in OBSERVADOR de 9 de Junho 2015
O bicho Afonso Reis Cabral *
Eu sei. Repudiar o bicho já cansa. Mas é preciso fazê‐lo, sob pena de o bicho nos repudiar a nós. Neste momento cabe uma ressalva para que o retrato fique mais claro. Esquecia‐me de esclarecer. Claro Tudo se disse sobre o bicho. Todos bateram no bicho. O bicho foi ridicularizado, denunciado, acossado. Só não lhe espetaram uma faca porque não o encontraram sozinho num beco sem saída. Tornou‐se um pária. Apesar disto, por incrível que pareça, não esquecendo os muitos defeitos e erros do bicho, precisamos de lhe gabar a resiliência: não só ainda não morreu, como se alojou bem impertinente na língua, um dos nossos locais mas íntimos. E aí vive como uma afta. Nasceu já aleijadinho, resultado da soma de ideias erradas, ao estilo do monstro de Frankenstein (partes enjeitadas de corpos diferentes). Tinha tudo para correr mal, e de facto correu, ainda corre, e há‐de correr. Se fosse bicho de estimação – é‐o apenas para uns quantos –, teria a desculpa da estima, descontando a parte do bicho. Acontece que, quando nos deparamos com ele, sentimos repulsa, não o queremos em casa. Preferimos mantê‐lo distante, no máximo deitado à porta, como lembrança dos erros cometidos. Talvez conseguíssemos adoptá‐lo, ainda que seja repelente como um gato sem pêlo, se cumprisse a missão a que se propôs: unir a família. Mas a família nunca esteve desunida, mesmo usando grafias diferentes. Simplesmente trata‐se disso mesmo, de uma família: entidades distintas partilhando o sangue à sua maneira. Eu sei. Repudiar o bicho já cansa. Mas é preciso fazê‐lo, sob pena de o bicho nos repudiar a nós. Neste momento cabe uma ressalva para que o retrato fique mais claro. Esquecia‐me de esclarecer. Claro que «bicho» é a designação correcta para o malogro que dá pelo nome de Acordo Ortográfico.