Ortograficamente adeus Fernando Venâncio Jornal de Letras n° 115, 18.9.1984 Cai o c de atractivo? Mas o que distingue esse a do a em combativo? Adequa-se a ortografia à pronúncia? Mas quem saberá pronunciar correctamente a nova ortografia? Entre o pouco activo português de Portugal e o ativíssimo português do Brasil há pontos de contacto – mas não deverão ser guardadas prudentes distâncias?
Quando em 1990, os chineses trocarem o barroquismo das medidas tradicionais pela nitidez do sistema decimal, haverá pelo Celeste Império bastantes corações partidos. Porque não ê sem um íntimo baque ou dorida nostalgia que se vê uma pessoa roubada de formas exteriores que, por serem produtos de uma convenção, nem por isso são menos alvo de apegos emocionais. Repete-se essa experiência sempre que, por efeito de uma reforma ortográfica, se separa a gente de modos de escrever que se nos tornaram caros, e tem de acomodar-se a outros, que, mesmo reconhecidamente lógicos, indiscutivelmente óbvios, se nos apresentam frios, assépticos, de uma imediatez descoroçoante. Semelhante choque cultural deu-se, no nosso país, aquando da adopção, em 1911, de uma ortografia «científica», em que trabalharam especialistas do peso de Adolfo Coelho, Leite de Vasconcelos e Gonçalves Viana. Com ela, não só se criava pela primeira vez em Portugal uma norma para a grafia, como se punha termo a um período de delírio ortográfico e, quanto ao mais, se operava uma simplificação salutar, até do ponto de vista económico: poupava-se papel e tinta, o que ainda hoje pode motivar ecologistas. A reacção à reforma foi violenta e foi duradoura. A oposição monarquista, com excepção de uma ala mais esclarecida, fez da resistência ortográfica cavalo-de-batalha. E só uma imposição, aliás legalista, de Salazar poria termo ao forcing monárquico. Uma releitura 'ortográfica' da Primeira República (veja-se, por exemplo, de AlbertAlain Bourdon, Orthographe et politique sous la première republique portugaise, Paris, Gulbenkian, 1976) é, ainda nos dias de hoje, se não o for mais, edificante. Esta politização da questão ortográfica, manifestamente manipulatória como era, constituía, porém, o afloramento de uma atitude mais profunda e generalizada. Politicamente oportuna ou não, a reforma ortográfica tornara particularmente palpável o corte com o passado, de cada vez que um cidadão pegava da pena ou lia o seu jornal. Efectivamente, com a orthographia do regime monarchico, fora-se a familiar visualidade de hymnos e orchideas. E para as apprehensões e afflicções do momento dispunha-se apenas de uma expressão gráfica despida, esterilizada e, sobretudo, republicana. Era pedir muito a muitos corações.
1
Sem ondas Vão hoje mais calmos os tempos em matéria de ortografia. De quando em vez, uma voz se ergue, mas rápido o silêncio volta. Uma que outra notícia de imprensa não logra perturbar a opinião pública, que a opinião autorizada tranquila está. Tenho diante de mim um recorte do Diário de Lisboa de 2.2.1981, que, deveria poder sobressaltar as opiniões, as duas, o que decididamente não aconteceu. Traz como título: «Brasileiros querem simplificar a língua portuguesa», e refere uma proposta de linguistas de todo o Brasil que visa «a adopção de uma língua brasileira de ortografia simplificada». Trata-se de um voto do III Congresso Constituinte da Carta Magna da Língua Portuguesa, que propôs «uma reforma ortográfica que elimine as diversas formas usadas para representar o mesmo fonema». A nota esclarece ainda que Antônio Houaiss pediu que «a simplificação da ortografia seja feita com a participação de todas as comunidades linguísticas de língua portuguesa». Nada nesta notícia surpreende, senão o silêncio que se lhe seguiu, pelo menos aquém-oceano. Nela são evidentes os dois tópicos centrais da nossa história ortográfica deste século: o dinamismo duma reforma tendente à simplificação e a preocupação de que ela se faça em termos de unificação gráfica. Tão fecunda como se revelou a dinâmica reformadora (a reforma portuguesa de 1911 e a brasileira de 1943 são indesmentíveis passos de gigante na simplificação ortográfica), tão inoperante também se revelaria o empenho de uniformizar a escrita dos dois países. Quando o Acordo de 1945, que o Brasil nunca levou à prática, decide pelo não