzida, na nova estrutura universitária, a um simples Departamento, sem maior expressão. Ficamos como os dois últimos remanescentes de uma turma de dezesseis bacharéis, seguindo ele, primeiro do que eu para o outro lado do mistério, como diria o velho Machado de Assis. Ah! que saudade! Quanto a seu tio ilustre, patrono da cadeira que ora ocupa Olemar, o Dr. Luís Mendes Ribeiro Gonçalves, foi um dos luminares desta terra e de nosso Estado. Martins Napoleão, o nosso aedo, o considerava “a maior cerebração do Piauí.” Grande orador, um dos maiores que tivemos, desferia voos de imaginação e arroubos de eloquência que o alçavam aos píncaros da glória acadêmica. Por mais anos de vida que tenha, jamais esquecerei os seus lances oratórios, na condição de orador político ou acadêmico, um dos maiores que tive o privilégio de ouvir. Administrador público exemplar, na condição de engenheiro civil, foi dos mais competentes que tivemos, no que tange à edificação de obras públicas no Estado, sendo responsável pelo programa de construções escolares que ganhou destaque nacionalmente. Era, além do mais, pessoa do mais fino trato, encantando pela conversação a quem dele se aproximasse. Guardo de seu convívio, com que me distingui durante longos anos, lembranças indeléveis, quais a da sua erudita correspondência, infelizmente desaparecida, por conta de minhas andanças por longes terras. Era, realmente, Luís Mendes Ribeiro Gonçalves, entre nós, um alto espírito de eleição. Deus o guarde para sempre. Sua vida pública e sua atuação política constituiu um momento de glória para nossa terra, mediante o exercício dos dois mandatos de Senador, com que dignificou a nossa vida pública, o primeiro, de 1935 a 1937, arrebatado pelo Estado Novo

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getuliano com a implantação da malfadada ditadura Varga, ensaio malfadado das que vieram depois, de conotação militarista de efeitos tão nefastos em nossa vida pública. E o segundo, de 1947 a 1950, no período de retomada do processo democrático, com a Constituição de 1946. Louvar e enaltecer a sua vida pública exemplar é dever de todos nós. Meu caro Olemar de Souza Castro: Sede bem-vindo à nossa Academia, que com muito apreço e alegria recebe também o filho amado desta cidade, com a qual agora mais uma vez se reencontra, já agora “ad imortalitatem”.

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SÃO JOÃO DE SENDE*

Reginaldo Miranda

Introdução Em ligeiros traços vamos delinear a trajetória dos índios Gueguês, a guerra de conquista, o aldeamento e a extinção da etnia, no contexto da colonização do Piauí. No entanto, por questão de espaço e tempo, vamos apenas mencionar os dois primeiros aspectos, nos detendo mais nos dois últimos, embora sem a profundidade desejada, em face da impossibilidade de apenas numa conversa esgotar-se o tema. Esse assunto está sendo co­mentado à exaustão no livro A ferro e fogo, que em breve será lançado. De qualquer forma, é nosso desejo suscitar a curiosidade e o inte­resse pelos estudos indígenas no Piauí. Conseguindo esse objetivo nos daremos por satisfeitos. Os Gueguês Os Gueguês eram índios tapuias, na antiga classificação geral dos jesuítas e primeiros viajantes, que assim designavam todos os índios não tupi, do Brasil. Posteriormente, com a evolução dos estudos etnológicos, que reclassificaram os indígenas brasileiros em Tupi-Guarani, Gê, Caribe e Nu-Aruak, incluindo as restantes num quadro provisório sujeito a revi­ sões posteriores, foram incluídos no grupo lingüístico Gê. Sobre esse qua­dro vêm sendo desenvolvidas outras classificações, tendo os quatro gru­pos iniciais como definitivos e sendo acrescentados outros, à medida *

Conferência proferida na manhã do dia vinte de abril de 2005, como parte das comemorações alusivas à semana do índio, promovida pela Fundação Cultural do Piauí – FUNDAC (A sigla CABACap, signi¬fica Casa Anísio Brito, Arquivo da Capitania; Cod, significa Códice; e p, significa página).

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que prosseguem os estudos etnológicos. A língua pouco divergia da dos Acoroás, seus parentes e inimigos em face de disputarem o mesmo território. Escravizavam suas presas de guerra e como as demais tribos, viviam da caça e da pesca, praticando uma agricultura rudimentar, o que se justifica porque não podiam deixar exclusivamente ao acaso a sobrevivência diária de um grupo numeroso. Quando travaram os primeiros contatos com os brancos, já domesticavam várias plantas, que usavam como alimento, remédio e aperitivo. Eram bons cantores, possuindo diversas danças. Em face de sua resistência nas selvas e dos permanentes con­ frontos com os brancos, em 1765, quando foram definitivamente cap­turados, já possuíam diversos de seus patrícios convivendo entre esses, alguns reduzidos à escravidão, capturados que foram em campa­nhas anteriores. E, também, eles possuíam alguns brancos cristãos em sua companhia, assim como negros e indígenas de outras nações, vi­ vendo uns espontaneamente e outros escravizados como presas de guerra. Habitavam o território que tem por epicentro as nascentes dos rios do Sono, em Tocantins, Balsas, no Maranhão, e Panaíba, Uruçuí e Gurgueia, no Piauí, onde transitavam tendo por limites o rio São Francisco, de onde são expulsos ainda no terceiro quartel do século XVII, o rio Tocantins e as nascentes do rio Itapecuru, no Maranhão. Nas fronteiras do Tocantins e extremo-sul do Piauí rivalizavam com os Acoroás, com quem viviam em guerras intermitentes, e do lado do Maranhão eram aliados dos Timbiras, com quem tinham bom relaci­onamento. Temos razões para supor que eram parentes de ambos os grupos tribais. Os primeiros contatos dos Gueguês com os colonizadores por­ tugueses deram-se no ano de 1674, quando se confrontam com Fran­cisco Dias de Ávila, herdeiro da Casa da Torre, morgado iniciado por seu ancestral Garcia de Ávila, na Bahia. Tinha esse conquistador por imediato Domingos Rodrigues de Carvalho e também colaborador a figura de Domingos Afonso Sertão, que já havia retomado de uma pri­meira entrada ao Piauí. O encontro

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desses fazendeiros com os Gueguês, também chamados Gurguaes, Gurguas, Gueguês ou Guruguéa, hoje Gurguéia, deu-se no vale do rio Salitre, recuando um pouco os índios pelo curso do rio acima, depois de alguns entreveros em que perderam diversos membros da tribo. Contudo, não lhes dão trégua as tropas da Casa da Torre, perseguindo-os tenazmente e impondolhes vários reve­zes. Seguem-lhes por Sento Sé, rio Verde e, enfim, transpõem o rio Grande, possivelmente tendo penetrado os sertões de Parnaguá, nas cabeceiras do rio que passaria a ser conhecido como rio dos Gurgueias. Então, dado o cansaço da tropa e o princípio de inverno, recuam para suas moradas no rio São Francisco deixando essa imensa região parcialmente desbravada. Recompostas as forças, em princípio do verão de 1676, os con­quistadores da Casa da Torre promovem nova entrada em rumo dos cobiçados sertões de dentro. Desta feita contaram com o concurso do padre francês Martim de Nantes que traz os nativos de suas missões. Então, um destacamento comandado por Domingos Rodrigues de Car­ valho, novamente entra em choque com os Gurguias ou Gueguês, desta feita pela conquista do sertão do Pajeú. E lhes infringe um grande revés. Logo mais, em vinte três ou vinte quatro de maio, nova derrota lhes é imposta por um destacamento composto de cento e vinte cavalei­ros, comandado pelo próprio Francisco Dias de Ávila. Então, batidos em suas próprias tabas, os Gurgueias recuam entre o rio São Francis­co e a cordilheira que o separa do sertão de Pamaguá, sendo duramente perseguidos pela tropa da Casa da Torre. E a trinta de maio essa tropa surpreende a tribo espavorida e faminta e, após ligeira escaramuça, subjugam-na, jungindo os guerreiros estropiados, e decorridos dois dias, a primeiro de junho de 1676, sob fútil pretexto, degolam quatrocentos indígenas e reduzem à escravidão mulheres e crianças. Por essa barba­ ridade, se pode constatar que os primeiros algozes dessa tribo foram os homens da Casa da Torre, sob o comando de Francisco Dias de Ávila. Acrescenta Odilon Nunes, que “o local da carnificina dos pobres in­dígenas a 6 ou 7 dias da foz do Salitre, ficava bem longe do rio Gurgueia, todavia, se não na bacia do Parnaíba, pelo menos, bem perto dos

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tributários do Canindé, especialmente do rio Piauí (1975:52). Portanto, os primeiros conquistadores do sul do Piauí entraram nesse território perseguindo os indígenas Gueguês, que, em fuga buscaram o curso de atual rio Gurguéia, cujo nome lhes é uma homenagem, rio dos Guruguéas ou Gurguéias. Desde então, expulsos do vale do rio S. Francisco, ficaram os Gurgueias ou Gueguês, habitando, confoime já relatamos, o sul do Piauí e Maranhão, além da área que lhes corresponde na fronteira até o rio Tocantins. E são perseguidos intermitentemente, acentuando-se a invasão de suas tabas na medida em que iam sendo concedidas novas sesmarias aos colonizadores portugueses, sobretudo no ubertoso vale do rio Uruçuí, último reduto indígena piauiense, juntamente com as nascentes do rio Piauí, onde estavam os Pimenteiras. Aldeamento de Guaribas Contudo, após várias campanhas de menor importância, no ano de 1740, novamente se faz guerra contra eles e os Acoroás, por ordem do governador do Maranhão, a cujo governo estava anexada a Capitania do Piauí, criada mas ainda não instalada. E dessa forma, em princípio do ano de 1744, são alcançados e depois de alguma resistência em que morrem mui­tos indígenas, pedem paz ao cabo da tropa de guerra que os fustigava, Antônio Gomes Leite, sendo aldeados em número de 2.051, no lugar Guaribas, sertão de Paenaguá, provavelmente no atual território de Santa Filomena. Passavam a viver divididos em pouco mais de trinta ranchos. A eles se acrescentou mais oitenta a tantas pessoas, entre soldados e setenta índios Barbados que acompanharam o padre João Rodrigues, missionário da Companhia de Jesus, que ali chegara em maio daquele ano para catequizá-los. Durante todo esse período foram sustentados pelo gado das fazendas do capitão-mor Antônio Gomes Leite, consumindo um lote de vinte bois a cada dois dias. Em face dessa despesa intencional, em outubro do mesmo ano esse militar pede ao rei, que formalize sua administração no arraial. E, também, que lhe mandasse contribuição da Real Fazenda ou o autorizasse a alugar os índios

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tirando a metade de seu salário até o ressarcimento com­pleto de suas despesas. Porém, em face de fome, exploração de sua mãode-obra e rigor do padre no ensino da doutrina cristã, em meado do ano de 1747, se levantam em fuga, matando seu missionário e mais de sessenta pessoas de toda a qualidade, novamente se embrenhando na mata. Causa­ ram grande temor na Capitania, pois no arraial tomaram-se versados no uso de armas de fogo, e as tinham em quantidade, juntamente com pólvora e chumbo levados do arraial e outras oriundas dos constantes assaltos que faziam nas fazendas. Matavam à flecha cavalaria e gado vacum por onde passavam, causando um prejuízo de mais de quinhentos mil cruzados, con­forme constou em termo de devassa. E por terem perdido alguns homens num ligeiro confronto, após matarem um soldado ameaçaram por seus ladinos, invadirem a vila da Mocha, matarem o Ouvidor e tomarem a Capitania, segundo denuncia o mesmo Ouvidor. Certamente, reagiam contra a rígida disciplina e a exploração de seu trabalho naquele aldeamento. Frise-se que durante seu breve aldeamento em Guaribas, no ano de 1745, ainda ajudaram o capitão-mor Antônio Gomes Leite a conquistar e reduzir à obediência mais de oito mil Acoroás, que, então, aceitam ter­mos de paz e serem catequizados em suas próprias aldeias. Guerra aos Gueguês Em face dessas desordens e do pavor que levavam aos moradores brancos, se lhes promove nova guerra, desta feita sob o comando do então sargento-mor João do Rego Castelo Branco, cunhado do já faleci­do Antônio Gomes Leite. Em 1751, esse militar lhes inflige grandes per­das, matando muitos e conquistando alguns, porém sem reduzir essa na­ção à obediência. Parece que do resultado dessa conquista contra Gueguês e outras nações, foi fundado o aldeamento indígena de S. Félix da Boa Vista, no termo de Pastos Bons, Maranhão. Mais tarde, com a instalação da Capitania do Piauí, em vinte de setembro de 1759, vai se intensificar a guerra promovida contra Gueguês, Timbiras, Acoroás, Tapacuás

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e Pimenteiras. Contra todas essas na­ ções marchou o agora tenente-coronel João do Rego Castelo Branco, ou alguém sob suas ordens, vez que era detentor da mais elevada patente militar da nascente Capitania. E pode-se dizer que durante as duas primei­ ras gestões, de João Pereira Caldas e Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, assim como os primeiros anos de administração da Junta Trina de Governo, foi quase ação única o combate às tribos indígenas do Piauí. Essa guerra feroz contra as nações indígenas as dizimou do solo piauiense. Nesse contexto, durante os anos de 1763 a 1765, toda a atenção do governo foi voltada para a conquista dos Gueguês, envolvendo sua população e economia, de forma que são esses definitivamente conquista­dos em 1765, depois de sofrerem muitas baixas e serem reduzidos a ape­nas um quarto do que eram ao tempo do aldeamento em Guaribas. Sobre a organização das tropas e aquisição de munição de guerra e boca, não vamos entrar em detalhes para não alongar nossa fala. Porém, necessário se faz esclarecer que desde cedo se convencionou que uma boa tropa militar seria composta no mínimo de 150 homens, arregimentados entre os diversos batalhões dos regimentos de cavalaria e ordenança da Capitania, engrossados por índios aldeados. No caso da conquista dos Gueguês contaram com o concurso de índios Anapurus, do baixo-Parnaíba e ou­tros indígenas do aldeamento de S. Félix, ambos no Maranhão. As armas e munições eram adquiridas pela Real Fazenda e a alimentação da tropa, composta por carne e farinha, adquirida dos fazendeiros que eram obri­gados a contribuir. Portanto, tomadas todas essas medidas com longo espaço de tempo se dava início à campanha. Apenas para esclarecer, durante a campanha de 1764, o capitão Manuel de Barros Rego, da vila de Parnaguá, partiu à frente de cem ho­mens, porém, cousa alguma conseguiu, voltando sem enfrentar indígenas. Contudo, o tenente-coronel João do Rego infligiu grandes perdas aos Gueguês e praticamente extinguiu os Timbiras do vale do rio Itapecuru, no Maranhão. Novamente, em 1765, depois de algumas escaramuças, conseguiu surpreender os Gueguês na margem ocidental do rio Uruçuí, hoje Uruçuí86 |

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Preto. É que eles vinham promovendo várias depredações contra moradores da vila de Jerumenha, em revide às baixas sofridas no ano anterior. E partindo contra eles novamente, João do Rego os surpre­ende ainda durante o final do mês de junho e princípio de julho, mantendo contato com seu principal e firmando os ajustes da paz. É que eles ainda ressabiados pelo massacre do ano anterior, e diante da inferioridade de forças preferiram se compor com os representantes do império lusitano, ao invés de se confrontarem e sofrerem novas baixas. Nessa oportunida­ de, trocaram vinte e cinco prisioneiros índios, por alguns cristãos que estavam também presos com os índios. Então, do vale do rio Uruçuí, guiados por João do Rego, descem para a vila de Jerumenha, onde passam a nove de outubro e logo mais alcançam Oeiras, fundando a nova missão em meado de novembro da­quele mesmo ano. Estava, pois, metida de paz, como se dizia, porque era uma paz forçada, com mão de ferro, verdadeira reedição da pax roma­na, mais uma tribo nativa do território piauiense. E como os números fa­lam mais alto, para se demonstrar como foram esses nativos, tratados, de fato, a ferro e fogo, sem qualquer misericórdia, basta se relembrar que, em 1674, quando travaram os primeiros contatos com a tropa de Francis­co Dias de Ávila, eram superiores a cinco mil almas. Assim pensamos porque esses mesmos nativos, em guerras contínuas, enfrentavam galhar­damente os Acoroás, cuja nação firmara um tratado de paz com os bran­cos em 1745, se apresentando em número superior a oito mil almas. En­tão, se os Gueguês fossem de quantidade bastante inferior, não teriam condições de os enfrentar com igualdade de forças, como faziam. Portan­to, cinco mil almas de sua nação é um número bastante modesto, ao qual nos fixamos para não cometer exageros. E, porque sofreram vários infor­túnios ao longo de setenta anos, sendo barbaramente eliminados em nome da cruz e da espada européia, somente 2.051 existiam em fevereiro de 1744, quando se renderam para a tropa do capitão-mor Antônio Gomes Leite, fundando o aldeamento de Guaribas. Então, uma nação que se con­ servava por séculos em nosso território, foi reduzida em apenas setenta anos de perseguição, a pouco mais

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de um terço. E esse sofrimento se acentuou a partir de sua fuga do aludido aldeamento, em 1747, intensificando-se a perseguição, agora capitaneada pelo jovem militar João do Rego Castelo Branco, cunhado do precedente capitão-mor, que havia falecido, de forma que em cerca de vinte anos foram novamente reduzidos para pouco mais de um quinto. Barbaramente assassinados em nome da civilização e do cristianismo, somente quatrocentos e trinta e quatro deles desceram com o tenente-coronel João do Rego Castelo Branco, nas cir­cunstâncias descritas, para fundarem o novo aldeamento de S. João de Sende. Fundação de S. João de Sende O local escolhido para fundação do novo aldeamento ficava loca­lizado oito léguas ao norte de Oeiras. E embora fundado em meado de novembro, como dissemos, foi essa fundação oficializada em vinte e nove do mesmo mês, sob a invocação de S. João Batista, santo de mesmo nome e devoção do governador. Nessa data João Pereira Caldas remete ordens para a provisão de gados e mantimentos e, também, exorta João do Rego a principiar as roças com atenção especial à cultu­ra de milho, arroz, feijão, favas e legumes, a exemplo de batatas, abó­boras, jerimuns, que com maior brevidade poderiam ser colhidos (CABACap. Cod. 147. p. 44/44v). Esses Gueguês que desceram com João do Rego, eram em núme­ro de 434 indígenas, entre homens e mulheres, grandes e pequenos. E quando são agregados à sua povoação alguns poucos casais de índios Aroases, do lugar de mesmo nome, que se achavam quase todos espa­ lhados por diferentes fazendas da Capitania (CABACap. Cod. 147. p. 76v/77.102). O local escolhido para estabelecimento do novo aldeamento não era de grande fertilidade, atendendo mais a requisitos de ordem mili­ tar, vez que, ao norte de Oeiras, facilitava o atalho dos mesmos em caso de fuga para suas antigas moradas. Essa localidade de S. João de Sende, ainda hoje existe como um simples povoado localizado no Município de Tanque do Piauí, antigamente de Oeiras. Pois bem, não encontramos informações sobre a planta de S. João de Sende, contudo, o estudo de outros aldeamentos

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piauienses do mesmo período, todos edificados dentro da mesma tradição portuguesa, nos per­mite afirmar que a localidade foi organizada em forma de um quadrilátero tendo a capela ao centro. Seus moradores residiam em cerca de trinta palho­ças construídas em tomo da capela. Além da referência ao número de mora­dias e capela, encontramos também referentes à casa de residência do padre, do diretor, oficina e escola. Eram, portanto, estes os prédios existentes no lugar, em cujas adjacências se situavam as roças para sustento da tribo. Administração Foi seu primeiro diretor o tenente-coronel João do Rego Castelo Branco. Esclareça-se, porém, que desde a edição do Directório que se deve observar nas Povoações dos índios do Pará e Maranhão(incluído Piauí), em três de maio de 1757, pelo capitão-general do Estado, Fran­ cisco Xavier de Mendonça Furtado, a administração dos aldeamentos sofreu sensível modificação. Saindo da alçada dos jesuítas, passaram a ser administrados por um diretor, nomeado pelo governador da Capita­nia, devendo recair a nomeação em pessoa dotada de “bons costumes, zelo, prudência, verdade, ciência da língua e de todos os demais re­quisitos necessários para poder dirigir com acerto os referidos índios debaixo das ordens” emanadas. A essa autoridade cabia apenas a fun­ ção diretiva, jamais coercitiva, devendo ser seu “principal objeto de re­flexão e cuidado, a cristianização e civilização dos índios, para que saindo da ignorância e rusticidade a que se acham reduzidos, [pudes­sem] ser úteis a si, aos moradores e ao Estado ”, uma vez que estes dois virtuosos fins sempre foram “a heróica empresa do incomparável zelo dos nossos católicos e fidelíssimos monarcas”. Por seu turno, a administração espiritual dos índios ficara sob a responsabilidade do cape­lão. Também, entre os índios aldeados existia a figura do Principal, que intermediava entre seu povo e o diretor, com função coercitiva nos aldeamentos que não possuíssem o status de vila, como S. João de Sende. Onde existia vila essa função coercitiva cabia aos juízes ordinários, vere­adores e demais oficiais de Justiça, conforme indicado no Diretório. Infe­ lizmente, essas leis nunca

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foram fielmente observadas e os índios piauienses estiveram na prática reduzidos a um regime de semi-escravidão. Ao tempo em que era recomendada aos diretores a inviolável ob­ servância das ordens impostas, eram também advertidos a agirem com moderação, prudência, suavidade e brandura, especialmente quando dis­ sesse respeito à reforma dos abusos, vícios e costumes desses povos para que não sucedesse que, com a violência, se estimulasse as fugas e regres­ so aos abomináveis erros do paganismo. Não podiam obrigaremlhes a serviço algum antes de dois anos de assistência nas suas povoações. E ficavam advertidos os diretores sobre “o incessante cuidado e incansá­ vel vigilância que devem ter em tão útil e interessante matéria, bem entendido que entregandolhes meramente a direção e economia des­ tes índios, como se fossem seus tutores, enquanto se conservam na bárbara e incivil rusticidade em que até agora foram educados; não os dirigindo com aquele zelo e fidelidade que pedem as leis do direito natural e civil, serão punidos rigorosamente como inimigos comuns dos sólidos interesses do Estado com aquelas penas estabelecidas pelas reais leis de Sua Majestade e com as mais que o mesmo Senhor for servido impor-lhes como réus de delitos tão prejudiciais ao comum e ao importantíssimo estabelecimento do mesmo Estado”. Também, deveriam os diretores “só empregarem os seus cuidados nos interesses dos índios”, de cujo trabalho seriam remunerados com “a sexta parte de todos os frutos que (...) cultivarem, e de todos os gêneros, que adquirirem, não sendo comestíveis. E sendo comestíveis, só daqueles, que os mesmos índios venderem, ou com que fizerem outro qualquer negócio”. Visava esse prêmio aos diretores, animá-los a “desempenha­rem com maior cuidado as importantes obrigações de seu ministé­ rio” e para dirigirem os índios com eficácia no “interessantíssimo traba­lho da agricultura”. Todavia, apesar dessas determinações os diretores de S. João de Sende, como de resto dos demais aldeamentos piauienses, nem sempre foram recrutados entre pessoas dotadas de tais princípios, sendo essas desastradas administrações um 90 |

