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Pouco Mais de Dois Anos de Idade

II

Minha Primeira Aparição num Palco Verdadeiro com Pouco Mais de Dois Anos de Idade

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Quando eu era ainda bem criança, o presidente do Chicago Progressive

Lyceum 17 , onde meus pais e eu íamos todos os domingos, veio numa tarde fazer uma visita à minha mãe para parabenizá-la pela apresentação que eu fizera no domingo anterior no seu Liceu. Como minha mãe não conseguia perceber o que ele estava falando, levantei-me do tapete onde estava sentada com alguns brinquedos e disse: - Esqueci de dizer pra senhora, mamãe, que recitei minha peça no Liceu, domingo passado. - Recitou uma peça? – repetiu minha mãe –, mas o que isso quer dizer? - O quê? – disse o presidente. – A senhora não sabe que Loïe recitou poemas no domingo? De tão surpresa, minha mãe estava quase aterrorizada. Atirei-me no seu colo e a cobri de beijos, dizendo-lhe: - Esqueci de dizer pra senhora, mamãe. Recitei minha peça. - E foi um enorme sucesso! – acrescentou o presidente. Minha mãe pediu explicações. O presidente então lhe disse: - Durante um intervalo entre os exercícios, Loïe subiu na tribuna,

17 O lyceum é uma espécie de casa da cultura.

fez uma bela reverência, como ela tinha visto os oradores fazer, depois, ajoelhando-se, recitou uma pequena oração. Já não me lembro mais que oração era essa. Minha mãe interrompeu-o. - Ah, eu sei! É a oração que ela diz todas as noites quando a coloco na cama. E eu tinha recitado uma prece numa escola dominical frequentada por livres-pensadores! - Em seguida, Loïe se levantou e saudou novamente o auditório. E foi aí que as dificuldades começaram. Ela não se atreveu a descer a escada de pé. Ela preferiu se sentar e deslizar um degrau de cada vez até chegar ao chão. Durante essa manobra, a sala inteira caiu na gargalhada com a visão da sua sainha de flanela amarela e as botinas com pontas de cobre batendo no ar. Mas Loïe colocou-se outra vez de pé, e, ao escutar as risadas, ela ergueu a mão direita e disse em voz alta: “Chiu! Silêncio, vou recitar meu poema.” Ela não se mexeu até que o silêncio fosse restaurado. Como tinha prometido, Loïe recitou o poema. Depois voltou para o seu assento com o ar de uma pessoa que tivesse feito a coisa mais natural do mundo. No domingo seguinte, fui, como de costume, ao Liceu com os meus irmãos. Minha mãe também foi, à tarde, e sentou-se no canto de uma bancada entre os convidados que não participavam dos nossos exercícios. Ela pensava na sorte que tivera de não ter estado lá no domingo anterior para assistir ao meu “sucesso”, quando ela viu uma senhora levantar-se e aproximar-se da tribuna. A senhora começou a ler um pedaço de papel que segurava na mão. Quando ela estava para terminar a leitura, minha mãe escutou estas palavras: - E agora teremos o prazer de ouvir a nossa pequena companheira Loïe Fuller recitar um poema intitulado “Maria Tinha um Cordeirinho”. Minha mãe, paralisada de espanto, era incapaz de se mexer ou de dizer uma palavra. Ela só murmurou: - Como é que essa menina pode ser tão maluca? Ela nunca vai conseguir recitar isso. Ela só escutou uma única vez. E através de uma espécie de névoa, ela me viu levantar da cadeira, aproximar-me lentamente dos degraus e escalar o estrado com ajuda dos

pés e das mãos. Uma vez lá em cima, virei-me e olhei para o público, fiz

uma bela reverência, e comecei numa voz que ecoou por toda a sala. Reci

tei o pequeno poema de modo tão sério, que, apesar dos erros que devia

cometer, a essência foi entendida e impressionou a todos os presentes.

Não parei uma só vez, recitando o poema de ponta a ponta. Depois, fiz

uma nova saudação e todo mundo aplaudiu com entusiasmo. Aproximei

me em seguida dos degraus, e deslizei tranquilamente até embaixo, como tinha feito no domingo anterior. Só que dessa vez ninguém riu de mim. Quando, bem depois, minha mãe veio juntar-se a mim, ela ainda

estava pálida e trêmula. Perguntou-me por que é que eu não lhe tinha avisado o que iria fazer. Respondi-lhe que não podia avisá-la de algo que eu mesma não sabia.

- Onde foi que você aprendeu isso?

- Não lembro mais, mamãe.

Ela me disse que eu certamente escutara o meu irmão ler isso; e

logo me veio à memória que, de fato, tinha sido assim. Daquele dia em diante, comecei a recitar poemas onde quer que eu fosse. Costumava de

clamar pequenos discursos, mas em prosa, pois utilizava palavras que me

eram naturais, contentando-me em traduzir o espírito das coisas que eu

recitava, sem me preocupar muito com a exatidão. Naquela altura, basta

va-me, com a minha memória fresca e segura, ouvir uma só vez um poema

para poder recitá-lo do começo ao fim, sem errar uma única sílaba. Aliás,

sempre guardei uma memória maravilhosa. Provei isso posteriormente ao aceitar de improviso papéis que, na véspera da primeira apresentação,

eu não conhecia sequer a primeira palavra.

Foi assim que interpretei Marguerite Gauthier, em A Dama das Ca

mélias 18 , tendo apenas quatro horas para decorar as falas.

Naquele mesmo domingo, minha mãe sentiu a primeira comoção nervosa: um prenúncio, caso ela pudesse compreender esse trágico sinal, de que ela se tornaria a presa da terrível doença que a deixaria inválida durante tantos anos.

18 A Dama das Camélias, drama em cinco atos de Alexandre Dumas (Filho) (1824-1895). A primeira apresentação ocorreu no Teatro de Vaudeville em Paris no dia 2 de fevereiro de 1852.

Da primavera que se seguiu a minha estreia no Folies-Bergère 19 até

à sua morte, ela me acompanhou em todas as minhas viagens. No momento em que escrevia estas páginas, alguns dias antes do seu falecimento, eu podia escutá-la mover-se ou falar, pois ela ocupava o quarto vizinho ao meu, onde duas enfermeiras cuidavam dela noite e dia. Enquanto trabalhava, ia de vez em quando ao lado dela, arrumava um pouco os seus travesseiros, levantava-a, dava-lhe a sua medicação, ou alguma coisinha para comer, apagava as velas, depois abria por um momento as janelas, e voltava em seguida ao trabalho. A partir da minha apresentação no Chicago Progressive Lyceum, continuei a carreira dramática. Só os incidentes ocorridos em minhas atuações já seriam suficientes para encher vários volumes. Pois as aventuras se sucederam a tal ponto, que eu jamais vou me aventurar na tarefa de pôr tudo isso no papel. Devo dizer que, quando esse primeiro incidente teatral ocorreu na minha vida, eu tinha apenas dois anos e meio de idade.

19 Folies-Bergère, 32 rue Richer, Paris, França. Primeiro music-hall parisiense construído pelo arquiteto Plumeret, inaugurado em 1869 sob o nome de Folies-Trévise e está em funcionamento até hoje. Em 1872, o nome foi trocado para Folies-Bergère, sendo um espaço que representa um forte símbolo da vida francesa, tendo o ápice de sua fama e popularidade da Belle Époque dos anos 1890 até a década de 1920.

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