consentimento de «grafias duplas», confessando que para a obtenção de uma unidade ortográfica «foi preciso transigir, de parte a parte», é o próprio Legislador a indicar, com uma sinceridade enternecedora, o flanco por onde o edifício irá desabar. Para além dos membros da delegação brasileira à Conferência, era preciso que o Brasil transigisse. E o Brasil não transigiu. O filólogo brasileiro José de Sá Nunes, que as más (mas possivelmente bem informadas) línguas asseveravam ter sido o arquitecto do Acordo, contava já, em 1970, nada menos que 132 artigos em defesa deste. Hoje, se alguma coisa podemos esperar, e exigir, de nós próprios, dialogantes meio surdos nesta sala de ecos, é um mais apurado sentido da realidade. Eu sei, leitor. Há na vida coisas mais interessantes e urgentes do que reformas da ortografia, e eu mesmo seria capaz de, em vinte linhas, apontar dez delas. Para só citar um exemplo de vida ou morte: uma sinalização adequada nas estradas portuguesas valia bem uns anos mais de deficiência ortográfica. Colocado perante a escolha, eu não izitaria um momento. Desculpe. Foi alguma coisa? Diga? Escrevi mal? Ah, o verbo izitar. Pensei que conhecesse. Mas, já que insiste, vamos aqui falar dumas coisas. Já reparou, leitor, no interessante da palavra sucesso? Exactamente: tem três maneiras de representar o mesmo som. A actual grafia, que, como se sabe, parte não do som, mas da etimologia, apresenta essa e outras curiosidades, verdadeira mina para pesquisas «escrituralistas». Experimente o leitor, um destes dias, achar as 8 variantes ortograficamente possíveis para o vocábulo sensação, tendo o cuidado de não fazer violência às convenções em vigor. Restrição importante, esta. Com efeito, o som «s» conhece, na grafia do português europeu, nada menos de sete realizações, como comprovam sala, cedo, laço,
2
posso, máximo, leccionar e fracção. O português do Brasil, se desconhece o problema nos dois últimos casos, têm-no duplicado em vocábulos do tipo ascender (que soa como acender), desço (que soa 'dêço') ou expiar (que soa como espiar). O anseio por uma simplificação radical, tal como no Brasil se exprimiu há três anos, tem por si a realidade gritante destes factos. Haverá, efectivamente, necessidade de continuar a grafar uniformemente com um x as palavras exame, próximo, fixo, mexer ou sexto? Ou de escrever banalizar mas analisar, cansar mas dançar, encher mas enxugar, regressar mas tropeçar? Uma vista de olhos pelo Novo Guia Ortográfico, de Celso Pedro Luft (Porto Alegre, Globo, 1973), ou por Linguagem Oral e Ortografia, do Centro de Linguística das Universidades de Lisboa (INIC, 1978), bastará para obter uma noção do caos existente na reprodução gráfica dos sons «s», «z» ou «ch». E também para verificar como é assombrosa a nossa capacidade de nos habituarmos a situações caóticas. E, no entanto, uma arrumação centrada nestes três sons traria, ela só, insuspeitados benefícios. De caminho, dava-se uma demão ao domínio do som «j». Porque o leitor sabe que, a par das suas (e minhas) hesitações ao ter de escrever maçada, atrasar, descansado ou trouxa, ou ao ter de pronunciar sintaxe, paralaxe ou laxativo, também conhece a dúvida que acompanha a grafia de rejeitar, herege, rabugice, intrujice. Ao fim e ao cabo, toca as raias da irresponsabilidade que as delegações à cimeira de 1945 tenham passados dias inteiros discutindo a grafia 'correcta' de alvíssaras e de regurgitar. Aliás, uma uniformização radical das grafias z e j há muito que foi defendida. Pela primeira quebrou uma lança Cândido Jucá Filho, pela segunda Vasco Botelho de Amaral (e, segundo ele, também Gonçalves Viana). A objecção, conhecida, de que isso trará novos homógrafos é sempre de molde a impressionar, mormente quando exemplificada «em seco». Mas tudo indica (e um computador «sabeo» em escassos segundos) que as vantagens da simplificação prevalecerão sobre os incómodos da homografia. Hoje, poderemos rir ao ler Ele deu dois consertos no conselho de Tomar, mas para os vindouros esta grafia será naturalíssima. Certos calembours como os que a oposição gaulesa à reforma ortográfica inventou («Paris la grande vile») são, sem dúvida, belos achados, mas são sobretudo demagógicos. Qualquer Sisenando ou Millôr de formato médio tirará de toda e qualquer grafia, e