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dos principais fatores do insucesso do aldeamento. Também, o próprio governo da Capitania permitia o desvio de índios de seu trabalho na aldeia sob vários pretextos. De qualquer forma, foi o tenente-coronel João do Rego Castelo Branco, quem implan­ tou o aldeamento de S. João de Sende e o administrou como diretor, inicialmente. Porém, por se encontrar atarefado com outros afazeres e ter de se afastar do lugar, alguns meses após sua fundação é substituído pelo capitão Manoel Alves de Araújo, que, em dezoito de agosto de 1766, lhe devolve a mesma diretoria (CABACap. Cod. 147. p. 63. 75/75v. 82/ 82v). João do Rego, então, se demora como titular da administração de S. João de Sende, por mais seis anos, até setembro de 1772, quando após cansativa campanha, assume a direção de novo aldeamento dos ín­dios Acoroás, por ele fundado. Nesse período envidou todos os esforços na orientação do trabalho nas roças de forma que, mesmo com alguns atropelos S. João de Sende tomou-se auto-suficiente. Porém, tomariam um grande prejuízo no referido mês de setembro de 1772, quando os índios Acoroás de passagem de Oeiras para as cabeceiras do Mulato, destruíram suas roças, inclusive plantação de algodão para o fabrico das roupas (CABACap. Cod. 147. p. 173W174. 177. Cod.. 148. p. 166). Nessas circunstâncias, passa a direção do lugar a seu filho caçula, Aju­dante Antônio do Rego Castelo Branco, que já o substituía interinamente desde o início do ano, quando iniciara a guerra contra os Acoroás, per­manecendo este pelo período de mais quatro anos, até 1776, quando foi substituído pelo também Ajudante Caetano de Céa de Figueredo. Contu­ do, em face de diligências a serem realizadas por esse diretor, no período de onze a vinte e quatro de novembro de 1776, respondeu interinamente pela direção do lugar o soldado Pedro Fernandes Barros(CABACap. Cod. 150. p. 158/158v. 158W159. 159/159v). Então, o diretor Caetano de Céa permanece na direção do lugar até meado de 1778, quando, em face da fuga encetada pelos índios, foi substituído pelo cabo-de-esquadra Veríssimo Ferreira de Albuquerque. Todavia, em substituição desse último, assume a direção do lugar o solda­do João Calisto da Costa, em janeiro

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de 1779, permanecendo até dez de outubro de 1780. Nessa data assume seu lugar o cabo-de-esquadra João Rodrigues Seabra, que, permaneceu por poucos dias, somente até dezesseis de novembro do mesmo ano. Nessa mesma data, assume a diretoria de S. João de Sende, seu último diretor, Raimundo José Noguei­ra, administrando de dezesseis de novembro de 1780 a 1786, quando foi o mesmo extinto. E continuou responsável pelos bens móveis e imóveis do lugar até 1792, quando foram dados ao tenente Antônio Pereira da Silva, genro do tenente-coronel João do Rego Castelo Branco. Dessa forma, foi administrado o aldeamento indígena de S. João de Sende. Durante seus vinte e um anos de existência muitas foram as denún­cias de má conduta dos diretores na administração do lugar, formuladas pelos indígenas e confirmadas pelas autoridades. Aqueles, via de regra, eram escolhidos e mantidos na condução do governo local em face de interesses estranhos e sem atenção aos pleitos dos principais interessa­dos. Por essa razão, os habitantes indígenas, considerados cidadãos de segunda classe, não poderiam almejar grandes perspectivas, só lhes res­tando a rígida disciplina, exploração de seu trabalho, escassez de alimen­to, abuso sexual, doenças e morte. Catequese dos Índios Segundo o Diretório(capítulos 3 e 4), a cristianização dos índios era o fim primordial da política de aldeamento implementada pela Coroa por­tuguesa, seguindo-se-lhe a civilização dos mesmos índios. E essa tarefa primordial, por ser meramente espiritual, foi entregue ao capelão do aldeamento, recomendandose aos diretores que da sua parte dessem todo o auxílio na execução de suas determinações respectivas à direção das almas, devendo os índios tratarem o seu pároco com toda a venera­ção e respeito que se deve ao seu alto caráter, no que deviam os diretores – conforme a Lei – com as exemplares ações da sua vida lhes servir de exemplo. Desde a edição desse Diretório, os índios aldeados foram obriga­ dos apagar o dízimo católico, que consistia na

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décima parte de todos os frutos que cultivassem e de todos os gêneros que adquirissem, sem qual­quer exceção. E para que não houvesse dúvida a respeito de sua arreca­dação, porque os índios costumavam se desfazer intempestivamente de suas roças, devia o diretor de cada aldeamento, no tempo que julgasse mais oportuno, examinar pessoalmente as roças e avaliar os frutos que poderiam render no respectivo ano, acompanhado de dois louvados, sen­do um de parte da Real Fazenda por ele nomeado e outro indicado pelos lavradores índios. De tudo deveria existir termo lavrado em livro próprio. E, mais tarde, após efetuada a arrecadação com todas as cautelas de registro em livro para esse fim designado e com suas folhas rubricadas pelo provedor da Real Fazenda, seria o fruto desse dízimo enviado para o Almoxarifado da Real Fazenda, em Oeiras, onde seria carregado em re­ceita viva e declarado o nome do aldeamento de onde viera e do diretor que o remetera. Como se vê, o dízimo que por princípio deveria ser arrecadado pela Igreja, em virtude de acordo com a Coroa o era pela Real Fazenda, em nome do rei, Grande Mestre da Ordem de Cristo. Com a vinculação entre Igreja e Estado, era esse último, desde o início da colonização, res­ ponsável pela sustentação do clero, construção e manutenção dos tem­plos e mesmo de todas as atividades católicas, pagando-os côngrua atra­ vés da Real Fazenda. Contudo, esse rendimento, como de resto todos os ordenados públicos, eram bastante modestos tendo os padres, sempre que necessário de se socorrerem de caças e pescado requisitados aos índios. Por essa razão, foi determinado aos diretores dos aldeamentos piauienses, em atendimento a antigo costume, que todas as vezes que os padres vigários pedissem por petição ao governo, índios caçadores e pes­cadores era para se lhes dar(CABACap. Cod. 152. p. 10. 10v. 11). Ressalte-se que, desde a expulsão dos jesuítas que até então se ocupavam religiosamente do Piauí, este passou a se ressentir da ausência de padres que pudessem ensinar a doutrina cristã. Desde o primeiro go­ vernador, João Pereira Caldas, esse fato é assinalado pelos próprios go­ vernadores piauienses, que vez ou outra se queixam à metrópole. E foi nesse vácuo criado o

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aldeamento de S. João de Sende em novembro de 1765. Por essa razão, somente em 1768, teve ele o seu primeiro capelão, frei Manuel de Santa Catarina, franciscano, que fora removido do aldeamento do Cajueiro, dos índios Jaicós, que já conheciam a doutrina cristã. Permaneceu na catequese do lugar até princípio de fevereiro de 1773, quando foi substituído por frei Francisco Tavares, que viera do Maranhão, e assume seu cargo na segunda metade de março do mesmo ano(CABACap. Cod. 148. p. 201v/202. Cod. 150. p. 5v). Em dezenove de dezembro de 1778, estava catequizando os índios de S. João de Sende, o padre João Paes Godinho, porém, não era titular da aldeia ou a ela não se adaptou, porque logo mais está vago o mesmo cargo. Por essa razão, em três de março de 1779, o governo comunica ao inspetor João do Rego que brevemente lhe dará notícias sobre a nomea­ção de novo pároco (CABACap. Cod. 151. p. 56/56v). Em face da carência de clérigos no Piauí, somente em outubro de 1781, se encontrou um religioso para o pastoreio das almas Gueguês, tendo chegado a vinte e seis e tomado posse no dia seguinte. Era o padre Raimundo Alves Pereira, que, entretanto, ao chegar a S. João de Sende, não encontrou os paramentos para dizer a missa, nem as imagens e sinos, tendo tudo de ser novamente providenciado (CABACap. Cod. 151. p. 137v. 137v/138.p. 139.143.147v/148). Evidentemente, a catequese dos índios é problema complexo en­ frentado pela Coroa portuguesa nas terras do Novo Mundo. A fim de impor o cristianismo, os religiosos, principalmente os jesuítas, as vezes agiam com autoritarismo, outras recuavam consideravelmente em seus dogmas, fazendo algumas concessões aos silvícolas. E estes, por sua par­ te, iam adaptando os novos dogmas aos antigos, dando-lhes significados próprios. Certamente, os rituais católicos não tinham os mesmos significa­dos para índios e brancos. Sobre essa diversidade de interpretação, exis­tem notícias de que em algumas aldeias do Pará, os índios pediam batismo todos os anos, escolhendo padrinhos

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com antecedência, a fim de obterem presentes. Em outros locais, considerando essa cerimônia católica como responsável pelas altas taxas de mortalidades ocorridas, passaram a pedir sua repetição no sentido de desbatizar. Dessa forma, lembra a Prof. Maria Regina Celestino de Almeida, que aquilo “que os padres podiam enten­der como conversão ou submissão, para os índios podia ser algo bem diverso ” (2003:149). Educação Contrariando os interesses conflituosos da Coroa Portuguesa e dos colonos, foi implementada nas missões jesuítas uma política segregacionista, visando proteger o ameríndio daqueles dois outros grupos de interesses rivais, propagar a fé e defender os interesses da Igreja e de sua respectiva ordem religiosa. Para esse fim, além dos ensinamentos religiosos e de al­ gumas profissões, passaram os jesuítas a ensinar-lhes um novo idioma dito geral. Submetidos, pois, aos interesses díspares desses três grupos em confronto, viveu o nosso indígena por largos anos, até que, em 1757, foram expulsos os jesuítas atendendo à nova diretriz política implementada pelo Conde de Oeiras, mais tarde Marquês de Pombal, todo poderoso Primeiro Ministro de Portugal. Desde então, mudou-se sensivelmente a administração dos aldeamentos indígenas, porém, com prejuízos para o ameríndio. Conforme se disse, nesse tempo foi editado pelo capitão- general do Grão-Pará e Maranhão o Diretório que se deve observar nas Povoações dos índios do Pará e Maranhão, publicado em três de maio de 1757, e confirmado pelo rei D. José, através de Alvará de 17 de agosto de 1758. Por esse Diretório, toda a política de aldeamento deveria ser volta­da primordialmente para a cristianização de que falamos há pouco e a civilização dos mesmos índios. Por essa razão, em todo aldeamento deve­ ria existir duas escolas públicas, sendo uma para meninos e outra para meninas. Ambas, ensinariam a doutrina cristã e o idioma português, este último a fim de desterrar a barbaridade de seus antigos costumes e radi­car-lhes afeto, veneração e obediência ao rei de Portugal. E, também,

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fora determinado que de forma alguma fosse permitido o uso da língua de suas respectivas nações, ou a continuidade do ensino da língua geral introduzida nas missões jesuítas, porque era essa uma “invenção verda­ deiramente abominável e diabólica” que os privava de todos os meios de civilidade. Além desses, a escola dos meninos deveria os ensinar a ler, escrever e contar, na mesma forma que se praticava em todas as demais escolas das nações civilizadas. E a das meninas, além da doutrina cristã, as ensinaria a ler e escrever no idioma português, fiar, fazer renda, cultura e todos os mais ministérios de seu sexo. Tanto o mestre da escola dos meninos, quanto a mestra da escola das meninas, deveria ser pessoa do­tada de bons costumes, prudência e capacidade, de forma que bem de­ sempenhassem as importantes obrigações de seus empregos. Todavia, no caso “de não haver nas povoações pessoa alguma, que possa ser Mestra de Meninas, poderão estas até a idade de dez anos serem ins­truídas na Escola dos Meninos, onde aprenderão a Doütrina Cristã, a ler, e escrever, para juntamente com as infalíveis verdades da nossa Sagrada Religião adquiram com maior facilidade o uso da Língua Portuguesa” (Diretório, 8). Essa ressalva, que nem existe para o caso de faltar mestre da escola dos meninos, demonstra a dificuldade então existente de se encontrar mulheres instruídas na Colônia, que pudessem ser professoras. Na verdade, em S. João de Sende somente houve uma escola mista porque nunca encontraram uma mestra adequada para as meninas. Contudo, para subsistência das sobreditas escolas, bem como do mestre e da mestra referidos, seriam destinados salários suficientes, pagos pelos índios pais dos alunos, ou pelas pessoas em cujo poder estivessem. Porém, como o Diretório não estabelecia o valor do salário a ser pago pelos índios aos mestres de seus filhos, e diante da grande pobreza a que estavam submetidos, assim como da escassez de moeda circulante, foi esti­pulado o pagamento na forma seguinte: “um alqueire de farinha por ano, para o mestre, por cada um dos rapazes ou raparigas que se ensinarem nas ditas escolas; porém com a limitação, de que nunca dariam mais de dous alqueires os pais, que mais de dous filhos trouxessem

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nas referidas escolas”. Contudo, para o sobredito pagamento poderia ser oferecido qualquer outro gênero comestível, reduzido à quantidade que, pelo seu competente preço, correspondesse ao da indicada porção de fari­nha. Também, o papel, utilizado na escola era custeado pelo produto do negócio comum da mesma povoação (CABACap. Cod. 147. p. 106/107). Todavia, essas escolas não funcionavam a contento, porque os mestres, e de resto todos os colonos de cujo corpo social eram extraídos, não estavam à altura de exercitar a avançada diretriz política emanada da Corte. Todos eles só queriam explorar o ameríndio, que na sua visão es­treita e tacanha não passava de instrumento de trabalho. Então, seria per­da de tempo a atividade na escola, em prejuízo do trabalho. Infelizmente, foi esse raciocínio que predominou na Capitania de S. José do Piauí, onde as escolas indígenas tiveram pouca utilidade, muitas vezes se transformando em centros de tortura, como aconteceu em S. João de Sende, onde foram as moças indígenas açoutadas e os rapazes torturados, nesse último caso pelo mestre José Fernandes da Silva Porto, com o uso de um banco especialmente construído para tal fim. Além da fome a que, às vezes, eram submetidos nas escolas, por nem sempre terem seus pais o que lhes dar de alimento, são diversas as referências a maus-tratos e torturas nessas escolas indígenas piauienses, embora só fosse permitido o uso da palma­ tória. Felizmente, nesse caso específico, em 1769, o governador tomou providências exonerando o tal mestre e nomeando em seu lugar um preto forro de nome Antônio José, que mandou buscar na vila de Jerumenha. Todavia, além desse sistema de ensino existente na própria aldeia, bem mais apropriado e de conformidade com a vontade real, embora com as falhas apontadas, existia um outro nos moldes profissionalizante, onde as crianças e adolescentes indígenas eram cedidos para fora da al­deia mediante formalização de termo a alguns mestres de ofícios mecâni­ cos residentes na cidade de Oeiras e nas seis vilas restantes, por espaço de seis anos ininterruptos, com o objetivo de aprenderem alguns desses ofícios. Nesse termo elaborado pelo juiz ordinário da cidade de Oeiras,

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deveria constar expressamente as condições seguintes: iniciava com uma solicitação do interessado ao governador que, então, pedia informações ao diretor do aldeamento sobre a existência de jovens índios disponíveis (porém, às vezes o diretor lhe remetia previamente uma relação para mais rápido serem atendidos esses pedidos); em seguida o governador expedia uma portaria autorizando a entrega do índio ao interessado, que a apre­sentava ao juiz de órfãos, responsável pela elaboração de um termo for­mal de cessão a ser assinado pelo requerente; então, o escrivão do juízo expedia uma ordem assinada pelo juiz, que era apresentada pelo interes­sado ao diretor do aldeamento e só então lhe era entregue o adolescente indígena. Durante esse período de aprendizado, o juiz de órfãos deveria fiscalizar o ensino para conferir a eficácia e informar ao governador sem­ pre que entendesse necessário. Porém, também esse método se revelou fracassado uma vez que muitos colonos inescrupulosos, sem domínio de sua profissão e, por isso, sem clientela e paupérrimos, requeriam índios apenas para explorarem seu trabalho, evitando pagarem auxiliares. Então, submetiam seus aprendizes indígenas a severo regime de fome. Preocupa­do com essa situação, frente a algumas denúncias que lhe eram dirigidas, o governador Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, resolveu antes de ex­pedir portaria concessiva de rapazes ou raparigas indígenas, averiguar a situação financeira dos profissionais solicitantes. Na verdade, esses rapazes e raparigas Gueguês ou Guegués, as­ sim como das demais nações aldeadas, foram explorados indiscriminadamente pelas mais diversas figuras da Capitania do Piauí. Por trás desses pleitos de ensino estava o interesse de manter uma moça indí­gena como criada doméstica, ou um rapaz trabalhando de graça. Segura­mente, o que menos importava a esses tais mestres era o ensino de alguma profissão a esses desamparados da sorte. A preocupação do governador, pois, era muito oportuna e o melhor seria se não tivesse permitido esse sistema de ensino fora da aldeia, em prejuízo de seu florescimento e do bem-estar dos silvícolas. Fácil é se constatar o insucesso desse sistema, porque esses índios Gueguês mais tarde vão viver

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mesmo é da lavoura, quase sem exercitarem essas profissões, que de fato, com rara exceção, nunca aprenderam. Aos tais mestres bastava colocar a culpa na rusticidade dos aprendizes e tudo ficava a contento. Convivência e Conflito no Cotidiano do Lugar Não resta dúvida de que um dos fatores pelos quais os aldeamentos indígenas não lograram vida longa, foi a exploração do trabalho, assim como dispersão e maus-tratos dos silvícolas. Também, a miscigenação racial forçou a diminuição do número de indígenas. Se por um lado muitos índios aldeados morriam cedo, em face de fome, maus-tratos e doenças contraídas no trato com o branco, além de serem dispersados pela Capi­tania, a soldo de particulares, ainda tinham os muitos que morriam na guerra de conquista e transporte para o aldeamento. Pois bem, os índios que permaneciam no aldeamento ainda iam diluindo o sangue em freqüentes cruzamentos com indivíduos de outras raças, de sorte que quarenta ou cinqüenta anos depois de aldeados poucos eram os índios puros existen­ tes no aldeamento. Essa degradação do elemento indígena ocorreu em todos os aldeamentos piauienses, inclusive em S. João de Sende. É que as índias nuas e seminuas eram assediadas pelas autoridades, soldados, mo­radores vizinhos, escravos e toda sorte de elemento envolvido no proces­ so de colonização. De fato, a política régia consubstanciada no famoso Diretório de três de maio de 1757, era no sentido de proporcionar a mes­cla racial entre o elemento indígena e o português. Porém, de fato, o indí­ gena do sexo masculino vai reproduzir quase exclusivamente com mulher de sua raça, fato que não ocorre com a mulher indígena, procurada para a prática sexual por todos os demais elementos étnicos coloniais. Sobre essa liberalidade sexual no aldeamento, o governo da Capitania quase sempre tentou colocar obstáculos, obrigando o casamento de quem delas abusasse. De fato, existe farta correspondência entre o governador da Capitania e os diretores de S. João de Sende, recomendando a tomada de providência sobre casamento de pessoas que abusaram de índias. No entanto, em 1804 é o próprio governador da Capitania, José Pedro César de Menezes, quem vai abusar de uma

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jovem índia Gueguê, no aldeamento de S. Gonçalo, para onde eles haviam sido transferidos. Esse fato gerou uma denúncia do pai da jovem índia para o rei em Portugal, narrando o fato e solicitando a exoneração do governador, conforme demonstramos em nosso livro S. Gonçalo da Regeneração. Trabalho, Serviços e Remuneração Foi sempre muito contraditória a legislação relativa ao índio brasi­leiro, variando conforme os interesses de cada época e força das partes interessadas. Essa luta de interesses, por mais de dois séculos, produziu uma legislação vasta e de difícil interpretação, refletindo a luta travada entre colonizadores e jesuítas pelo monopólio do trabalho indígena, am­bos, também em conflito com os interesses da metrópole. O colonizador branco, português, por imperativo de ordem econô­ mica, desejava escravizar o índio e explorar sua mão-deobra, ao passo que as missões religiosas visavam exclusivamente a propagação da fé e defesa de seus interesses. Para a Prof.a Marivone Matos Chaim, “seus objetivos são mais amplos que os do elemento leigo, visto que as suas perspectivas quanto ao índio se lançavam rumo ao intertemporal, contrapondose aos interesses da colonização leiga, para a qual o silvícola se apresentava apenas numa dimensão biológica e econômi­ ca ” (1983:67). Por essa razão, o interesse religioso terminava segregando o índio e, assim, dificultando a exploração de sua mão-de-obra pelos colonizadores lusitanos. O conflito entre esses dois partidos distintos se acirrou em especial no Estado do GrãoPará e Maranhão, ao qual perten­ciam as aldeias do Piauí, levando, inclusive, à desgraça o erudito padre Antônio Vieira(1608 – 1697). Para complicar o quadro, colocou-se a metrópole em confronto contra esses dois contendores, proibindo a escravização do índio com a edição de diversos Alvarás e Cartas Régias e, também, contra a política segregacionista das ordens religiosas, vez que desejava integrar o silvícola no processo colonizador com a contribuição numérica, a fim de suprir a escassez de elemento humano no pequeno reino. Contudo, no que se refere ao primeiro

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objetivo, oscilou contraditoriamente entre os interesses dos colonos e dos silvícolas, editando leis contraditórias a favor de um e outro lado, de forma que a situação só foi pacificada com a edição do Diretório de três de maio de 1757. No que se refere ao segundo aspecto do confronto, este perdurou até a edição da lei de seis de junho de 1755, restituindo a liberdade dos silvícolas do Estado do Grão-Pará e Maranhão, como anteriormente já havia feito uma lei inaplicada de novembro de 1747. Pois, não satisfeito com essa disposi­ ção libertadora dos indígenas, sabedores da contumácia de seus súditos, e a fim de não deixar dúvidas exegéticas, no dia seguinte el rei assinou o conhecido alvará de sete de junho de 1755, declarando-os fora da dire­ção espiritual, temporal e política dos religiosos, como assegurava o Regi­mento das Missões do Estado do Maranhão e Grão-Pará, de 21 de dezembro de 1686, ainda em vigor, conforme se depreende pela menção expressa a sua anulação. Esse velho Regimento das Missões regulava a catequese a cargo da Companhia de Jesus e dos Padres de Santo Antô­nio. Contudo, os jesuítas seriam expulsos da colônia logo mais. Desde a edição daquela medida, os silvícolas passaram a ser administrados exclu­sivamente por seus principais, até a edição do Diretório de três de maio de 1757, que, novamente, modificou a situação. Foi sob sua vigência fun­dado o aldeamento de S. João de Sende, dos Gueguês. Pois bem, em face da citada lei de plena liberdade de seis de junho de 1755, logo mais em treze de outubro de 1757, a partir de quando se deu execução à mesma, o Senado da Câmara de S. Luiz do Maranhão, reunido em forma de junta, deliberou sobre a liberdade, trabalho e forma de seu respectivo pagamento, para ser aplicado em todo o seu território, inclusive na anexa Capitania do Piauí, que, apesar de criada desde longa data, ainda não havia sido instalada. Segundo a aludida deliberação seria considerado adulto e, portanto, apto para o trabalho, o índio com idade entre quinze e sessenta anos. Acima dessa faixa, estavam inaptos para o trabalho. A segunda faixa etária existente, era a dos adolescentes com idade entre doze e quinze anos, a quem seria conferido um salário inferior, ficando, porém, os patrões, aqui chamados amos,

