joanne harris cinco quartos da laranja pt

Page 1

CINCO QUARTOS DE LARANJA Joanne Harris


Título Original FIVE QUARTERS OF THE ORANGE Traduzido do Inglês por SARA SANTA CLARA

Framboise regressa à pequena cidade onde nasceu, na província francesa, e abre aí um restaurante que rapidamente se torna famoso, graças às receitas de um velho caderno que pertencera à sua mãe. Essa espécie de diário contém igualmente uns estranhos apontamentos cuja decifração lançará uma nova luz sobre os dramáticos acontecimentos que marcaram a infância da protagonista nos dias já


longínquos da ocupação nazi. Framboise recorda os sabores e os sentimentos da sua infância, numa França marcada pela dor e pela penúria da guerra, e muito especialmente um episódio que marcou a vida da família e constituiu, para ela, a perda definitiva da inocência. Agora, já no Outono da vida, chegou a hora de enfrentar a difícil verdade. Depois de Chocolate e Vinho Mágico, Joanne Harris oferecenos de novo um romance deslumbrante.

Joanne Harris nasceu em Yorkshire, em 1964, de mãe francesa e pai inglês. Com Chocolate e, depois, Vinho Mágico (romances publicados nesta mesma colecção) conheceu um retumbante sucesso internacional, que a adaptação ao cinema do primeiro daqueles títulos veio ainda intensificar.

Para o meu avô, Georges Payen (também conhecido por Ptit Père), que esteve lá


AGRADECIMENTOS Agradeço do fundo do coração àqueles que participaram na série de encontros armados que levou à criação deste livro. Obrigada a Kevin e a Anouchka pelos canhões; aos meus pais e irmão pelo apoio e munições; a Serafina, Princesa Guerreira, por defender o meu espaço; a Jennifer Luithlen pela política exterior; a Howard Morhaim por vencer os nórdicos; à minha leal editora Francesca Liversidge; a Jo Goldsworthy e à artilharia pesada na Transworld; agradeço à minha portaestandarte Louise Page, e a Christopher por estar do meu lado.

PRIMEIRA PARTE


A Herança 1. Quando a minha mãe morreu, deixou a quinta ao meu irmão Cassis, a fortuna da adega à minha irmã Reine-Claude, e a mim, a filha mais nova, deixou-me o álbum e um jarro de dois litros contendo uma escura trufa Périgord do tamanho de uma bola de ténis, suspensa em óleo de girassol que solta ainda, quando aberto, o rico e húmido odor do solo da floresta. Uma distribuição de riqueza um pouco desigual, mas a mãe foi sempre uma força da natureza, concedendo os seus favores como lhe apetecia, não deixando transparecer os trâmites da sua lógica peculiar. E, como o Cassis dizia sempre, eu era a preferida. Não que ela alguma vez o tivesse mostrado enquanto era viva. Para a minha mãe nunca havia tempo para indulgências, mesmo que fosse desse género. Não com o marido morto na guerra, e com a quinta para cuidar sozinha. Longe de sermos um conforto na viuvez, éramos um estorvo para ela, com as nossas brincadeiras barulhentas, as nossas lutas, as nossas discussões. Se ficávamos doentes, cuidava de nós com um carinho relutante, como que a calcular os custos da nossa sobrevivência, e o amor que mostrava, manifestava-se nas formas mais elementares: tachos que nos dava para rapar, tachos de doce para rapar os restos, uma mão-cheia de morangos silvestres apanhados na fronteira emaranhada por trás do quintal, entregues num lenço torcido sem um sorriso sequer. O Cassis era o homem da casa. Mostrava ainda menos suavidade com ele do que connosco. A Reinette começou a atrair olhares antes da adolescência, e a minha mãe era suficientemente vaidosa para sentir orgulho com a atenção que ela recebia. Mas eu era a boca a mais, não era nenhum segundo filho para expandir a quinta e não era certamente nenhuma beleza. Fui sempre a mais desordeira, a que discordava sempre, e depois da morte do meu pai tornei-me rabugenta e rebelde. Magrinha e escura, como a minha mãe, com mãos compridas


e deselegantes, os pés chatos e uma boca larga, devia lembrar-lhe demasiado dela própria, porque quando olhava para mim havia sempre uma tensão na boca, uma espécie de aprovação estóica, de fatalismo. Como se previsse que seria eu, e não o Cassis nem a Reine-Claude, quem manteria viva a sua memória. Como se tivesse preferido um recipiente mais apropriado. Talvez fosse por isso que me deixou o álbum, na altura sem qualquer valor, excepto pelos pensamentos e impressões rabiscados nas margens, a par de receitas, recortes de jornais e mezinhas. Não era exactamente um diário; não havia datas, nada tinha ordem precisa. As páginas eram inseridas ao acaso, folhas soltas que depois unia com pequenos pontos obsessivos, algumas delas finas como casca de cebola, outras de cartão cortado à medida para encaixar na capa de pele gasta. A minha mãe marcava os acontecimentos da vida dela com receitas, pratos da sua invenção ou interpretações de velhos pratos preferidos. A comida era a sua nostalgia, a sua celebração, sendo a sua preparação a única saída para a sua criatividade. A primeira página é dedicada à morte do meu pai - a fita da Légion d'Honneur densamente colada no papel abaixo de uma fotografia esbatida e de uma bem nítida receita de panquecas de farinha de trigo - e transmite uma espécie de humor cruel. Abaixo da fotografia, a minha mãe escreveu a lápis: "Não esquecer - apanhar os tupinambos. Ah! Ah! Ah!", a vermelho. Noutras partes é mais faladora, mas com muitas abreviaturas e referências crípticas. Reconheço alguns dos incidentes aos quais se refere. Outras foram distorcidas para se adaptarem às necessidades do momento. Outras parecem ser completas invenções, mentiras, impossibilidades. Em muitos sítios há blocos de uma escrita miudinha numa língua que não entendo - Ini tnazvini inoti plainexini. Ini canini inton inraebi inti ynani eromni. Por vezes uma única palavra, aparentemente ao acaso, rabiscada no topo ou na margem da folha. Numa página, baloiço, a tinta azul; noutra, gaultéria, patife, ornamento, a lápis cor de laranja. Noutra página, o que pode ser um poema, se bem que nunca a tenha visto abrir outro livro que não fosse de receitas. Dizia assim:


esta doçura às colheradas tal fruto luminoso ameixa pêssego alperce melancia quiçá vinda de mim esta doçura É um toque excêntrico que me surpreende e me perturba. Que esta mulher empedernida e prosaica pudesse albergar tais pensamentos nos seus momentos secretos. Sim, porque ela mantinha-se afastada de nós - de todos, com tal ferocidade que a achava incapaz de uma tal rendição. Nunca a vi chorar. Raramente sorria, e isso só quando estava na cozinha com a paleta de sabores na ponta dos dedos, a falar sozinha - assim o pensava eu - no mesmo murmúrio átono, enunciando os nomes de ervas e especiarias: "canela, tomilho, hortelã-pimenta, coentros, açafrão, manjericão, ligústica", discorrendo num comentário monótono. "Atenção ao lume. Tem de ser a temperatura exacta. Demasiado baixa, a panqueca fica ensopada. Demasiado alta, a manteiga queima-se, começa a deitar fumo e a panqueca endurece". Só mais tarde percebi que estava a tentar educar-me. Ouvia-a porque via naqueles nossos seminários culinários a única maneira de merecer um pouco da sua aprovação, e também porque qualquer boa guerra precisa de uma ocasional amnistia. As receitas que preferia eram as da sua terra natal, a Bretanha; as panquecas de trigo-sarraceno que comíamos com tudo, o far breton e kouign amann e a galette bretonne que vendíamos pelo rio Angers abaixo, juntamente com o nosso queijo de cabra, salsichas e a fruta. A mãe quis sempre que fosse o Cassis a ficar com a quinta. Mas o Cassis foi o primeiro a partir, para Paris, despreocupadamente desafiador, e quebrando qualquer contacto, exceptuando a sua assinatura num postal em cada Natal, e quando a mãe morreu, trinta e seis anos depois, não havia nada na quinta meia-abandonada junto ao Loire que o interessasse. Comprei-lha a ele com as minhas economias, o


meu dinheiro de viuvez, e por um bom preço, mas foi um negócio justo, e na altura ele ficou bastante satisfeito por o fazer. O Cassis percebia a necessidade de manter a quinta na família. Agora, claro, tudo isso mudou. O Cassis tem um filho. O rapaz casou-se com a Laure Dessanges, a escritora de gastronomia, e têm um restaurante em Angers - Aux Délices Dessanges. Vi-o algumas vezes antes da morte do Cassis. Não gostei dele. Moreno e espalhafatoso, já a ficar gordo, como o pai, mas ainda atraente e tendo consciência disso. Na ânsia de agradar, parecia estar de imediato em todo o lado; chamava-me Mamie, ia buscar-me sempre uma cadeira, insistia que eu me sentasse no lugar mais confortável, faziame café, punha-lhe açúcar, punha-lhe natas, perguntava-me pela saúde, lisonjeava-me por isto e por aquilo até eu ficar quase entontecida. O Cassis, que na altura andava já pelos sessenta e tal, e já inchado com as sementes da coronária que o mataria mais tarde, olhava para o filho com um orgulho mal escondido. O meu filho. Olha que belo rapaz. Olha como é belo e atencioso o teu sobrinho. O Cassis baptizou-o Yannick, como o nosso pai, mas isso em nada contribuía para que eu gostasse mais do meu sobrinho. Nisso sou como a minha mãe, o desprezo pelas convenções, pelas falsas intimidades. Não gosto que me toquem e me rodeiem de sorrisos parvos. Não vejo por que é que o sangue que partilhamos deva unir-nos em laços de afecto. Nem o segredo de sangue derramado que guardámos durante tanto tempo entre nós. Oh, sim. Não pensem que me esqueci desse assunto. Nem por um segundo, não, embora os outros bem se esforçassem por isso. O Cassis esfregando pissoirs fora do seu bar em Paris. A Reinette trabalhando como arrumadora num cinema de filmes pornográficos em Pigalle, farejando de homem em homem como um cachorro perdido. Já lá ia o tempo do bâton e das meias de seda. Em casa era a Rainha da Colheita, a querida, a inquestionada beldade da aldeia. Em Montmartre todas as mulheres parecem iguais. Pobre Reinette.


Eu sei o que é que estão a pensar. Gostariam que eu continuasse com a história. É apenas a história sobre os velhos tempos que agora vos interessa; o único fio desta minha bandeira em trapos que ainda capta a luz. Querem ouvir falar do Tomas Leibniz. Querem tudo claro, categorizado, terminado. Pois, mas não é assim tão fácil. Como no álbum da minha mãe, as páginas não têm números. Não há princípio e o fim está tão mal acabado como uma saia com a bainha por fazer. Mas eu estou velha - aqui tudo parece envelhecer tão depressa, deve ser do ar - e faço as coisas à minha maneira. Além disso, há tantas coisas que necessitam de perceber. A razão pela qual a mãe fez o que fez. A razão pela qual escondemos a verdade durante tanto tempo. E por que razão escolhi contar a minha história agora, a estranhos, a pessoas que acham que uma vida pode ser condensada em duas páginas de um suplemento de domingo, com um par de fotografias, um parágrafo, uma citação de Dostoievski. Vira-se a página e chega-se ao fim. Não. Desta vez não. Vão ter de digerir cada palavra. Não os posso obrigar a publicá-la, claro, mas, por Deus, terão de ouvir. Vou obrigá-los. 2. Chamo-me Framboise Dartigen. Nasci aqui mesmo, na aldeiade Les Laveuses, a menos de quinze quilómetros de Angers, junto ao Loire. Faço sessenta e cinco anos em Julho, tostada eamarelada pelo sol como um alperce seco. Tenho duas filhas, a Pistache, casada com um bancário em Rennes, e a Noisette, que foi para o Canadá em 1989 e me escreve de seis em seis meses, e duas netas que vêm passar o Verão à quinta. Visto luto por um marido que morreu há vinte anos, com cujo nome voltei em segredo para a aldeia onde nasci para reaver a quinta da minha mãe, há muito abandonada e meia-destruída pelo fogo e pelos elementos. Aqui, sou Françoise Simon, la veuve Simon, e não passaria pela cabeça de ninguém relacionar-me com a família Dartigen, que desapareceu depois daquele terrível incidente.


