O Acordo Ortográfico do nosso descontentamento Ana Cristina Leonardo Expresso ATUAL (sic), 1 de Junho de 2013 Esta semana, pode o leitor desta crónica ser indulgente comigo e ler também o texto que escrevo sobre o livro “Vogais e Consoantes Politicamente Incorrectas do Acordo Ortográfico”. Como alguns já terão notado, estas linhas são impressas de acordo com o (des) Acordo Ortográfico. Distraída me confesso, só dei por isso passado algum tempo… e já não fui a tempo. Ao querer desfazer o erro, foi‐me dito que não se mudam as regras a meio do campeonato, o que estará certo, embora a mim mas tenham mudado a meio da vida, e isto sou eu a considerar, decerto com excessivo egocentrismo e atrevimento, a hipótese de igualar em longevidade Manoel de Oliveira. Dei então por mim à cata de palavras que não tivessem sofrido amputações, ou tão‐só figurações obtusas que me ferissem o ouvido ou a vista. Adjetivo sem “c” passava a atributo, apesar de me soar arcaizante, ótimo sem “p” passava a “bom”, opção tanto mais dolorosa quanto se sabe tratar‐se de dois vocábulos inimigos (confesso nunca me ter ocorrido substituir arquiteto sem “c” por desenhador de casas, como um dos opositores do AO citado no livro acima referido). Assim por diante… Trabalho inglório. Porque transforma a escrita em crochet, e porque é sempre chegado o dia em que temos de escrever aquela palavra e não outra. Como é hábito em Portugal, a discussão sobre o AO foi sendo desviada do essencial, com a irracionalidade a invadir o debate. Os contra eram uma cambada de retrógrados, os apoiantes davam provas de progressismo. O curioso é que, nesta matéria, o sonho imperial e saloio do cavaquismo linguístico deu as mãos ao deslumbramento modernaço e igualmente saloio do socratismo. Prova que les beaux esprits se rencontrent, mesmo em francês.
“Vogais e Consoantes Politicamente Incorrectas do Acordo Ortográfico”, Pedro Correia, 2013, Guerra & Paz, 160 págs., 14,99 euros O livro, «Vogais e Consoantes Politicamente Incorrectas do Acordo Ortográfico», termina com uma pergunta: «O único argumento atendível (…), o da ‘unificação da língua’, já há muito caiu por terra. Todos percebemos que não existiu unificação nenhuma. Adensa‐se o mistério: como foi possível este processo que começou torto e tarda em endireitar‐se ter chegado tão longe?» Ora aí está um mistério bem português! Pedro Correia, o autor, não é linguista. O volume que publica não se atém aos meandros da complexa ciência das palavras, embora não deixe de discorrer sobre os fundamentos das soluções propostas, com recurso a vários e significativos exemplos que deixarão de cabelos em pé qualquer leitor alfabetizado com o mínimo de bom senso e que não seja careca. O seu posicionamento é claro a partir do título, e acaba na proposta de um “Plano de Acção”. Não vende gato por lebre, nem a língua por meia dúzia de patacos que, contas feitas, parece que não chegam à meia dúzia. Para além da explanação paciente das incongruências do AO, que só cegos, surdos e mudos, e de nascença, teimam em não notar, o mais interessante reside na sistematização rigorosa de todo o processo político acordista, desde 1990 até hoje, expondo com clareza como tudo teve início, quais os desenvolvimentos e resistências que ocasionou, para chegar por fim à AR em 2008, onde apenas quatro deputados votaram contra. Desse ano para a frente, o desacordo e os erros têm vindo a aumentar, com as vozes de protesto a somar alguns arrependidos. As referências ao caso do Brasil, e ao trato que se dá à língua em países fora da lusofonia, são outros tantos motivos para se ler com gosto e bom proveito este trabalho de Pedro Correia. Ana Cristina Leonardo