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com a obrigação de curarem suas doenças não prolongadas ou de grandes gastos. A esses índios era obrigatório o ensino da língua portuguesa e da doutrina cristã, com a confissão pelo menos quatro vezes por ano: Natal, Quinta-feira maior, Espírito Santo e Assunção de N. Senhora. Entre aqueles, os ofici­ais qualificados teriam melhor remuneração, motivo pelo qual era estimu­ lado o ensino de algum ofício para os rapazes que, para esse fim eram concedidos pelo prazo de seis anos, com a obrigação de curá-los e vesti-los. A Coroa dava tanta importância ao ensino desses ofícios que, em caso do Mestre não os ensinar durante esse período os pagaria daí em diante na razão de cem réis por dia, como se Mestres fossem e até que adquirissem a profissão desejada. E, ainda, premiava as pessoas que mesmo não tomando índios na condição de aprendizes, por curiosidade os ensi­nasse algum ofício, concedendo-lhes mais quatro anos em caso de ho­mens ou seis de mulher, com a remuneração antecedente. Todos esses índios que se davam ao trabalho eram equiparados a criados, podendo- selhes aplicar os mesmos castigos que àqueles, açoutando-se, porém, somente os de menor idade, e prendendo os maiores em ferros ou tron­cos, somente em caso de fuga ou bebedeira, sendo o mais proibido aos amos (CABACap. Cod. 147. P. 88/89v). E, sob essas condições, foram administrados os índios piauienses. Dez anos depois, em vinte e dois de março de 1767, sob ordens do go­vernador do Maranhão, o escrivão de órfãos da cidade de S. Luiz, João Ferreira Álvares, extrai certidão desse referido termo lavrado à fl. 22 e seguintes, do livro primeiro de registro das soldadas dos índios e remete ao general do Estado Francisco Xavier de Mendonça Furtado, èm Belém do Pará, a fim de que fossem submetidas à Câmara de Belém, então Capital do Estado, que, em perfeita sintonia com a de S. Luiz, deliberou o seguinte: Calculando o preço de um alqueire de farinha em 320 réis, e achando-o suficiente para alimento de uma pessoa pelo período de 32 dias; e o preço da carne bovina em oito réis o arrátel, dizendo que dois arráteis seriam suficientes para alimentar durante um dia, os quais vêm a importar em dezesseis réis que, juntos com o importe da farinha, avultam em vinte e seis réis o sustento de um

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adulto naquele tempo. Com esses cálculos fixou em cinquenta e dois réis por dia, o jornal(diária) de um índio, no caso de trabalhar à sua custa, valor suficiente apenas para o alimento de dois adultos, em vinte e seis réis, sendo à custa de seu amo alimentado; porém, no caso de serem artífices dos ofícios de tece­lão, alfaiate e sapateiro, receberiam a diária relativa ao sustento de três dias, importando em setenta e oito réis por cada um dia; e sendo carpinteiro ou pedreiro, o de quatro dias, que vem a importar em cento e quatro réis por cada um dia; e no caso de serem ferreiros, pintores, imaginários ou ourives, a diária seria calculada pelo sustento de cinco dias, importando na impor­tância de cento e trinta réis por dia; ficava aberta a regulação da diária dos artífices dos demais ofícios, com o limite de que não excedesse o teto máxi­ mo do sustento de seis dias, que vem a importar em cento e cinqüenta e seis réis por dia. Contudo, todo esse cálculo era relativo ao masculino. No caso feminino, foi regulado em preço inferior a diária, na base de 39 réis por dia, sustentando-se à sua custa e, sendo pela de seu amo, em apenas treze réis por dia. Contudo, no caso de exercerem os ofícios de rendeira, costureira, conserveira, fomeira de farinha, cozinheira ou ama de leite, seria elevada a diária para cinqüenta e dois réis, alimentando-se à sua custa, ou vinte e seis réis à custa de seu amo. No caso de crianças com idades entre oito e doze anos, trabalhari­ am apenas pelo seu sustento; e adolescentes com idades entre doze e dezoito anos trabalhariam com remuneração equivalentes às mulheres, dc treze réis livres de sustento. Contudo, dessa diária dos índios ainda era descontada a importân­cia de 13 réis por dia, se tivessem crianças com idade até oito anos e fossem elas alimentadas pelos amos (CABACap. Cod. 147. 86v/8X). Na verdade, existem diversas outras determinações sobre salários, soldadas e jornais dos índios aldeados, demonstrando

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ser este um assunto de importância nas capitanias do Piauí e Maranhão, onde esses indígenas tinham sua mão-de-obra explorada indiscriminadamente por todos os moradores. E ainda eram equiparados a criados, i.é., escravos, podendo-se-lhes os “amos” aplicarem as mesmas punições impostas àqueles, me­nos o açoite e a prisão, com algumas exceções que poderiam perfeita­ mente virarem regras. Por essa consciência coletiva que dominava o ele­ mento branco, ou que se dizia branco, mas colonizador, dominador, de maiores posses, o índio piauiense nunca foi visto como um igual. Então, as leis de equiparação e liberdade emanadas da Corte nunca tiveram aplica­ ção no Piauí, onde o elemento indígena foi tratado a ferro e fogo. Não é sem razão que cedo desapareceu de cena. Terra, Roças e Alimento Conforme se sabe, os índios aldeados eram sustentados durante o primeiro ano e até que colhessem os frutos de suas primeiras roças, pela Real Fazenda, que para esse fim comprava a produção ou roças de alguns moradores das vizinhanças. Todavia, pela falta de prática dos índios, cujo conhecimento de agricultura era bastante rudimentar, quase sempre esse sustento se estendia por período maior que o ano inicial. E quando o sus­ tento se tomava oneroso o governo obrigava os criadores da Capitania a ajudarem, uma vez que a política de aldeamento interessava a quase to­dos, em face da limpeza territorial e do fornecimento de mão-de-obra. Por essas razões e a fim de orientar e fiscalizar o trabalho do índio na agricultura, no período inicial de S. João de Sende fora mantido um auxi­liar do diretor, que além de ajudá-lo na segurança podia se voltar para a confecção das roças, deixando o diretor mais desimpedido para a execu­ção de outras atividades. Em S. João de Sende, auxiliaram o diretor João do Rego, sucessivamente, o ajudante Félix do Rego Castelo Branco, o cabo de esquadra Antônio José Maramaldo e o capitão Ignacio Paes Maciel. Sobre as terras das aldeias indígenas, desde a edição do Alvará de 1700, foi ordenada a concessão de uma légua em quadra

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para cada uma, para sustento dos índios e missionários, devendo possuírem-na o mínimo de cem casais. E caso fossem menores e estando próximas, poderiam usufruir da mesma concessão com a garantia de que se crescessem teriam sua légua restabelecida integralmente. Essas terras eram dadas à aldeia como patrimônio coletivo dos silvícolas. Na verdade, terra e proteção sempre foi a proposta feita pelos brancos para convencerem os índios a aldearem-se. E estes, mesmo sabendo das limitações impostas a sua li­ berdade, aceitavam-na como opção de mal menor em meio ao violento processo de colonização. Mais tarde, com a instalação da Ouvidoria do Piauí, foi aquela ordem registrada nos livros próprios. Essa garantia tam­ bém foi assegurada no Diretório de 03.05.1757, que, mesmo incentivan­do a presença de brancos nas aldeias, reafirmou seus direitos possessórios como “primários e naturais senhores das mesmas terras Entretanto, em face de queixas formuladas pelos silvícolas de que lhes faltava terra para as roças nos referidos aldeamentos, no início do ano de 1774, o general do Estado reforça essa antiga ordem. Porém, inobstante essas medidas benéficas, durante toda a existência dos aldeamentos piauienses vai existir queixa dos índios de que figuras adventícias invadiam e esbulhavam suas terras, requerendo, por diversas vezes, a demarcação das mesmas, quase sempre sem sucesso (CABACap. Cod. 149. p. 31 v32. Cod. 155. p. 62v. 74/74v). Diante dos documentos estudados, constata-“se que a base alimen­tar dos índios aldeados era carne e farinha, aliás, era esse o alimento bási­co da Capitania, inclusive, para o colonizador branco. Por esse tempo, o arroz ainda não tinha ocupado o espaço predominante que hoje ocupa na mesa do sertanejo, em cujo lugar reinava a farinha. A documentação ofi­cial é rica em referência a carne e farinha, como alimento de índios c tro­pas militares. E como mostra de que era realmente o alimento predomi­nante em todas as classes sociais, se encontram diversas ordens a mora­ dores de fazendas e aldeias nas estradas, para os prepararem para essa ou aquela autoridade que deveria passar em dia tal por aquele lugar. Con­forme se viu, além da predominante carne bovina, também a carne dc animais silvestres complementava

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a alimentação indígena, além de frutos e mel. A galinha era comumente consumida por convalescentes. Além des­ses alimentos preponderantes, também cultivavam e consumiam milho, arroz, feijão, fava, batata, abóbora, mondubim, jerimuns, etc., pois, se­ gundo as autoridades, eram estes mantimentos os que com maior brevida­de se podiam colher. Decadência de São João de Sende Conforme se disse, os Gueguês foram estabelecidos no terreno não tão fértil de S. João de Sende, por motivos de segurança. E que, em caso de rebelião ficava mais fácil o controle, vez que entre esse novo aldeamento e suas antigas moradas ficavam a cidade de Oeiras e as vilas de Jerumenha e Pastos Bons, essa última no Maranhão. Portanto, seria fácil o atalho em caso de fuga. Contudo, porque apesar de se dedicassem à agricultura, a produção não era satisfatória, em face da aridez do solo, perceberam as autoridades o desatino da escolha daquele território para os estabelecer. Por esse tempo, o aldeamento definhava, embora fosse o único que apresentasse alguma produção agrícola. Também, aqueles 434 indígenas iniciais, se encontravam reduzidos em 1772, sete anos após a fundação do lugar, há apenas 252 silvícolas. Em face desses fatos, ainda em 1775 a Junta de Governo aventou a hipótese de transferi-los para uma mata na foz do rio Poti com o Parnaíba, onde hoje se localiza a cidade de Teresina, sem, porém, efetivarem essa medida. Dois anos depois, houve nova tentativa de mudança dos mesmos índios para um sítio localizado na barra do Mutum com o rio Parnaaíba, no atual território de Teresina, há apenas quatro léguas abaixo da passagem de Santo Antônio, idéia que também não vingou. E em 1778, há uma tentativa de os transferir para o aldeamento de S. Gonçalo de Amarante, dos índios Acoroás, sem consultá-los. Por essa razão, em nove de julho de 1778, desertam do aldeamento em rumo da Chapada Grande. Então, depois de muito trabalho são novamente recuperados para o aldeamento de S. João de Sende. Contudo, por imposição de João do Rego, nessa

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oportunidade al­guns Gueguês são levados para S. Gonçalo de Amarante, sob desculpa de investigá-los. E em dezembro de 1779, são levados outros, dividindo, assim, o arraial. Ficaram uns em S. João de Sende, em sua maioria mulhe­res, e outros em S. Gonçalo de Amarante, em sua maioria homens. No entanto, durante essa última transferência houve nova resistência dos índi­ os, que a caminho se recusaram a continuar. Então, o Ajudante Félix do Rego Castelo Branco, filho de João do Rego, mata seis indígenas a san­gue frio, e dizem que fincou parte de seus membros em postes na aldeia de S. Gonçalo, para servir de exemplo aos demais. Em tomo do episódio houve devassa, mas nenhuma punição. Essa situação perdurou até o ano de 1786, quando são todos os Gueguês reunidos em S. Gonçalo de Amarante, hoje cidade de Regene­ração, extinguindo-se, assim, S. João de Sende. Contudo, em face de toda espécie de maus-tratos, nessa altura não passavam de uma centena de trapos humanos. Dois anos depois da aludida transferência desses silvícolas, foi pro­ cedido um criterioso levantamento de sua população e bens, pelo capitão Francisco Lopes de Sousa, comandante militar do distrito do Médio Parnaíba, então pertencente ao Município de Oeiras. Por esse recenseamento se ob­ serva que a situação dos Gueguês em nada melhorou com a mudança domiciliar. Parece que, desgostosos, sem força moral, não providenciaram as necessárias roças, voltando-se apenas para o vício do alcoolismo. Por­tanto, presas fáceis para a exploração de seu trabalho. E num espaço de dois anos nenhuma roça foi por eles edificada. Segundo o citado relatório do capitão Francisco Lopes de Sousa, somente existia no lugar uma velha roça de mandioca metida dentro do mato, que não daria quarenta alqueires de farinha, suficiente apenas para alimentar a aldeia durante uma semana. Tudo o mais se encontrava perdido, entre capoeiras, sem existir qualquer roçado novo onde se pudesse plantar com o cair das águas. Eram não somente capoeiras de roças no lugar, mas também os silvícolas se transformaram em capoeiras humanas, onde outrora houve alegria e vigor

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No que se refere aos índios, encontra aquele diligente capitão, apenas 175, sendo 98 Gueguês e 67 Acoroás, além de dez, cuja nação não foi identificada no relatório, e que se achavam por fora. Portanto, se constata que os recém transferidos Gueguês, embora numericamente superiores aos Acoroás, não alcançavam uma centena. Estavam reduzidos cm 22,58% do número originalmente aldeado. Se encontravam divididos em 58 homens e 40 mulheres, sendo uma dessas casada com um preto cativo. Era, portanto, o declínio de um povo outro livre e feliz. Conclusão De conformidade com o que foi estudado, se constata que a captu­ra de índios, fundação e manutenção de aldeamentos indígenas foi assunto de importância na Capitania do Piauí. Os dois primeiros governantes vol­ taram a ação de seus governos para esses assuntos, nos quais emprega­ram volumosas somas de recursos, onerando também os particulares. E os dois regimentos militares da Capitania, de cavalaria e ordenanças, qua­ se que exclusivamente só se empregaram na captura de índios. Muitas resoluções, alvarás e outras disposições com força de lei foram editadas sobre a guerra, catequese, administração e liberdade dos índios. Inclusi­ve, minuciosas e repetidas disposições sobre salários e jornais dos mes­mos índios. Constata-se, também, que os índios não assistiram passivamente à exploração de seu trabalho e ao aniquilamento de sua raça. índios Gueguês formularam diversas denúncias às autoridades do Piauí, Maranhão, Por­tugal e, depois, à Corte do Rio de Janeiro. Por essa razão, foi alterada a aplicação do diretório no Piauí, com a criação de um almoxarifado espe­cífico para assuntos indígenas e um inspetor com autoridade superposta à dos diretores, no caso de S. João de Sende e S. Gonçalo de Amarante. Também, em face da lentidão do Junta de Governo do Piauí no atendimento aos pleitos indígenas, por denúncia dos Gueguês foi tirada de sua alçada a competência para decidir sobre aldeamentos e passada exclusivamente para um membro da mesma Junta, tomando mais céleres as decisões.

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Dessa forma, pode-se dizer que os assuntos indígenas ocuparam um grande espaço na política, administração e economia do Piauí colonial. Porém, esses mesmos índios foram dizimados nas matas e aniquilados nos aldeamentos, de forma que um espaço que poderia ser de preservação os consumiu sem piedade. E ao fim do período colonial não mais existia aldeamento indígena nem índio no Piauí. A sociedade que nos gerou teve de dizimá-los para tomar-lhes aterra e explorar a mão-de-obra, só nos restando tomar esses fatos como exemplo a não ser seguido e procurar construir uma sociedade mais justa e solidária com respeito às diferenças e vendo cada um como seu igual, o que não poderia deixar de ser. Bibliografia Fontes Primárias BRASIL. Catálogo de verbetes dos manuscritos avulsos da Capitania do Piauí existentes no AH\J, Lisboa – Portugal/ Coord. da Edição: José Mendonça Teles; pesquisador Antônio César Caldas Pi­nheiro. Brasília: Ministério da Cultura; Goiânia: Sociedade Goiana de Cul­tura, IPEHBC, 2002. PIAUÍ. Arquivo Público do Estado do Piauí, denominado Casa Anísio Brito. Teresina(PI) – Brasil: Códice 146,147,148,149,150,151, 152,153,154,155e161. PORTUGAL. Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa Portugal): Caixa 4. Doc. 231,232,235,283,285 e 299. Fontes secundárias ALENCASTRE, José Martins Pereira de. Memória cronológica, his­tórica ecorográfica da Província do Piauí. 2a Ed.. Teresina: Comepi, 1981. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidades e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003. CHAIM, Marivone Matos. Aldeamentos indígenas: Goiás, 1749-1811. 2a Ed.. São Paulo: Nobel; Brasília: INL, Fundação Nacional PróMemória, 1983.

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COSTA, F. A. Pereira da. Cronologia histórica do Estado do Piauí. Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1974. KOSTER, Henry. Viagens ao Nordeste do Brasil. Tradução, pre­fácio e comentários de Luís da Câmara Cascudo. 12a Ed.. Rio - São Paulo - Fortaleza: ABC Editora, 2003. MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Viagem pelo Brasil (1817-1820). Trad. Lúciua Furquim Lahmeyer, revisada por B. F. Ramiz Galvão e Basílio de Magalhães que a anotou. 2a Edição. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1973. MIRANDA, Reginaldo. São Gonçalo da Regeneração – mar­ chas e contramarchas de uma comunidade sertaneja: da aldeia indí­ gena aos tempos atuais. Teresina: 2004. ________________ A ferro e fogo(inédita) MOTT, Luiz R.B.. Piauí Colonia – população, economia e soci­edade. Teresina: Projeto Petrônio Portella, 1985. NUNES, Odilon. Pesquisas para a história do Piauí. Vol. I. 2 Ed. Rio: Artenova, 1975. a

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Rio Parnaíba – Problemas e Soluções* Elmar Carvalho

No sábado, dia 17, no “Encontro em Defesa do Rio Parnaíba”, por mim idealizado, e que contou com o apoio integral do presidente da Academia Piauiense de Letras, Nelson Nery Costa, proferi a palestra “Rio Parnaíba – problemas e soluções”. A solenidade foi presidida pelo desembargador Oton Lustosa, em virtude da ausência justificada do titular. Nunca fui tão aplaudido em minha vida, o que parece demonstrar a justeza de minhas críticas e denúncias, e o acerto das soluções que apontei. Além da APL, apoiaram o evento a Associação dos Magistrados Piauienses – AMAPI e o Grande Oriente do Brasil/ Piauí – GOB-PI. Também discursaram o acadêmico Humberto Guimarães, versando o tema “O rio Parnaíba na Literatura Piauiense”, e o deputado federal José Francisco Paes Landim, que proferiu a palestra “Em defesa do rio Parnaíba”. Compareceu um público razoável, composto por pessoas interessadas em cultura e ambientalismo. Foram homenageados, por seus trabalhos em defesa do rio Parnaíba, os escritores e intelectuais Lauro Correia, Manoel Paulo Nunes, Paes Landim, Carlos Augusto Pires Brandão, Cid Castro Dias, Humberto Guimarães e Elmar Carvalho, e ainda a AMAPI. Dr. Lauro, além de haver enviado uma bela carta justificando sua ausência, foi representado pelo professor Israel Correia e pelo economista Canindé Correia, que vieram de *

Síntese da palestra pronunciada pelo acadêmico José Elmar de Mélo Carvalho no auditório da Academia Piauiense de Letras, no dia 17.05.2014, por ocasião do Encontro em Defesa do Rio Parnaíba. Esse resumo foi feito a pedido do Dr. Celso Barros Coelho, e publicado no jornal Pastos Bons, do qual ele é diretor.

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Parnaíba exclusivamente para essa finalidade. Esclareci, logo no início, após recitar os versos do Postal III, componente de meu poema “3 Postais de Parnaíba”, que minha fala seria concisa, sintética, clara, sem palavras técnicas. Citei os versos de Fernando Pessoa, em que o poeta dizia que era um técnico, mas que era um técnico só dentro da técnica, e que fora disso era um doido, com todo o direito a sê-lo. Explicitei que, conquanto não fosse maluco, me despojaria de todo tecnicismo, de toda linguagem tecnicista ou de erudição balofa. Contei que meu pai, aluno do Colégio Diocesano em 1940, ouviu o professor de geografia Álvaro Ferreira asseverar que, em 50 anos, se providências não fossem adotadas, o Parnaíba morreria. Ainda bem que o velho mestre e presidente da APL não foi um profeta perfeito, pois o nosso maior curso d’água ainda se mantém vivo, embora estrebuchando, embora nas vascas de lenta e dolorosa agonia. Vislumbrei o final da navegação no Velho Monge, tanto em Teresina como em Parnaíba. Quando fui morar nesta última cidade, em junho de 1975, ainda vi grandes embarcações e chalanas ancoradas no Igaraçu, no porto Salgado, e nelas viajei a lazer para Tutoia e Água Doce, no delta maranhense. Também ainda cheguei a viajar de trem, em poucas ocasiões. No lugar de a navegação e as ferrovias terem sido revitalizadas e melhoradas, com motores mais velozes e mais potentes, terminaram sendo suprimidas ou abandonadas, ao contrário do que ocorre em diversos países desenvolvidos de várias partes do mundo. Afirmei que essas duas formas de transportes são importantes e mais baratas que as demais opções; e mais importantes tornar-se-iam quando da conclusão do porto de Luís Correia. Mas ponderei que esta obra parecia um manto de Penélope, cuja urdidura, feita e desfeita, nunca terminava. Falei que as várias cidades ribeirinhas, inclusive e principalmente Teresina, nossa mesopotâmica capital, despejam os seus esgotos, sem nenhum tratamento, no Parnaíba; que as cidades necessitam de galerias pluviais, mas que particulares,

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empresas e órgãos públicos muitas vezes lançam seus dejetos e águas servidas nas galerias e sarjetas. Obviamente esse procedimento nocivo polui as águas do Velho Monge, que é o principal (ou mesmo o único) fornecedor de água para essas urbes. Informei que estudos indicam que o lençol freático profundo de Teresina é formado por água salobra, não potável. Chamei a atenção para o que está acontecendo com o sistema de abastecimento d’água da cidade de São Paulo. Abordei os desmatamentos e as queimadas, que vêm destruindo as matas ciliares de nosso mais importante curso d’água. Demonstrei que nosso poeta maior, (Antônio Francisco) Da Costa e Silva, no livro Zodíaco, publicado em 1917, já vergastava essas duas mazelas, em fulgurantes e imortais versos candentes. Sugeri que o Poder Público poderia fazer uso de guardas ou agentes florestais que esclarecessem os ribeirinhos sobre a importância das matas ciliares, até mesmo para a conservação de suas terras, mas que também exercesse o seu dever/poder de fiscalizar e punir, quando necessário; que poderia oferecer a essa população sementes e mudas e até certas isenções tributárias para que conservasse a floresta das beiras de nossos rios, ou fizesse o reflorestamento. Os desvios d’água, para qualquer finalidade, e a construção de barragens provocam danos ambientais e, sem dúvida, em menor ou maior grau, prejudicam os rios, razão pela qual os estudos do impacto ambiental são indispensáveis, para que esses prejuízos possam ser minimizados ou mesmo evitados. Nesse ponto, discorri sobre a campanha liderada por Lauro Correia e Paulo Nunes contra a construção de cinco barragens no Parnaíba, que iriam produzir irrisórias quantidades de eletricidade, mas que iriam prejudicar algumas cidades, com a inundação de parte delas, e impediriam para sempre a navegabilidade do Velho Monge, mesmo porque até hoje a eclusa da Barragem de Boa Esperança ainda está por ser concluída. Acrescentei que fui um soldado raso dessa peleja, mas que também desferi os meus “tirambaços”.