portanto também da actual, efeitos pelo menos tão hilariantes como aquele. E a etimologia? Evidente se torna que as propostas acima não alimentam quaisquer preocupações de ordem etimológica. Não que a etimologia não tenha contributo a dar numa reforma ortográfica atenta aos sons. E seu papel, pelo menos, fazer luz sobre fenómenos que a mera luz sincrónica não permite captar em sua exacta envergadura, assim como evidenciar tendências que importará ter em conta e processos que é mister não influenciar. Na fase, porém, das decisões, cala-se a musa etimológica. Não se deverá, isso não, acusar de «falta de coragem» as reformas de 43 e 45 no tocante a soluções que a etimologia não sancionava. Isso seria esquecer que os reformadores de há quarenta anos ainda não dispunham de um material que nos está hoje à mão, dos estudos fonológicos de Mattoso Câmara, Morais Barbosa ou Helena Mira Mateus, aos testes pedagógicos que permitem decidir da
3
vantagem de determinada proposta, e ao computador que permite observar as exactas consequências da mesma. A etimologia era, em 1945, o único arrimo. Aventurar-se fora dela era empreendimento de visionários. Importa assentar, porém, nisto: passar a escrever o português tal qual se pronuncia é tarefa, decerto, tecnicamente exequível (qualquer criança o aprenderia, e com menos dispêndio de energias e de tempo do que com a grafia actual), mas, em termos práticos, irrealizável. Ela obrigaria um país inteiro a de novo aprender a escrever, e a ler. O que, sendo socialmente de incalculável interesse, era a catástrofe em matéria de economia. Disso se certificará o leitor se tentar a identificação dos seguintes verbos, em grafia decalcada na actual: izâjrar, djnrar, âichsètuar (ver soluções adiante). Isto, que não é pouco, faz ainda abstracção de toda uma complexidade de processos que, por meio de fusão e encavalitamento de sílabas, transformam a frase portuguesa num só longo, ondulante e cromático vocábulo. Há exemplos de estarrecer. Darei apenas dois extremamente simples. Na frase Saio às duas horas, tem cada um dos ss a sua pronúncia, por efeito da colocação. Quanto ao segundo exemplo, árcádácábáqui, o leitor reconhecerá nele uma corriqueira frase portuguesa. Mas, para além do mais, uma escrita estritamente fonética nem é sequer necessária. A língua dispõe de excelentes medidas restritivas, as chamadas «variantes contextuais», que fazem com que certos sons se acomodem sempre da mesma maneira a um dado contexto. É o caso dos ss no exemplo acima. Ao fim e ao cabo, a perspectiva aqui advogada não é 'fonética' (centrada na reprodução exacta dos sons), mas, e mesmo assim só moderadamente, 'fonológica' (atida a uma distinção 'suficiente' dos mesmos sons). Sem dúvida: uma ortografia de coerência absoluta pode influir beneficamente na generalização da cultura (possivelmente o caso finlandês), mas não constitui por si condição suficiente. É até possível que a relevância cultural de uma qualquer ortografia nunca venha a ser definitivamente estabelecida. A apologia de maior adequação ortográfica funda-se no simples facto de nenhum motivo intrínseco justificar uma complicação da escrita. Porque, se é certo ser toda a 'experiência da complexidade' altamente criativa, é necessário não confundir a complexidade 'orgânica' de uma página de Cícero, ou de um corte geológico, com o intrincado desencorajante de uma ortografia cujas peças elementares, em vez de escorreitamente reproduzirem a fala, gozam, por tempo ilimitado, de estatuto autónomo, um «estatuto de relíquia», na expressão impiedosa de Luiz Fagundes Duarte. A ortografia não é um exercício de perspicácia, mas um instrumento para gente viva. O Brasil passa à acção O Brasil promete passar à acção. E radical se desenha ela. Indispensável é que se dê continuidade ao voto de Houaiss de uma concertação com Portugal e com os países africanos. Não há qualquer vantagem numa política do facto consumado, que levará à radicalização do lado de cá, hipersensível como é a tudo o que possa parecer capitulação. Um dos nossos pundonores foi, até agora, não discutir o princípio da uniformidade. Em 1970, a nossa Academia «não tem senão que se congratular», «não poderá senão regozijar-se» com a adopção pelo Brasil de certas medidas acordadas um quarto de século antes.
