Tempo de reticências - Jairo Rodrigues

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de reticĂŞncias

Jairo Rodrigues







Jairo Rodrigues

Tempo de reticĂŞncias


monções 03 crepúsculo de santa 05 06 novembro nove e novelo 07 08 2º ato 09 on 10 cantiga 11 palarvas 12 hoje não acordei 13 14 nome de casa 15 a puta que pariu riu 16 17 prefiro 18 adolescência 19 o que é que eu vou fazer? 20 21 conto-me 22 23

começa a prece margarete, escondida das de roda

forçam

tempero de pêssego e pescoço

a última verdade a alma respirada nos bourbons


estrada de serpente 24 25 uma bolha na superfície líquida 26 27 doze diferenças 28 29 ludo arcaico 30 31 interno 32 33 dezessete dias 34 35 subversos 36 37 morrem mais pessoas 38 39 a carne arde em vida 40 41 elipses em espiral 43

nos abissais um dos meus... eus? poema para o novo amor ausente tentei chorar durante todo o dia hoje sinto bilhete lapso a bacia da cobiça caldo, caos, culto, coito [renata cabral]




Monções Lêem-se curvas e lombadas quebra-molas, mata-burros placas, buracos, muros fios e árvores caídas.

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Poeira, folhas secas, areia rodopiando nas gotas pesadas, robustas pingando-me na teia fina, casulo, seda pura pendurada à direita lembrança que espreita o quadro interno, a tortura. O espelho disse: é chuva trisca um raio na pupila o chão de leve oscila echarpe, pelica e luva. Do pregoeiro ecoa o grito quem dá mais, quem dá nada mais, quem há que não conheça o rito de pensar lombadas quebra-molas, mata-burros placas, buracos, muros fios e árvores tombadas. 28.06.2003

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O crepĂşsculo de santa luzia. Corta a terra, o fogo. As trevas denunciam uma verruga de lua.

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Começa a prece que invoca o escudo, a couraça, a carapaça, o casulo. Veste a palavra - esconderijo. A luz é fácil. - Fraca? - Intensifique. Gelo seco, orvalho, rima e musicalidade. Verse livre. Conte tingindo não contar nova história de além mar sede de sede.

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Novembro nove e novelo Mãe Maria desperta às cinco. Nunca dorme, vela o terço, reza forte e branda. Doa, perdoa. Alimenta, pela boca, Nossa Senhora e os anjos. Gira, vira colo de dormir, acalanto, comoção. 9.11.02

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Novembro nove e novelo Mãe Maria desperta às cinco. Nunca dorme, vela o terço, reza forte e branda. Doa, perdoa. Alimenta, pela boca, Nossa Senhora e os anjos. Gira, vira colo de dormir, acalanto, comoção. 9.11.02

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Margarete, escondida, rouba carne do prato que guarda para o marido e filho mais velho. Vinga-se.

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2ยบ Ato para Renata Cabral

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Banha-se. Limpa a tinta dos cabelos limpa o corpo dos pêlos queima lenços... lençóis. Sem ensaio, esquece a porta aberta, sai, arrisca a ficha.

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On O irmĂŁo de Iara deixa o rio sobe e desce montanhas cria o mar mergulhei sem saber nadar

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O irmĂŁo de Iara deixa minas desce e sobe montanhas seca o mar reclamei aprendi a nadar

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sibilís


PALARVAS

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Ao pĂŠ da letra, a tinta embebe linhas no papel ressequido. Pedem corpo, som e


LARVA


Ao pĂŠ da letra, a tinta embebe linhas no papel ressequido. Pedem corpo, som e

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Hoje não acordei, o cachorro louco ainda me persegue, embaixo da cama espreita, invisível. Não movo nem as pálpebras. Flutuo.

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Forçam a vida-forca o poeta brinda o desconhecido de cada in-contro si-lá-bi-co mandala de além pontos vem mandá-lo ao anterior itabirano interior estrangeiro garimpo do óbvio humano

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Nome de casa Contar uma briga. C’est magnifique Janela aberta é perigo. Não é abrigo o quarto Cristina, Cristina, Krishna ver é a dor do pai. C’est la vie Recipiente etílico, étnico. Estética do outro lado do outro lado abstracto, reacomodamento magmático. Ecuté onde cego enxerga olho reza tem nascimento pela frente ecuté ribeiro, ninho de serpente

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C’est magnifique.