Não sei por que é que tinha de ser esta quinta, esta aldeia. Talvez eu seja apenas teimosa. Mas assim foi. É aqui que pertenço. Os anos passados com o Hervé parecem-me agora quase um vazio, como os estranhos e tranquilos intervalos que por vezes há num mar tempestuoso; um momento de espera, de esquecimento. Mas nunca me esqueci realmente de Les Laveuses. Nem por um segundo. Algo de mim esteve sempre aqui. Demorou quase um ano para tornar a quinta habitável, vivendo eu entretanto na parte que dava para sul, onde pelo menos o tecto aguentara. Enquanto os operários substituíam o telhado telha a telha, eu trabalhava no pomar - ou do que dele restava, aparando e modelando e arrancando das árvores enormes coroas de visco que as devoravam. A minha mãe tinha uma paixão por todos os frutos excepto laranjas, que sempre se recusou a ter em casa. Baptizou cada um de nós, aparentemente por capricho, com nomes de fruta e de receitas - Cassis, como o seu espesso bolo de groselha preta; Framboise como o seu licor de framboesa; e Reinette como a sua tarte de rainhas-cláudias segundo o nome das ameixas reine-claude que cresciam contra a parede sul da casa, rechonchudas como uvas e xaroposas de vespas a meio do Verão. Chegámos a ter mais de cem árvores - macieiras, pereiras, ameixieiras, cerejeiras, marmeleiros, já para não falar dos pés de framboesa e dos campos de morangos, groselheiros e outros arbustos silvestres cujos frutos eram postos a secar, armazenados e transformados em doces, licores e deliciosas tartes de pâte brisée e crème pâtissière e massa de amêndoa. As minhas recordações estão temperadas com os seus aromas, as suas cores, os seus nomes. A minha mãe tomava conta delas como se fossem as suas filhas preferidas. Fumigar as panelas por causa do gelo, as quais alimentávamos com o nosso próprio combustível de Inverno: carrinhos inteiros de estrume recolhido em cada Primavera e com o qual cobríamos as bases das panelas. E no Verão, para espantar os pássaros, atávamos nos ramos tiras de papel de prata que o vento agitava e chocalhava, fazíamos espantalhos com latas vazias firmemente presas por um cordel para produzir sons estranhos e assustadores, e moinhos de vento


de papel colorido que giravam alegremente, e o pomar parecia assim um carnaval de pechisbeque, fitas coloridas e arames uivantes, como uma festa de Natal a meio do Verão. Todas as árvores tinham um nome. Belle Yvonne, dizia a minha mãe quando passava por uma das pereiras retorcidas. "Rose d'Aquitaine. Beurre du roi Henry". A voz dela tornava-se então doce, quase monótona. Nunca conseguia perceber se falava comigo ou sozinha. "Conference. Williams. Ghislaine de Penthièvre". Esta doçura. Agora restam menos de vinte árvores no pomar, se bem que, para mim, chegam perfeitamente. O meu licor de cerejaamarga é particularmente popular, mas sinto-me um bocadinho culpada por não me lembrar do nome da cereja. O segredo é não lhes tirar o caroço. Pôr cerejas e açúcar às camadas num frasco de boca larga, cobrindo cada camada com álcool - com kirsch fica melhor, mas também se pode utilizar vodca ou até armagnac - até metade da capacidade do frasco. Encher até cima com o álcool e esperar. Virar o frasco uma vez por mês, para soltar cuidadosamente o açúcar acumulado. Ao fim de três anos, o álcool terá sangrado as cerejas até as branquear, ficando manchado de um vermelhovivo, penetrando até à pequena amêndoa dentro do caroço, tornando-se pungente, evocativo, um aroma de Outono passado. Servir em pequenos cálices, com uma colher para tirar a cereja e deixá-la na boca até o fruto macerado se dissolver sob a língua. Perfurar o caroço para libertar o álcool preso lá dentro e mantê-lo na boca por muito tempo, brincando com ele com a ponta da língua, rolando-o para cima e para baixo, como uma única conta de rosário. Tentar lembrar-me do tempo em que amadureceu, daquele Verão, daquele Outono quente, daquela vez em que o poço secou, daquela vez em que tivemos ninhos de vespas, tempo passado, perdido, encontrado de novo no sítio duro no coração do fruto. Já sei, já sei. Querem que eu vá directa ao assunto. Mas isto é pelo menos tão importante quanto o resto, o método de contar, e o tempo que leva a fazê-lo. Levou-me cinquenta


anos a começar, deixem-me ao menos fazê-lo à minha maneira. Quando voltei a Les Laveuses, tinha quase a certeza absoluta de que ninguém me reconheceria. Mesmo assim, mostrava-me abertamente pela aldeia, quase descaradamente. Se alguém me reconhecesse, se conseguissem distinguir no meu rosto os traços do rosto da minha mãe, então queria ficar logo a sabê-lo. Queria saber aquilo com que contar. Todos os dias passeava pelo Loire e sentava-me nas pedras lisas onde costumava pescar tenca com o Cassis. Subia para o toro do Posto de Vigia. Agora faltam algumas das Pedras Direitas, mas ainda se podem ver os ganchos onde pendurávamos os nossos troféus, as grinaldas e as fitas e a cabeça do Velho quando por fim o apanhámos. Ia à tabacaria do Brassaud - é do filho dele agora, mas o velhote ainda é vivo, os olhos escuros e tristes mas conscientes -, ao café do Raphaél, aos correios onde trabalha a Ginette Hourias. Até fui ao memorial da guerra. De um lado, os nomes dos dezoito soldados mortos na guerra, por baixo da inscrição Morts pour la patrie. Notei que o nome do meu pai havia sido apagado, deixando uma área áspera entre Darius G. e Fenouil J-P. Do outro lado tinha uma placa de bronze com dez nomes em letras maiores. Não precisei de os ler; sabia-os de cor. Mas fingi interessar-me, sabendo que, mais dia menos dia, alguém me contaria a história, levando-me talvez a ver o sítio contra a parede ocidental da igreja de São Benedito, dizendo-me que todos os anos havia uma missa especial em memória deles, que os nomes deles eram lidos em voz alta dos degraus do memorial e que se depositavam flores. Perguntava-me se iria conseguir aguentar aquilo. Perguntava-me se a minha expressão não me iria trair. Martin Dupré, Jean-Marie Dupré, Colette Gaudin, Philippe


Hourias, Henri Lemaitre, Julien Lanicien, Arthur Lecoz, Agnès Petit, François Ramondin, Auguste Truriand. Tanta gente se lembra ainda. Tanta gente com os mesmos nomes, com os mesmos rostos. As famílias ficaram por cá, os Hourias, os Lanicens, os Ramondins, os Duprés. Sessenta anos depois, lembram-se ainda, a nova geração treinada pelos mais velhos num ódio casual. Ao princípio manifestaram algum interesse por mim. Alguma curiosidade. Aquela casa, abandonada desde que ela a deixou, aquela Dartigen - Eu não me recordo bem dos pormenores, madame, mas o meu pai... o meu tio. Por que é que eu tinha comprado aquela casa aliás?, perguntavam-me. Era um sítio feio, uma mancha negra. As árvores que estavam ainda de pé mostravam-se semiapodrecidas por via do visco e da doença. O poço tinha sido tapado com cimento, cascalho e pedras. Mas eu lembro-me de uma quinta bem cuidada, próspera e cheia de actividade; cavalos, cabras, galinhas, coelhos. Dava-me prazer pensar que talvez os coelhos bravos que via às vezes correr pelo campo a norte da casa fossem descendentes dos nossos e por vezes vislumbrava manchas de branco no meio do castanho. Para satisfazer os curiosos, inventei uma infância numa quinta da Bretanha. O terreno era barato, expliquei. Mostrei-me sempre humilde, respeitosa. Alguns dos mais velhos olhavamme de lado, pensando talvez que a quinta devia ter permanecido um memorial para sempre. Vestia-me de preto e escondia o cabelo debaixo de uma sucessão de lenços. Como vêem, já era velha desde o princípio. Mesmo assim, demoraram algum tempo a aceitar-me. As pessoas


eram amáveis mas pouco acolhedoras, e como eu não sou naturalmente social - a minha mãe dizia que eu andava sempre maldisposta -, nunca me fizeram sentir bem vinda. Não ia à igreja. Sei o que é que isso deve ter parecido, mas disso não era capaz. Arrogância, talvez, ou o tipo de rebeldia que levou a minha mãe a pôr-nos nomes de fruta em vez de nomes de santos. Foi preciso abrir a loja para me tornar realmente parte daquela comunidade. Começou por ser uma loja, mas desde o início que queria expandir o negócio. Dois anos depois da minha chegada, o dinheiro do Hervé chegara quase ao fim. A casa estava agora habitável, mas a terra continuava praticamente inútil - uma dúzia de árvores, uma horta, duas cabras anãs, algumas galinhas e patos. Era óbvio que ia ainda demorar algum tempo antes que pudesse ganhar a vida com o que a terra produzia. Comecei então a fazer bolos e a vendê-los - o brioche e o pain d'épices da região, assim como algumas das especialidades bretãs da minha mãe, crêpes dentelle, tartes de fruta, e sablés, bolachas, pão de nozes e bolinhos de canela que vendia em pequenos pacotes. No início vendia-os na padaria da aldeia, depois lá mesmo na quinta, adicionando outros itens aos poucos: ovos, queijo de cabra, licores de fruta e vinho. Com o lucro, comprei porcos, coelhos, mais cabras. Utilizava as velhas receitas da minha mãe, trabalhando sobretudo a partir daquilo de que me lembrava, só consultando o álbum de vez em quando. A memória prega cada partida estranha. Ninguém em Les Laveuses parecia lembrar-se da culinária da minha mãe. Alguns dos mais velhos chegaram a comentar a diferença que a minha


presença fazia, que a mulher que antes vivia na quinta tinha sido uma desleixada antipática. Que a casa dela cheirava mal, que os filhos andavam descalços. Ainda bem que ela se foi, que eles se foram. Retraí-me por dentro mas não disse nada. Dizer o quê? Que ela encerava o soalho todos os dias, que dentro de casa nos fazia usar uns chinelos de flanela para não riscarmos o chão? Que os parapeitos das janelas estavam sempre cheios de flores? Que nos esfregava a nós com a mesma imparcialidade feroz com que esfregava as escadas, fazendo-nos arder a cara com um pano de flanela, de tal modo que às vezes receávamos sangrar? A minha mãe é aqui uma lenda maléfica. Até chegou a haver um livro. Na realidade, não mais que um panfleto; cinquenta páginas e algumas fotografias - uma do memorial, uma da igreja de São Benedito, um close-up da fatídica parede ocidental. Só se refere a nós os três muito brevemente, nem sequer menciona os nossos nomes. Ainda bem. Uma ampliação desfocada da minha mãe, o cabelo tão esticado para trás da face que os olhos pareciam de chinesa, a boca comprimida numa apertada e fina linha de censura. A fotografia oficial do meu pai, a que está no álbum, fardado, com um ar absurdamente jovem, sorrindo, com a espingarda casualmente pendurada ao ombro. Depois, quase no fim do livro, a fotografia que me cortou a respiração como um peixe com um anzol preso na garganta. Quatro rapazes em uniforme alemão, de braços unidos, excepto um que está um bocadinho à parte, e com consciência disso, com um saxofone na mão. Os outros também têm instrumentos musicais - um


trompete, um tambor, um clarinete - e, apesar de não aparecerem os nomes deles, conheço-os a todos. A banda militar de Les Laveuses, cerca de 1942. Do lado direito está o Tomas Leibniz. Demorei algum tempo a perceber como conseguiram saber tantos pormenores. Onde teriam desencantado a fotografia da minha mãe? Tanto quanto eu sabia, não existiam quaisquer fotografias dela. Eu mesma só tinha visto uma, uma velha fotografia de casamento guardada no fundo de uma gaveta no quarto, duas pessoas com casacos de Inverno nos degraus da igreja de São Benedito, ele de chapéu de aba larga e ela de cabelos soltos, com uma flor atrás da orelha. Uma mulher diferente nessa altura, sorrindo rígida e timidamente para a objectiva; o homem ao lado dela com o braço por cima dos ombros dela num gesto protector. Percebi que a minha mãe ficaria zangada se soubesse que eu vira a fotografia, e então voltei a pô-la no sítio, tremendo um pouco, perturbada sem quase saber porquê. A fotografia do livro parece-se mais com ela, mais com a mulher que eu pensava que conhecia mas que nunca conheci de verdade, de expressão dura e constantemente à beira de um ataque de raiva. Depois, olhando para a fotografia do autor do livro na contracapa do livro, percebi por fim de onde viera a informação. Laure Dessánges, jornalista e escritora de gastronomia, cabelo ruivo curto e sorriso ensaiado. A mulher do Yannick; a nora do Cassis. O coitado e estúpido do Cassis. O coitado e cego Cassis, cego pelo orgulho com o sucesso do filho. Arriscar em nome de... de quê? Ou ele começara mesmo a acreditar na sua ficção?


