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Prefácio da Primeira Edição

Anatole France 10

Até então eu a tinha visto apenas como viram as multidões que cobrem o globo: no palco, agitando com gestos harmoniosos seus tecidos nas luzes, ou transformada num enorme lírio, deslumbrante, revelando-nos uma forma nova e augusta da beleza. Tive a honra de ser apresentado a ela num almoço do Tour du monde em Boulogne. Vi uma mulher americana de traços delicados, os olhos azuis como as águas em que um céu pálido se reflete, um pouco rechonchuda, sorridente, plácida, refinada. Escutei-a conversar: a dificuldade com a qual ela fala francês obriga-a, sem afetar em nada a sua vivacidade, a ater-se ao raro e ao sutil, a criar a todo instante a expressão necessária, o melhor e o mais sucinto modo de dizer algo. A palavra jorra, a forma estranha de linguagem emerge. Para ajudá-la, nem gestos nem movimentos, somente a expressão de seus olhos claros e cambiantes, que mudam como as paisagens que descobrimos ao longo de um bela estrada. E a essência da conversa – ora séria, ora risonha – é cheia de charme e doçura.

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10 Anatole France (1844-1924). Poeta da escola parnasiana, romancista, colaborador em diferentes jornais (Journal des Débats, Journal Officiel, Le Temps etc.) e autor de estudos biográficos. Ele foi eleito para a Academia Francesa em 1896 e recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1921.

Esta brilhante artista revela-se uma mulher de uma sensibilidade

justa e delicada, dotada de uma capacidade de penetração maravilhosa:

ela sabe descobrir o significado profundo das coisas aparentemente in

significantes e ver o esplendor recôndito das almas simples. Com natu

ralidade ela retrata, com traços vivos e brilhantes, o povo humilde em

que ela enxerga uma majestosa beleza. Não que ela seja particularmente ligada aos mais humildes, aos pobres de espírito. Pelo contrário, ela pene

tra facilmente nas almas dos grandes artistas e cientistas. Eu já a escutei dizer as coisas mais delicadas, mais sutis sobre Pierre 11 e Marie Curie 12 ,

Auguste Rodin 13 e sobre tantos outros gênios instintivos ou conscientes.

Ela detém, sem o querer, e, talvez, sem mesmo o saber, toda uma teoria do conhecimento humano e uma filosofia da arte. Mas o assunto que lhe é mais caro, mais próximo, diria mesmo o mais íntimo, é a busca do divino. Devemos ver nisso uma característica do povo anglo-saxão, ou o efeito de uma educação protestante, ou, simplesmente, uma peculiaridade do temperamento, de que não há uma explicação? Não sei. Em todo caso, ela é profundamente religiosa, com um senso de observação muito acurado e uma preocupação permanente com o destino humano. Sob várias formas, de diversas maneiras, ela indagou-me sobre a causa e a finalidade das coisas. Não preciso dizer que nenhuma das minhas respostas puderam satisfazê-la. No entanto, ela acolheu minhas dúvidas com um ar sereno, sorrindo para o abismo. Pois ela é realmente uma criatura adorável. Sentir? Compreender? Ela é maravilhosamente inteligente. Ela é ainda mais maravilhosamente instintiva. Rica em tantos dons naturais, ela poderia ter se voltado às ciências. Com efeito, pode discorrer, numa linguagem muito “compreensiva”, sobre diversos temas ligados à

11 Pierre Curie (1859-1906). Físico e químico, prêmio Nobel de Física de 1903, junto com a sua esposa e com Henri Becquerel (1852-1908). Ele foi eleito membro da Academia das

Ciências no dia 3 de julho de 1905 (seção de física geral). 12 Marie Curie (1867-1934). Física e química francesa de origem polonesa, criadora do

Instituto do Radium (1909). Prêmio Nobel de Física em 1903, junto o seu marido e

Henri Becquerel, ela recebe o prêmio Nobel de Química em 1911. 13 Auguste Rodin (1840-1917). Escultor francês. Sua vontade de fixar o instante da vida e sua rejeição do academicismo deram nascimento à escultura moderna.

astronomia, à química, à fisiologia. Mas nela prevalece o inconsciente. Ela é uma artista.

Não pude resistir à tentação de recordar o meu encontro com

essa mulher extraordinária e encantadora. Que rara oportunidade!

Você admira de longe, como em um sonho, uma figura aérea, comparável em graça às dançarinas que vemos nas pinturas de Pompeia, flu

tuando em seus véus delicados. Um dia você encontra essa aparição na

vida real, apagada e escondida sob essas vestes mais grossas e opacas

com que se cobrem os mortais, e você descobre que ela é uma pessoa

arguta e generosa, uma alma um pouco mística, filosófica, religiosa, muito profunda, muito alegre e muito nobre. Eis ao natural essa Loïe Fuller a quem o nosso Roger Marx 14 sau

dou como a mais casta e expressiva das dançarinas, belissimamente inspirada, encontrando nela própria e restituindo-nos as maravilhas perdidas da mímica grega, a arte desses movimentos a um só tempo voluptuosos e místicos, que interpretam os fenômenos da natureza e as metamorfoses dos seres.

14 Roger Marx (1859-1913). Crítico de arte e editor de revistas, autor especialmente de L’Art Social [A Arte Social], em cujo prefácio Anatole France saudou como um “livro de doutrina e de combate, de iniciativa e de reformas, de filosofia e de arte, de estética e de sociologia”. Ver também o texto citado por Anatole France no prefácio em: Roger Marx, “Uma Renovadora da Dança”, eRevista Performatus, Inhumas, ano 6, n. 19, jan. 2018. ISSN: 2316-8102.

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