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A puta que pariu riu. Riu-se do rio que adolesce Eco no Brasil é vá tomar no cu, cu, cu, cu,

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cu,

cu,

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cu,

cu,

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cu,


cu,

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cu,


cu,



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Tempero de pêssego e pescoço O tempo cheira há muito. Espaço, sombra, teia. Pataxó, Maxacali, Krenac, Xacriabá, Jack Kerouac e a escrita automática estréiam no tubo de insight. Na barriga da vírgula, germina o perigo da palavra, o umbigo. – Corta? – Não, recorta e deposita no papel – instalação.




Prefiro a Puta

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à disputa.

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AdolescĂŞncia

Minha merenda sĂŁo meus chicletes.

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Nos intervalos, vinte centavos me bastam.

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– O que é que eu vou fazer? – Eu posso vender o vale. Está sobrando um. – Há quanto tempo você está esperando? – Um corpo duplo num mundo múltiplo. Cessado o colóquio calaram-se saí com a ruiva – me contaria novas histórias e só aí notei: a essência não sai, se sai, não volta e tudo se torna história. Rearranjos de argumentos deveriam seduzir.

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– O que é que eu vou fazer? – Eu posso vender o vale. Está sobrando um. – Há quanto tempo você está esperando? – Um corpo duplo num mundo múltiplo. Cessado o colóquio calaram-se saí com a ruiva – me contaria novas histórias e só aí notei: a essência não sai, se sai, não volta e tudo se torna história. Rearranjos de argumentos deveriam seduzir.

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A última verdade que ouvi dizia-se inexistente. O resultado é zero. Não há esquerda ou direita. Cardar poesia com os fios brancos das tranças de Rapunzel.


Conto-me. In-vento. G o t

e

i

r

a

.

24.01.04


A alma respirada nos bourbons borboletas de neon bailarina da caixinha de mĂşsica manca. CutĂ­cula inflamada ipirangas, tiradentes, minas o pranto, o ranger das gentes. Naquela esquina, esperar um bonde antigo filtro marrom e lĂĄbio sem tom a alma respirada nos bourbons.

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Estrada de serpente Pontilhados espectrais formulam um caminho, caninos na jugular pulsante. Pulso da dançarina dos sete vÊus entrando pela porta azul primeiro ponto negro buraco coagulante.

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nos abissais o piso ĂŠ de rubis incandescentes 14.09.03

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Uma bolha na superfície líquida transbordante no esgoto em frente, estoura. Fervem resíduos, promovem vida. Olho de fogo fita-me. Olho-de-peixe, cobra-de-vidro.

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um dos meus... eus? fugiu com a dançarina espanhola. ninguÊm se importa. rola a moeda e a vida. rola?

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Doze diferenças No poste em frente, à sua direita o menino de aparelho nos dentes sorri. Despedida. Prometeu, não prometeu. 12.09.03

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Poema para o novo amor ausente Urucum aveludado cobre-lhe o corpo Cobre. Limites cavalcantianos e olhos incomensuravelmente doces Vívidos. Fala que oscila Gutural. Hoje, planejar o futuro, dói um pouco mais. Não há sentido nas imagens geradas Sem “liga”, sem tom.

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Ludo arcaico Seu primeiro porre fui eu narina Ăşmida, eu. Absinto sem de gelo carta sem selo.

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Tentei chorar durante todo o dia A noite calou-me Só o ardor nas pálpebras Permanece Acalmo-me Há cal no limite. Você, o banheiro, ela, o espelho... eu. Você queria. Bebi o vale transporte, cachaça curtida na carqueja. Subi o morro, fumei cigarro de despacho. Desci, desci, desci. Num abissal profundo, vi O creon, o riso, insights de alguém feliz Imagens, quadros, sons Assopram uma frágil chama azul Promessa de vulcão nascente. Começo a desvelar o remendo que costura o retalho. 20.02.04

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Interno Sem uma foto, cigarro, guimba. Uma ponta de cigarro. Nem um cílio, uma cicatriz de mordida. Uma lasca de unha. As digitais na pele sumiram. Lábios e gengivas não sangram mais. A carne reclama, relembra recolhe fragmentos, roteiro romântico colado à saliva que já secou. 17.07.03

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Hoje sinto que já me recolhi o bastante, recompus uma identidade menos fluida, mais obtusa e tranqüila. Percebo o tênue limite que nos divide e nos faz ser tão completos, complexos. Sigo tranquilo. E pode ser tudo mentira.