3. Têm de compreender que a Ocupação foi para nós muito diferente do que foi para a gente das cidades e vilas. Les Laveuses quase não mudou desde a guerra. Basta vê-la agora: um punhado de ruas, algumas não mais do que largos carreiros de terra batida derivando de um cruzamento principal. Há a igreja na parte de trás, o monumento na Place des Martyrs, com o jardim e a velha fonte por trás, e depois, na rua Martin et Jean-Marie Dupré, o posto dos correios, o talho do Petit, o Café de la Mauvaise Réputation, o bar-tabacaria com a sua prateleira de postais do memorial da guerra e o velho Brassaud sentado na sua cadeira de baloiço ao lado dos degraus, tendo em frente o gerente da florista-funerária - comida e morte sempre se venderam bem em Les Laveuses -, a mercearia (que ainda pertence à família Truriand, que agora é de um afortunado e jovem neto que só regressou há pouco tempo), o velho marco de correio pintado de amarelo. Para lá da rua principal corre o Loire, calmo e castanho como uma cobra ao sol e largo como um campo de trigo, a sua superfície interrompida a intervalos irregulares por ilhotas e bancos de areia que, para os turistas que se dirigem para Angers, podem parecer tão sólidos como a estrada onde circulam. Nós, claro, sabemos que não é assim. As ilhas estão sempre a mover-se sem cessar, desenraizadas, insidiosamente propulsionadas pelos movimentos da água acastanhada por


baixo, afundam-se e reemergem como lentas baleias amarelas, criando pequenos remoinhos na sua esteira e que parecem inofensivos quando vistos de um barco mas que são letais para quem esteja dentro de água, com a corrente submarina a puxar inexoravelmente sob a superfície plana, arrastando o imprevidente para baixo até o sufocar não-dramaticamente, invisivelmente. O velho rio ainda tem peixe, tencas e lúcios e enguias que crescem até proporções monstruosas alimentando-se dos esgotos e coisas apodrecidas que vão descendo pelo rio. Na maior parte dos dias podem-se ver barcos por ali, se bem que os pescadores voltem muitas vezes a atirar à água aquilo que apanham. O Paul Hourias tem uma cabana onde vende isco, ao lado do velho ancoradouro, a dois passos do sítio onde eu e o Cassis e ele costumávamos pescar, e onde a Jeannette Gaudin foi mordida pela cobra-d'água. O velho cão do Paul está aos seus pés, misteriosamente parecido com o rafeiro castanho que era o seu companheiro constante no passado, e o Paul olha o rio, baloiçando um pedaço de linha na água como se esperasse apanhar alguma coisa. Será que ele se lembra? Às vezes reparo nele a olhar para mim - é um dos meus clientes habituais - e quase penso que sim. Está mais velho, claro. Estamos todos. Tem agora a cara de lua redonda mais escura, mais caída e mais triste. Um bigode claudicante da cor do tabaco mascado. Uma ponta de cigarro entre os lábios. Quase nunca fala - nunca foi de grandes conversas -, mas observa tudo com aquela expressão de cachorro ferido, sempre com a boina da Marinha entalada na cabeça. Gosta das minhas panquecas e da minha cidra. Se calhar


foi por isso que nunca disse nada. Nunca foi pessoa para provocar cenas.

4. Abri a crêperie quase quatro anos depois de ter voltado. Nessa altura tinha já poupado algum dinheiro, tinha clientela, aceitação. Empregava um rapaz para trabalhar na quinta - um rapaz de Courlé, não era de nenhuma das Famílias - e contratei também uma rapariga, a Lise, para me ajudar a servir. Comecei apenas com cinco mesas - o truque foi sempre não ser muito ambiciosa ao princípio, para não assustar as pessoas -, mas acabei por ter o dobro, mais as que cabiam no terrasse em frente nos dias de sol. Mantive tudo muito simples. O menu continha apenas as panquecas de trigo com recheios variados, um prato principal por dia e uma selecção de sobremesas. Assim, podia encarregar-me perfeitamente sozinha do trabalho na cozinha, deixando a Lise a servir à mesa. Baptizei o lugar de Crêpe Framboise, segundo a especialidade da casa - uma panqueca doce com calda de framboesa e o meu licor caseiro -e sorria para mim mesma ao imaginar a reacção das pessoas se tivessem sabido. Muitos dos meus clientes habituais até começaram a referir-se à crêperie como Chez Framboise, o que me fazia sorrir ainda mais. Foi por essa altura que os homens voltaram a dar-me atenção.


Percebem, é que eu havia-me tornado numa mulher rica segundo os padrões de Les Laveuses. E ainda não tinha cinquenta anos. Para mais, sabia cozinhar e tomar conta da casa. Alguns homens começaram como que a cortejar-me, homens bons e honestos como o Gilbert Dupré e o Jean-Louis Lelassiant, homens preguiçosos como o Rambert Lecoz, que queriam ganhar assim refeições para o resto da vida. Até o Paul, o querido Paul Hourias com o seu descaído bigode manchado de nicotina e os seus silêncios. É claro que uma coisa daquelas estava fora de questão. Essa era uma das tolices a que eu nunca podia sucumbir. E isso também não me causava mais do que um ocasional assomo de arrependimento. Tinha o meu negócio, tinha a quinta da minha mãe; tinha as minhas memórias. Um marido deitaria tudo isso a perder. Não poderia esconder para sempre a minha pretensa identidade, e ainda que ao princípio pudessem perdoar-me as minhas origens, nunca me perdoariam os cinco anos de fraude. Recusei, portanto, todos os pedidos, os mais ousados e os mais tímidos, até que me consideraram primeiro inconsolável, depois impenetrável e depois, por fim, anos mais tarde, demasiado velha. Estava em Les Laveuses quase há dez anos. Durante os últimos cinco começara a convidar a Pistache e a família para virem passar as férias de Verão. Via as crianças crescerem, passando de curiosas criaturas de olhos esbugalhados a pequenos passarinhos coloridos e alegres que esvoaçavam com asas


invisíveis pelos meus campos e pelo meu pomar. A Pistache é uma boa filha. A Noisette, que sempre foi secretamente a minha preferida, parece-se mais comigo: esperta e rebelde, olhos pretos como os meus e um coração bravo e cheio de rancor. Podia ter impedido que ela se fosse embora - bastava uma palavra, um sorriso -, mas não o fiz, temendo talvez que isso me transformasse na minha mãe. As cartas dela são simples e escritas por dever. O casamento dela teve um fim desagradável. Trabalha agora num café nocturno em Montreal. Recusa quando lhe ofereço dinheiro. A Pistache é a mulher que a Reinette podia ter sido, gordinha e afável, carinhosa com os filhos mas feroz se se trata de os defender, tem cabelo castanho macio e olhos tão verdes como a noz que lhe deu o nome. Através dela e dos filhos dela, aprendi a reviver as partes boas da minha infância. Por eles, aprendi outra vez a ser mãe, fazendo panquecas e gordas -salsichas de maçã e especiarias. Fazia-lhes doce de figo, de tomates verdes, de ginja, e também marmelada. Deixava-os brincar com as manhosas cabritas castanhas e que lhes dessem côdeas de pão e bocados de cenouras. Dávamos de comer às galinhas, fazíamos festas aos póneis, apanhávamos azedas para dar aos coelhos. Mostrei-lhes o rio e como chegar aos soalheiros bancos de areia. Avisei-as, com um nó no estômago, dos perigos - as cobras, as raízes, os remoinhos, as areias movediças - e fi-las prometer que nunca, nunca nadariam ali. Mostrei-lhes o bosque mais além, os melhores lugares para apanhar cogumelos, as maneiras de diferenciar o verdadeiro chanterelle do falso, as amoras silvestres que cresciam escondidas entre as silvas. Era esta a infância que as minhas filhas deviam ter tido. Em vez disso, cresceram na costa brava da Côte d'Armor onde o


Hervé e eu vivemos durante algum tempo , praias ventosas, florestas de pinheiros e casas de pedra com telhados de xisto. Tentei ser uma boa mãe, juro que tentei, mas senti sempre que faltava qualquer coisa. Sei agora que era esta casa, esta quinta, estes campos, o Loire preguiçoso e mal-cheiroso de Les Laveuses. Era isto que eu queria para elas, e de novo com as minhas netas. Fazendo-lhes as vontades a elas, fiz as vontades a mim mesma. Gosto de pensar que a minha mãe teria feito o mesmo se tivesse podido. Imagino-a uma avó calma, aceitando as minhas censuras - Francamente mãe, vai acabar por as estragar com mimos - com um impenitente piscar de olho, e já não me parece tão impossível como antes. Ou talvez eu esteja a reinventá-la. Talvez ela fosse mesmo como me lembro dela: uma mulher empedernida que nunca sorria, que me olhava com aquela expressão de simples e incompreensível raiva. A minha mãe nunca conheceu as netas, nunca soube sequer que existiam. Disse ao Hervé que os meus pais estavam mortos e ele nunca questionou essa mentira. O pai dele era pescador e a mãe uma mulher roliça como uma perdiz que ia vender o peixe aos mercados. Deixei que me rodeassem como um cobertor emprestado, sabendo que um dia teria de voltar a enfrentar o frio sem elas. O Hervé era um bom homem, um homem calmo, sem qualquer tipo de espinhos nos quais eu me pudesse picar. Amei-o, não ardente e desesperadamente como amara o Tomas, mas o suficiente. Em 1975, quando ele morreu - fulminado por um raio durante uma pescaria à enguia com o pai -, o meu desgosto estava


