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V. Minha Estreia no Folies-Bergère
from Loie Fuller
V
Minha Estreia no Folies-Bergère
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Paris! Paris! Enfim, Paris!
Pareceu-me que estava salva e que todos os meus problemas iam desaparecer. Paris era o porto seguro após a tormenta, o remanso após os desencadeamentos furiosos das tempestades da vida. E pensei, sem modéstia, que iria conquistar essa grande Paris tanto esperada, desejada, almejada. Na América, dancei muitas vezes em palcos importantes durante os intervalos entre os atos de uma ópera, e imaginei que seria a mesma coisa em Paris. Assim, logo ao chegar – estávamos em outubro de 1892 –, antes mesmo de entrar no meu quarto do Grand-Hôtel, pedi ao meu agente, Marten Stein, que fosse encontrar o sr. Gailhard 34 , o diretor da Academia Nacional de Música e Coreografia 35 , a quem eu tinha escrito, ainda na Alemanha, propondo-lhe dançar em seu teatro. Academia Nacional de Coreografia! Ainda acreditava ingenuamente em rótulos. Imaginei que um instituto como esse seria acolhedor às inovações na dança. Minha ilusão, ai de mim, foi de curta duração.
34 Pierre Samson Gailhard, conhecido como Pedro Gailhard (1848-1918). Artista lírico, libretista e diretor da Ópera Nacional de Paris (1884-1891; 1893-1907) e, depois, do
Conservatório de Nova York. 35 Ópera Nacional de Paris.
Vi Marten Stein voltar cabisbaixo. Ele fora recebido pelo sr. Pedro Gailhard, mas este, – com sua voz profunda que ele habilmente fabricara a si próprio, e que por vinte e um anos consecutivos ecoou na sala de diretor da Ópera –, não lhe escondeu que sentia pouca vontade em contratar-me. - Se ela quiser, ela pode vir aqui me mostrar suas danças – disse –, mas tudo o que posso fazer, caso essas danças me agradem, é lhe garantir, desde que ela não se apresente em nenhum outro lugar, quatro apresentações por mês, e isso no melhor dos casos. - Quatro apresentações? É muito pouco... – arriscou meu agente. - É muito para uma dançarina que, antes mesmo de vir a Paris, já tem imitadoras. Influenciado pela voz e pelo porte de um homem que outrora encarnara o papel de Mefistófeles no teatro que ora dirigia, Marten Stein não se atreveu a fazer mais nenhuma pergunta. Pode-se ter uma ideia do efeito que essas palavras, relatadas pelo meu agente, tiveram sobre mim. Aceitar quatro apresentações por mês estava fora de cogitação. Era muito insuficiente financeiramente. Refleti por um momento. E logo tomei uma decisão. Após o jantar, embarquei com meu agente e minha mãe numa carruagem, e dei o endereço do Folies-Bergère, pois sabia que o meu agente havia escrito para o diretor desse grande musical. No caminho, expliquei a Marten Stein que eu seguiria o conselho que ele me dera um pouco antes, e solicitaria ao diretor do Folies-Bergère um contrato. Imaginem vocês o meu espanto quando, ao descer do fiacre, diante do Folies-Bergère, me deparei com uma “dançarina serpentina”, reproduzida em cartazes colossais e em tons violentos, e que esta dançarina não era Loïe Fuller! Foi o cataclismo, o naufrágio definitivo. Nem por isso deixei de entrar no teatro. Expliquei o motivo da minha visita, e solicitei encontrar o diretor. Disseram-me que eu poderia ser recebida somente no final da apresentação, e instalaram-nos – minha mãe, meu agente e eu – num camarote, onde pudemos acompanhar o espetáculo. O espetáculo!... Não fazia muito caso do espetáculo. Seria uma tarefa dificílima descrever o que vi naquela noite. Esperei a “dançarina serpentina”, minha
rival, minha usurpadora – pois tratava-se de uma usurpadora, não? –, e
que me usurpava, além da minha dança, os meus mais belos sonhos.