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Fatalmente essas barragens iriam diminuir o volume d’água, o que iria afetar o delta parnaibano. Com isso a influência das marés seria exercida com maior intensidade, o que tornaria salobro o precioso líquido na região litorânea, provocando possivelmente grandes danos ao abastecimento de água potável na cidade de Parnaíba, sobretudo. Talvez – quem poderia garantir? – a extraordinária beleza do Delta, com suas ilhas, canais e mangues, ficasse comprometida. Além de tudo isso, as usinas eólicas substituem com demasiadas vantagens essas intervenções prejudiciais e perigosas. E instáveis e quase sempre imprevisíveis, tanto pelo excesso de chuva como por causa das rigorosas estiagens. Falei de outras mazelas, inclusive a agricultura e a pecuária predatórias, que podem provocar erosões, assoreamento de lagos e rios, envenenamento de aquíferos, e destruição dos mananciais, brejos e olhos d’água, sem falar nos danos à fauna. Portanto, o governo deve exercer a fiscalização com firmeza e de maneira contínua, para que os nossos cursos d’água não desapareçam. Indispensável a criação e fiscalização de áreas de preservação das nascentes do Parnaíba e de seus afluentes. Deixei bem claro que os cuidados referentes ao nosso principal rio deverão ser estendidos aos seus tributários. Não pode o interesse particular e egoístico prevalecer sobre o coletivo. Para surpresa e mesmo perplexidade do auditório, no tocante às sugestões, eu disse que a grande solução para os problemas do Parnaíba era exatamente não se fazer nada e não se deixar fazer; não se fazer sistema de esgotos que depositem as vazas podres da cidade em suas águas; não se construir mais nenhuma barragem; não desmatar e nem queimar as florestas de suas margens; não se desviar ou retirar suas águas desnecessariamente. Aduzi que os órgãos públicos ambientais deveriam exercer os serviços de orientação e fiscalização em relação aos ribeirinhos, com programas de reflorestamento e incentivos fiscais, conforme já explicitei acima. Retirar-se, na medida do possível, os esgotos

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já existentes. Com essas providências e talvez um serviço de dragagem moderno, com o uso de estacas ou outros equipamentos e métodos, em que o rio dragar-se-ia a si mesmo, talvez o Parnaíba voltasse a se tornar mais estreito e mais profundo, e, por conseguinte, mais saudável. Ainda no campo das soluções, retomando uma ideia antiga do engenheiro, advogado e administrador Lauro Andrade Correia, ainda do tempo em que ele foi presidente da FIEPI, no início da década de 1980, afirmei que o Velho Monge poderia ser rejuvenescido e revitalizado com a transposição de águas do Tocantins, na altura de Carolina (MA), para um dos afluentes do rio Balsas, o qual deságua em nosso mais importante rio, a montante da cidade de Uruçuí (PI). Expliquei que essa transposição exigiria a construção de um canal, de apenas 100 quilômetros, sem necessidade de grandes bombeamentos, já que a gravidade, o afluente e o Balsas tudo fariam, sem emprego de maiores esforços. Não haveria necessidade de obras faraônicas e/ou mirabolantes de engenharia, nem do uso de complicadas e sofisticadas tecnologias. Por conseguinte, seria uma obra simples e de baixo custo, em termos de governo federal. Fernando Pessoa, num de seus magníficos poemas, disse que o Tejo era mais belo que o rio que corre pela sua aldeia, mas que o Tejo não era mais belo que o rio de sua aldeia, porque o Tejo não era o rio que corre pela sua aldeia. Parafraseando-o, bradei que os rios Amazonas e São Francisco são mais importantes e mais bonitos que o Parnaíba, mas que eles não são mais importantes e nem mais bonitos que o Parnaíba, porque eles não são o rio que banha a nossa província.

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Caryl Chessman − Lição de Justiça ao Judiciário

Humberto Guimarães

I Quem viveu direta ou indiretamente o movimento. noticioso midiático dos anos 1950-60, como criança de segunda infância, adolescente ou adulto, há de lembrar-se, mais de sessenta anos depois, da dramática luta no âmbito jurídico, do delinquente Caryl Chessman contra o Estado da Califórnia que o condenara à pena de morte pela intoxicação em câmara de gás letal. Foi uma luta de formiga contra elefante, de um Davi não ungido contra o Golias furioso a empunhar as armas do poder; uma luta, entretanto, que apaixonou o mundo a favor do réu, porque ele, que delinquira reiterada mente na juventude a demonstrar uma absoluta irresponsabilidade moral e social, nos anos de presidiário destinado a morrer, conseguiu sublimar os seus baixos instintos transformando-se num exímio escritor, num hábil esgrimista das ciências do Direito, num incômodo crítico da justiça dos Estados Unidos, especialmente da Califórnia: num obstinado lutador pelo direito de viver, ainda que fosse em prisão perpétua, para continuar estudando e escrevendo livros de ensaios sobre o homem, o comportamento social e a liberdade emanados dos três que conseguira completar e editar: “2455-Cela da Morte”, “A lei quer que eu morra” e “A face cruel da Justiça”: há um quarto.... Por aquela época eu esta cursando o meu período de formação romântica ao perlongar dos dez para os quinze anos (1955-60), e lembro-me perfeitamente da comoção causada na população brasileira através da mídia radiofônica, dos jornais diários em papel e da revista semanal “O Cruzeiro”, do complexo “Diários Associados” de Assis Chateaubriant; dos traillers “cínematográficos noticiosos como o “Canal 100, de ..., dando conta do paredismo legalista do estado americano representado pela Suprema Corte de

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Justiça, a marcar e remarcar dia e hora da execução do “red light bandit” (bandido da luz vermelha) e os contragolpes defensivos, inteligentes e precisos, do jovem autoditata em direito, filosofia, literatura e conhecimentos gerais com todo o direito a rábula conferido pelo saber notório adquirido no presídio de San Quentin, o corredor da morte, desde que ali fora encerrado em 1948, dia cinco de maio, forçando, dessa maneira, a magistratura americana às dilações de última hora e acirrando a corrida persecutória do gato atrás do rato, como se fora a dupla Tom e Jerry, em que este estaria marcado para morrer no último round; como nas novelas e filmes de suspense, a siderar o mundo na expectativa do próximo capítulo, a esperar pela surpresa de um prodígio sobrenatural, O Brasil torcia por ele abertamente, “oficialmente” pela defesa oficiosa que lhe faziam ninguém menos que o ministro do Supremo Tribunal de Justiça, Nelson Hungria, e o presidente da república, Juscelino Kubitschek que, através do Itamarati, pediu sua extradição ao presidente americano, Dwitt Alsenhauer, que a negou: - The red light bandit, II can you deadet. Ele convenceu o mundo de que não era esse bandido; de que jamais matara alguém. II No primeiro livro, escrito em....., o “2455-Cela da Morte”, o autor traça, impiedosamente, sua biografia de turbulências antissociais, afunilando o relato às circunstâncias que o conduziram ao “Corredor da Morte”: adentrá-lo seria como atravessar o rio Lestes na barca de Caronte que despeja as almas aflitas na margem do inferno deixando-as sob os cuidados do tricefálico Cérbero, o cão que não dorme, hipervigilante furioso. Foi publicado em edição original, com o título “, logo chegado ao Brasil sob a tradução de....., que lhe deu o título “....???, direitos para a língua portuguesa adquiridos pela Distribuidora Paulista de Jornais, Revistas, Livros e Impressos LTDA, em 195.... Ao mesmo tempo, todos os países civilizados compraram o direito de editálo, tornando-se rapidamente um best-seller... A autobiografia começou a ser escrita logo que trancafiado no “corredor da morte”, em 1948; nela procura despertar a atenção da opinião pública sobre si, dando início ao preparo,sozinho, de sua própria defesa;

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um autorretrato dissecado às vezes com dureza e realismo cru, às vezes de forma romântica, fantasiosa, propositalmente piegas, para conquistar sensibilidades e simpatias; mostra, porém, o contraventor que fora, o delinqüente juvenil descendente de imigrantes dinamarqueses cruelmente vitimados pela queda da bolsa de New York em 1929; do adolescente que liderava um grupo de vadios e resolve pegar carros alheios para se divertir pelas ruas de Los Angelis a carregar garotas a altas velocidades; grupelho que se torna freguês dos distritos policiais; que, num segundo passo, precisa furtar e roubar para manter a boa vida de heróis perante as garotas. Situação que prevalece até ele completar 27 anos... Por esse tempo Hollywood estava aterrorizada por um serial kill que, com uma lanterna de sinalização da luz vermelha, aproximavase dos casais de namorados incautos que se esfregavam pelos recantos escuros, ora recostados nos carros, ora no interior dos mesmos, e os atacava, violentava e, geralmente matava. De uma sagacidade enorme, enganava a polícia, que se desesperava à procura de um “bode”, para acalmar o clamor público, especialmente das mulheres. Ninguém melhor do que o Chessman, que vivia mais na cadeia do que em liberdade, um familiarizado dos distritos e do presídio de Folson. Ah, ele precisava conhecer San Quentin! Eis, então, que aparecem Mary Alice Meza e Regina Johnson, sobreviventes do “red light bandit’, que disseram ao delegado reconhecer em Caryl as características físicas do serial, mas elas não tinham certeza porque o bandido estuprador só atacava à noite, nos lover’s Lane, os cantinhos escuros de Hollywood, protegendo o rosto contra a percepção dos apavorados. III De início, achou graça na acusação que lhe estava sendo imputada. Pelo absurdo que lhe parecia, pois nunca cometera violência sexual, nunca matara ninguém; mas as vítimas sobreviventes, sugestionadas pela polícia, viram nele as características “irrefutáveis” do monstro da lanterna vermelha; estigmas tanto físicos como psicológicos, o que se casava muito bem com seu passado de delinqüência marchetada de reincidências, com as firmes palavras dos policiais que o

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prenderam. O espalhafato da imprensa levou, sobretudo as mulheres, ao clamoroso pedido de sua cabeça, e o corpo de jurados composto “por artes mágicas” de um homem e onze mulheres a faiscarem farpas de fogo contra ele, fatalmente o conduziram ao corredor da morte rumo à pena capital. A partir daquele dia cinco de maio, Caryl Chessman deu início à grande batalha, lançando-se aos estudos nos livros encontrados na biblioteca da casa, dos que encomendava ou pedia emprestado, e usando das prerrogativas legais que lhe concediam o direito de escrever à vontade numa máquina datilográfica, e de manusear o processo, uma vez que requerera o direito de ele mesmo fazer a própria defesa. Estudou em dois mil livros segundo rezam as crônicas, datilografara laudas e laudas dia e noite, pouco dormia, fumava vários metros de cigarro por dia, numa ideia fixa obstinada, ansiosa e persistente de provar a inocência daquelas imputações e conseguir sua liberdade de viver... Foram dez anos entre apelos e petições à suprema corte; dezesseis recursos a tribunais secundários, nove decisões prolatadas pelo Supremo Tribunal da Califórnia, sete delas de adiamento da data de execução; só não conseguiu o núcleo, que era a anulação do julgamento, ainda assim, por grande azar, pois quando chegara a comutação para prisão perpétua, ele acabara de ser executado, naquela manhã de dois de maio de 1960: entrara na câmara verde às dez horas e três minutos, dera o último suspiro nove minutos depois, aos 38 anos de idade. Passara quase toda sua vida por trás das grades, contando-se as passagens pelos distritos, a condenação no presídio de Forster de vinte e oito anos comutados para onze, e mais os doze de San Quentin. Depois da primeira batalha teve, sim, bons advogados da defensoria, que vinham atraídos pelo carisma do acusado, empolgados com a sua inteligência e sua vontade de viver, acatando sua inocência naquele processo, entendendo que, se não estava moralmente recuperado para o bom convívio social, e com uma profissão definida e promissora, então a propalada ressocialização dos criminosos não passava de uma utopia. Caryl morreu protestando inocência; a justiça o matou convicta, por pressuposto e presunção, de que era ele o tal bandido serial, que preferiu tornar-se mais discreto nas suas investidas.

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IV O seu segundo livro, “A Lei quer que eu morra”, revelase como autoridade em criminologia, um verdadeiro tratadista, demonstrando os erros e parcialidades judiciários que lhe negaram a prova do detector de mentiras, que demonstravam ostensiva animosidade contra si, que procrastinavam decisões, que decidiam de má vontade sob a pressão dos seus advogados e agora do clamor público ao contrário do que fora no início, tanto interno quanto provindos do exterior; e ele não arredava pé das suas fundamentações alegatórias evidentes das anotações taquigráficas do interrogatório adulteradas pelo serventuário que sucedera o anterior, que falecera; da sua confissão no inquérito sob tortura física e psicológica, da recusa de submetê-lo ao detector de mentiras. Se no primeiro tomo da sua obra procura esgotar as tensões de uma condenação capital, no seu entender injusta, fazendo sua catarse de ser humano que não quer passar pelo impacto da “morte legai”, no segundo, procura esgotar todo o manancial de sinceridade demonstrativa de uma lapidação de caráter no curso da vida carcerária, o nascimento de um homem novo, plenamente sublimado, apto para o convívio social útil; neste livro ele produz, como diz o editor nas apreciações de orelhas, “um dos mais violentos libelos jamais produzidos contra a pena de morte e o sistema de justiça retributiva”, sobretudo impressionante por não ter sido produzido como pose de um estudioso de gabinete, mas como vivência solitária de quem, a qualquer momento, terá seu fio de vida interrompido pela decisão da justiça humana tão falha em vaidades maniqueístas. Os últimos esforços de apelo para viver são dramaticamente expostos no terceiro volume da obra singular, The Face Of Justice, “A face cruel da Justiça”, na tradução de Rubens C, Veras, edição brasileira de 1960, certamente recém-pós mortem. Neste revela-se o escritor amadurecido nos poucos anos de um calendário talhado com a espada de Dâmocles, nos longos dias de um sofrimento que deixou de ser vivenciado com os acicates do medo consciente para assumir a superioridade analítica dos seus verdugos. Filósofo e erudito em rito de passagem da vida para a morte, por vezes o poeta trágico

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na sua derradeira batalha por conseguir anulação do processo que o sentencia a morrer, e a abertura de outro julgamento – que lhe dê oportunidade de expor provas cabais de sua inocência, isentando-o da imputação por crimes tão bárbaros; resta-lhe um fio de esperança que isto venha a acontecer, quando o mundo se pronuncia a seu favor, quando a sociedade americana faz apaixonadas manifestações a seu favor, forçando, digamos assim, o então governador da Califórnia, Edmund G. Brown, a conceder-lhe mais um adiamento “para que o Legislativo californiano estudasse projetos visando a abolir ou suspender, experimentalmente, a pena de morte naquele estado(...). Na introdução, o autor assim se expressa: Machiavelli chamou a Sorte de mulher; a Justiça, também, é uma mulher – uma atriz cativa, forçada a representar muitos papéis, frequentemente indecentes e estultificantes – e a ser porta-voz de tanta insensatez, na sua maior parte, sinistra e destrutiva. Em seu nome, através dos séculos, temos torturado e assassinado nossos semelhantes”. V O ministro Nelson Humgria sensibilizou-se com o caso Chessman e expressou o seu pensamento. De investigação em investigação, encontro o caminho cibernético da informática eletrônica em curso e nele, um sítio (site) datado de terça-feira, 20 de abril de 2010, de um cidadão, certamente jornalista, que se identifica como Jorge Baleia, encaminhando recado- resposta ao grande jornalista Hélio Fernandes, dizendo assim: “Um dos mais ferrenhos defensores dessa causa foi Nelson Hungria, então Ministro do Supremo Tribunal Federal(...)” – e por aí vai, seguramente a repetir, ipses literis, o artigo de Rogério Schietti Machado Cruz, promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal, cujos trechos mais pertinentes, com a devida vênia, trancrevo: “Um dos mais ferrenhos defensores dessa causa foi NELSON HUNGRIA, então Ministro do Supremo Tribunal Federal. Através de correspondências ao Governador da Califórnia, entrevistas a jornais e periódicos, palestras etc, HUNGRIA empenhou toda sua inteligência e prestígio de criminalista de escol

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à fileira dos que clamavam pela preservação da vida de Chessman. Memorável a conferência do saudoso penalista, pronunciada no Centro Acadêmico XI de Agosto, em maio de 1959, quando disse: “...Apontado como o bandido da luz vermelha, sob imputação de rapto e brutalização de duas raparigas (não se sabe bem se para fim de furto ou de libidinagem), condenou-o o tribunal de Los Angeles a respirar um gás mortífero, que é o meio de se matar legalmente na Califórnia, (...)Obteve que lhe fossem proporcionados, às pilhas, livros da biblioteca de Sacramento. Livros de jurisprudência ou de doutrina jurídica, livros de sociologia, de criminologia, de filosofia, de história, de cultura geral. Só de obras de direito, leu-as em número superior a 2.000. Lia até que os olhos se congestionassem e seu cérebro exausto se negasse a continuar funcionando. (...) Aquele Chessman de 27 anos que o júri de L.A. condenou à morte é tão diferente do Chessman atual como um carvão difere de um diamante. O que era agressividade feroz, o que era hostilidade afrontosa aos mais elementares princípios da boa convivência civil tornou-se um precioso valor humano, um espírito compreensivo e pacífico, uma vida útil, uma consciência integrada na solidariedade social. (...)Para erradicar o mal, não é preciso erradicar o homem. O que cumpre fazer não é matar o homem criminoso, mas o criminoso no homem. A criminalidade não se extingue ou declina com a pena de morte. Ao invés de irrogar-se arbitrariamente o direito de matar, ao Estado incumbe promover a remodelação da própria sociedade, para que se apresentem melhores condições políticas, econômicas e éticas, eliminadoras das causas etiológicas do crime....”.

No final do seu artigo, a transcrição da carta-testamento, da missiva aberta de despedida, interrompida com a chegada dos agentes oficiais da equipe da morte sob a égide da lei californiana, que transpomos para cá a fim de estendermos o seu alcance ao conhecimento dos que lerem este trabalho.

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“Caro Sr. Stevens: “Como deve saber, os carrascos, na Califórnia obedecem a horário de bancos. Nunca executam alguém antes das dez da manhã e nunca depois das quatro da tarde. Quando ler esta carta, já eles me terão executado. Terei trocado o esquecimento por um incrível pesadelo que durou 12 anos. E o senhor terá presenciado o ato final ritualístico. Espero e confio em que o senhor será capaz de transmitir a seus leitores que morri com dignidade, sem medo animal e sem bravatas. Devo isto a mim mesmo, mas devo mais a muitos outros. A hora da morte chegará a mim dentro de poucos minutos. Resta-me de vida, segundo suponho, menos de dezoito horas. Passarei estas horas numa das celas, a alguns passos da câmara de gás”. “...Eu desejava continuar vivendo. Acreditei apaixonadamente que poderia oferecer uma contribuição com meus livros, não só à literatura, como à minha sociedade. Eu estava determinado a retribuir, assim, às milhares de pessoas de tantas nações que me defenderam e acreditaram em Caryl Chessman como ser humano. Eu teria tido grande satisfação e um sentimento de nobres objetivos se tivesse sobrevivido, para justificar seu compreensivo julgamento. Mas um severo destino, revestido de roupagens jurídicas, decretou minha morte numa pequena sala octogonal, pintada de verde”.(...) “Chegou a hora, em suma, de morrer. Então assim acreditam muitos funcionários da Califórnia o Estado estará vingado e vingado estará seu sistema de Justiça retributiva. O Estado terá acalmado seu espírito de vingança. Mas, vingança contra o quê? Câmaras de gás podem matar gente e não contrafações de sinistros e arrependidos criminosos lendários, “monstros mitológicos”. “Face a face com a morte repito enfaticamente e sem hesitação: jamais fui o famoso “bandido da luz vermelha”. O Estado da Califórnia condenou o homem errado, teimo samente recusou-se a admitir a

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possibilidade de seu erro, e muito menos, a corrigi-lo. O mundo terá em tempo provas deste monstruoso e selvagem erro. Não se orgulhará desses fatos. Mas, ponhamos aqui de lado a questão de culpa ou inocência. O que me impele a escrever esta carta é minha firme convicção de que neste drama está envolvido algo mais que a morte de um homem. “(...) Vou morrer com conhecimento de que deixo atrás de mim outros homens vivendo seus últimos dias no corredor da morte. Declaro aqui que a prática de matar ritualmente e premeditadamente outros homens envergonha e macula nossa civilização, sem nada resolver contra aqueles que se lançam violentamente contra a sociedade e eles próprios. “Assim, poderemos encontrar solução racional e humana para o problema que a sociedade deve fazer com tais seres humanos. Este problema não deve jamais ser enterrado juntamente com o homem executado e suas vítimas. Ele não será enterrado junto comigo. Escolhi meu próprio caminho para chamar a atenção mundial para os corredores da morte e câmaras de gás. Não encaro a mim mesmo como um herói ou mártir. Pelo contrário, sou ou louco confesso, profundamente consciente da natureza e qualidade dos loucos erros cometidos em meus anos de rebelde juventude. Não espero parecer grandiloquente e didático. Mas, estas são crenças que ardem dentro de mim mais luminosamente que a minha esperança de sobreviver. Morrendo, devo reafirmar esta crença e exprimir minha última esperança de que estes que saíram em minha defesa continuem lutando contra as câmaras de gás, contra os carrascos e contra a justiça vingativa. Certamente mereceremos algo melhor. Extingue-se meu tempo. Devo encerrar aqui minha carta. Sinceramente, Caryl Chessman”. Teresina, 5 a 9 de novembro de 2012.