misturado com um sentimento de inevitabilidade, quase de alívio. Fora bom durante um tempo, sim. Mas as coisas - a vida - têm de continuar. Voltei a Les Laveuses dezoito meses depois, com a sensação de acordar de um sono longo e obscuro. Pode parecer-lhes estranho que tenha esperado tanto tempo antes de ler o álbum da minha mãe. Foi a minha única herançatirando a trufa Périgord -, e durante cinco anos mal tinha olhado para ele. É claro que conhecia de cor a maioria das receitas e quase nem precisava de as ler, mas mesmo assim. Nem sequer havia estado presente aquando da leitura do testamento. Não lhes sei dizer em que dia é que morreu, mas posso dizer-lhes onde - num lar em Vitré chamado La Gautraye -, de cancro do estômago. Foi lá que a enterraram, no cemitério local, mas só lá fui uma vez. O túmulo dela fica ao lado do muro das traseiras, junto aos caixotes do lixo. Diz apenas Mirabelle DARTIGEN, e umas datas. Notei, com alguma surpresa, que a minha mãe nos mentiu sobre a idade dela. Não sei o que me levou a começar a estudar o álbum com atenção. Foi durante o meu primeiro Verão em Les Laveuses depois da morte do Hervé. Tinha havido uma seca e o nível do Loire estava talvez uns metros abaixo do normal, deixando à mostra umas margens feias e ressequidas como cotos de dentes podres. Havia raízes amareladas pelo sol a espalharem-se dentro da água e crianças brincavam entre elas nos bancos de areia, patinhando descalças nos charcos sujos e acastanhados, espetando paus no lixo que flutuava vindo de cima. Até então, evitara olhar para o álbum, sentindo-me absurdamente sem o direito de o ler, como uma voyeuse, como se a minha mãe pudesse entrar a qualquer momento e ver-me a ler os seus estranhos segredos. A verdade é que não queria saber os segredos dela. Era como entrar à noite num quarto e ouvir os pais a fazer amor - uma voz interior dizia-me que não estava certo, e demorei mais de dez anos para perceber que essa voz


era minha e não da minha mãe. Como já disse, a maior parte do que ela escreveu era incompreensível. A língua - que soava um pouco como italiano e era impronunciável - em que a maior parte do álbum estava escrita era-me completamente desconhecida e, depois de várias tentativas frustradas de a decifrar, desisti. As receitas eram suficientemente claras, escritas ou a azul ou a roxo, mas os gatafunhos enraivecidos, poemas, desenhos e narrativas estavam escritos sem qualquer lógica aparente, desordenadamente, tanto quanto podia ver. Hoje vi o Guilherm Ramondin. Com a sua nova perna de pau. Riu-se quando viu que a R-C estava a olhar para ele. Quando ela perguntou Não doeu?, ele respondeu que tinha tido sorte. O pai dele faz tamancos. Metade do trabalho de um par, ah, ah, e metade das hipóteses de te pisar durante a valsa, minha linda. Não consigo deixar de pensar no aspecto que terá debaixo da perna das calças dobrada e presa por um alfinete. Como um pudim branco mal cozido, atado com um bocado de cordel. Tive de morder o lábio para não desatar a rir. As palavras estão escritas numa letrinha muito pequena por cima de uma receita de pudim branco. Achei o humor destas pequenas anedotas triste e perturbante. Noutros sítios, a minha mãe fala das suas árvores como se fossem seres vivos: Fiquei acordada toda a noite perto da Belle Yvonne; estava doente por causa do frio. E apesar de só se referir a nós com abreviaturas - R-C, Cass e Fra -, não faz qualquer referência ao meu pai. Nunca. Durante muitos anos perguntei-me porquê. Claro, não tinha maneira de saber o que estava escrito nas outras partes, as partes secretas. Era como se o meu pai - o pouco que eu sabia dele - não tivesse existido nunca.


5. Depois veio a história do artigo. Não o li, claro; saiu no tipo de revista que parece ver na comida apenas um acessório de moda - "Este ano comeremos cuscuz, querida, é absolutamente de rigueur" -, pois, para mim, comida é simplesmente comida, um prazer para os sentidos, uma cuidadosa construção efémera, como o fogo de artifício, que às vezes dá trabalho mas que não deve levar-se muito a sério. Não é arte, por amor de Deus! Entra por um lado e sai pelo outro. Enfim, de qualquer maneira, um dia lá estava o artigo, numa dessas revistas de moda. Viagens pelo Loire, ou uma coisa do estilo, um chef conhecido que tinha andado a experimentar restaurantes a caminho da costa. E lembro-me dele; um homenzinho magro que trazia o próprio saleiro e pimenteiro embrulhados num guardanapo e um bloco de notas. Comeu a minha paélla antillaise e a salada quente de alcachofras, e à sobremesa uma fatia do bolo de manteiga e açúcar da minha mãe. Bebeu da minha cidre bouché e um cálice do liqueur de framboise como digestivo. Fez-me imensas perguntas sobre as receitas, quis ver a cozinha e o jardim, ficou espantado quando viu as prateleiras da cave cheias de terrines, conservas e óleos aromáticos - de avelã, de alecrim, de trufas - e os vinagres de framboesa, de alfazema, de maçã amarga--, perguntou-me onde é que eu tinha estudado e quase se zangou quando desatei a rir.


Talvez tenha dito de mais. Sentia-me lisonjeada, percebem? Convidei-o a provar isto e aquilo. Uma fatia de rillettes, outra do meu saucisson sec. Um golo do meu licor de pêra, o poiré que a minha mãe costumava fazer em Outubro com as pêras caídas ao chão por causa do vento, já a fermentarem no solo quente, de tal modo cobertas de vespas que tínhamos de as apanhar com pinças de madeira. Mostrei-lhe a trufa que a minha mãe me deixou, cuidadosamente preservada no óleo como uma mosca em âmbar, e sorri ao ver-lhe os olhos abrirem-se de espanto. - Faz alguma ideia de quanto isso vale? - perguntou-me ele. Sim, sentia-me lisonjeada, vaidosa. E talvez um pouco só, também; feliz por poder falar com aquele homem que falava a mesma língua que eu, que sabia reconhecer as ervas que eu utilizara para temperar um prato quando o provava, e que me dizia que eu era demasiado boa para este sítio, que era um crime estar ali. Talvez eu tenha sonhado um bocadinho. Devia ter adivinhado. O artigo saiu uns meses depois. Alguém mo trouxe, rasgado da revista. Uma fotografia da crêperie, uns quantos parágrafos. "Quem for a Angers em busca da verdadeira cuisine gourmet, poderá dirigir-se ao prestigioso Aux Délices Dessanges. Quem o fizer, perderá contudo a oportunidade de conhecer uma das minhas melhores descobertas durante as minhas viagens pelo Loire..." Nervosa, tentei lembrar-me se lhe dissera algo sobre o Yannick. "Por trás da modesta fachada de uma casa de campo esconde-se um milagre culinário..." Depois uma data de disparates sobre o génio criativo desta senhora que deu nova vida às tradições rurais. Impaciente e com uma crescente sensação de pânico, li o resto à pressa à procura de sinais do inevitável. Uma simples referência ao nome Dartigen e todo o meu cuidadoso trabalho podia desmoronar-se.


Pode parecer que estou a exagerar. Não estou. A guerra é ainda uma memória viva em Les Laveuses. Há pessoas que ainda não se falam desde então. A Denise Mouriac e a Lucile Dupré, o Jean-Marie Bonet e o Colin Brassaud. Não houve aquela história em Angers, aqui há uns anos, da velhota que foi encontrada trancada num quarto? Os pais tinham-na lá fechado em 1945, quando descobriram que tinha colaborado com os alemães. Tinha dezasseis anos. Cinquenta anos depois, quando finalmente o pai dela morreu e a deixaram sair, estava velha e louca. E aqueles homens - velhos de oitenta e noventa anos presos por crimes de guerra? Velhos cegos, velhos doentes e amenizados pela demência, os rostos frouxos e alheados. Impossível imaginar que alguma vez tenham sido jovens.

Impossível imaginar sonhos sangrentos dentro daqueles frágeis crânios esquecidos. Quebrado o invólucro, a essência escapa-nos. O crime adquire vida própria, justificando-se a si mesmo. "Por coincidência, a dona da Crêpe Framboise, Madame Françoise Simon, é parente dos donos do Aux Délices Dessanges..." Cortou-se-me a respiração. Senti como se uma bola de fogo me tivesse bloqueado a garganta, e de repente estava debaixo de água, o rio castanho puxando-me para o fundo das suas águas de línguas de fogo que me queimavam a garganta, os pulmões. "... a nossa própria Laure Dessanges! Estranho que não tenha conseguido descobrir os segredos da sua tia-avó. Eu,


além do mais, prefiro de longe o charme discreto da Crêpe Framboise a qualquer prato elegante - mas pouco consistente que a Laure tenha para oferecer. Respirei de alívio. A sobrinha, não o sobrinho. Tinha escapado. Prometi a mim mesma que não mais me comportaria daquele modo idiota, que nunca mais falaria com críticos de gastronomia. Um fotógrafo de outra revista parisiense veio ver-me na semana a seguir mas recusei falar com ele. Recebi cartas com ofertas para ser entrevistada, às quais nunca respondi sequer. Uma editora escreveu-me a oferecer-se para publicar um livro com as minhas receitas. Pela primeira vez, a Crêpe Framboise foi invadida por pessoas vindas de Angers, por turistas, por pessoas elegantes que chegavam em carros vistosos. Mandava-os embora às dúzias. Tinha os meus clientes habituais e as minhas dez ou quinze mesas; não havia espaço para tanta gente. Tentei comportar-me o mais naturalmente possível. Recusava-me a aceitar reservas. As pessoas começaram a fazer bicha no passeio. Tive de contratar outra empregada mas, de resto, ignorei aquela indesejada atenção. Mesmo quando o homenzinho, o crítico de gastronomia, voltou para falar comigo - para me levar à razão -, não o quis ouvir. Não, não o autorizava a usar as minhas receitas na coluna dele. Não, não ia haver livro nenhum. Fotografias também não. A Crêpe Framboise permaneceria o que era, uma casa de crepes da província. Sabia que, se resistisse durante tempo suficiente, acabariam por deixar-me em paz. Mas nessa altura o mal já estava feito. Agora a Laure e o Yannick sabiam onde encontrar-me. O Cassis deve ter-lhes dito. Tinha-se mudado para um apartamento ao pé do centro da cidade e, se bem que nunca tenha sido um bom correspondente, escrevia-me de vez em


quando. As cartas dele estavam cheias de relatórios sobre a nora famosa e o filho querido. Pois bem, depois da história do artigo e da agitação que causou, não descansaram enquanto não me encontraram. E trouxeram o Cassis, como se fosse um presente. Pareciam pensar que, de algum modo, ficaríamos comovidos por nos vermos depois de tantos anos, mas, apesar de os olhos dele se terem humedecido algo sentimentalmente, os meus permaneceram resolutamente secos. Quase não existiam nele traços do irmão mais velho com quem tinha partilhado tanto; estava gordo agora, as feições perdidas numa massa disforme, o nariz avermelhado, as maçãs do rosto como que vítreas e rachadas, com veias destruídas, um sorriso hesitante. O que havia sentido por ele, a idolatração do herói que aquele irmão mais velho era e que, para mim, conseguia fazer fosse o que fosse - subir à árvore mais alta, enfrentar um enxame de abelhas para lhes roubar mel, atravessar o Loire a nado na parte mais larga -, estava agora reduzido a um vago sentimento de nostalgia, misturado com desprezo. Afinal, tinha sido tudo há tanto tempo. O homem gordo que estava agora à minha porta era um estranho. No início foram muito espertos. Não pediram nada. Mostraram-se preocupados por eu estar a viver sozinha, deram-me presentes - uma misturadora, espantados por eu ainda não ter uma , um casaco, um rádio -, ofereceram-se para me levar a passear. Até me convidaram a ir ao restaurante deles, um sítio enorme como um celeiro, com mesas com tampo de falso mármore cobertas com toalhas aos quadrados, reclamos de néon e estrelas-do-mar secas e caranguejos de plástico colorido presos em redes de pescador nas paredes. Timidamente, fiz um


comentário sobre a decoração. - Pois, Mamie, é o que se chama kitsch - explicou a Laure com gentileza, segurando-me a mão. - Claro que a si esse tipo de coisas não lhe interessa, mas pode crer que em Paris está muito na moda. - E sorriu, mostrando-me os dentes. Tem uns dentes enormes e muito brancos e o cabelo da cor do colorau. O Yannick e ela gostam de se beijar e abraçar em público. Tenho de confessar que me senti envergonhada com tudo aquilo. A refeição... bem, foi uma refeição moderna, suponho. Não sei como julgar esse tipo de coisas. Uma espécie de salada com um molho desenxabido, imensos legumes pequeninos cortados em forma de flores. Talvez tivesse umas endívias, mas era sobretudo a velha alface, rabanetes e cenouras cortadas em formas decorativas. Depois uma posta de abrótea - uma boa posta tenho de admitir, mas muito pequena - com um molho de vinho branco e chalotas e uma folha de hortelã por cima - não me perguntem porquê. Depois uma fatia muito fininha de tarte de pêra, com excesso de molho de chocolate, polvilhada com açúcar em pó e umas tirinhas de chocolate encaracoladas. Olhei furtivamente para o menu e reparei que havia uma data de excessos do tipo um nougat de doces variados num leito de fina massa folhada de fazer crescer a água na boca, envolvido em espesso chocolate preto e servido com uma saborosa calda de damasco. Cá para mim, aquilo soava-me ao velhinho bolo florentine e, quando o vi, não parecia maior que uma moeda de cinco francos. Quem lesse aquele menu, até pensaria que era algo que Moisés trouxera da montanha. E os preços! Cinco vezes mais caro que o meu prato mais caro, e sem contar com o vinho. Claro que eu não paguei nada. Mas estava a começar a pensar que por detrás de toda aquela súbita atenção havia um preço a pagar.