4
Retoma-se assim – óptimo reflexo da nossa tentação etnocentrista – a concelebração da «paz ortográfica» (sic) de 45, que Júlio Dantas ratificara, dizendo: «Não é sem emoção que neste momento proclamo a existência de uma só língua portuguesa». Embora em tempos menos triunfalistas, será igual singeleza o que nos espera? Nunca se sabe. Como igualmente nunca se sabe se uma complexa má consciência, que também não nos é estranha, não irá levar-nos a aceitar de antemão quaisquer novas condições de paz. Mas, se formos capazes de transparência e firmeza nas nossas opções, não se vê por que não hão-de os esforços tendentes à simplificação gráfica de ser relançados e coordenados. Que a construção de amplo denominador comum é viável, é a própria evidência. Porém, uma vez libertados do fantasma da uniformidade, admitiremos como óbvio que onde, para uma das partes, o caminho logicamente continuar em frente, deve reconhecer-se-lhe o direito de prosseguir nele. O que ela deverá fazer, contudo, à mesa das conversações. Mais do que atitude de desportivismo, será isso o reconhecimento de que a língua é propriedade em comum. E não se receie, nem se espere – ingenuidades só comparáveis à de Dantas – que uma diversidade ortográfica leve à criação de outra língua. O «problema da língua» é de bem diferente ordem. E é necessário (um apelo que já noutro contexto formulei, ver artigo «Brasileirismos», no JL n° 89) não nos deixarmos aliciar para nova polémica da «língua brasileira», que aqui seria afuncional, falseante e, o que é mais, uma porta escancarada a provocações. A nova reforma ortográfica – tarefa de portugueses, brasileiros e africanos – deverá iniciar-se por um reconhecimento do terreno, que poderá tomar a forma de recolha de sugestões e opiniões de estudiosos da linguagem, pedagogos e professores. A reforma será, assim, obra comum, e não (o caso de 45 foi nisto emblemático) produto de conclaves. As ideias recolhidas deverão ser, em seguida, objecto de estudo de um grupo de trabalho, cuja incumbência é a formulação de um projecto de reforma. Constaria este de um «programa conjunto», válido para todos os países em questão, e de um «programa divergente», destinado a ser aplicado em determinado país. Esse projecto seria, então, entregue à apreciação de especialistas (ligados ou não a instituições oficiais), que submeteriam as propostas a testes exaustivos, quer no plano da relevância linguística quer no da exequibilidade pedagógica. Finalmente, uma comissão elaboraria o «projecto definitivo», a apresentar ao parlamento dos países interessados. Escusado dizer que os contactos com as competentes comissões parlamentares não deveriam ser deixados para essa ocasião. Importante é, também, que quer na concepção quer na elaboração da reforma se parta de posições realistas. Não há necessidade de fazer tudo o que teoricamente se afigura desejável. Como dizia o outro, o esperto: o óptimo é inimigo do bom. O leitor atento terá reparado que as observações, neste artigo, se restringiram ao sistema consonântico. Com efeito, o sistema vocálico actual oferece grande viabilidade. A alternância nos sons, por marcada que seja neste domínio, obedece a regras estritas e de notável simplicidade. E a conservação gráfica das vogais 'originais' é da maior funcionalidade: ela torna visual o parentesco (etimológico, ou não) entre os vocábulos. Assim, flor, floresta e florestal conservam laços que uma grafia mais exacta (flôr, fluresta, flurstal) pelo menos ofuscaria, ao mesmo tempo que não mais faria do que 'interiorizar' a dificuldade. É por isso que grafias como ezajerar ou dejenerar (as
5