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Francisco Miguel de Moura, Domador da Palavra Olga Savary*

Ao falar de poesia, falamos de vida. Que outra coisa mais poderosa à vida senão a poesia? Entre clássica e mais que moderna, assim se move esta esplêndida poiesis de Francisco Miguel de Moura, de expressão alerta, consciente, inteligente, atual e atuante, uma imaginação que escreve e cria. Que, como a natureza, é viva: bole, bole. *

Olga Savary, escritora, tradutora e jornalista, mora no Rio de Janeiro.. Tem 20 livros de poesia e ficção, pessoais, e mais de 980 coletivos (centenas de antologias que organizou e integrou, no Brasil e no exterior). Convidada, é a única escritora a constar da antologia Poesia da América Latina (entre apenas 18 poetas, entre os quais dois “Prêmios Nobel”: Neruda e Octavio Paz, editada na Holanda, em 1994). Integra as antologias Os Cem Melhores Contos do Século e Os Cem Melhores Poemas do Século (Rio de Janeiro, Objetiva, 2000). Recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de poesia, conto, romance, crítica, ensaio, tradução e jornalismo (3 “Jabuti”, vários “Prêmio UBE-RJ”, “UBE-SP”, vários “Prêmios da Academia Brasileira de Letras”, nas várias áreas literárias, inclusive o “Prêmio Machado de Assis para Conjunto de Obra”, o “Prêmio Internacional Brasil-América Hispânica para Poesia”, etc.). É pioneira em publicar haicais no Brasil, no início da década de 1940, menina ainda, e depois em divulgar e traduzir os clássicos japoneses do haicai. Pioneira também em publicar o considerado 1º livro todo em tema erótico no Brasil e em ter organizado a 1ª antologia de poesia erótica. E em utilizar palavras do idioma tupi em tudo o que escreve, seja poesia, conto, romance, crítica literária e de artes, e ensaio. Tem mais de 10 livros no prelo e a sair. Pelos editores com os quais trabalha no Brasil e no exterior, mais os apreciadores de sua obra, está colocada em mais de 300,000 sites.

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Parodiando nossa grande Cecília Meireles, o poeta não precisa ser alegre nem triste, podendo ser ambas as coisas; basta ser poeta. E isto FMM é o suficiente: é lírico, pessoal, ao mesmo tempo singular e plural, mas também atento aos problemas brasileiros e universais, ligado às desigualdades entre os seres em uma poesia social. Algumas vezes dá-se o luxo de denotar nobre e sutil sensualidade de corpo presente, corpo com alma: corpo almado. Escrever e viver são ações irmãs, amalgamadas, indissociáveis: escreviver. Este neologismo bem poderia definir o poeta Francisco Miguel de Moura, uma vez que ele sabe domar a palavra, dominando como poucos a intensidade selvagem dos vulcões amestrados da poesia: Como em “Prima lavra”: “Palavra é saber / liberdade, ritmo/ de sabor sofrido/ e do entegozo; // a palavra aflora / instintos do instante/ do espasmo/ espanto/ nos seus interstícios; //a palavra ir/mana / é/vita e av-isa / a palavra emana/ de onde precisa; // tomada em viagem, / ovo ou claro esboço, / a palavra é virgem / no poeta em osso.”. Ao ler um livro de poemas, o que o leitor deseja é que em primeiro lugar eles sejam verdadeiros. E que, ao fazer uma leitura crítica da verdade poética da obra, esta irá com certeza satisfazer seu coração e sua mente, inundando seu apreciamento da beleza. Do ponto de vista analítico, por exemplo, um déspota pode não temer autores eloqüentes que preguem a liberdade, porém irá temer um poeta amado por seu povo que ironize o poder com a sua poesia. E sua poiesis, como se diz da beleza, é a razão de existir do poeta. Para ler bem uma literatura imaginativa como esta – no caso os poemas de Francisco Miguel de Moura, que subsistem por si sós – basta amá-los ao experienciá-los numa atenta leitura. Isto ocorrerá se eles (poemas) lhe conferirem intensidade e coisa verdadeira, no perfeito entendimento que possam “viver” em você, leitor. Como na vida, os poemas carecem de “continuar vivendo” no leitor mesmo quando o livro acaba. A leitura termina, a

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vida não. Mas se a poesia perdura, pela força do ritmo e das imagens, metáforas, em nosso pensamento e em nossa emoção, é testemunho inconteste de que o “eu poético” atingiu o alvo, logrou seu objetivo: nos arrebatou. Poemas têm vitalidade fora do livro. Os de Miguel de Moura conseguem este resultado, o que é de muita monta. O que querer mais? É então que a poesia se afirma como uma necessidade humana. Não é maravilhoso isto? Por que será? A razão pela qual a poesia é uma necessidade humana é o fato que ela satisfaz nossas carências conscientes e inconscientes de beleza, integridade e verdade. Poesia é vida, proteção, amor. Todos nós almejamos amar com mais intensidade. É nossa cota de liberdade a leitura de poemas que alimentam o ser livre, como FMM exemplifica em “A hora vazia”: “(...) palavras não enchem o vazio/ nem a inutilidade dos desejos.” Grande poeta nos proporciona este prazer, o de nos expor poemas livres e elegidos pela beleza. É como se realizasse a justiça que todo ser aspira: a justiça poética. A intuição e a consciência do poeta nos premiam, assim premiando nossa própria intuição/consciência. Moura não é só um artista, é igualmente um grande criador. Os livros mais celebrados talvez sejam os menos lidos, como os da tradição ocidental, os épicos: a Ilíada e a Odisséia de Homero, a Eneida de Virgílio, a Divina comédia de Dante e o Paraíso perdido de Milton. Na verdade, eles não são fáceis de ler, não só por terem sido escritos em verso (até porque há traduções em prosa disponíveis). Maior é a dificuldade por sua grandeza e pelo que exige do leitor em atenção, envolvimento e imaginação dedicada. Porém se você fizer o esforço de ler esses clássicos épicos, será um leitor agraciado e recompensado, assim como lendo a Bíblia, sem falar de outros grandes autores que o mundo e o Brasil possuem como base e espinha dorsal de todo programa sério de leitura. Assim, nessa linha de pensamento, os livros de FMM, no Brasil, são de leitura fundamental. E o poema é como uma parte do todo que é o livro, é o detalhe, um flash de todo o show.

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Tente, leitor, dizer em voz alta o poema que está lendo como se estivesse no espetáculo, com entonação e emotividade. O poema “A partida”, fala disso tudo dito acima: “Na partida os adeuses, gume e corte / dos prazeres do amor, quanto tormento! / Cada qual que demonstre quanto é forte, / lábios secos mordendo o sentimento. // Do ser brotam soluços a toda hora, /as faces no calor do perdimento, /olhos no chão, no ar, por dentro e fora / pedem aos ceus a força e o alimento. // Ninguém vai, ninguém fica, e se reparte / no transporte que liga e que desliga, / confusão de saber quem fica ou parte. // Não se explica tamanha intensidade / amarga e doce, e errante, que interliga / os corações perdidos de saudade”. Como em continuação, diz “O que é a saudade” o também soneto: “Impossível saber o que é a saudade... / Uma palavra? A cor de uma tristeza? / Ou uma felicidade sem certeza / que em nós se instala como eternidade? // O que passou, passou, não é verdade? / Ou nos ficou do tempo a chama acesa? / Saudade, um não-sei-quê que traz leveza? / Ou apenas enganos, leviandade? // Está no corpo inteiro ou está na alma? E se está, por que não nos traz a calma? / Por que nos mata assim, tão devagar? // Saudade, o teu passado é tão presente, / és uma dor que chega de repente / e que parece nunca vai passar.”. Os poemas aí citados bem se prestariam ao recurso do sarau, uma vez que a poesia começou e cresceu com a oralidade dos jograis desde sempre, expondo e contendo os mais profundos sentimentos do espírito humano, em criações expressas no domínio das palavras. O poema exige um tempo de leitura. E se for um bom poema, a cada leitura só vai crescer e adquirirá uma nova interpretação nossa e nova face a nos apresentar. Em um livro, cada poema se sobressairá de outro (igual àqueles atores que usavam botas de enormes saltos plataforma a erguê-los muitos centímetros acima do chão ao interpretarem no palco deuses ou heróis). Esta comparação entre a altura do protagonista em confronto aos formadores do coro, dá uma ideia da altura de um

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poema em relação aos demais. Um, dois ou mais poemas que se destaquem são como “heróis” ou “deuses” em meio ao livro; os outros estão à altura normal de qualquer pessoa. Palavras ditas pelo protagonista nos parecem vir do fundo da garganta de bocas de gigantes, de personagens que não só parecem, mas que de verdade eram e são fora do comum. O que é poesia? Óbvio seria dizer que é o que os poetas escrevem. Seria o espontâneo transbordamento da personalidade do poeta expresso em palavras escritas ou o som do ritmo semelhante à música, ou mesmo a exposição de um pensamento, uma reflexão, um sentimento ou emoção? É tudo isso – e muito mais. Poesia é o mais alto patamar da criação humana e o que nos declara realmente superiores na escala de animais (porque, entre animais, somos os únicos a fazer poesia até onde se sabe). É ancestral e antiga a ideia de o poeta mergulhar no fundo de si mesmo, na misteriosa e mágica caverna criativa, no profundo fundo de sua mente e alma. O fato é que não existe civilização sem poesia. Com a palavra escrita, poeticamente falando, organizada de modo ordeiro e disciplinado, embora livre em sua criatividade. Fala-se aqui da poesia lírica e conceitual da qual Francisco Miguel de Moura é mestre inconteste, que nos ensina a todos com sua dicção poética. Um leitor consciente e lúcido saberá bem o que é poesia, o porquê uma poema é poesia pura ao ler um poeta deste quilate. Porém o vasto conhecimento de poesia não garante que o poema em si vá ser compreendido. Entendido será se lido muitas vezes. A verdade é que ler um poema e entendê-lo é tarefa para toda uma vida. Não que leve a vida inteira, mas que o bom poema vale ser lido muitas e muitas vezes, sempre que possível e necessário for, para ser compreendido na maneira que deve ser. Com a pertinácia de muitas visitas, como no início de um amor. Só assim entenderemos e vamos aprender e apreender a respeito dele mais do que supomos e possamos imaginar. Todos nós sempre acharemos coisas novas no poema, na poesia. Também novas ideias e um deleite maior na visão particular de mundo de cada artista, como este aqui. Qualquer

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bom texto, como a ponta do iceberg, exige a ida ao fundo do poema com a complexidade que encontrarmos bem abaixo da superfície, a bem dizer do imensurável abismo que é o de cada ser. A poesia exige a nossa exclusividade: em desafio. O bom poema deve até dar um susto – ou um “insight” – como uma iluminação ou um soco no estômago. Talvez não possamos lê-lo de um só fôlego para ter o entendimento. Mas se a ele, poema, voltarmos e dedicarmos nosso tempo, o tempo dele irá premiar-nos com uma endorfina e serotonina poéticas. Isto é o desejável, porque o poeta se assemelha ao benfeitor Prometeu, que roubou o fogo dos deuses gregos e romanos para dá-lo aos homens e assim confirmar a civilização. Enquanto isso, o poeta, este Francisco Miguel de Moura, em texto rebelde, moderno, atual, quer ser brasileiro, somente, mesmo que seja sem nenhum caráter, como o Macunaíma de Mário de Andrade. E ainda que seja tão difícil ser brasileiro, “e ninguém saiba o nome da lei”, o poeta quer mais é denunciar que o rei está nu (embora ele nem acredite em rei), “pão e circo, / pau e cerco”. Enquanto nós, brasileiros, pagamos a conta, remetendo dólares, dólares e mais dólares sem mudar um só dedo, “nosso navio vai ao fundo”. Com língua de fogo, o poeta degusta as palavras em sua canção de sóis: “teu nervo óptico / testemunha ocular / o exótico.” E falar é flácido: “pior é a fina estrada / de areia, sem pegadas / para a volta.” Poetar é o “último voo entre espinho / e flor!”, onde os homens “fazem guerra pela paz”. São flashes de vários poemas, entre os quais (“Linguagem viva” e “Epigramas”). É quando “chega um tempo de dizerse o impossível / e o impossível já foi dito.” E ainda: “chega um tempo de calar / e a gente inventa uma maneira triste / de dizer numa língua estranha / um silêncio amordaçado.” (“Chega o tempo”). Quem dera fosse possível citar todos os versos de FMM! Mas o espaço de um prefácio não deixa. Entre seus inúmeros livros publicados, até em “50 poemas escolhidos pelo autor”, edição da Galo Branco, este nosso poeta homenageia Carlos Drummond de Andrade, “cantor primeiro de seu mar de 132 |

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ferro / itabirano interior / mar/ (...) de minas-brasil”. Ee mais: “guimarães rosa ao ser / tão mar.? (...) / neste mar de serras / neste mar de astúcias / neste mar de chamas? (...) mais o bonde mais a esperança / (com o sentimento do mundo / em duas mãos maduras)”. No pensar deste homem-nuvem, onde os pensamentos voam, ele se irmana à natureza, onde as mangas vivem com sede, entre “um tempo que seque medimos”. Pois então, poeta, tão povoado e só, “depois de todos os gritos” ecoa o teu solitário grito de silêncio e solidariedade. O poeta precisa sempre da cabeça solta, trocando as curvas pelas retas, ao contrário do que deseja o arquiteto-poeta Oscar Niemeyer, que prefere as curvas. Importante na poesia é o caminho, pois “o caminho tem muitas histórias”. E o que quer o poeta, este aqui? Quer mesmo é “ter a vaidade dos caminhos” que “dão passagem, mas pouco dão abrigo.” E quer na verdade é “ter orgulho do tufão”, e mais: “a solidão da noite no deserto” e se assemelhar às nuvens, ficando no ceu aberto. Quer “ter emoções de amor secreto / sentir como se sente uma paixão”, e mais ainda deseja: “Quero viver do ideal concreto, Quero arrancar de mim o coração, Incapaz de conter todas as dores” (“Querenças”).

Nascido no sertão do Piauí, em 16 de junho de 1933, vive hoje em Teresina. Formado em Letras pela Universidade Federal do Piauí, foi, entre várias outras profissões, radialista, professor de língua portuguesa e literatura brasileira e colaborador de todos os jornais e revistas de sua terra, assim como de várias publicações importantes de muitos estados brasileiros e do exterior (Estados Unidos, França, Espanha, Cuba e Portugal). Pertence à Academia Piauiense de Letras, entre outras entidades culturais do Brasil. Sua poesia, estreada em 1966 e seguida de 13 obras só de poemas, é lúdica, enunciada de risos e guizos, de humor sempre presente. É também ficcionista (contista, cronista, memorialista, com vários livros igualmente publicados e premiados, como ocorre com os seus de poesia. De romancista a ensaísta, é publicado e premiado em todas essas áreas do seu saber e de suas realizações, recebendo

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por toda a crítica especializada, vinda de escritores de todo o país (tais como Fábio Lucas, João Felício dos Santos, Nelly Novaes Coelho, entre muitos outros) o reconhecimento merecido. Este material de crítica especializada foi reunido em dois volumes já publicados: “Um Canto de Amor à Terra e ao Homem” (Editora da Universidade Federal do Piauí, Teresina, 2007) e “Fortuna Crítica de Francisco Miguel de Moura” (Ed. Cirandinha, Teresina, PI, 2008). Com currículo assim tão variado e vasto, pode-se afirmar que Chico Miguel, como ele gosta de ser chamado, tem a literatura como religião e a ela se entrega de corpo e alma, mental e liricamente. Amante das artes, ele realiza sua poiesis em favor da humanização do homem. Sua poesia se move entre ritmo, reflexão, metonímias e metáforas. Pela cabeça deste poeta, no momento da criação, passa – através da memória e de sua vivência poética – a experiência semântica, lingüística, filosófica, semiológica, semiótica e tudo mais que se adequar aqui. A escritura para este nosso poeta é tudo o que ele extrai na busca essencial da sua e da humanidade de seu semelhante e que só a arte tem competência para traduzir e desvelar – e a palavra, que rege a sua poesia, é sua expressão maior e mais alta. A poesia devora o pensar do poeta e este a devolve em poemas rutilantes numa espécie de vingança criativa. É o sublime do criar poético. Poesia é veneno violento, mas não mata. Ao contrário, promove a vida. Inundada, deságua-se na água da vida. Denuncia a nudez do rei, sendo o rei em si. Ou melhor: rainha, uma vez que poesia tudo rege. Quanto ao poeta, este, tudo sabe do labirinto e do deserto – e sabe que carrega a própria chave. Sabe do breu, mas dirige-se a luz, tendo sempre a companhia da alvorada em osso. Já a noite é sua sócia e sósia, maior que a desmedida noite do poeta. Espia alerta o poeta, por trás das pálpebras, um mar grande: o mar. Compatível com o mar da vida, a poesia reluz, fulgura. Assim fulgura, fruto da paixão do autor pela palavra bruta que ele com tanta argúcia tão bem lapida, a poesia de Francisco

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Miguel de Moura: acha de fogo, archote ardente, pura tocha crepitando na fornalha escarlate, escaldante, a disparar os olhos de lince sobre quem a lê. Comunicante, embora o poeta se declare (in)comunicável em outro belo poema: “Eu falo comigo e me entendo, Se falo com o outro me vendo. Eu falo comigo e me amo, Se falo com o outro reclamo. Eu falo comigo calado. E com o outro, grito, e atado...”

Lúbrica, a poesia mete a expectante e experiente língua até o fundo da garganta do poeta. O resultado? Seus poemas vêm a nós no incêndio do pensar, puro pasto, lavra nobre e, no meio da vida, esta sua poesia permanecerá, clássica e jovem, labareda e magma.

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O. G. Rego Rasga o Coração em Depoimento Memorável Gilvanni de Amorim

A segunda edição de Como e por que me fiz escritor, de O. G. Rego de Carvalho, aprimorada e com acabamento melhor, inclui questionário sobre a obra do escritor. O livro, editado novamente pelo Projeto Lamparina, é resultado da palestra dada pelo autor no Seminário de Escritores Piauiense, em 1989. Sem saber, o palestrante era gravado enquanto falava. Rigoroso no trato da linguagem, O. G. diz não ter dado à transcrição o burilamento que costuma dar ás suas obras. Felizmente autorizou sua publicação. Em tom didático, o romancista comove ao falar com sinceridade e desnudamento. Revela seu amor pela música e diz ser escritor por derivação, pois seu desejo mesmo era ter sido compositor. A certa altura, afiram: “O autor não pode ter piedade de si mesmo, tem que se expor a nu, nem que seja para o ridículo”. Ficamos sabendo, por exemplo, que Rio Subterrâneo, foi concebido a partir de um conto intitulado Passeio a Timon e, dos seus livros, é o que mais ama. Confessa que enlouquecera ao encerrar a última linha de Rio Subterrâneo. Declara o escritor que Ulisses Entre o Amor e a Morte ganhou menção honrosa no concurso “Fábio Prado de Contos” de 1954. E apesar de ser bem aceito lá fora, foi mal recebido em Teresina por causa de uma polêmica com professores da recémcriada Faculdade de Filosofia. Então, ele viajou ao Rio de Janeiro magoado e lá escreveu Somos Todos Inocentes para dar uma resposta a seus críticos aqui do Piauí. E revela que o título deste romance é na realidade um sarcasmo. O. G. relata que, com 19 anos de idade, quando ainda não tinha conhecimento do roman fleuve (técnica utilizada por

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escritores como Faulkner), já imaginava escrever romances nesses moldes. Fala do seu gosto pela obra aberta e explica detalhadamente o que é uma obra aberta. Por fim, classifica-se na categoria de escritores psicossociais cujas obras se inserem no realismo simbólico. A persistência de O. G. Rego de Carvalho para se firmar como escritor lembra o sacrifício de Sísifo. Sua tenacidade é prova de autoconfiança. Recusado dezenas de vezes por jornais e revistas do sul do País, não desanimou. Alias, esse filme parece se repetir no campo das letras. Sammuel Backett também foi rejeitado. Sua novela Malone Morre passou pelas mãos de mais de vinte editores até emplacar de vez. Oeiras, cidade onde nasceu O. G. Rego, tem influência capital na sua ficção: a tradição secular, os sobrados, a decadência, os loucos, a linguagem, o vocabulário (o dicionário Aurélio registra mais de trinta abonações do romancista), as palavras de origem lusitana conservadas no linguajar dos oeirenses: rapariga (moça), cousa (coisa), quinta (sítio, pomar), redemunho (redemoinho). Por causa da palavra redemunho um colega da Academia Piauiense de Letras – e O. G. nomina-o – dissera-lhe que ele a usava com exclusividade. O tom da colocação era de ironia. A resposta do escritor foi ler, em sessão da Academia, o vocábulo registrado no Aurélio. Diga-se, no entanto, Guimarães Rosa já fizera uso dela na epigrafo de Grande Sertão: Veredas: “O diabo na rua, no meio do redemunho”. Foi Drummond quem disse que escrever é cortar palavras. O. G. Rego é isto, a busca incessante da palavra exata, mot juste, da linguagem desprovida de qualquer adorno. O esmero da linguagem é tão brutal no ficcionista piauiense que, de tanto limar as 200 páginas de Ulisses..., acabou reduzindo-o 100 páginas. Ele resumiu o livro de tal maneira que um capítulo inteiro resultou em apenas três linhas, nas quais descreve a morte do pai de Ulisses com rara beleza poética. Para justificar a redução drástica, o romancista nos brinda com indagações que firmam sua honestidade literária: “É lícito a um escritor escrever o óbvio? É lícito a um escritor escrever

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o rotineiro, aquilo que ocorre todo dia?” O. G. Rego pertence à classe de escritores que tem lucidez diante do objeto que elaboram, faz parte do elenco daqueles que lutam noite e dia a favor da clareza do texto, da palavra adequada, da linguagem enxuta. Nesse sentido, ele é do mesmo filão de um Kafka, de um Graciliano, de um Herberto Sales, de Além dos Marimbus, ou de um Dyonélio Machado, de Os Ratos. “Por que você escreve?”, esta era a pergunta de uma enquete dirigida a escritores. Paul Montand respondeu: “Escrevo para ser rico e estimado”. Não é este, por certo, o caso de O. G.; talvez escreva para ser amado, quem sabe. Mas rico, jamais. Quem lê sua obra, logo vê o rigor formal, a absoluta sinceridade com que encara o ofício de escrever. Ele não faz apelações nem mistifica a atividade literária, por isso não é sucesso de vendas. Sua obra não é embrulho, produto de linha de montagem; é antes a elaboração minuciosa, tenaz, quase obsessiva, de um artesão primoroso. Como e por que me fiz escritor é uma obra-prima. Não é exagero nem fácil elogio. O autor rasga o coração e lega um dos mais belos testemunhos da nossa literatura. Dentre os ensinamentos que traz, avulta a sábia lição: “O escritor deve ter compromisso com a gramática, não deve agredir a gramática, mas não deve ser submisso à gramática também. O escritor tem de saber até aonde ele pode ir”. Joia.

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As Manisfestações de 2013 e o Fim do Homem Cordial no brasil.