E havia. Dois meses depois chegou a primeira oferta. Mil francos se eu lhes desse a minha receita de paélla antillaise e os deixasse servi-la no restaurante. A "paélla antillaise da Mamie Framboise", como era mencionada no artigo da Hôte Cuisine de Julho de 1991, por Jules Lemarchand. Ao princípio pensei que fosse uma piada. Uma delicada combinação de marisco fresco, subtilmente cozinhado com bananas verdes, ananás, moscatel e arroz de açafrão. Só me deu vontade de rir. Não tinham já receitas suficientes da sua própria autoria? - Não se ria, Mamie - disse o Yannick bruscamente, fixando-me de perto com os brilhantes olhos negros. - Quer dizer, eu e a Laure ficar-lhe-íamos tão gratos. - E sorriu um largo sorriso aberto. - Não seja tímida, Mamie. Só queria que não me chamassem aquilo. A Laure pôs o braço nu e frio em volta dos meus ombros: - Eu diria a todos que a receita é sua. Cedi. Na verdade, não me importo de dar as minhas receitas; afinal de contas, já as tinha dado a bastantes pessoas em Les Laveuses. Dar-lhes-ia a receita da paélla antillaise de graça, mais o que eles quisessem, desde que no menu não fizessem referência a Mamie Framboise. Da outra vez escapara por pouco. Não ia voltar a expor-me daquela maneira. Concordaram logo, sem sequer discutir, e três semanas depois a receita da paélla antillaise da Mamie Framboise saiu na Hôte Cuisine acompanhada por um entusiástico artigo da Laure Dessanges. "Espero poder trazer-vos em breve mais receitas do campo da Mamie Framboise", prometia ela. "Até lá, podem prová-las no Aux Délices Dessanges, Rue des Romains, Angers". Suponho que nunca pensaram que eu leria o artigo. Talvez tivessem pensado que o que eu lhes pedira não era assim tão importante. Quando lhes falei no assunto, pediram desculpa,


como duas crianças apanhadas a fazer uma asneira. O prato estava a ter um sucesso enorme e tinham já planos para criar uma parte do menu só com receitas da Mamie Framboise, incluindo o meu couscous à la provençale, o meu cassoulet trois haricots e as Famosas Panquecas da Mamie. - E repare, Mamie - explicou-me o Yannick todo contente -, o melhor de tudo é que não esperamos nada de si. Só que seja natural, não tem de fazer mais nada. - Eu podia ter uma coluna na revista - acrescentou a Laure -, Os conselhos da Mamie Framboise ou alguma coisa assim. É claro que a Mamie não teria de fazer nada. Eu escreveria tudo. - E sorria-me, como se eu fosse uma criança que precisasse de ser tranquilizada. Mais uma vez trouxeram o Cassis com eles, e também ele era todo sorrisos, se bem que parecesse um pouco confuso, como se tudo aquilo fosse de mais para ele. - Mas eu já vos disse. - Mantinha uma voz calma, forte, para evitar que tremesse. - Já vos tinha avisado. Eu não quero nada disto. Não quero ter nada a ver com isso. O Cassis olhou para mim, espantado. - Mas é uma oportunidade óptima para o meu filho - implorou. - Imagina só como a publicidade o ajudaria. O Yannick tossicou. - O que o pai quer dizer - corrigiu apressadamente -, é que todos podemos beneficiar desta situação. As possibilidades são imensas, se a coisa pegar. Podíamos pôr à venda doces Mamie Framboise, bolachas Mamie Framboise. E é claro, a Mamie receberia uma percentagem considerável. Abanei a cabeça. - Vocês não estão a ouvir o que vos estou a dizer - disse mais alto. - Não quero publicidade. Não quero percentagem nenhuma. Não estou interessada. O Yannick e a Laure olharam um para o outro. - E se estão a pensar no que eu acho que vocês estão a


pensar - disse abruptamente -, que podem fazer tudo sem o meu consentimento, porque, afinal, só precisam realmente de um nome e de uma fotografia, então ouçam com atenção: se eu volto a ouvir falar de uma dessas receitas Mamie Framboise naquela revista, ou noutra revista qualquer, podem ter a certeza que a primeira coisa que faço é entrar em contacto com o editor e vender-Lhe a ele os direitos de todas as receitas que tenho. Raios, até lhas dou de graça! Estava sem fôlego, tinha o coração a bater desmesuradamente de medo e raiva. Mas ninguém consegue desviar a filha de Mirabelle Dartigen. E eles perceberam que eu não estava a brincar. Via-se na cara deles. - Mas, Mamie... - protestaram debilmente. - E parem de me chamar Mamie! - Deixem-me falar com ela - disse o Cassis, levantando-se com dificuldade. Notei que tinha encolhido com a idade, que se afundara aos poucos dentro de si mesmo como um soufflé que sai mal. Até aquele pequeno esforço o fez ficar com falta de ar. Vamos para o jardim. Sentámo-nos num tronco de árvore caído, ao lado do antigo poço, e tive a estranha sensação de repetição, como se o velho Cassis fosse arrancar a máscara da gordura da cara e reaparecer à minha frente, intenso, temerário e selvagem. - Por que é que estás a fazer isto, Boise? - perguntou-me. É por minha causa? Abanei lentamente a cabeça. - Isto não tem nada a ver contigo - respondi -, ou com o Yannick. - Voltei-me para a casa e acrescentei: - Já reparaste que consegui arranjar a quinta. Encolheu os ombros. - Nunca percebi porquê, mas enfim disse ele. - Eu não teria feito nada a este sítio. Arrepio-me


só de pensar que vives aqui. - Olhou para mim com um olhar estranho, penetrante, de quem sabe. - Mas é mesmo teu. - E sorriu. - Foste sempre a filha preferida, Boise. Até te pareces com ela agora. Encolhi os ombros: - Não vais conseguir fazer-me mudar de ideias - disse calmamente. - E agora até falas como ela. - A voz dele continha uma mistura de amor, culpa, ódio. - Boise... Olhei para ele. - Alguém tinha de se lembrar dela. E sabia que não ias ser tu. Fez um gesto de impaciência. - Mas aqui, em Les Laveuses... - Ninguém sabe quem sou - disse eu. - Ninguém consegue relacionar-me. - E sorri subitamente. - Sabes, Cassis, para a maioria das pessoas as velhotas são todas iguais. Anuiu com a cabeça. - E achas que a Mamie Framboise ia mudar as coisas. - Tenho a certeza. Silêncio. - Foste sempre boa a mentir - observou casualmente. - É outra coisa que herdaste dela. A capacidade para dissimular. Eu já sou um livro aberto. - E abriu os braços como para ilustrar. - Bom proveito - disse-lhe, indiferente. Até ele próprio acreditava que era assim. - És muito boa cozinheira, lá isso és - disse, olhando para o pomar por cima do meu ombro, para as árvores carregadas de frutos maduros. - Ela teria gostado. De saber que mantiveste a quinta a funcionar. És tão parecida com ela - repetiu devagar, não como um elogio mas como a simples constatação de um facto, com alguma repugnância misturada com admiração. - Ela deixou-me o livro - disse-lhe. - Aquele com as receitas. O álbum. - A sério? - perguntou de olhos esbugalhados. - Pois, sempre foste a filha preferida. - Não percebo por que insistes em dizer isso - disse,


impaciente. - Se a mãe alguma vez teve uma filha preferida, era a Reinette, não eu. Lembras-te... - Foi ela mesma quem mo disse - explicou. - Disse-me que, dos três, tu eras a única com força, com garra. Aquela cabra ruim parece-se dez vezes mais comigo do que vocês os dois juntos, foi o que ela me disse. Parecia dela. Podia ouvir a voz dela na dele, clara e afiada como um pedaço de vidro. Devia estar zangada com ele, com uma das fúrias dela. Raramente nos batia, mas aquela língua, meu Deus! O Cassis fez uma careta: - E foi mesmo assim que ela o disse, acredita - disse baixinho. - Tão fria, tão brusca, com aquele olhar estranho, como se fosse uma espécie de teste. Como se estivesse à espera de ver o que é que eu fazia a seguir. - E o que é que fizeste? Encolheu os ombros: - Desatei a chorar, claro. Tinha só nove anos. Claro que desatou a chorar, disse a mim mesma. Foi sempre assim. Demasiado sensível debaixo daquela bravura toda. Costumava fugir de casa regularmente, dormia no bosque ou na casa da árvore, sabendo que a mãe não lhe bateria. Ela encorajava secretamente aquele tipo de comportamento, porque assim parecia um desafio, parecia força. Se fosse eu, ter-lhe-ia cuspido na cara. - Diz-me uma coisa, Cassis - tinha-me ocorrido algo e, de repente, quase me faltou o ar de tanto nervosismo -, a mãe... lembras-te se ela falava italiano? Ou português? Alguma língua estrangeira? O Cassis estava perplexo e abanou a cabeça. - Tens a certeza? No álbum... - e contei-lhe das páginas escritas naquela língua estrangeira que eu nunca conseguira decifrar. - Mostra-me. Folheámos o álbum juntos, o Cassis tocando nas páginas


amareladas com um fascínio relutante. Notei que evitava tocar nas partes escritas, embora tocasse amiúde nas outras coisas, nas fotografias, nas flores secas, nas asas de borboleta, nos bocados de tecido presos a algumas páginas. - Meu Deus - disse baixinho. - Nunca me passou pela cabeça que ela tivesse feito uma coisa assim. - Olhou para mim. - E ainda dizes que não eras a preferida. Ao princípio pareceu mais interessado nas receitas do que no resto. Ao folhear o álbum, os dedos dele pareciam ter adquirido alguma da antiga destreza. - Tarte mirabelle aux amandes - murmurou. - Tourteau fromage. Clafoutis aux cerises rouges. Lembro-me destas! De repente, parecia o Cassis que eu conhecia, rejuvenescido pelo entusiasmo. - Está tudo aqui - disse baixinho. - Tudo. Apontei para uma das páginas com a escrita estrangeira. O Cassis estudou-a durante uns momentos e depois desatou a rir. - Não é italiano - disse. - Não te lembras do que é? - Parecia estar a divertir-se imenso com a situação, abanando-se para trás e para a frente. Até as orelhas abanavam, umas grandes orelhas de velho que pareciam cogumelos. - Isto é a língua que o pai inventou. Bilini-enverlini, chamava-lhe ele. Não te lembras? Ele passava o tempo a falar assim. Tentei lembrar-me. Tinha sete anos quando ele morreu. Tinha de me ter ficado alguma coisa, disse para comigo. Mas havia tão pouco. Tudo engolido por uma enorme e esfomeada garganta de escuridão. Consigo lembrar-me do meu pai, mas só em imagens isoladas. Um cheiro a tabaco e traças do casacão velho dele. Os tupinambos de que só ele gostava mas que todos tínhamos de comer uma vez por semana. De como uma vez, sem querer, enfiei um anzol na membrana da mão, entre o polegar e o indicador, e