Ela finalmente apareceu. Meu corpo tremia. Um suor frio escorreu
pelo meu rosto. Fechei os olhos. Quando tornei a abri-los, vislumbrei no
palco uma das minhas compatriotas que, algum tempo antes, na América,
me pedira dinheiro emprestado, mas esquecera de me devolver. Ela, ali,
simplesmente continuava a tomar emprestado. Dessa vez, contudo, eu
estava decidida a obrigá-la a devolver-me o que havia tomado de mim.
Mas logo parei de querer-lhe mal. Ao invés de me perturbar, sua
visão tranquilizou-me. À medida que ela dançava, renascia em mim a
calma. Quando ela terminou o seu “número”, comecei a aplaudir com
sinceridade e alegria.
Não era a admiração que provocava o meu aplauso, mas um senti
mento totalmente oposto: a minha imitadora era tão medíocre, que, certa
da minha superioridade, eu não a temia mais.
Na verdade, eu poderia mesmo tê-la beijado pelo prazer que me
oferecia a constatação da sua incapacidade.
Depois da apresentação, quando estávamos na presença do diretor
– o sr. Marchand 36 –, disse-lhe, por meio de Marten Stein, que atuou como
meu intérprete, tudo o que sentia. A sala estava vazia. Éramos apenas seis: o sr. Marchand, sua esposa, o segundo chefe de orquestra, Henri Hambourg, Marten Stein, minha mãe e eu. - Pergunte ao sr. Marchand – disse a Marten Stein – por que é que ele contratou uma mulher que copia as minhas danças, agora que você escreveu de Berlim para lhe propor um encontro comigo? Ao invés de transmitir a minha pergunta, o “intérprete” replicou: - Você está assim tão segura de si mesma? Esqueceu que você tinha a intenção de dançar na Ópera? Talvez ele tenha conhecimento disso. - Não interessa – respondi –, pergunte assim mesmo. Além do mais, esse homem não sabe de nada.
36 Édouard Marchand (1859-19..). Diretor artístico do Folies-Bergère, que ele compra em 1894, e desenvolve o conceito de revista de music-hall.
Soube mais tarde que o sr. Marchand falava e compreendia a lín
gua inglesa tão bem quanto eu e Marten Stein. Ele deve ter tido, naquela noite, dificuldade em reprimir uma terrível vontade de rir. Conteve-se
muito bem, visto que não notamos nada, e não descobrimos que ele co
nhecia a língua de Shakespeare 37 .
Marten Stein traduziu a minha pergunta. - Contratei essa dançarina – respondeu em francês o sr. Marchand –, porque o Casino de Paris está anunciando uma dança serpentina, e não posso deixá-lo chegar na minha frente. - Mas – perguntei – hoje há outras dançarinas deste gênero nos teatros parisienses? - Não. A do Casino rompeu o acordo. Eu já tinha contratado a minha. E como você pôde constatar, ela não tem muito sucesso. Acho que você não vai conseguir muito mais do que ela. Mas, se você ainda assim quiser me apresentar o seu trabalho, estou à disposição. - Mostrar ao senhor as minhas danças para que uma outra possa imitar ainda melhor? Não, muito obrigada! Mas o meu agente me pediu tão intensamente para mostrar ao diretor no que consistia as minhas danças, sobretudo se comparadas às da outra dançarina, que resolvi dançar. Pus os meus vestidos, um após o outro, com um semblante dos mais desanimados, e comecei a dançar. A orquestra resumia-se a um único violino, e, como iluminação, eu contava apenas com a da ribalta. Quando terminei, o diretor me pediu para acompanhá-lo ao seu escritório, e me propôs um contrato ali mesmo. Eu tinha que começar assim que o prazo do contrato da outra dançarina tivesse terminado. - Não – respondi –, se faço parte desta casa, essa senhorita deve partir. - Mas eu a recrutei. Ela não pode partir assim antes do final do contrato. - O senhor só tem que pagar os honorários dela. Ele alegou que os cartazes e os anúncios haviam sido feitos para ela, e que, se ela não dançasse, o público podia protestar.