I O “homem cordial” consiste na própria imagem clássica do brasileiro, com sua generosidade, sua simpatia, sua lhaneza e sua hospitalidade, recebendo a todos com um convite para ir a sua casa, mesmo que com o outro não tenha nenhuma intimidade. Apesar da obra “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda, publicada em 1936, ser voltada para compreender os dilemas da modernização do país, a imagem do “homem cordial” conseguiu “colar” como fator psicológico do brasileiro. Não só isto, porém, pois no aspecto político implicava a cordialidade em desconhecer os limites do público e do privado, com a apropriação da máquina burocrática pelos interesses particulares. O “homem cordial” é o brasileiro de quinhentos anos, desde que os primeiros portugueses chegaram aqui e começaram a se misturar com as índias e depois com as escravas africanas, formando uma nova etnia, ainda que sob o símbolo da opressão. A análise weberiana de Sérgio Buarque de Holanda, inovadora na primeira metade do século XX, procurou compreender porque a modernização do aparelho estatal por meio da administração racional não funcionava no Brasil. Ele entendia que era pelo enraizamento da cordialidade, em que se vinculava os interesses públicos aos privados. O “homem cordial” prevaleceu por vários séculos, os três da Colônia, outro do Império e mais outro da República. Mesmo as tentativas de modernização do Estado, por Getúlio Vargas, através do DASP, deparararam com as práticas antigas e tradicionais, acabando por prevalecer sobre a gestão técnica voltada ao exclusivo interesse público. Nem tudo se manteve: a “cordialidade” no Poder Público caracteriza-se hoje pelo “patrimonialismo”, pelo desvio em favor próprio do patrimônio público. É a questão do

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momento no Brasil, tão discutida a partir dos levantes populares de junho de 2013. O “homem cordial”, assim, representou o brasileiro até o início do século XXI, com o aspecto psicológico e familiar tendo por base o patriarcalismo, a lhaneza e a generosidade pessoal e, como aspecto social, a apropriação do Estado por algumas pessoas ou grupos econômicos. Apesar das mudanças ocorridas, ao longo do tempo, em essência ainda predomina a gestão pública submetida aos caprichos particulares, ao mesmo tempo em que o brasileiro continue caracterizado pelo bom humor, pela cordialidade e pelo improviso. II O “homem cordial”, como o político brasileiro, fez a política ser realizada por meio de um sistema de benefícios mútuos e de trocas de interesses. Para Sérgio Buarque de Holanda, em “Raízes do Brasil”, a cordialidade era o que impedia a modernização social no país, pois a política não priorizava o interesse público, mas o interesse privado. A cordialidade também implicava em relações sociais autoritárias, com base no coronelismo e no mandonismo e, depois, no populismo e na cultura da dádiva. Ao serem vistos os serviços públicos como concessões e benefícios do Poder Público, não como um direito dos usuários, acabou-se incorporado práticas políticas do “toma lá que eu dou cá”. Durante todo o século XX, o Brasil teve poucos anos de democracia, por volta da década de cinquenta e depois da Constituição de 1988, ou seja, trinta anos. Por outro lado, o autoritarismo existiu por setenta anos, com o voto bico-de pena, com o Estado Novo e com o Estado Autoritário-Burocrático, a partir de 1964. Assim, nos quatrocentos anos de Colônia e do Império, com mais de dois terços do último século da República, fica demonstrado que a cultura política continua autoritária, só organizada em efetiva experiência democrática nos últimos vinte e cinco anos, o que é pouco tempo.

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O regime político, que resultou da Constituição de 1988 e que teve retrocessos concretos, principalmente depois de aprovada a reeleição para os cargos executivos, chama-se hoje de Presidencialismo de Coalizão. O Presidente da República, eleito pelo voto popular, aproxima-se de outros partidos políticos, que formam uma coalizão política ampla e nem sempre ideológica. O Presidencialismo de Coalizão tem muitas dificuldades para impor sua vontade partidária, tendo que compor com outros partidos, o que impede que haja governo de esquerda ou de direita, no máximo de centro–direita ou de centro-esquerda. O Presidencialismo de Coalizão está profundamente relacionado com a “cordialidade política” e com a cultura da dádiva, pois cada concessão a um partido ou a um grupo social exige uma troca de interesses. O imobilismo é constante, pois melhor se encontrar no centro, do que ter uma posição ideológica. O privado toma conta do público, gerando políticas públicas extravagantes e obras faraônicas sem efetivamente respeitar os interesses dos eleitores. Apesar da democracia recente, o autoritarismo, a troca de favores e o favorecimento aos interesses privados continuam enraizados na sociedade e na política, até hoje. III O “homem cordial” tem como sua característica mais marcante a “lhaneza” que, apesar de ser um galicismo colhido por Sérgio Buarque de Holanda, espelha a alma nacional brasileira. Salta aos olhos a cortesia, qualidade nata de nosso povo, sempre acolhedor, generoso e simpático. A “lhaneza” permitiu a vida promíscua entre a senzala e a casa grande, com os mulatinhos nascendo a toda hora. Ficou como o registro primeiro da etnia verde e amarela, fruto das relações entre os fazendeiros e as mulheres de sua propriedade. A cordialidade levou à promiscuidade racial, apesar da separação de classes, principalmente no período escravocrata. Existe uma permissividade que faz com que todos se encontrem e às vezes tomem uma cerveja juntos. A ascensão social dos substratos das classes populares permitiu que vários chegassem

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à classe média e, alguns poucos, à elite econômica e política. Isso tudo acabou abalando a belicosidade dos trabalhadores, salvo em diversas circunstâncias especiais, mas espaçadas cronologicamente. Ao lado disso, no contínuo estado de paz em que se viveu, estava a capacidade de convivência e de tolerância, pelo menos até os dias atuais. No entanto, também isto escondeu um pouco do egoísmo social, com pessoas sem deficiências tomando vagas no estacionamento das com deficiência ou dos idosos. É como o caso de cidadãos querendo dar propinas para as autoridades públicas, para evitar multas ou para agilizar um requerimento, ou como a “pesca” nas provas dos estudantes ou dos candidatos em concursos, além de uma série de outras ações visando burlar alguma regra. A permissividade social é uma realidade brasileira, dos homens e das mulheres locais, que toleram sempre os pequenos desvios e até os grandes. A permissividade também serve de “graxa” para reduzir os atritos sociais, de modo a diminuir os conflitos e as incertezas. A permissividade, lado negativo, assim como a tolerância, lado positivo, são características difíceis de modificar do “homem cordial”, pelo menos até o inicio do século XXI, quando muita coisa pode estar mudando. IV Tudo indicava que 2013 começaria quente, pois logo no primeiro trimestre surgiu a Emenda Constitucional nº 72/2013, que acabava com as restrições aos direito trabalhistas que tinham as empregadas domésticas. Estava expresso no texto constitucional os direitos negados a estes empregados, como FGTS, horaextra e outras vantagens. Existia o apartheid de direitos sociais, pois muitos trabalhadores brasileiros eram considerados como cidadãos de segunda classe. Isto, claramente, refletia o caráter patriarcal das relações domésticas, em que as últimas posições sociais cabiam às “empregadinhas”, as ex-mucambas da senzala. A relação de trabalho das domésticas, antes de 2013, era

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de quase servidão, com diversas obrigações e quase nenhum direito, inclusive com a alimentação racionada pelos patrões, além do assédio sexual, do assédio moral e das relações trabalhistas assimétricas. No entanto, o equilíbrio de um lar estava assentado sobre o serviço da empregada, que fazia a comida, arrumava a casa e lavava a roupa, além de babá das crianças. Este pilar fundamental do lar brasileiro, como um raio, foi derrubado pela Emenda Constitucional nº 72/2013, ao conceder às domésticas os mesmos direitos e deveres dos demais trabalhadores. A classe média ficou atordoada com a revolução social, pois agora precisavam ser cumpridos todos os direitos das domésticas, com a ampla divulgação feita pela mídia brasileira, o que talvez acabou restringindo a oferta de empregos. O mercado de trabalho das domésticas diminuiu e elas ficaram mais “caras”, com as relações de trabalho devendo ser mais profissionalizadas. Inclusive, sem favores ou atenções, sob pena de constar na rescisão trabalhista. Cada vez mais vai se comer fora e haverá mais comida congelada ou fast food, tudo junk food, para resultar em mais obesidade, com as pessoas cada vez mais distantes do arroz com feijão nosso de cada dia. Quem vai fazer a comida? Quem vai lavar e passar as roupas? Quem vai cuidar do bebê e do cocô do bebê? As mulheres vão ter menos filhos e as relações familiares vão ficar mais europeias, com as crianças nas creches e os idosos nos asilos. As domésticas precisam ser mais profissionais certamente, com as novas exigências que a elevação do salário provocou. Enfim, vai haver o fim do “homem cordial” dentro do lar, com sua lhaneza e seu coronelismo, ao mesmo tempo, despedaçado pelos novos direitos e pelas perplexidades sociais do século XXI. V Como visto antes, sobre o pensamento de Sérgio Buarque de Holanda, as manifestações de 2013 romperam com a característica social brasileira mais marcante, que vinha a ser a “lhaneza”. A gentileza e a hospitalidade para com todos, além do estado de paz social a maior parte do tempo, parecem

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agora ameaçados. A crença foi abalada pela classe média indo às ruas para reivindicar melhoria nos serviços públicos e o fim da corrupção. Este movimento foi seguido por outros, como de índio, de estudante, de universitários, de caminhoneiros, de portuários, de centrais sindicais, de movimento sem terra, de anarquistas do Black Bloc e de outros grupos até então periféricos no conflito social. Os gastos com a Copa do Mundo de 2014, por conta de seus estádios “europeus”, longe do clima de festa que se esperava, resultou em indignação relativa às despesas públicas e ao desperdício. Foi um espanto, pois ninguém entendeu nada, com passeatas com trezentos mil pessoas protestando contra tudo e contra todos. Contabilizou-se, em várias cidades e em diversas ocasiões ao longo de 2013, quase dois milhões de pessoas. Havia bandeiras fragmentadas e múltiplos interesses como se uma panela de pressão explodisse. Ninguém entendeu nada e talvez ainda não entenda, mas que houve um “não” que não dá para esquecer isto houve. As manifestações da classe média antiga resultaram do visível bônus que a nova classe média teve em sua ascensão. Deixou-se de ser pobre para ser consumidora ávida, sem que a antiga classe média tivesse muitas vantagens nesse processo. Pior, os aeroportos ficaram cheios de pessoas que antes não viajavam de avião, muitas voando pela primeira vez, assim como balcões cheios nos demais serviços públicos e nos bancos. Filas de uma nova classe, mais moderna e sem dívidas, mas com dinheiro vivo e com disposição para consolidar sua ascensão social. A impossibilidade do Brasil continuar a crescer como os outros países emergentes, além da crescente inflação, assustaram a velha classe média. A deterioração da economia e a falta de perspectiva imediata levaram esta classe às ruas e aos protestos. Depois, vieram outros grupos sociais, mas foram aqueles os que primeiro protestaram, desmentindo sua passividade histórica. Pareceu o fim da paz social e despertou um ambiente quase revolucionário. Vai continuar ou vai parar? Não se sabe ainda,

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pois as manifestações atuais não levaram mais do que centenas de pessoas às ruas. Talvez seja o fim da cordialidade social, talvez mais do que isto. VI O primeiro semestre de 2013, a crise familiar em razão dos direitos das domésticas e as eleições presidenciais de 2014, abalaram a estrutura da família de classe média antiga. Os trabalhadores, que passaram a ser chamados de nova classe média, e os menos remediados também, sentiram também falta agora dos serviços domésticos em casa. O declínio acentuado da taxa de natalidade, no Brasil, está fazendo com que a pirâmide populacional mude, com as pessoas de zero a dez anos sendo em menor número do que as pessoas de dez a vinte anos. Em decorrência disto, a população também fica mais idosa, com menos gente arcando com a previdência social. Assim, é uma tendência se colocar logo os filhos nas creches, onde se conseguir vaga, e os pais e os avós nos asilos, logo que deixarem de ser produtivos.

As relações sociais passaram a ser mais tensas, na medida em que nem a classe média antiga nem a nova classe média se conformam em declinar em termos de poder aquisitivo. Há dificuldades no atual modelo econômico, de acesso ao consumo para cada vez mais gente, especialmente para os trabalhadores que representavam mais da metade da população brasileira dez anos atrás. Hoje, mais de cinquenta por cento da população é justamente a nova classe média, ou em termos de IBGE, a classe “C”. Os temores com a falta de maior crescimento econômico e com a falta de mais distribuição de renda, aliada à inflação e a seu efeito corrosivo, levaram a população a demonstrar sua insatisfação para com os serviços públicos, especialmente os relativos à saúde e à educação, bem como contra a corrupção entres os políticos. Não houve uma mudança política, ainda, pelo

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menos visível. Apesar dos governantes e dos parlamentares sentirem-se intimidados com as manifestações, nem todos deram a devida acuidade aos clamores populares, procurando fazer de conta de que não eram com eles o problema. Isto pode frustrar a discussão sobre a correção das políticas públicas adotadas e sobre o controle moral da burocracia pública. Não se sabe o que virá, nem se algo vai realmente mudar, como se tudo não passasse de uma necessidade da classe média fazer uma catarse coletiva de insatisfação – a nova e a classe média velha. Das certezas, é possível indicar o fim da cordialidade, base de análise de Sérgio Buarque de Holanda, pois parece que esta deixou talvez de ser um dos pilares da política e da vida em sociedade brasileira. Enquanto possível, as relações familiares, políticas e sociais ocorreram com base na gentileza, mas também com assimetria e com autoritarismo, como se houvesse uma paz social. Pode ser que as manifestações enormes, como em junho de 2013, não ocorram mais tão cedo, mas muita gente aprendeu a fazer desobediência civil para resolver seus problemas específicos. Em casa, sem empregada e sem lhaneza. Na rua, sem paz social e com conflitos nada cordiais. Nada mudou ainda, mas tudo se transformou em algo que ainda não se sabe o que é e só o tempo dirá a verdade. Nelson Nery Costa Presidente da APL.

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Ciência e Consciência* Celso Barros Coelho**

“‘O que devo fazer?’, embora seja a primeira pergunta que fazemos, ela não é a mais importante. Pelo contrario, envolve uma pergunta mais fundamental: ‘O que devo ser?’. Somente se tivermos certa compreensão daquilo que é a existência humana é que poderemos determinar se certa ação promove ou destrói essa humanidade”. Kenneth R. Overberg1

Esta festa, que marca o término do vosso Curso de Direito, traz à nossa reflexão o mistério do tempo, o tempo que vos conduziu até aqui. Ontem ingressáveis com a esperança de vitória, a melhor de todas as vitórias – a vitória do saber. Hoje, volvidos cinco anos, chegais ao fim. E se abre outra perspectiva de futuro a reclamar vossa participação, pois o que passou foi apenas uma etapa, para novo encontro, encontro com o destino, nas incertezas de cada opção e de cada conquista. Amanhã despertareis pensando no que fazer. É a realidade *

Oração proferida no dia 15 de janeiro de 2010, na solenidade de colação de grau dos bacharéis em Direito da Faculdade de Ensino Superior de Floriano - Piauí. ** Advogado. Do Instituto dos Advogados Brasileiros. Da Academia Piauiense de Letras. Presidente da Academia de Letras, História e Ecologia de Pastos Bons. 1 Consciência em Conflito: como fazer escolhas morais. São Paulo: Editora Paulus, 1999, p. 24.

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da vida, é a incerteza da jornada e a confiança que repousa no vosso espírito. Se ficaram para trás o tempo de estudos no mesmo ambiente, as ajudas mútuas que o convívio dos colegas e professores propiciava e o estímulo que o cenário inspirava, novos raios se cruzam no horizonte para indicarem que a luta vai começar e que os compromissos se renovam. Dessa correta compreensão do tempo e o que com ele podereis fazer para alicerçar vosso conhecimento do Direito, di-lo com energia e segurança o lema que escolheste para guiar vossos passos de Bacharel em Direito, empenhados em defendê-lo para defender os supremos valores da sociedade. Esse lema diz assim: “Prior in tempore, potior in jure”. Sois a primeira turma de Direito da Faculdade de Ensino Superior de Floriano. Fostes os primeiros no tempo. E ao receberdes o diploma, com o símbolo do vosso grau, vos tornais presentes e vigilantes na trincheira em que defendereis o Direito. O Direito se liga ao tempo estreitamente. É o tempo fator de aquisição e de perda do Direito. A segurança jurídica não depende apenas da Lei. Depende do tempo que a torna eficaz. Platão dizia que o tempo é a imagem da eternidade. Quão importante se apresenta ele em nossa vida, já que dele dependemos, marcando o encontro com o nascimento e a despedida com a morte. Dependem do tempo certos institutos da segurança jurídica. É o caso da decadência, da prescrição, da preclusão, da coisa julgada. O grande juiz e eminente jurista piauiense SOUZA NETO2, tratando do tema, com destaque para os valores éticos ínsitos nas leis penais, nos aponta estas particularidades em que ressalta, por outro lado, a importância do tempo na vida do Direito: “Se o ofendido reage, na hora da ofensa, do ataque, sua reação se chama direito ou estado de legítima emoção. Se o ofendido custa a responder ao ofensor, perece o direito, por prescrição moral 2

Cartas à Academia, Rio de Janeiro: 1960, p. 58.

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e legal, transformando-se o crime do atacante em impunidade moral e legal. É assim que entendem os governadores da vida: pregadores, legisladores e juízes. A reação pronta, ainda que violenta, é direito, é honra, é justiça. Passados instantes ou horas, o direito apodrece, a honra envilece, a justiça se degenera”.

O tempo destrói em nós o que é efêmero, sujeito à idade e às dimensões do espaço. Mas em nós existe algo que resiste à sua força destruidora: o que é permanente nas realizações humanas. E o que nelas é permanente é o sentido que a elas emprestamos, não as vendo na sua materialidade, mas na sua essência. Aí está o símbolo a definir a essência do ser humano. Ao estudar o Dom Quixote de Cervantes, por ocasião do transcurso do quarto centenário de sua morte, definindo-o como um apólogo da alma ocidental, SAN TIAGO DANTAS, eminente professor de Direito Civil, tão cedo arrebatado do convívio intelectual do país, tem esta expressiva maneira de valorizar o símbolo, ao dizer: “Tudo o que existiu e cuja forma efêmera logrou resistir à fatal decomposição do tempo, pode ser salvo, se o espírito do homem ali souber encontrar o símbolo, em que se personificam as essências universais”. Acreditais no valor do símbolo como forma de perpetuar em vossa memória o que pode ser salvo da ação destruidora do tempo. E o lema que escolhestes: “Primeiro no tempo, firme no direito”, nos leva a outra dimensão – a do tempo construindo a história do Direito e a do Direito acompanhando a evolução do tempo. Revela-se aí a vida do direito que emana dos fatos, mas que se completa no interior do homem, pois faz parte de seu pensamento, repousa nas colunas do seu espírito e alarga-se nos domínios de sua consciência. A sociedade moderna, submetida a um processo de globalização que revoluciona os métodos tradicionais do saber, exige um Direito a ela adaptado, mas que não perca o horizonte dos valores humanos a defender e a preservar, valores esses que as

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modernas Constituições tiveram a preocupação de fixar nos seus textos, justamente para mostrar que o Direito em nosso século abarca o sentido do compromisso que está traduzido no vosso juramento: a causa da humanidade – causa humanitatis. Não foi em vão que essas Constituições, na sua maior parte, e me refiro às mais modernas constituições dos países europeus e americanos, que contém no seu texto expressões que envolvem o compromisso com a causa da humanidade, que é o transunto da causa da Paz e da Liberdade. A nossa Constituição de 1988 seguiu essa linha, levou em conta esses valores primeiros, como ressalta o seu Preâmbulo, bastante enfático para definir as diretrizes ideológicas e humanísticas em que ela se inspira. O Estado Democrático de Direito que a Constituição instituiu é destinado, diz o Preâmbulo, “a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacifica das controvérsias...”. Como é rico de propósito este Preâmbulo! Meus caros bacharéis, Ao levantardes o braço e apurardes a mente para proferir o juramento de fidelidade ao Direito, estais assumindo o compromisso em relação a esses supremos valores, com os quais é possível garantir o destino da humanidade em seus anseios de paz e de justiça e também de salvação. O Direito está diretamente vinculado às nossas experiências, experiências que são do individuo e da sociedade e que operam na esfera interna e internacional, no arco de convergência da cultura de cada povo e dos interesses legítimos que cada um deles se dispõe a defender. Ademais, lembra o professor JORGE MIRANDA3, eminente 3

Teoria do Estado e da Constituição, Editora Forense, 2005, p. 15.

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constitucionalista português, que, sendo a função do Direito ajudar a resolver os problemas sociais “(socioculturais, econômicos, políticos,) impende-lhe o dever de uma atitude critica sobre o jus conditum em nome da justiça e da consciência jurídica coletiva, das situações concretas do país, da coerência do sistema e da técnica legislativa”. Jus conditum é o Direito que podemos ler nos textos escritos. É, pois, um leque muito grande de obrigações a cumprir no campo das responsabilidades dos que optaram pela carreira jurídica, como vós, já que somos responsáveis pela aplicação do Direito, pela defesa do seu sistema ético-legal, pelas criticas dos desvios sofridos, pela fidelidade aos postulados básicos da nacionalidade e, por fim, pela defesa da própria vida, que é o valor essencial. Neste ponto, cabe ressaltar a importância que esse compromisso envolve quanto à defesa do nosso patrimônio natural, do meio ambiente, compromisso com a defesa da ecologia. Não queremos uma civilização que nos prive dos bens da natureza. Queremos uma civilização e uma cultura que nos assegurem o futuro, nosso e dos nossos filhos. Que nos dê segurança e equilíbrio. É esta a oportunidade para lembrar palavras de um grande bispo, DOM FRANCO MASSERDOTTI, que eu tanto admiro por sua obra apostólica em favor dos excluídos e na defesa da vida que a todos se impõe. Foram palavras proferidas na solenidade da instalação, em Pastos Bons, do outro lado do Parnaíba, da Academia de Letras, História e Ecologia da Região Integrada de Pastos Bons, da qual fui fundador e sou Presidente. Palavras que ele nos deixou como legado após o seu trágico desaparecimento em Santo Antônio de Balsas, a diocese em que apostolou. Sua advertência é válida e entra no contexto do juramento por vós prestado, em defesa da causa da humanidade: “A ciência e a técnica se desenvolveram muito, mas não conseguiram realizar o verdadeiro progresso e trazer a felicidade para todos. Os que se acham promotores de progresso afirmam que é preciso avançar sempre: a etapa alcançada deve ser ponto de partida para outro progresso, sem parar. Trata-se duma visão linear da história, viciada por um otimismo ingênuo e incapaz de compreender que há descobertas que fazem avançar

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a tecnologia, mas fazem regredir a humanidade, pois são obstáculos ao crescimento da felicidade, da justiça e da beleza.