ele me abraçou e me disse para ser corajosa. Lembro-me da cara dele pelas fotografias, todas cor de sépia. E no fundo da minha memória, algo remoto, cuspido pela escuridão: o pai a palrar connosco numa língua sem sentido, a sorrir, com o Cassis a rir, eu a rir, apesar de eu não ter percebido a piada, e a mãe longe, demasiado longe para nos ouvir, talvez com uma daquelas suas dores de cabeça, um feriado inesperado. - Lembro-me de alguma coisa - acabei por dizer. Explicou-me então, pacientemente. Uma linguagem de sílabas invertidas, de palavras invertidas, de prefixos e sufixos sem sentido. Inoreugin racilpxeini - quero explicar. Nioãni iniesini niani imeuqini - não sei a quem. Por estranho que pareça, o Cassis não estava interessado nos escritos secretos da mãe. Não parava de olhar para as receitas. O resto estava morto. As receitas eram algo que podia compreender, tocar, saborear. Sentia o desconforto dele por estar tão perto de mim, como se as minhas semelhanças com ela pudessem infectá-lo. - Se o meu filho pudesse ver todas estas receitas murmurou. - Não Lhe digas nada - disse eu bruscamente. Começava a conhecer o Yannick. Quanto menos ele soubesse sobre nós, melhor. O Cassis encolheu os ombros. - Claro que não. Prometo. E acreditei nele. Só demonstra que não sou assim tanto como a minha mãe como ele pensava. Confiei nele, Deus me ajude, e durante algum tempo parecia que tinha mantido a promessa. O Yannick e a Laure mantiveram-se à distância, a Mamie Framboise desapareceu de vista e o Verão transformou-se em Outono, deixando um rastro macio de folhas mortas.


6. - Yannick - diz ela - diz que viu o Velho hoje. Veio a correr do rio, meio-louco de excitação e a dizer parvoices. Com a pressa, tinha esquecido a pescaria na margem do rio, e gritei com ele por perder tempo. Olhou para mim com aquela tristeza desamparada no olhar, e pensei que fosse dizer algo, mas não disse. Acho que se sente envergonhado. Sinto-me dura por dentro, gelada. Quero dizer alguma coisa, mas não sei bem o quê. Dá azar ver o Velho, é o que todos dizem, mas nós já tivemos azar de sobra. Talvez seja por isso que sou como sou. Li o álbum com muito cuidado. Em parte porque tinha medo medo do que iria descobrir, talvez, ou daquilo que podia ser obrigada a recordar. Em parte porque a narrativa não era clara, com a ordem dos acontecimentos deliberada e habilmente baralhada, como num truque de cartas bem feito. Quase não me lembrava do dia de que ela falava, sonhei com ele mais tarde. Apesar de bem desenhada, a letra era obsessivamente pequena, e eu ficava cheia de dores de cabeça se a lia durante muito tempo. Nisto também sou como ela. Lembro-me muito bem das dores de cabeça, muitas vezes precedidas por aquilo a que o Cassis chamava "ataques". Tinha piorado quando eu nasci, disse-me ele. O Cassis era o único com idade suficiente para se lembrar de como ela era antes.


Por debaixo de uma receita de cidra, escreve ela: Lembro-me de como era estar na luz. Ser completa. Foi assim durante um tempo antes de o C. nascer. Tento lembrar -me de como era ser tão jovem. Se pelo menos tivéssemos ficado longe daqui, é o que me digo muitas vezes. Nunca voltar a Les Laveuses. O Y. tenta ajudar. Mas já não há amor. Agora tem medo de mim, daquilo que eu possa fazer. A ele. Às crianças. Não há doçura no sofrimento, digam as pessoas o que disserem. No fim, destrói tudo. O Y. fica por causa das crianças. Devia estar-lhe agradecida. Podia ir-se embora e ninguém pensaria mal dele. Afinal, nasceu aqui. Nunca foi pessoa para se queixar, e aguentava a dor o mais que podia até se refugiar no quarto escurecido, enquanto nós, cá fora, andávamos silenciosamente em bicos de pés como gatos prudentes. Mais ou menos de seis em seis meses, sofria um ataque sério que a deixava prostrada durante dias. Uma vez, quando eu era pequena, caiu quando voltava do poço; descaiu para a frente, por cima do balde, enquanto uma mancha de líquido se dispersava pelo solo seco à frente dela e o chapéu de palha escorregava para o lado, revelando a boca aberta e os olhos arregalados. Eu estava sozinha no quintal a apanhar ervas. Primeiro pensei que estava morta. O silêncio, o buraco escuro que era a boca dela a contrastar com o amarelado da cara, os olhos como rolamentos. Pousei o meu cesto muito devagar e dirigi-me para ela. Sob os meus pés, o carreiro parecia estranhamente deformado, como se tivesse posto os óculos de outra pessoa, e tropecei várias vezes. A mãe estava deitada de lado. Uma perna


estava esticada para o lado, a saia preta subira um pouco e deixava ver a botina e parte das meias. Tinha a boca muito aberta. Senti-me muito calma. Está morta, pensei. A intensidade do sentimento que se seguiu a este pensamento foi tão forte que durante algum tempo fui incapaz de o identificar. Uma sensação como a cauda de um cometa brilhante, que me fazia cócegas debaixo dos braços e me virava o estômago como uma panqueca. Horror, desgosto, confusão - procurei dentro de mim e não lhe encontrei o rasto. Em vez disso, uma explosão de fogo de artifício envenenado enchia-me a cabeça de luz. Olhei sem emoção para o cadáver da minha mãe e senti alívio, esperança e uma alegria primitiva e feia. Esta doçura... Sinto-me dura por dentro, gelada. Eu sei, eu sei. Não posso esperar que percebam o que senti. Também a mim me parece grotesco, lembrando-me agora de como ia pensando se não será mais uma falsa memória. É claro que pode ter sido do choque. As pessoas sentem coisas estranhas quando estão em estado de choque. Até as crianças. Sobretudo as crianças, selvagens empertigados que éramos. Fechados no nosso mundo maluco entre o Posto de Observação e o rio, com as Pedras Direitas a vigiarem os nossos rituais. Mas, mesmo assim, foi alegria que senti. Fiquei ali, ao lado dela. Os olhos mortos fixavam-me sem pestanejar. Perguntei-me se devia fechá-los. Havia algo de perturbador naquele olhar redondo de peixe que me fez lembrar o olhar do Velho no dia em que finalmente o enclausurei. Nos lábios luzia-lhe um fio de baba. Aproximei-me um pouco mais.


Subitamente a mão dela ergueu-se e agarrou-me o tornozelo. Não, não estava morta; estava à espera, com os olhos brilhantes de inteligência maldosa. A boca dela trabalhava com dificuldade para enunciar cada palavra com uma precisão cortante. Tive de fechar os olhos para não gritar. - Ouve. Vai buscar a minha bengala. - A voz dela cortava, metálica. - Vai buscá-la. À cozinha. Rápido. Olhei para ela e para a mão que ainda se agarrava ao meu tornozelo. - Senti-o esta manhã - disse monocordicamente. - Já sabia que ia ser um dos grandes. Só vi metade do relógio. Senti o cheiro a laranjas. Vai buscar a bengala. Ajuda-me. - Pensei que ias morrer. - A minha voz soava estranhamente como a dela, límpida e dura. - Pensei que estavas morta. Um dos lados da boca dela moveu-se num trejeito e fez um som estridente, que acabei por reconhecer como sendo o riso dela. Corri para a cozinha com aquele som nos ouvidos, encontrei a bengala - um pau de espinheiro pesado e torcido que ela utilizava para chegar aos ramos mais altos das árvores - e levei-lha. Já estava de joelhos, apoiando-se com as mãos e tentando levantar-se. De vez em quando abanava a cabeça num gesto rápido e impaciente como se estivesse a ser incomodada por vespas. - Muito bem - disse numa voz pastosa como se tivesse a boca cheia de lama. - Agora deixa-me. Diz ao teu pai. Vou... para... o meu quarto. - Depois, apoiando-se com toda a força no pau, conseguiu levantar-se, oscilando mas mantendo-se de pé com um simples esforço de vontade: - Eu disse para te ires embora! E bateu-me desastradamente com a mão como uma garra, quase perdendo o equilíbrio, fustigando o chão com o pau. Desatei


então a correr, só olhando para trás quando já estava fora do seu alcance; escondi-me atrás de um arbusto de framboesas e fiquei a vê-la coxear em direcção à casa, arrastando os pés e deixando grandes círculos no pó atrás de si. Foi a primeira vez que tomei realmente consciência da doença da minha mãe. O pai explicou-nos tudo mais tarde, a história do relógio e das laranjas, enquanto ela jazia em escuridão. Percebemos pouco do que nos contou. A nossa mãe tinha fases más, explicou pacientemente, dores de cabeça tão terríveis que às vezes nem sabia o que estava a fazer. Já alguma vez tínhamos apanhado uma insolação? Alguma vez tínhamos sentido aquela sensação estranha e irreal, imaginando que os objectos estão mais perto do que na realidade estão e os sons mais altos? Olhámos para ele sem compreender. Só o Cassis, que na altura tinha nove anos (eu tinha quatro), pareceu perceber. - A mãe faz coisas - disse o meu pai. - Coisas de que depois não se lembra. Por causa dos ataques. Olhámos para ele com solenidade. Ataques. A minha mente infantil associou a palavra a contos de bruxas. Hansel e Gretel. Os Sete Cisnes. Imaginei a minha mãe deitada na cama, no escuro, de olhos abertos, estranhas palavras deslizando-lhe dos lábios como enguias. Imaginei-a a olhar através das paredes e a ver-me, a ver bem dentro de mim e agitando-se com aquele riso horrível e estridente. Às vezes o pai dormia na cadeira da cozinha quando a mãe tinha ataques. Uma manhã acordámos e fomos encontrá-lo na cozinha a lavar a testa no lava-louça, a água cheia de sangue. Disse-nos que fora um acidente. Um acidente estúpido. Mas eu lembro-me


de ver sangue ainda fresco nas lajes da cozinha. Um pedaço de lenha para o fogão tinha sido deixado em cima da mesa. Também aí havia sangue. - Ela não nos faria mal, pois não, papá? Olhou-me por um momento. Hesitou um segundo, talvez dois. E nos olhos tinha o ar de quem estava a calcular quanto contar e quanto guardar para si. Depois sorriu. - Claro que não, querida. - Que pergunta, parecia dizer o sorriso dele. - A vocês a mãe nunca faria mal. - E abraçou-me; cheirava a tabaco e a traças, e tinha aquele cheiro adocicado de suor antigo. Mas nunca me esqueci daquela hesitação, daquele olhar calculador. Durante um segundo tinha considerado a possibilidade. Dera voltas à cabeça, pensando quanto devia contar-nos. Talvez tivesse pensado que tinha tempo, imenso tempo para nos explicar quando fôssemos mais velhos. Mais tarde nessa noite ouvi barulho vindo do quarto dos meus pais: gritos e o som do vidro a partir-se. Levantei-me cedo e vi que o meu pai dormira toda a noite na cozinha. A mãe levantou-se tarde mas animada - não mais animada do que o costume -, cantando sozinha em voz baixa e monocórdica enquanto deitava tomates verdes para dentro da panela de cobre de fazer doce, estendendo-me um punhado de ameixas amarelas que tirara do bolso do avental. A medo, perguntei-lhe se se sentia melhor. Olhou para mim sem compreender o rosto branco e inexpressivo como um prato limpo. Mais tarde esgueirei-me até ao quarto dela e encontrei o pai a colar papel na janela


partida. Havia vidros da janela e do relógio de parede, agora virado ao contrário no chão. Uma mancha avermelhada secara no papel de parede, mesmo acima da cabeceira da cama, e os meus olhos fixavam-na com uma espécie de fascínio. Consegui distinguir as cinco marcas dos dedos dela onde tinham batido contra a parede, e a mancha maior deixada pela palma. Quando voltei ao quarto umas horas depois, a parede tinha sido lavada e estava tudo arrumado outra vez. Os meus pais não voltaram a mencionar o incidente, os dois comportando-se como se nada de mal tivesse acontecido. Mas à noite, a partir desse dia o meu pai fechava a porta dos nossos quartos à chave e trancava as janelas, quase como se tivesse medo de que algo entrasse.