37 William Shakespeare (1564-1616). Poeta e dramaturgo inglês.
- Nesse caso, vou dançar em seu lugar, com o seu nome, com a sua música, até que o senhor tenha tudo organizado para a minha estreia. No dia seguinte, ele pagou minha imitadora, e ela deixou o teatro. Naquela mesma noite eu a substituí, e tive que ensaiar a sua dança quatro ou cinco vezes. Começamos em seguida a ensaiar seriamente para a minha estreia, que aconteceria dali oito dias. Após ter dançado duas vezes com o nome da minha imitadora, o diretor do Folies-Bergère levou-me ao Figaro. Eu sabia muito bem que, do ponto de vista da divulgação, essa tinha sido uma excelente ideia. Porém, soube só muito tempo depois que o meu contrato definitivo dependera da minha dança que eu mesma apresentara ali. E jamais esquecerei que devo toda a minha carreira ao sucesso, memorável para mim, que obtive naquela ocasião. Oito dias depois, ocorreu o ensaio geral. Ele só foi terminar às quatro horas da manhã, sem que eu tivesse conseguido esgotar o meu programa, que compreendia cinco danças: n. 1 a dança serpentina, n. 2 a violeta, n. 3 a borboleta, n. 4 uma dança que o público nomeou mais tarde a “dança branca”. Como último número, esperava dançar com uma iluminação vinda do solo, através de um quadrado de vidro sobre o qual me encontraria, e isso seria o ápice das minhas danças. Após o quarto número, contudo, os eletricistas, mortos de cansaço, deixaram-me lá plantada sem a menor cerimônia. Eu não queria começar sem a minha última dança, mas, diante da ameaça do diretor de anular o nosso contrato caso não continuasse, acabei por ceder. No dia seguinte, ainda consegui ensaiar a quinta dança; na hora da apresentação, tudo estava pronto para minha estreia. O entusiasmo do público aumentava à medida que dançava. Quando a cortina caiu após a quarta dança, os aplausos foram tão ensurdecedores que não havia como escutar o prelúdio musical da dança n. 5. A cortina, sob a ordem do diretor, foi levantada várias e várias vezes, e os aplausos continuavam a nos ensurdecer. Tive de ceder à evidência: era impossível e desnecessário continuar a dançar. As quatro danças, contando os bis, duraram 45 minutos, e não obstante o estímulo do triunfo, eu estava completamente exausta.
Olhei para o diretor e perguntei: - E a última dança?
- Nós não precisamos dela. Essas que você acabou de dançar foram o
bastante para levantar o público. Você não está escutando as aclamações?
Momentos depois, estávamos cercados por uma verdadeira multi
dão, e quase fui carregada até o meu camarim.
Daquele dia em diante, minha vida foi uma sucessão de aventuras.
Somente bem depois é que pude recolher o benefício da minha quinta
dança. Alguns anos mais tarde iniciei, mais uma vez no Folies-Bergère, a
dança do fogo e do lírio. Lembro-me da ovação, semelhante à da minha primeira aparição. Só que dessa vez já não era uma desconhecida, como
em 1892; contava na sala com um sem número de amigos parisienses.
Muitos foram até o palco para me parabenizar, e entre eles estava Calvé 38 .
Ela me tomou em seus braços, beijou-me e disse: - Foi maravilhoso! Loïe, você é genial. E duas grandes lágrimas rolaram pelo seu rosto. Nunca vi Calvé mais bonita do que com aquele ar de êxtase. E foi assim a história da minha estreia em Paris.
38 Emma Calvé (1858-1941). Artista lírica (soprano).
Os balés de Loïe Fuller em Le Songe d’une Nuit d’Été.