prometidas soluções) são plenamente satisfatórias: o comportamento das suas vogais é de todo regular. E até o e mudo, se não soa, nem por isso 'existe' menos, como demonstrou Morais Barbosa. É num outro terreno, o das consoantes etimológicas, ou mudas, que o terceiro verbo, exceptuar, põe problemas. Problemas cuja complexidade ilustra o espinhoso da tarefa, se não a inviabilidade, de uma unificação ortográfica. Simplificar ou complicar Escreveu, há tempos, Luís Lindley Cintra: «Será necessário que os portugueses se habituem a escrever ativo, batizar, ótimo, adotar, objeto, correção, etc.» (Expresso-Revista, 18.2.1984). Trata-se, evidentemente, da grafia que o Brasil adoptou. Não é a primeira vez que em Portugal se advoga uma acomodação à prática brasileira. Em 1968, o I Simpósio Luso-Brasileiro sobre a Língua Portuguesa aprovara resolução no mesmo sentido. E a norma brasileira é clara: escreve-se a consoante sempre que ela se pronuncie (optar, convicção), havendo ainda casos opcionais (infecção, seccionar). Uma adesão à prática de além-Atlântico é sempre preconizada como contributo para a uniformização da grafia. Mas é inegavelmente uma concessão, um mal menor, e o Simpósio era nisso muito claro. Segundo declarações mais recentes de Lindley Cintra (O Jornal, 8.6.1984), houve negociações em vista de novo Acordo Ortográfico, que depois de 25 de Abril se interromperam, mas que haveria a intenção de retomar. Aí se teria já abandonado o princípio da uniformidade total. E Cintra acrescenta: «Uma vez que o Brasil deu um passo em frente para adaptar melhor a grafia à pronúncia, é impossível voltar atrás». Ora eu creio que o problema está exactamente aí. E o caso, já paradigmático, das consoantes etimológicas (veja-se a citação do Expresso) apenas reafirma a exigência do maior rigor na formulação das opções portuguesas. Vejamos o problema de mais perto. Imaginemos que ontem se decidiu, ou combinou, eliminar o c da terminação -activo. Existem, assim, neste momento, 199 vocábulos portugueses terminados em -ativo, contagem para que nos servimos do Dicionário Inverso da Língua Portuguesa, de Elena Wolf (Moscovo, Nauka, 1971), o qual, não obstante deficiências, constitui útil instrumento. Dessas palavras, já 186 assim terminavam (combativo, rotativo) e juntaram-se-lhes agora 13 (inativo, atrativo). Simplificámos? Sem dúvida. Mas voltámos a complicar. Há a partir de agora 13 casos em que, contrariamente às aparências, o a átono da terminação é pronunciado aberto. Hoje, a maioria de nós saberá identificá-los: o c mudo funcionou como aide-mémoire. Mas, dentro de vinte anos, quantos ainda teremos as certezas de hoje? E a que recorrer como tira-teimas? A listagens? A mnemónicas? Ao avozinho? O mais certo, ainda, é que, de modo gradual mas inexorável, se venha a completar um processo já em curso: o do nivelamento para â, verificável em actual, exactidão, olfactivo, tactear, característica. Mas é isto o que queremos? A repetição da experiência com um 'corpus' mais extenso é não menos elucidativa. O Dicionário Inverso reúne 1332 vocábulos que terminam em -ação (ligação, ocupação) e 31 em -acção (contracção, distracção), em que o c não soa. Dá-se aqui, globalmente, a mesma alternância no som do a inicial da terminação. Globalmente, pois existem pelo menos
6
6 vocábulos no primeiro grupo em que ele se pronuncia aberto (ilação, inflação), enquanto no segundo grupo há pelo menos um olfacção, em que soa «â». Há, ainda, vocábulos como coação e coacção, que apenas se distinguem fonicamente pelo tratamento da vogal em apreço, e, por fim, um interessante homógrafo, colação, possuidor das duas pronúncias. Diante de tais factos, há que concluir que, em termos de comportamento da vogal átona (a, mas também e e o) que precede uma consoante etimológica (c ou p), a presença desta não constitui factor nem necessário nem suficiente. Quererá isto dizer que ela é, portanto, dispensável? Se o Brasil desconhece o problema (lá, recepção e recessão, tal como concepção e concessão, distinguem-se exclusivamente pela articulação do p), ele existe para nós, e somos