7. Quando o meu pai morreu, senti muito pouco desgosto verdadeiro. Quando procurava dor, encontrava simplesmente um lugar duro dentro de mim, como um caroço de fruta. Tentei dizer a mim mesma que nunca mais voltaria a ver o rosto dele mas, de qualquer maneira, nessa altura já quase o esquecera. Transformou-se então numa espécie de ícone, de olhos arregalados como os de um santo de gesso, os botões da farda a


brilharem tristemente. Tentei imaginá-lo, caído morto no campo de batalha, jazendo destroçado numa qualquer vala comum, estilhaçado em bocados pela mina que lhe rebentou na cara. Imaginei coisas horríveis, mas para mim eram tão irreais como os pesadelos. O Cassis reagiu pior. Quando recebemos a notícia, esteve fugido durante dois dias, voltando por fim a casa exausto, esfomeado e coberto de picadas de mosquito. Passara as noites do outro lado do Loire, onde o bosque se transforma em pântano. Acho que lhe passou pela cabeça a ideia louca de se alistar no exército, mas depois perdeu-se e andou às voltas durante horas até voltar a encontrar o rio. Tentou vangloriar-se, fingindo que tinha vivido aventuras mas, pela primeira vez, não acreditei nele. Depois disso, começou a meter-se em brigas e voltava frequentemente para casa com a roupa rasgada e as unhas ensanguentadas. Passava horas sozinho no bosque. Nunca chorou pelo pai e sentia-se orgulhoso disso, chegando até a insultar o Philippe Hourias quando este tentou confortá-lo. Por seu lado, a Reinette parecia estar a apreciar a atenção que a morte do pai estava a trazer-lhe. As pessoas traziam-lhe presentes, ou faziam-lhe festas na cabeça quando a encontravam na aldeia. No café, a questão do nosso futuro - e o da nossa mãe - era discutida em voz baixa e séria. A minha irmã aprendeu a fazer com que os olhos ficassem marejados quando queria e a andar sempre com um sorriso de órfã corajosa, que lhe valia prendas de doces e fama de ser a mais sensível da família. A mãe não voltou a falar do pai depois de ele ter morrido. Era como se ele nunca tivesse vivido connosco. A quinta continuou sem ele, e até provavelmente com maior eficiência do que antes. Arrancámos os tupinambos de que só ele gostava


e substituímo-los por espargos e brócolos roxos que sussurravam ao serem embalados pelo vento. Comecei a ter pesadelos nos quais me encontrava enterrada, a apodrecer, assolada pelo cheiro da minha própria decadência. Afogava-me no Loire, sentindo o lodo do leito do rio rastejar sobre o meu corpo morto, e quando tentava agarrar-me a algo, sentia centenas de corpos sobre mim, a balouçar ao sabor das correntes submarinas, apertados uns contra os outros, alguns inteiros, outros em pedaços, sem rosto, maxilares deslocados num sorriso partido, e olhos esbugalhados numa macabra expressão de boas-vindas. Acordava destes sonhos a gritar e a transpirar, mas a mãe nunca acudia. Quem vinha ter comigo era a Reinette e o Cassis, umas vezes impacientes outras vezes compreensivos. Às vezes beliscavam-me e ameaçavam-me em voz baixa, exasperados. Às vezes abraçavam-me e embalavam-me até eu voltar a adormecer. Às vezes o Cassis contava histórias e eu e a Reinette escutávamo-lo de olhos bem abertos à luz do luar. Histórias de gigantes e bruxas, de rosas carnívoras e de montanhas e dragões que se faziam passar por homens. Oh, o Cassis era um bom contador de histórias nessa altura, e apesar de às vezes ser indelicado e de muitas vezes gozar com os meus pesadelos, são sobretudo as histórias dele que recordo agora, isso e os seus olhos a brilhar.


8. Depois de o pai morrer, aprendemos a conhecer os ataques da mãe quase tão bem como ele. Quando começavam, ela falava de um modo algo vago e sofria de uma tensão nas têmporas, o que se notava nos movimentos rápidos e impacientes da cabeça. Às vezes tentava agarrar alguma coisa - uma colher ou uma faca e não conseguia, batendo com a mão na mesa ou na banca da cozinha como se procurasse os objectos no escuro. Às vezes perguntava Que horas são?, apesar de o relógio da cozinha estar mesmo à sua frente. E, nestas alturas, sempre a mesma pergunta, desconfiada e cortante: "Algum de vocês trouxe laranjas para dentro de casa?". Nós abanávamos a cabeça em silêncio. As laranjas eram raras; só ocasionalmente as comíamos. Por vezes víamos algumas no mercado de Angers - gordas laranjas espanholas, com a casca rugosa e grossa, ou as de casca mais fina, as sanguíneas do Sul, abertas ao meio para revelar a polpa avermelhada. A nossa mãe mantinha-se sempre afastada dessas bancas, como se ficasse doente só de as ver. Uma vez, quando uma mulher simpática nos ofereceu uma laranja aos três, a mãe só nos deixou entrar em casa depois de termos lavado as mãos e esfregado as unhas com essência de limão e alfazema. Mesmo assim, dizia que ainda sentia o cheiro do sumo da laranja, e deixou as janelas


abertas durante dois dias até o cheiro finalmente desaparecer. É claro que as laranjas dos ataques eram puramente imaginárias. O cheiro anunciava-lhe as enxaquecas e algumas horas depois estava deitada no escuro com um lenço embebido em alfazema a tapar-Lhe o rosto, e com os comprimidos à mão. Os comprimidos, soube mais tarde, eram morfina. Ela nunca explicava nada. A informação que íamos juntando era fruto de uma demorada observação. Quando sentia aproximarse uma dor de cabeça, fechava-se simplesmente no quarto sem dizer nada e deixava-nos entregues a nós próprios. Por isso, víamos os seus ataques como uma espécie de férias - que podiam durar umas horas, um dia inteiro ou até dois - durante as quais fazíamos o que queríamos. Eram dias maravilhosos que eu desejava que durassem para sempre; dias passados a nadar no Loire ou a pescar lagostins nas partes mais baixas do rio, a explorar a floresta, a comer amoras ou ameixas até ficarmos com dores de barriga, a lutarmos, a atirarmos batatas uns aos outros e a decorar as Pedras Direitas com os troféus das nossas aventuras. As Pedras Direitas eram o que restava de um antigo ancoradouro há muito levado pela corrente. Cinco pilares de pedra, um mais pequeno que os outros, emergindo da água. Cada um tinha de lado um agrafo de metal que chorava lágrimas de ferrugem para dentro da pedra meia-podre onde outrora tinham estado presas as tábuas. Era nessas saliências de metal que pendurávamos os nossos troféus: grinaldas bárbaras feitas de cabeças de peixe e flores, sinais escritos em código, pedras mágicas e esculturas feitas da madeira que flutuava no rio. O último pilar ficava em águas já profundas, num ponto onde a corrente era particularmente forte, e era aí que escondíamos a


nossa Caixa do Tesouro, uma caixa de latão embrulhada num oleado e presa a uma corrente. A corrente estava presa a uma corda que, por sua vez, estava atada ao pilar ao qual todos chamávamos a Pedra do Tesouro. Para alcançar o tesouro era necessário nadar primeiro até ao último pilar - uma façanha nada fácil; depois, segurando-nos ao pilar com uma mão, içar com a outra o baú, desatá-lo e regressar à margem sem o largar. Todos nós concordávamos que só o Cassis conseguia fazer isto. O tesouro era composto sobretudo por coisas a que um adulto não reconheceria qualquer valor: a arma das batatas, pastilha elástica embrulhada em papel vegetal para não secar, um chupa-chupa, três cigarros, algumas moedas dentro de uma carteira velha, fotografias de actrizes que, como os cigarros, pertenciam ao Cassis, e alguns números de uma revista ilustrada especializada em histórias macabras.

Às vezes o Paul Hourias vinha connosco nas nossas excursões de caça, como o Cassis lhes chamava, mas nunca foi verdadeiramente iniciado nos nossos segredos. Eu gostava do Paul. O pai dele vendia isco na estrada para Angers e a mãe costurava para fora. Era o único filho de pais com idade suficiente para serem seus avós e passava a maior parte do tempo a evitá-los. O Paul vivia como eu queria viver. No Verão, passava noites inteiras no bosque sem que a família dele se preocupasse. Sabia onde encontrar cogumelos e sabia fazer assobios de ramos de salgueiro. Tinha muito jeito com as mãos, mas era lento a falar e gaguejava na presença de adultos. Apesar de ter quase a mesma idade que o Cassis, não ia à escola; em vez disso, trabalhava na quinta do tio, onde ajudava a mugir as vacas e a levá-las a pastar. Era paciente comigo, mais do que o Cassis, nunca fazia pouco da minha


ignorância nem me desprezava por eu ser mais pequena. É claro que agora está velho. Mas às vezes acho que, de todos nós, foi ele quem menos envelheceu.


SEGUNDA PARTE O Fruto Proibido 1. Já em Junho, prometia vir a ser um Verão quente e o Loire estava baixo e escuro, cheio de lodo e areias movediças. Também havia cobras, mais do que o que era normal, umas serpentes castanhas e de cabeça achatada que se escondiam à sombra debaixo da lama fria. A Jeannette Gaudin foi mordida por uma destas numa tarde quente quando nadava no rio e uma semana depois enterraram-na no cemitério da igreja de São Benedito, debaixo de uma pequena cruz e um anjo. "Filha Amada... 1934-1942". Era três meses mais nova que eu. De repente, senti-me como se um enorme buraco se tivesse aberto sob os meus pés, como uma boca gigante. Se a Jeannette podia morrer, então eu também podia. Qualquer pessoa podia. O Cassis olhava para mim com alguma troça do alto dos seus treze anos: "É normal que as pessoas morram em tempo de guerra, minha estúpida. Crianças também. As pessoas morrem em qualquer altura". Tentei explicar e não consegui que morressem soldados - até o meu próprio pai -, era uma coisa. E que morressem civis durante um bombardeamento, se bem que em Les Laveuses


tenha havido pouco disso. Mas isto era diferente. Os meus pesadelos pioraram. Passava horas a olhar o rio, com a minha rede, para apanhar as malditas cobras castanhas nos baixios, esmagando-lhes as cabeças achatadas e astutas com uma pedra e pregando-lhes os corpos às raízes expostas na margem. 49 Passada uma semana havia já mais de vinte cobras escorrendo frouxamente das raízes, e o mau cheiro - a peixe e estranhamente doce, como algo mal fermentado - era insuportável. O Cassis e a Reinette ainda estavam na escola frequentavam ambos o collège em Angers - e foi o Paul quem me encontrou com uma mola no nariz por causa do cheiro enquanto remexia obstinadamente com a minha rede a sopa de lama da margem. Estava de calções e sandálias e trazia o cão, Malabar, por uma trela feita de cordel. Indiferente, olhei para ele e voltei-me para a água. O Paul sentou-se ao meu lado e o Malabar deixou-se cair no chão, a ofegar. Ignorei-os a ambos. Por fim o Paul falou. - O q-qu'é q-que foi? Encolhi os ombros. - Nada. Estou só a pescar, mais nada. Outro silêncio. - C-cobras. - A sua voz era cuidadosamente não-modulada. Eu anuí, quase em desafio. - E depois? - E depois nada. - Fez festas na cabeça do Malabar.Podes fazer o que quiseres. - Seguiu-se mais silêncio, que se arrastou entre nós como um caracol de corrida. - Gostava de saber se dói - acabei por dizer. O Paul considerou o que eu tinha dito, como se soubesse de que é que eu estava a falar, e depois abanou a cabeça. - Num