Por exemplo, a elevadíssima tecnologia alcançada na fabricação de armas não significa nenhum progresso da humanidade, pois esta tecnologia está a serviço da morte. Por causa do modelo social e econômico dominante, o planeta Terra não aguenta mais, os pobres morrem de fome (800 milhões), de sede (1.2 bilhões) e de doenças, ao passo que 20 % da humanidade – os mais ricos – se beneficiam desta destruição. Aquilo que afirmamos em geral, vale também, para nós, para o nosso Brasil”4. Esse tema ligado ao principio da dignidade da pessoa humana, faz parte, como disse, do compromisso que assumistes. Não vos contenteis em ver o Direito na estreita dimensão em que se coloca nas leis e nos códigos. Estes fixam normas, regras e princípios. É necessário sentir o direito como fermento da vida social, servido, de um lado, pela lógica do seu sistema e, do outro, pela contradição de suas fontes. Lembremos mais uma vez o mestre JORGE MIRANDA: “A lógica fornece o processo de raciocínio, não oferece soluções”. A reunião em Copenhague, no mês passado, atraindo para a capital da Dinamarca, lideranças políticas, empresariais, cientistas, sociólogos e representantes das comunidades em geral, debateu esse tema e convocou a todos para uma reflexão comum em torno dos perigos que corre a humanidade, caso não sejam adotadas políticas públicas e privadas no sentido de contornar os desastrosos efeitos das emanações tóxicas. Tenhamos consciência de que esta não é uma questão alheia às nossas preocupações, nem fora do vosso compromisso, no Brasil, no Estado do Piauí e também em Floriano. A poucos metros daqui correm as águas do Rio Parnaíba. 4

COELHO, Celso Barros. Tempo e Memória: Pastos Bons. Imperatriz: Ética, 2009, p. 140/141.

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Um rio que está morrendo, ante a indiferença dos governantes, ante a passividade dos cidadãos, ante a omissão de quase todos. Pensa-se no progresso material, na expansão do poder econômico, nas formas sofisticadas de construir riqueza. E se esquece de que o perigo está ali na devastação dos campos, na poluição das águas do rio, na extinção de suas nascentes e na morte de seus riachos. Por três vezes desci o Parnaíba de Benedito Leite/Uruçui em balsa de talo de buriti, ao sabor da correnteza de suas águas, passando, necessariamente, por Floriano. E fui além. Meu destino era Teresina. Uma vez subi de Floriano àquelas cidades num vapor movido a lenha. O espetáculo que se me oferecia na lenta subida era de uma vegetação exuberante. Árvores, aves, répteis, eram vistos em abundância. Hoje tudo diferente. A civilização, intencionalmente, posta a serviço do homem, agrediu efetivamente o próprio homem. Ante esse quadro desalentador, em que o nosso futuro se desenha de forma pouco otimista, no tocante à defesa da vida e ao destino da humanidade, o que devemos fazer, quando a ciência fez milagres em beneficio do progresso econômico? É apelar para a consciência de todos. A consciência está na raiz do eu individual. É da essência do homem. A ciência é uma conquista, que deve estar a serviço da consciência. A ciência é importante para nos ajudar a responder à pergunta: “O que devo fazer?”. Mas só a consciência é capaz de dar resposta à pergunta: “O que devo ser?”. O diploma que recebestes, nesse clima de festa, vos obriga a dar respostas sobre o que dever fazer com ele. De estudante de Direito passastes a ser responsáveis pela defesa do Direito. E se falamos na defesa do Direito é preciso saber o que mais o ataca, o que mais o agride. Em primeiro plano, é o ataque do legalismo, que consiste em colocar o Direito nos estritos limites do texto legal. É o texto visível da Lei. É necessário apreender-lhe o espírito no sistema jurídico em que se insere. O Estado dá forma ao Direito. Não cria o Direito. O que cria o Direito

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são o sentimento de Justiça e as exigências da vida social. Cultivemos esse sentimento de Justiça, pois só ele nos ajuda a compreender o Direito e nos cinge à pratica da legalidade. Meditai sobre estas palavras de IHERING: “A força de um povo equivale à força de seu sentimento de Justiça. O resguardo do sentimento nacional de justiça representa a melhor defesa de um Estado sadio e vigoroso”5. Só podemos falar em Estado sadio e vigoroso se a sociedade sobre a qual repousa estiver imbuída desse sentimento, se fatores reais do poder forem por ele controladas, se com ele comungam os cidadão eleitores e os eleitores cidadãos, se a juventude for educada na compreensão e valorização desse sentimento. Não basta que esse sentimento seja lembrado ou proclamado. É necessário que seja vivido, para que esse mesmo povo possa olhar o seu futuro com mais confiança e sentir orgulho do seu passado. E mais que a todos, impende aos bacharéis, futuros advogados, futuros juízes, membros do Ministério Publico e da advocacia, a defesa da ordem jurídica, porque esta já pressupõe o sentimento de justiça. O nosso século está apenas no seu começo. Vencemos a primeira década. A que ora se inicia vos pertence na projeção do trabalho que ides empreender, trabalho que é árduo e difícil, mas que haverá de contribuir para assegurar o futuro da nacionalidade. O professor INOCÊNCIO MÁRTIRES COELHO, Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público, preocupado com esse problema, traz as seguintes observações que eu dirijo a todos vós, na esperança de que sabereis distinguir o corpo físico da lei e o espírito da lei. Eis suas palavras: “Uma coisa é preservar-se o corpo físico da lei, o substrato da obra de arte; outra, bem diversa, é regenerar-lhe o espírito, emprestando às suas palavras significados sempre renovados. O texto original da Constituição norte-americana, por exemplo, 5

A Luta pelo Direito. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002, p. 77.


velho de mais de duzentos anos, permanece intacto e exposto à visitação pública – ao lado do pergaminho da Declaração de Independência -, numa cabine de vidro, que oferece a maior proteção possível contra a ação do tempo... Graças a novas leituras, temporalmente ajustadas, que a Suprema Corte lhe empresta sem cessar aquele texto vetusto – que foi ditado ‘à luz de uma vela de sebo’ -, continua sendo venerado como a ‘religião civil’ do pais, o ‘supremo direito da terra’ e a lei rege ‘todas as crises dos negócios humanos’ na maior potencia econômica e militar do planeta”6.

Com esse espírito da Lei, estais comprometidos em Juramento feito aqui, na leitura de dois textos – em Latim e Português. No primeiro honrais uma tradição jurídica que, vinda dos romanos, passou pela Idade Média no trabalho dos glosadores e fixou seus princípios nos Códigos Civis europeus. No texto Português, quisestes reviver nossas instituições jurídicas e políticas, que vêm desde as Ordenações do Reino, que vigeram entre nós por largo período, passando pela Constituição de 1824, que instituiu o Estado Brasileiro, pelo Esboço de TEIXEIRA DE FREITAS, no âmbito do Direito Privado, pelo Projeto do Código Civil, de nosso conterrâneo COELHO RODRIGUES, e pelo monumento do Código Civil de 1916 erguido por CLOVIS BEVILÁQUA. Assim chegamos à Constituição de 1988 e ao novo Código Civil de 2002. Do Império à República e, na República, ao Estado Democrático de Direito para consolidar a democracia e alargar o conceito de cidadania, foi longo e penoso. De mim, portador dessa mensagem, como paraninfo, que vos posso oferecer para o maior brilho de vossa festa? Não valem as palavras ora proferidas, que não têm brilho, mas afeto. O afeto, porém, revestido de sinceridade, pode ser a dádiva que mereceis receber. 6

O Poder Normativo da Jurisdição Constitucional: o Caso Brasileiro. Apud Constitucionalismo Direito e Democracia. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2009, p. 11/12.


Ofereço a experiência de cinquenta e cinco anos de advocacia durante os quais assimilei as lições de RUI BARBOSA, traduzidos nestas palavras que agora espero também sejam vossas: “As portas se abrem para vós. É o futuro. Segui confiantes no vosso caminho”.


Jônatas Batista: “a volubilidade e a inquietude” Ronyere Ferreira

De escrita simples e espontânea, Jônatas Batista recorria à pena movido pelo amor a literatura e pelo anseio de interferir em seu tempo e em seu espaço, negando-se ao comodismo e dedicando-se às letras de tal forma que se tornou o primeiro grande vulto da dramaturgia piauiense, sem prejuízos aos demais gêneros literários. Jônatas nasceu no povoado Natal, atualmente Monsenhor Gil, em 18 de abril de 1885, sendo o primogênito do matrimônio firmado entre o professor de primeiras letras e tenente-coronel João José Batista e Rosa de Jericó Caldas. Sua mãe era filha de David Caldas, político e jornalista ativo e militante no Piauí durante o segundo reinado, atuação esta que em muito influenciou a trajetória intelectual do neto. Ainda jovem, mudou-se com a família para Teresina, onde estudou em escolas particulares e posteriormente no Liceu Piauiense, instituição que foi fundamental para sua inserção futura no mundo das letras. No Liceu, Jônatas entrou em contato com docentes que concomitantemente eram intelectuais consagrados no meio literário, além de inserir-se em círculos de amizades que juntos formariam uma geração de escritores influente e criativa. Contudo, com a morte de seu pai, em 1903, teve que pôr fins aos estudos, voltando-se desde os dezoito anos para o trabalho, com o intuito de prover a família que era composta por sua mãe e nove irmãos, entre eles Zito Batista, que se tornou um intelectual respeitado em Teresina, mudando-se em 1913 para o *

Graduando em História pela Universidade Federal do Piauí.


Rio de Janeiro, onde ocupou cargos públicos sem expressividade e se impôs em meio às rodas intelectuais da capital republicana. Em Teresina, Jônatas ocupou cargos públicos de pouca notabilidade e de ordenados tímidos, acarretando-lhe incontáveis problemas financeiros ao longo de sua estadia. Na cidade ocupou o cargo de Oficial do Registro Civil e em 1905 já era escrivão da Mesa de Rendas de Teresina, emprego que perdurou pelo menos até 1920.1 Ainda no início de sua carreira administrativa no Piauí, buscou maior estabilidade social por meio de concurso público prestado em 1906 na Delegacia Fiscal do Piauí para o “preenchimento dos lugares de fazenda, de primeira entrância”, classificando-se em segundo lugar, segundo consta no Diário Oficial da União.2 Deste concurso é possível que tenha sido chamado em meados da década de 1920.3 Passados os primeiros apertos da vida prática e anos iniciais como provedor familiar, casou-se com Durcila Cunha, oriunda de família tradicional de intelectuais, detentora de dotes artísticos e frequentadora das sociabilidades elegantes em Teresina. Do matrimônio, logo nasceu sua primogênita, Dilnah Batista, como informou o jornal O Apóstolo ao enviar felicitações em 24 de novembro de 1907,4 e mais sete filhos: João Higino, Jônatas Batista Filho, Dusa Eleonora, Jofre, Jufiente, João Virgílio e Maria Rosa. 1 Conferir: Almanaque Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro e Indicador para 1905. Rio de Janeiro: Companhia Tipográfica do Brasil, 1905. p. 1908; Anuário Comercial, Industrial, Agrícola, Profissional e Administrativo para 1919-1920. Rio de Janeiro: Companhia Tipográfica do Brasil, 1920. p. 3523. 2 SR DELEGADO fiscal do Piauí. Diário Oficial dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, ano 45, n. 259, 9 nov. 1906, p. 6011. 3 QUEIROZ, Teresinha. Jônatas Batista e a paixão pelo teatro. In: _______. Do singular ao plural. Recife: Edições Bagaços, 2006. p. 97. 4 O LAR do nosso distinto amigo [...]. O Apóstolo, Teresina, ano 1, n. 28, 24 nov. 1907, p. 3.


Durcila era filha de Higino Cunha, bacharel em direito, literato de renome e um dos republicanos históricos que ao lado de Clodoaldo Freitas formava a dupla de mestres admirados por Jônatas Batista e sua geração durante os anos iniciais do século XX. Jônatas Batista e Higino Cunha mantiveram-se próximos durante décadas, frequentando os mesmos ambientes e firmando diversas parcerias em iniciativas intelectuais. A proximidade familiar e literária com Higino Cunha de certo auxiliou na inserção de Jônatas Batista no meio cultural teresinense, iniciada ainda nos primeiros anos do século XX, quando divulgava poemas em pequenos jornais pelo menos desde 1905. Um ano depois lançava seu primeiro livro de poemas, Sincelos, obra que alimentou durante meses a sede por polêmica da crítica e público piauienses. Seus versos voltariam ao prelo em 1934, quando residia em São Paulo, para comporem Alma sem rumo, livro que foi recebido com simpatia e como prova de sua maturidade enquanto poeta. Em um jornal carioca lê-se: O Sr. Jônatas Batista – abençoado seja pela coragem – tem sonetos soberbos em Alma sem rumo... Fazer sonetos hoje em dia – dizem os que querem ser poetas – é sintoma inequívoco de passadismo; fazê-los, porém – dirá o poeta de Alma sem Rumo – é para quem pode e quem sabe. E nós, daqui, batendo palmas [...] não nos furtamos ao prazer de declarar que os seus versos magníficos hão de ficar, como ficaram os de Zito Batista, seu irmão pelo sangue e pelo espírito.5

Durante sua trajetória social em Teresina teve intensa participação na imprensa, redigindo alguns jornais, entre eles: O Operário, voltado principalmente para as classes trabalhadoras; Alvorada, revista literária; O Escrínio e Chapada do Corisco, voltados para o público feminino; e O Nordeste, jornal literário e noticioso. Ainda colaborou com diversos gêneros literários em periódicos da capital, interior e de outros estados: Borboleta, Diário do Piauí, Cidade de Teresina, Correio do Piauí, O Apóstolo, 5

LIVROS Novos. Revista da Semana, Rio de Janeiro, ano 36, n. 11, 23 fev. 1935, p. 17.


Alto Longá, O Monitor, O Artista, O Arrebol, Cidade Verde, Litericultura, Revista da Academia Piauiense de Letras, Belém Nova (PA), Vida Doméstica (PA), O Jornal (MA), Folha do Acre (AC) e A Reforma (AC). Sua vigorosa produção literária, associada à tradição familiar e desenvoltura na construção de laços sociais com intelectuais do período, contribuiu para que composse o grupo fundador da Academia Piauiense de Letras em 1917, juntamente com literatos consagrados e amigos de sua geração originada do Liceu: Higino Cunha, Clodoaldo Freitas, Lucídio Freitas, Edson Cunha, Antônio Chaves, Baurélio Mangabeira, Celso Pinheiro, Fenelon Castelo Branco e João Pinheiro. Na instituição, ocupou a cadeira de número 7, cujo patrono é seu avô, David Caldas; foi segundo secretário, proferiu palestras e publicou diversos escritos em sua revista, mesmo quando residia fora do Piauí. Paralelamente à grande atuação na imprensa, participou ativamente da vida teatral teresinense, estreia que se deu em 1905 com a peça Os dois renegados. Desde então teria sido o amador de maior expressão das primeiras décadas do século XX,6 integrando companhias dramáticas e escrevendo diversas peças, entre elas o drama histórico Jovita ou a heroína de 1865, a comédia Astúcia de Mulher, as revistas de costumes Teresina de Improviso, O Bicho, Frutos e Frutas, Cidade Feliz e Coronel Pagante, e as operetas Mariazinha e Alegria de Viver. Sobre sua produção como dramaturgo, Higino Cunha destacou que entre os literatos voltados para o gênero, somente Jônatas seria merecedor de alusão: Além de algumas tentativas malogradas de Licurgo de Paiva e de um drama religioso sobre O Natal do Dr. Luiz Correia, somente as obras de Jônatas Batista merecem figurar nesta resenha histórica. O seu drama Jovita, ou a heroína de 1865, as suas revistas de costumes, principalmente O Bicho, os seus monólogos e cançonetas, tão aplaudidos pelo nosso público, já tiveram repercussão lá fora, onde não contamos nenhum teatrólogo, e lhe facilitaram ingresso na Sociedade Brasileira de 6 TITO FILHO, A. Praça Aquidabã, sem número. Rio de Janeiro: Artenova, 1975. p. 130.


Autores Teatrais, da qual é sócio, o único piauiense que mereceu tamanha honra, até hoje.7

Desde quando debutou no meio cultural teresinense, demonstrou intenso ativismo e inúmeras iniciativas, exerceu todas as funções possíveis no teatro, foi um dos fundadores do efêmero Externato David Caldas, presidente de um clube de cunho militar, organizou festas para crianças pobres, proferiu palestras e denunciou várias vezes o pessimismo com que suas ações eram recebidas. Jônatas mostrou-se desiludido com seu meio, com os seus, com o que acreditava ser insensibilidade em relação ao seu trabalho, achando-se desvalorizado por diversas vezes. Segundo Teresinha Queiroz, “Seu permanente exílio emocional anda ao passo de uma infatigável luta por fazer as coisas culturais acontecerem em Teresina, cidade que ele amava com o mesmo ardor com que nela se aborrecia, se entediava e se irritava”.8 Depois de décadas duelando contra o meio, mudou-se para o Pará, possivelmente após ser chamado para ocupar uma vaga do concurso realizado em 1906. Ao ir embora, abandonou o “exílio emocional” em que vivia, fruto de diversos insucessos, partindo a um exílio geográfico, povoado por recordações e mágoas, como nos permite perceber seu poema “Minha Terra”, publicado em 1927 na Revista da Academia Piauiense de Letras. Neste poema, destaca que apesar da saudade, não desejava rever Teresina, demonstrando por meio dos versos a convicção de não ter sido devidamente reconhecido: [...] Quero viver de ti sempre afastado, Vivendo a minha vida de exilado, Modesto e pobre, sem valor nem brilho Que estranhos gozem o teu melhor carinho... - Vivo, de longe, a meditar, sozinho, Na ventura sem par de ser teu filho.9 7 8 9

CUNHA, Higino. O teatro em Teresina. Teresina: Tipografia do Correio do Piauí, 1922, p. 4. QUEIROZ, 2006, p. 97. BATISTA, Jônatas. Minha Terra. Revista da Academia Piauiense de


Com assinatura datada de 11 de agosto de 1927, quando se encontrava na cidade de Altamira, os versos revelam sua sensação de expatriação por estar distante de sua terra, assim como ressentimentos em relação aos teresinenses, que eram acusados de acolherem afetuosamente estrangeiros sem vínculos e obras pelo desenvolvimento da cidade, ao passo que não reconheciam devidamente os seus. No Pará, foi Promotor Público, Secretário da Intendência e Advogado-rábula em Altamira.10 Em 1930 já se encontrava instalado em Belém e ocupando a vaga de terceiro escriturário da Delegacia Fiscal.11 Jônatas voltou a prestar concurso em 1932, sendo aprovado em primeiro lugar, segundo nos informa o jornal carioca Correio da Manhã: O Diretor geral do Tesouro resolve aprovar o concurso para o provimento de lugares de 2° entrância realizado na Delegacia Fiscal do Pará, sendo mantida a seguinte classificação, feita pela mesa examinadora: 1° lugar, Jônatas Batista; 2° lugar, Raimundo Berthoido da Silva; 3° lugar, Newton Vieira de Melo [...]12

Após rápida carreira administrativa no Pará, transferiu-se para São Paulo, onde foi acolhido pelos intelectuais, fez amizades e abandonou o que chamava de indiferença política, disputando uma vaga para Deputado Estadual nas eleições de 1934, com candidatura avulsa, sem coligação partidária, angariando no único pleito que concorreu por volta de 2.900 votos.13 Letras, Teresina, ano 11, n. 13, 1928, p. 74. 10 QUEIROZ, 2006, p. 97. 11 DECRETOS Assinados. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, ano 55, n. 54, 6 mar. 1930, p. 2. 12 CONCURSO de 2° entrância na Fazenda. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, ano 32, n. 11.570, 27 ago. 1932, p. 5; MINISTÉRIO da Fazenda. O Jornal, Rio de Janeiro, ano 14, n. 4.239, 27 ago. 1932, p. 5. 13 Sobre a candidatura de Jônatas, conferir: BOLETIM Federal. Diário Oficial do Estado de São Paulo. São Paulo, ano 44, n. 223, 11 out. 1934, p. 13; COLIGAÇÃO dos independentes. Diário Oficial do Estado de São Paulo. São Paulo, ano 44, n. 252, 18 nov. 1934, p. 26;


Em São Paulo, Jônatas Batista parece ter encontrado sua direção pessoal, sua paz de espírito, publicou o livro de poemas Alma sem rumo, com influência existencialista, continuou escrevendo e colaborando em diversos periódicos. Na Revista da Semana, do Rio de Janeiro, publicou o conto “Santo Antônio foi buscar chuva”, retratando as dores de Antônio Basílio, flagelado da seca no Nordeste, que mesmo diante de extrema privação, resolve ficar com sua esposa e seu filho pequeno, até que reconhece a condenação familiar: Antônio Basílio compreendia agora o seu grande erro, não acompanhando os outros, tanto que o compadre Zé Miguel o chamara, insistindo para que se fossem, por esse mundão, para qualquer parte em que a terra não fosse tão ingrata... Não se luta, assim, impunemente, contra os desígnios de Deus.14

Antônio Basílio buscara na fé as forças para ficar, contudo, presencia a morte de seu cavalo, o fim da beleza da esposa e o definhamento do filho, que ao ver agonizar pelas últimas vezes faz com que se volte ajoelhado para Santo Antônio, clamando pela vida de seu descendente, inutilmente. Revolta-se perante a falta de amparo divino, amarra a imagem do santo em um foguete e manda-o para longe, para buscar chuva. Esse conto de Jônatas pode ser lido como retrato de sua desilusão com a vida material e com as crenças católicas. Neste momento, já se considerava um homem redimido, “voltando-se para a admiração e quiçá aceitação das verdades do espiritismo, como foi possível perceber nos originais de seu manuscrito inédito Maria”.15 A manifestação de outros rumos espirituais por meio de Antônio Basílio fez-se poucos meses antes de sua morte, que COLIGAÇÃO dos Independentes. Diário Oficial do Estado de São Paulo. São Paulo, ano 44, n. 267, 7 dez. 1934, p. 21; QUADRO geral das apurações do pleito de 14 de outubro. Correio Paulistano. São Paulo, ano 81, n. 24.134, 25 out. 1934, p. 2. 14 BATISTA, Jônatas. Santo Antônio foi buscar chuva. Revista da Semana, Rio de Janeiro, ano 35, n. 51, 1 dez. 1934, p. 33. 15 QUEIROZ, 2006, p. 97.


ocorreu em 15 de abril de 1935. Por meio de notícia detalhada do Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, nota-se que na capital paulista o intelectual encontrara reconhecimento intelectual, amigos, admiradores e estabilidade social: [...] Faleceu ontem, na capital paulista [...] o escritor e poeta Jônatas Batista, alto funcionário, ali, da Recebedoria de Rendas Federal. O Extinto, que contava 50 anos, descendia de tradicional família de intelectuais do Norte do país, tendo exercido o jornalismo profissional por muitos anos. Como em São Paulo, como nesta capital, contava largos círculos de amigos e admiradores, motivo por que a notícia do seu falecimento causou geral consternação, principalmente nos meios intelectuais.16

Ao noticiar a morte, a revista feminina Vida Doméstica (PA) publicou o que noticiava ser o último soneto de Jônatas, escrito poucos dias antes de falecer, lembrando o cansaço dos quase ciquenta anos e já saldando a calmaria da velhice: Velhos, ó meus irmãos, eis-me chegado Ao vosso solitário acampamento... Venho de longe, um tanto fatigado, E peço e imploro o vosso acolhimento. Agrada-me ficar ao vosso lado, Na paz e quietação desse convento, Onde se evocam sonhos do passado, Nesse doce e feliz recolhimento... [...] 17

Com sua extinção em São Paulo, ocorrida em sua residência, localizada na Rua Pelotas, número 36, passou a habitar a memória de seus compatrícios, povoando uma seleta lista de intelectuais piauienses falecidos, fecundos na produção 16 17

FALECIMENTOS. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, ano 45, n. 90. 16 abr. 1935, p. 12. BATISTA, Jônatas. Aos velhos. Vida Doméstica, Belém, n. 206, maio 1935, p. .


literária. Em Teresina, ficou a lembrança de um homem alegre e de muitos planos,18 a preferência pelos pobres em seus escritos e seu aborrecimento pelo avançar capenga do cotidiano em que vivia.19 Por meio de texto de Celso Pinheiro, publicado em 1943, chega-nos, possivelmente, um dos relatos mais autênticos de como Jônatas Batista residiu na memória dos que com ele conviveram. Ao traçar paralelo em relação à Zito Batista, Celso Pinheiro retrata-o como um homem inconstante, triunfador e inquieto: Acontece, porém, que Zito é tímido, modesto, desconfiado. Jônatas, ao invés, ousado, comunicativo e bulhento. Zito é a sinceridade e a justeza. Jônatas, a volubilidade e a inquietude. Gosta de festas e de farras, busca os dias alegres, cheios de sol. Zito não seria capaz de vencer na vida. Jônatas é um triunfador que ama as dificuldades. A figura de Zito enternece, a de Jônatas fascina... 20

Jônatas Batista passou pela vida sendo capaz de ser amado pelos intelectuais e de confundir-se em meio ao povo. Atualmente ocupa tímido lugar na memória dos teresinenses, emprestando seu nome a uma rua que, na correria do século XXI e por não interligar regiões, é pouco notada. Porém, findando sua existência, deixou espalhada em jornais de vários estados uma vasta produção escrita e rastros de sua trajetória cultural dinâmica.