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Interno Sem uma foto, cigarro, guimba. Uma ponta de cigarro. Nem um cílio, uma cicatriz de mordida. Uma lasca de unha. As digitais na pele sumiram. Lábios e gengivas não sangram mais. A carne reclama, relembra recolhe fragmentos, roteiro romântico colado à saliva que já secou. 17.07.03

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Hoje sinto que já me recolhi o bastante, recompus uma identidade menos fluida, mais obtusa e tranqüila. Percebo o tênue limite que nos divide e nos faz ser tão completos, complexos. Sigo tranquilo. E pode ser tudo mentira.

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Dezessete dias Brigou com a namorada. Abrigou-se nos meus braços, de amigo. Sofri por três.

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Bilhete Eu queria estar aí, como um espectro, invisível, saber de você. Derrubar panelas, escarafunchar a existência de nós. Hoje lhe encontraria na praça em frente, inexistente. Silêncios em vários tons. São vinte e uma horas e quarenta e sete minutos de um domingo agradável, de sol e frio. Agradeço-lhe a confiança, o olhar vazio e a garrafa de providência, que eu já tomei. Não há mais tempo. Na caverna central, coronária do cifrão, dormem enxames de morcegos deuses mal lidos gestando seu quinhão escarlate Buraco

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Subversos, urdidos na rotina, menina sem vida. Submetida ao mestre de fantoches que divulga e não divaga, ordena, ordenha as vacas do presÊpio marca a ferro e fogo o forte, o vice imagem e semelhança.

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Lapso Cômodo acomoda-se no canto quinto lado sobra do raciocínio. Dó. Semente oca. Modo não muda não cresce desaparece.

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Morrem mais pessoas no meu bairro que no seu. Eu queria que, quando morrĂŞssemos, fosse de dentro pra fora, naturalmente.

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A bacia da cobiça O cifrão sugere-me uma interrogação macabra, cuja resposta desvela o ser. Quero cortar o cabelo e encontrar alguém, mesmo sem dinheiro. A distância sentida mais perto. banhos gelados. Indiferença ao toque do telefone. Solidão. Poucos cifrões de distância.

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a carne arde em vida o flanco em fogo agudo dรณi.

12.10.03

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Caldo, caos, Cronos faminto Fotogramas dispostos Pontas de icebergs Culto, coito 11.04.04

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O fio da meada, por alexandre ribeiro Acordo. Pára tudo! Quem iniciou o pensamento? Saiu primeiro ou se escondeu? Cadernos? Cadarços frouxos, sem laços. Jack quer puxar a ponta do crochet, galopar na corcova da descontração, solapar uma aresta da fala do todo, partir pra tecer.

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Todas as lembranças pedem-me pontuá-las na pauta abstrata do papel em branco. O conceito palavra, comovido com a cena e insatisfeito com a impossibilidade de retê-la em signos e sons, complementa-me os espaços neurais numa procura espelhar. Desperto mil olhos espalhados pelo piso, paredes e teto. Completo, só, dentro. Hoje vasculho o vazio e penso trincar espelhos.

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Elipses em Espiral O poeta é aquele que inventa uma linguagem em sua própria língua1, imprime um estilo, beira o indizível e o intraduzível, rompe com a previsibilidade da vida comum, olha além, e, por isso mesmo, eleva-nos a outras possibilidades de significação. O poeta é aquele que diz NÃO; não participa do engodo geral armado para ludibriar as pessoas; não compactua com a mentira que nos circunda!2 Está à margem da lógica de mercado – que insiste nas bulas e receitas de felicidade, e na historinha em detrimento da forma. Para ele, escrever é uma atitude visceral3 e política por excelência. Escrever é também um ato de coragem. É mostrar-se descontente com esse novo-velho teatro social em que atuam como protagonistas a banalização do saber e a superficialidade das emoções. Movido por esse desejo ético de abrasar os arcaísmos e lacerar as conformidades, Jairo Rodrigues completa sua trilogia poética. Em À margem da miragem (1996), solidão, suicídio e miséria, personagens de uma época vazia e triste. Trilhas espiraladas e vendavais nA maldita perfeição (2000). Em Tempo de reticências (2010), fluxos e suspensão.