portanto nós que temos que apontar soluções. Colocar a questão em termos de «seguir a prática brasileira», como fez o Simpósio de 1968, testemunha pelo menos de elementar simplismo ou de uma simpatia mútua desarmante. Entre as soluções pensáveis, conta-se a adopção de um acento gráfico, que assinale a abertura da vogal. E então teríamos distràção, selèção, adòção. Mas, para além de um acréscimo de acentos gráficos (contra cuja pululação se manifestaram Leite de Vasconcelos, Botelho de Amaral e José Pedro Machado, dos casos que conheço), tal medida acarretará inevitavelmente, ou desejadamente, a 'contaminação' de zonas gráficas afins. E, assim, os erros ortográficos do futuro seriam formas como anèxar, aquècer, invàdir, apròximar, para citar apenas verbos. A escolha a operar, e é isto o fundamental – quer se opte pela eliminação pura e simples da consoante muda, quer pela introdução de um acento, quer pela manutenção do estado de coisas – essa escolha deverá, tal como qualquer uma das outras, reflectir uma concepção definida do idioma em termos linguísticos e pedagógicos, e não uma atitude acrítica, acomodatícia, ditada pelo nosso luso-brasilismo crónico e incondicional. Ao fim e ao cabo, poderemos sempre separar-nos como amigos. Ortograficamente. Que foi disto que aqui falámos.
*
Nota de Dezembro de 2013 O texto acima, com quase 30 anos, foi decerto premonitório, mas menos do que hoje poderia julgar-se. Em 1984, eu tinha a nítida noção de que algo de inabitual se preparava no terreno ortográfico e, conscientemente, quis adiantar-me, tomar posição, ajudar a prevenir maus passos. Por isso o artigo continha um roteiro, um protocolo de procedimentos. Dois anos depois, o «Acordo Ortográfico de 1986» veio demonstrar que o primarismo e a leviandade dos nossos agentes linguísticos podiam reservar-nos surpresas, e mesmo as piores. O AO86 ficará como amostra da impreparação e da irresponsabilidade de gente a quem entregámos, também nós irreflectidos, um poder
7
imerecido. Mas é verdade: conseguimos barrar o caminho à aleivosia. O que, concedamos, nem pediu demasiada heroicidade, tão deplorável era a proposta. A desgraça veio a repetir-se em 1990, embora em versão atenuada. E foi essa sensação de que o pior já passara que, tempo de mais, nos paralisou. Quisemos convencer-nos de que o «Acordo Ortográfico de 1990» se esvaziaria por si, e só batemos decididamente o pé quando, por 2008, se viu que o poder político ia assinar de cruz e oficializar o que, patentemente, era um péssimo produto. Salvem-se, nessa genérica paralisia, algumas nobres excepções, e a mais nobre delas foi Luís Lindley Cintra, que cedo publicamente admitiu ter emprestado o seu nome (e, claro, o seu peso) ao AO90. Hoje sabemos que a improvisação que, de cima a baixo, o texto do «Acordo» patenteia nasceu do empenho de João Malaca Casteleiro, que desenfreadamente o preparou e conduziu. No momento actual, a minha percepção é que a emancipação gramatical que no Brasil vai tomando corpo irá, tarde ou cedo, acompanhar-se de reivindicações de âmbito ortográfico. Elas brotarão de círculos bem mais preparados do que a delegação do Senado brasileiro que recentemente nos visitou e, se os sinais não enganam, dispensarão as formalidades de uma concertação exterior. Uma última anotação. Há 30 anos, mostrei-me defensor de intervenções profundas na ortografia do Português. Hoje, mantenho iguais desiderandos, mas sei, melhor do que então, quanto são utópicos. Se, ainda assim, aqui o sublinho, é para frisar isto: que o desafecto pelo AO90 é uma coisa, e a defesa do imobilismo ortográfico bem outra. De facto, não me revejo no primitivismo linguístico e na mitologia identitária de não poucos activistas antiAO90. Mas sei, também, que o momento pede prioridade para o objectivo comum: a desvinculação de Portugal de um compromisso que não nos honra.
8