GAUTHIER, J. Croquis literários. Chapada do Corisco, Teresina, ano 1, n. 2, 25 maio 1918, p. 25. 19 PAC. Confidências. Alto Longá, Alto Longá, ano 1, n. 1. abr. 1917, p. 2. 20 PINHEIRO, Celso. Zito Batista. Revista da Academia Piauiense de Letras, Teresina, ano 26, n. 20, dez. 1943, p. 160. 18



Situação em dezembro de 2014 CADEIRA Nº 1 Patrono: José Manuel de Freitas 1º ocupante: Clodoaldo Severo Conrado de Freitas 2º ocupante: Cirilo Chaves Soares Carneviva (Padre) 3º ocupante: Esmaragdo de Freitas e Sousa 4º ocupante: Avelar Brandão Vilela (Cardeal) 5º ocupante: Alberto Tavares Silva Ocupante atual: Antônio Fonseca dos Santos Neto CADEIRA Nº 2 Patrono: Hermínio de Carvalho Castelo Branco 1º ocupante: João Pinheiro 2º ocupante: Deolindo Augusto de Nunes Couto 3º ocupante: José Expedito de Carvalho Rêgo Ocupante atual: Jônathas de Barros Nunes CADEIRA Nº 3 Patrono: Joaquim Sampaio Castelo Branco (Padre) 1º ocupante: Fenelon Ferreira Castelo Branco 2º ocupante: Cromwell Barbosa de Carvalho 3º ocupante: João Gabriel Baptista Ocupante atual: Jesualdo Cavalcanti Barros CADEIRA Nº 4 Patrono: David Moreira Caldas 1º ocupante: Jônatas Baptista 2º ocupante: Mário José Baptista 3º ocupante: Fernando Lopes e Silva Sobrinho 4º ocupante: William Palha Dias Ocupante atual: Wilson Nunes Brandão CADEIRA Nº 5 Patrono: Areolino Antônio de Abreu

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1º ocupante: Édson da Paz Cunha 2º ocupante: José Miguel de Matos Ocupante atual: Oton Mário José Lustosa Torres CADEIRA Nº 6 Patrono: Teodoro de Carvalho e Silva Castelo Branco 1º ocupante: Benedito Aurélio de Freitas 2º ocupante: Alarico José da Cunha 3º ocupante: Petrarca Rocha de Sá 4º ocupante: Orlando Geraldo Rego de Carvalho Ocupante atual: Maria do Socorro Rios Magalhães CADEIRA Nº 7 Patrono: Anísio Auto de Abreu 1º ocupante: Higino Cícero da Cunha 2º ocupante: Raimundo de Moura Rego Ocupante atual: Humberto Soares Guimarães CADEIRA Nº 8 Patrono: José Coriolano de Sousa Lima 1º ocupante: Antônio Chaves 2º ocupante: Breno Pinheiro 3º ocupante: Celso Pinheiro Filho 4º ocupante: Francisco da Cunha e Silva Ocupante atual: Francisco Miguel de Moura CADEIRA Nº 9 Patrono: Alcides Freitas 1º ocupante: Lucídio Freitas 2º ocupante: Pedro Borges da Silva 3º ocupante: João Nonon de Moura Fontes Ibiapina Ocupante atual: Hugo Napoleão do Rego Neto CADEIRA Nº 10 Patrono: Licurgo José Henrique de Paiva 1º ocupante: Celso Pinheiro

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2º ocupante: Antônio Monteiro de Sampaio (Monsenhor) 3º ocupante: Hindemburgo Dobal Teixeira Ocupante atual: José Elmar de Mélo Carvalho CADEIRA Nº 11 Patrono: João Alfredo Freitas 1º ocupante: Abdias da Costa Neves 2º ocupante: Benedito Martins Napoleão do Rego 3º ocupante: Fabrício de Arêa Leão Carvalho 4º ocupante: Aluízio Napoleão de Freitas Rego Ocupante atual: José Ribamar Garcia CADEIRA Nº 12 Patrono: Antônio Coelho Rodrigues 1º ocupante: João Crisóstomo da Rocha Cabral 2º ocupante: Hermínio de Morais Brito Conde 3º ocupante: Antônio Bugyja de Sousa Brito 4º ocupante: José Maria Soares Ribeiro Ocupante atual: Wilson Carvalho Gonçalves CADEIRA Nº 13 Patrono: Joaquim Ribeiro Gonçalves 1º ocupante: Antônio Ribeiro Gonçalves 2º ocupante: Gonçalo Castro Cavalcanti 3º ocupante: Clidenor Freitas Santos Ocupante atual: Pedro da Silva Ribeiro CADEIRA Nº 14 Patrono: Raimundo Alves da Fonseca (Cônego) 1º ocupante: Pedro de Alcântara de Sousa Britto 2º ocupante: Carlos Eugênio Porto 3º ocupante: Ofélio das Chagas Leitão 4º ocupante: Alvina Fernandes Gameiro Ocupante atual: Altevir Soares de Alencar

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CADEIRA Nº15 Patrono: Antônio Borges Leal Castelo Branco 1º ocupante: Benedito Francisco Nogueira Tapety 2º ocupante: Cristino Castelo Branco 3º ocupante: Carlos Castelo Branco 4º ocupante: Benjamin do Rego Monteiro Neto Ocupante atual: Deoclécio Dantas Ferreira CADEIRA Nº 16 Patrono: Taumaturgo Sotero Vaz 1º ocupante: Raimundo Zito Baptista 2º ocupante: José Pires Rebelo 3º ocupante: Adelmar Soares da Rocha 4º ocupante: Edgard Nogueira 5º ocupante: Petrônio Portella Nunes 6º ocupante: Zenon Rocha Ocupante atual: Eustachio Portella Nunes Filho CADEIRA Nº 17 Patrono: Raimundo de Arêa Leão 1º ocupante: Odylo de Moura Costa 2º ocupante: Odylo Costa Filho Ocupante atual: João Paulo dos Reis Velloso CADEIRA Nº 18 Patrono: Marquês de Paranaguá 1º ocupante: José Félix Alves Pacheco 2º ocupante: José Burlamaqui Auto de Abreu Ocupante atual: Herculano Moraes da Silva Filho CADEIRA Nº 19 Patrono: Antônio José de Sampaio 1º ocupante: Luiz Mendes Ribeiro Gonçalves 2º ocupante: Renato Pires Castelo Branco Ocupante atual: Alcenor Rodrigues Candeira Filho

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CADEIRA Nº 20 Patrono: Álvaro de Assis Osório Mendes 1º ocupante: Matias Olímpio de Melo 2º ocupante: Jacob Manoel Gayoso e Almendra 3º ocupante: José Camillo da Silveira Filho Ocupante atual: Raimundo José Airemoraes Soares CADEIRA Nº 21 Patrono: Leopoldo Damasceno Ferreira (Padre) 1º ocupante: Antônio Francisco da Costa e Silva 2º ocupante: Maria Isabel Gonçalves de Vilhena Ocupante atual: Francisco Hardi Filho CADEIRA Nº 22 Patrono: Miguel de Sousa B. Leal Castelo Branco 1º ocupante: Luís de Moraes Correia 2º ocupante: José Pires de Lima Rebelo 3º ocupante: Júlio Antônio Martins Vieira 4º ocupante: Gerardo Majela Fortes Vasconcelos Ocupante atual: Nildomar da Silveira Soares CADEIRA Nº 23 Patrono: Lucídio Freitas 1º ocupante: Amélia de Freitas Beviláqua 2º ocupante: Joaquim Raimundo Ferreira Chaves (Mons.) Ocupante atual: Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz CADEIRA Nº 24 Patrono: Jonas de Moraes Correia 1º ocupante: Jonas Fontenele da Silva 2º ocupante: Jônatas de Moraes Correia 3º ocupante: Robert Wall de Carvalho Ocupante atual: Paulo de Tarso Mello e Freitas CADEIRA Nº 25 Patrono: Gabriel Luís Ferreira

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1º ocupante: Simplício de Sousa Mendes 2º ocupante: Luiz Lopes Sobrinho Ocupante atual: Dagoberto Ferreira de Carvalho Júnior CADEIRA Nº 26 Patrono: Simplício Coelho de Resende 1º ocupante: Benjamim de Moura Baptista 2º ocupante: Álvaro Alves Ferreira 3º ocupante: Manoel Felício Pinto 4º ocupante: João Emílio Falcão Costa Filho Ocupante atual: Magno Pires Alves Filho CADEIRA Nº 27 Patrono: Honório Portela Parentes 1º ocupante: Armando Madeira Brandão 2º ocupante: Armando Madeira Basto 3º ocupante: José Eduardo Pereira 4º ocupante: José Lopes dos Santos Ocupante atual: Reginaldo Miranda da Silva CADEIRA Nº 28 Patrono: Luísa Amélia de Queirós Brandão 1º ocupante: Elias de Oliveira e Silva 2º ocupante: José Vidal de Freitas Ocupante atual: Manfredi Mendes de Cerqueira CADEIRA Nº 29 Patrono: Gregório Taumaturgo de Azevedo 1º ocupante: José de Arimathéa Tito 2º ocupante: José de Arimathéa Tito Filho 3º ocupante: João Porfírio de Lima Cordão Ocupante atual: Afonso Ligório Pires de Carvalho CADEIRA Nº 30 Patrono: Deolindo Mendes da Silva Moura 1º ocupante: Antônio Bona

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2º ocupante: Cláudio Pacheco Brasil Ocupante atual: Álvaro dos Santos Pacheco CADEIRA Nº 31 Patrono: João Crisóstomo da Rocha Cabral 1º ocupante: Artur de Araújo Passos 2º ocupante: José Patrício Franco 3º ocupante: Júlio Romão da Silva Ocupante atual: Homero Ferreira Castelo Branco Neto CADEIRA Nº 32 Patrono: Antonino Freire da Silva Ocupante atual: Raimundo Nonato Monteiro de Santana CADEIRA Nº 33 Patrono: Abdias da Costa Neves 1º ocupante: Wilson de Andrade Brandão Ocupante atual: Nelson Nery Costa CADEIRA Nº 34 Patrono: Anísio de Brito Melo 1º ocupante: Odilon Nunes 2º ocupante: Cláudio Melo (Padre) 3º ocupante: José Magalhães da Costa Ocupante atual: Zózimo Tavares Mendes CADEIRA Nº 35 Patrono: Antônio Alves de Noronha Ocupante atual: Maria Nerina Pessoa Castelo Branco CADEIRA Nº 36 Patrono: Vicente de Paulo Fontenele Araújo 1º ocupante: Darcy Fontenele Araújo 2º ocupante: Josias Carneiro da Silva 3º ocupante: José de Ribamar Oliveira Ocupante atual: Francisco de Assis Almeida Brasil

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CADEIRA Nº 37 Patrono: Heitor Castelo Branco 1º ocupante: Emília Castelo Branco de Carvalho 2º ocupante: Emília Leite Castelo Branco Ocupante atual: Heitor Castelo Branco Filho CADEIRA Nº 38 Patrono: João Francisco Ferry Ocupante atual: Manoel Paulo Nunes CADEIRA Nº 39 Patrono: José Newton de Freitas Ocupante atual: Celso Barros Coelho CADEIRA Nº 40 Patrono: Mário Faustino dos Santos e Silva 1º ocupante: João Coelho Marques 2º ocupante: Salomão Azar Chaib Ocupante atual: Fides Angélica de Castro Veloso Mendes Ommati

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Antiguidade dos Acadêmicos de Acordo com o Ingresso na Academia Quadro em 31 de Dezembro 2014 Cadeira Acadêmicos 35 39 38 32 18 17 25 24 09 28 21 08 16 30 37 40 12 26 19 36 14 22 02 13 05 33 34 29 20 27 11 23

Posse

Maria Nerina Pessoa Castelo Branco 19/12/1966 Celso Barros Coelho 29/05/1967 Manoel Paulo Nunes 28/08/1967 Raimundo Nonato Monteiro de Santana 18/12/1967 Herculano Moraes da Silva Filho 1/05/1980 João Paulo dos Reis Velloso 30/04/1981 Dagoberto Ferreira de Carvalho Júnior 31/08/1984 Paulo de Tarso Mello e Freitas 05/03/1986 Hugo Napoleão do Rego Neto 06/03/1987 Manfredi Mendes de Cerqueira 10/12/1988 Francisco Hardi Filho 07/08/1989 Francisco Miguel de Moura 30/10/1990 Eustachio Portella Nunes Filho 08/08/1991 Álvaro Pacheco 28/01/1994 Heitor Castelo Branco Filho 20/05/1994 Fides Angélica de Castro Veloso Mendes Ommati 26/08/1994 Wilson Carvalho Gonçalves 10/02/1995 Magno Pires Alves Filho 25/10/1995 Alcenor Rodrigues Candeira Filho 15/03/1996 Francisco de Assis Almeida Brasil 09/08/1996 Altevir Soares de Alencar 13/06/2000 Nildomar da Silveira Soares 27/09/2000 Jônathas de Barros Nunes 22/11/2000 Pedro da Silva Ribeiro 08/02/2001 Oton Mário José Lustosa Torres 05/04/2001 Nelson Nery Costa 30/10/2001 Zózimo Tavares Mendes 10/12/2002 Afonso Ligório Pires de Carvalho 27/06/2003 Raimundo José Airemoraes Soares 12/08/2004 Reginaldo Miranda da Silva 18/10/2006 José Ribamar Garcia 15/03/2007 Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz 05/10/2007

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10 01 03 31 06

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José Elmar de Mélo Carvalho Antônio Fonseca dos Santos Neto Jesualdo Cavalcanti Barros Homero Ferreira Castelo Branco Neto Maria do Socorro Rios Magalhães

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21/10/2008 02/03/2010 06/08/2010 20/06/2013 24/04/2014


Sócios de Diversas Categorias Sócios Correspondentes 1970 – 1982 Ribeiro Ramos (CE) Afonso Pereira da Silva (PB) Manoel Rodrigues de Melo (RN) Lothar Hessel (RS) Paulo Klumb (Santa Maria-RS) Manoel Caetano Bandeira de Melo (RJ) Alípio Mendes (Angra dos Reis-RJ) João Aragão (Nilópolis-RJ) Aristheu Bulhões (Santos-SP) Benedito Cleto (Sorocaba-SP) Elza Meireles (Mogi das Cruzes-SP) Mário Pires (Campinas-SP) Djalma Silva (GO) Nereu Corrêa (SC) Enéas Athanázio (Blumenau-SC) Oliveira Melo (Patos de Minas-MG) Vasco José Taborda (PR) Teresinka Pereira (Boulder-EUA) Cândido Carvalho Guerra (Corrente-PI) João Lindemberg de Aquino (Crato-CE) 1985 João do Rego Gadelha (Belém-PA) 1988 Tobias Pinheiro (Rio de Janeiro-RJ) Gerardo Mello Mourão (Rio de Janeiro-RJ) 1992 Cassiano Nunes (Brasília-DF) ACADEMIA PIAUIENSE DE LETRAS

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1994 Jorge Medauar (São Paulo-SP) 1995 Maria Aparecida de Mello Calandra (Mogi das Cruzes-SP) 22.01.1998 Jorge Lima de Moura (Palmas-TO) 03.10. 1998 Cleá Rezende Neves de Mello (Brasília-DF) Sócios Honorários 1918 Rui Barbosa 1927 Leonardo Mota 1970 – 1984 E. D’Almeida Vitor Lycurgo de Castro Santos Filho Maria Yêda Caddah Theobaldo Jamundá Haroldo Amorim Rego Nelson Carneiro 08.05.1993 Raul Furtado Bacellar 1994 Virmar Ribeiro Soares Geraldo Fontenelle

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04.05.1996 Vicente Ribeiro Gonçalves – (Post mortem) 22.01.1998 Tobias Pinheiro Filho Raimundo Alonso Pinheiro Rocha Edson Raymundo Pinheiro de Sousa Franco Alvacir dos Santos Raposo Filho Tomaz Gomes Campelo Humberto Costa e Castro João Costa e Castro Ademar Bastos Gonçalves José Pires Gayoso de Almendra Freitas Eurípides Clementino de Aguiar – (Post mortem) Joacil de Britto Pereira Dimas Ribeiro da Fonseca Arassuay Gomes de Castro 30.01.2008 José Elias Martins Aréa Leão Sócios Beneméritos Leônidas de Castro Melo Dirceu Mendes Arcoverde Bernardino Soares Viana 05.03.1994 Antônio de Almendra Freitas Neto Raimundo Wall Ferraz Robert de Almendra Freitas Álvaro Brandão Filho Charles Carvalho Camillo da Silveira José Moacy Leal

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Moisés Ângelo de Moura Reis José Elias Martins Arêa Leão Carlos Burlamaqui da Silva José Elias Tajra Jesus Elias Tajra Filho Edilson Viana de Carvalho 22.01.1998 Jesus Elias Tajra João Claudino Fernandes Paulo Delfino Fonseca Guimarães 23.01.2000 Antônio Rodrigues da Silva José Osmando de Araújo Vieira 24.01.2004 Álvaro Freire Aerton Cândido Fernandes 24.01.2006 Antonio Dib Tajra Stanley Fortes Baptista Antonio Machado Barbosa Francisco das Chagas Campos Pereira Maria Célia Portella Nunes Danilo Damazio da Silva 30.01.2008 Maria de Lourdes Leal Nunes Brandão Cláudia Maria de Macêdo Claudino Júlio César de Carvalho Lima Osmar Ribeiro de Almeida Júnior

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Personalidades Agraciadas Comenda do Mérito Cultural “Lucídio Freitas” 21.01.1993 Antônio de Almendra Freitas Neto José Sarney Antônio Houaiss Hugo Napoleão do Rego Neto Murilo Hingel Marcus Acioly Álvaro Pacheco Francisco das Chagas Caldas Rodrigues Anfrísio Neto Lobão Castelo Branco Cláudio Pacheco Brasil Raimundo Wall Ferraz Milton Nunes Chaves Jesualdo Cavalcanti Barros Octávio Miranda Heráclito Sousa Fortes Domingos Carvalho da Silva Eloi Portela Nunes Sobrinho Clidenor Freitas Santos José Elias Martins Arêa Leão Moaci Ribeiro Madeira Campos José Gomes Campos Maria Yêda Caddah Afrânio Pessoa Castelo Branco José de Arimathéa Tito Filho – Post mortem 08.05.1993 Lauro Andrade Correia

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12.11.1993 Maria Cecília da Costa Araújo Mendes Niède Guidon 07.05.1994 Charles Carvalho Camillo da Silveira 08.10.1994 Afonso Ligório Pires de Carvalho 11.12.1995 Alberto Vasconcellos da Costa e Silva 30.03.1996 Lucídio Portella Nunes 26.09.1996 José Ribeiro e Silva 16.11.1996 Antenor de Castro Rego Filho 23.05.1997 Joacil de Britto Pereira 24.05.1997 Pedro Leopoldino Ferreira Filho 22.01.1998 Francisco de Assis de Moraes Souza Gerardo Juraci Campelo Leite José Luiz Martins de Carvalho Dom Miguel Fenelon Câmara

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Firmino da Silveira Soares Filho Agenor Ribeiro Artur Eduardo Benevides Clóvis Olinto de Bastos Meira Jomar da Silva Moraes 19.11.1998 Francisca das Chagas Trindade 13.01.2000 Francisco de Assis Almeida Brasil 24.02.2000 Clóvis Moura 30.03.2000 Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz 25.05.2000 Manoel Paulo Nunes Cassiano Nunes 27.07.2000 Paulo Bonavides 15.08.2000 Cristovam Buarque 05.09.2000 Eduardo de Castro Neiva Júnior 28.09.2000 Washington Luís de Sousa Bonfim

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07.11.2000 Éverton dos Santos Teixeira 26.04.2002 Banco do Nordeste do Brasil, S.A. 19.11.2003 Ivo Hélcio Jardim de Campos Pitanguy 26.01.2008 Raul Wagner Veloso 30.01.2008 José Wellington Barroso de Araújo Dias Sílvio Mendes de Oliveira Kleber Dantas Eulálio Antonio Rodrigues de Sousa Neto Luiz de Sousa Santos Júnior Felipe Mendes de Oliveira José Reis Pereira Sônia Maria Dias Mendes Antonio Soares Batista Cineas das Chagas Santos Maria Conceição Soares Meneses Instituto Dom Barreto Diva Maria Freire Figueiredo Raimundo Aurélio Melo Enéas Athanázio Doralice Andrade Parentes Maria do Socorro Rios Magalhães Paulo Delfino Fonseca Guimarães Danilo Damásio da Silva Valmir Miranda

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Segisnando Ferreira de Alencar Jesus Elias Tajra José Elias Tajra José de Arimatéia Azevedo

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