1 GLISSANT, Edouard. Introdução a uma poética da diversidade. Trad. Enilce Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005. p.56 2 Hilda Hilst, em entrevista a Leo Gilson Ribeiro. 3 Hilda Hilst, em entrevista a Leo Gilson Ribeiro.


Logo, não espere poesia bem comportada, etiquetada, pronta para mofar na gaveta. Não espere entrelinhas maquinadas, teoria vestida de verso, grandiloquências ou subterfúgios. A poesia de Jairo é escancarada, ri com a boca bem aberta, cutuca nossas feridas e incomoda. Periférica, perpassa as esquinas, com suas putas, malandros, vira-latas e Marias. Da senhora das graças – doçuras e iras – à Margarete, que, sem qualquer traço de vilania, furta as carnes dos pratos que guarda para o filho e marido. Da garota que se basta com vinte centavos e masca a merenda que não tem ao Pinóquio de acrílico. Personagens expostas, inexatas e contraditórias, sem a intenção de serem exemplares. São pungentes, parecem sair do livro, corrompem o (dis)curso de vítima e saltam para a vida; queimam feito a ruiva que vira história, zarpam feito quem vende o tíquete para sobreviver, zunem feito a moça que arrisca as fichas. O cotidiano é duro e áspero na cidade – quem não conhece o rito? Não à toa, no primeiro poema já se ouve o grito: quem dá mais, quem dá/ Nada mais. Para a tessitura dos poemas, o fino fio é navalha fria. Corta a noite de Santa Luzia, a carne sedenta das meninas do Cristina, as reminiscências e covardias. Arranha as madrugadas, os bêbados e o bom senso. Tira uma lasca dos garotos, dos biscates, das cartomantes e das velhinhas. Mutila a bailarina. Desavisa. Há entre a poeira dos versos de Monções4 a teia de seda pura, que se alinha a obstáculos, como os mata-burros e os quebra-molas – uma 4 Primeiro poema do livro, p. 3.


espécie de contra-ponto rítmico? De síncope? De desaceleração? Mais adiante, no entanto, o tecido se esgarça – retalho na boca do sapo – o traço incerto deixa um fiapo ao relento. Desabriga. Metalinguisticamente, filete d’água, mar que anuncia. Não inunda, não derrama, nem tampouco segue um curso correto e linear. O fluxo é também tempo – silêncios e seus bemóis – respira, como um relógio a suster a própria fome. Convida à suspensão. Hesita? Pausa? Inconclusivo, visto que não há interpretação finalista de mundo5, mas movimentos em busca de novas significações. Contundente, relativiza. Pós-equações de Maxwell, pós-Einstein, pós-tropicalista. Breve e antitético, convida a descobrir os véus do pensamento. Desvia: Rearranjos de argumentos deveriam seduzir6 Abissal e incandescente, a palavra arde: rubros. As páginas se abrem em alarido: lábia enviesada das ruas, estilhaços de frases, verbos traficados, polissemia de boteco. O sujeito poético é plural. Único e muitos. Krenak e Kerouac. Coloquial e lírico. Verso e prosa. Seu corpo -lente, anti-Narciso, insiste em perambular – miséria alegria e espanto –, como quem vasculha o vazio e pensa trincar espelhos.

5 SALOMÃO, Waly. Lábia. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 88. 6 RODRIGUES, Jairo. Tempo de reticências. Belo Horizonte.



CAPA E PROJETO GRÁFICO

Rubens Rangel PREFÁCIO

Renata Cabral TEXTO QUARTA CAPA

Nathália Vieira REVISÃO

Maria José de Castro Alves ILUSTRAÇÃO DO FRONTESPÍCIO

Liliam Lima

D677

Rodrigues, Jairo Tempo de reticências / Jairo Rodrigues Belo Horizonte: Insecta, 2020. 70 p. 1. Poesia brasileira. I.Título.

CDD: B869.15 CDU: 869.0(81)–1


Este livro foi cuidadosamente trabalhado pelo autor durante nove anos e ďŹ nalizado em 11 de abril de 2012, oito dias antes de seu falecimento.




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