sei. - Dizem que o veneno entra no sangue e não sentimos nada. É como adormecer. Olhou para mim sem querer comprometer-se, nem concordando comigo nem me contradizendo. - O C-Cassis diz qu'a Jeannette Gaudin deve ter visto o Velho - disse. - É por isso que foi m-mordida, sabes. A maldição do Velho. Abanei a cabeça. O Cassis, ávido contador de histórias e leitor de lúcidas revistas de aventuras com títulos como A Maldição da Múmia ou Enxame Selvagem, estava sempre a dizer coisas daquele género. - Cá para mim, o Velho nem existe - disse eu em ar de desafio. - Eu nunca o vi. E depois, as maldições não existem. Toda a gente sabe isso. O Paul olhou para mim com olhos tristes e indignados: "Claro qu'existem! E o Velho anda mesmo por aí. 50 O m-meu p-pai viu-o uma vez, muito antes d eu ter nascido. Nunca tinha visto um lúcio tão grande. Uma semana depois, c-caiu da b-bicicleta e partiu a perna. Até o teu pai... Interrompeu-se, baixando os olhos subitamente envergonhado. - O meu pai, não - respondi logo. - O meu pai morreu na guerra. De repente, conseguia imaginá-lo perfeitamente a marchar, um jovem individual numa linha infinita, em marcha imparável em direcção a um horizonte escancarado. "Ele está lá" - disse, teimoso. O Paul abanou a cabeça. "Mesmo no ponto mais fundo do rio. Deve ter uns quarenta anos, se calhar cinquenta. Os lúcios vivem muitos anos, os que chegam a velhos. Ele é escuro


como a lama onde vive. E é esperto, esperto como tudo. É capaz de apanhar um pássaro na borda de água como s'engolisse um pedaço de pão. O meu pai diz qu'ele não é nenhum lúcio mas um fantasma, um assassino, condenado pra sempre a vigiar os vivos. É por isso qu'ele nos odeia. Para o Paul, era um longo discurso e, apesar de não querer, ouvi-o com interesse. O rio estava cheio de histórias do arco-da-velha, mas a história do Velho era a mais antiga: o lúcio gigante, os lábios fundos e brilhantes com os anzóis dos pescadores que tentaram apanhá-lo. No olhar, uma inteligência maléfica. Na barriga, um tesouro de origem desconhecida e de valor incalculável. - O meu pai diz que s'ele for apanhado, tem de conceder um desejo a quem o apanhar - disse o Paul. - Ele diz que ficava contente c'um milhão de francos e uma espreitadela à roupa interior da Greta Garbo. - Sorriu timidamente, um sorriso que parecia dizer: isto é coisa de adultos. Pensei no que ele tinha dito. Dizia para comigo que não acreditava em maldições ou em desejos, mas não conseguia desfazer-me da imagem do velho lúcio. - Se ele anda por aqui, podíamos apanhá-lo - disse-lhe abruptamente. - O rio é nosso. Podíamos apanhá-lo. De repente fez-se luz - não só era possível como imperativo. Pensei nos sonhos que me perseguiam desde que o pai morrera; sonhos em que morria afogada, em que rolava cega pelo lodo escuro do Loire sentindo o toque pegajoso de carne morta à minha volta, em que gritava e sentia o grito a ser empurrado para dentro da minha garganta, em que me afogava em mim mesma. 51


De alguma maneira, o lúcio personificava tudo isso e, apesar de o meu raciocínio não ser certamente assim tão analítico, uma coisa tornou-se subitamente certa: se eu apanhasse o Velho, alguma coisa podia acontecer. O que podia ser, não conseguia articular, nem para mim mesma. Mas alguma coisa ia ser, pensei com uma crescente e incompreensível excitação. Alguma coisa. O Paul olhou-me, espantado. - Apanhá-lo? - repetiu. - Para quê? - O rio é nosso - respondi, teimosa. - Não devia estar no nosso rio. - O que eu queria dizer era que o lúcio me ofendia de uma maneira oculta, visceral, muito mais do que as cobras: a esperteza dele, a idade, a complacência maldosa. Mas não me ocorria maneira de o dizer. Era um monstro. - E depois, nunca ias conseguir - continuou o Paul. - Quer dizer, já montes de gente tentou. Gente crescida. Com redes e linhas e tudo. Mas ele morde as redes. E as linhas... parte-as logo ao meio. É muito forte, percebes. Mais que nós os dois juntos. - Não precisa de ser assim - insisti. - Podíamos apanhá-lo numa armadilha. - Tinhas de ser muito esperta pra conseguir enganar o Velho - disse o Paul. - E depois? - Estava a começar a ficar zangada e virei-me para ele cerrando os punhos e o rosto em frustração. - E nós vamos ser espertos. O Cassis, a Reinette, eu e tu. Os quatro juntos. A não ser que tenhas medo. - Eu não tenho m-medo, mas é im-impossível. - Começou mais uma vez a gaguejar, como sempre quando se sentia sob pressão. Olhei para ele. - Bem, se não quiseres ajudar, faço-o sozinha. E vou apanhá-lo. Vais ver. - Não sei porquê, tinha os olhos a arder. Limpei-os furtivamente com a palma da mão. Via


que o Paul estava a olhar para mim de maneira estranha, mas ele não disse nada. Irritada, comecei a dar puxões à rede que estava ainda dentro dos baixios aquecidos. - Também é só um velho peixe - disse. - Dou mais um puxão. - Vou apanhá-lo e pendurá-lo nas Pedras Direitas. - Mais um puxão. - Ali mesmo apontei para a Pedra do Tesouro com a minha rede molhada. Ali mesmo - repeti em voz baixa, cuspindo para o chão para demonstrar que estava a falar a sério. 52 2. A mãe sentiu o cheiro de laranjas durante todo aquele mês quente. Mais ou menos uma vez por semana, se bem que nem sempre tinha depois um ataque forte. Enquanto o Cassis e a Reinette estavam na escola, eu corria logo para o rio, quase sempre sozinha, mas às vezes com o Paul quando ele conseguia esgueirar-se das tarefas que tinha de fazer na quinta., Tinha atingido uma idade difícil e, separada dos meus irmãos durante a maior parte daqueles longos dias, cresci atrevida e insolente, fugindo quando a mãe me mandava fazer qualquer coisa, faltando às refeições e voltando para casa tarde e toda suada, com a roupa às riscas amarelas devido à poeira da borda do rio e o cabelo todo despenteado e húmido de suor. Já devo ter nascido assim. rebelde, mas naquele Verão dos meus nove anos tornei-me ainda mais. Eu e a mãe acossávamo-nos uma à outra, como gatos demarcando o seu território. Cada toque era uma faísca que silvava de electricidade estática. Cada palavra podia transformar-se em insulto, cada conversa num campo minado. Durante as refeições sentávamo-nos uma em frente


da outra, de expressão carrancuda sobre a sopa e as panquecas. O Cassis e a Reine movimentavam-se à nossa volta como pretendentes assustados, sempre silenciosos e de olhos esbugalhados. Não sei por que é que estávamos sempre a provocar-nos uma à outra; talvez porque eu estava a crescer. A proximidade da adolescência fazia-me ver com olhos diferentes a mulher que me tinha aterrorizado durante a infância. Via-lhe os cabelos brancos, as rugas aos cantos da boca. 53

Via agora, com uma ponta de desdém, que não passava de uma mulher que estava a envelhecer e cujos ataques a faziam ir desamparada para o quarto. E ela lançava-me o isco. De propósito, assim o pensava eu. Agora, acho que ela simplesmente não o podia evitar, que isso fazia parte da sua natureza infeliz, como fazia parte da minha desafiá-la. Durante aquele Verão, sempre que ela abria a boca, parecia que era para me criticar. As minhas maneiras, o meu vestido, a minha aparência, as minhas opiniões. Para ela, era tudo censurável. Eu era desleixada, não dobrava a roupa que deixava aos pés da cama todas as noites. Dobrava as costas quando andava; ia ficar marreca se não tivesse cuidado. Era gulosa, empanturrava-me de fruta do pomar. Se não era isso, era porque tinha pouco apetite; que estava a ficar magra e fininha. Por que é que eu não era mais como a Reine-Claude? Aos doze anos, a minha irmã já amadurecera. Doce e macia como o mel escuro, com olhos cor de


âmbar e cabelo outonal, era como todas aquelas heroínas dos livros de contos, como todas aquelas deusas do ecrã como eu sempre imaginei e admirei. Quando éramos mais pequenas, ela deixava-me entrançar-lhe o cabelo, e eu punha-lhe flores e bagas nos espessos cabelos e circundava-lhe a cabeça com hera e ela parecia então uma fada dos bosques. Agora havia algo de quase adulto na sua postura, na sua doçura passiva. Eu parecia um sapo ao lado dela, dizia-me a mãe, um sapo pequenino, feio e esquelético com aquela minha boca larga e tristonha e os meus pés e mãos grandes. Lembro-me particularmente bem de um desses conflitos à hora da refeição. A comida era paupiettes, aqueles pequenos pacotes de carne de vitela e de porco, atados com um cordel e cozinhados num espesso guisado de cenouras, chalotas, tomates e vinho branco. Eu olhava para o meu prato com um desinteresse tristonho. O Cassis e a Reinette não estavam a olhar para nada, cuidadosamente desprendidos daquilo. A mãe cerrou os punhos, furiosa com o meu silêncio. Depois da morte do pai, não havia ninguém que acalmasse a raiva dela, que estava sempre ali à espreita, a ferver sob a superfície. Raramente nos batia - raro naquela época, quase anormal -, se bem que isso não fosse, penso eu, por sentir demasiado carinho por nós. Acho que não nos batia porque receava começar e não conseguir parar. - Endireita as costas, por amor de Deus! - A voz dela era tão ácida como uma amora verde. - Já sabes que se não te


endireitas ficas marreca. 54 Deitei-lhe um olhar rápido e insolente e pus os cotovelos em cima da mesa. - Tira os cotovelos de cima da mesa - disse ela quase em tom de queixa. - Olha para a tua irmã. Olha para ela. Ela senta-se com as costas todas tortas? Ela comporta-se como um lavrador mal-encarado? Nunca me ocorreu ressentir-me da Reinette. Era da minha mãe que eu me ressentia, e mostrava-lho com cada movimento do meu corpo esguio e jovem. Dava-lhe todas as desculpas para me perseguir. Ela queria a roupa estendida nas cordas pelas bainhas: eu estendia-a pelos colarinhos. Os frascos de doce na despensa tinham de estar com o rótulo para a frente: eu virava-os ao contrário. Esquecia-me de lavar as mãos antes de ir para a mesa. Mudava a ordem das panelas penduradas na cozinha, da maior à mais pequena. Deixava a janela da cozinha aberta para que quando ela abrisse a porta a corrente de ar a fizesse fechar com estrondo. Infringia centenas das pequenas regras pessoais dela, e ela reagia a cada infracção com a mesma raiva descontrolada. Aquelas regras mesquinhas eram importantes para ela porque era assim que nos controlava. Sem elas, era como nós, órfã e perdida. É claro que na altura não me dava conta disso. "Não passas de uma cabra teimosa, sabias?", dizia ela por fim. "Teimosa como tudo". Não empurrando o prato que tinha à frente. Não havia hostilidade nem ternura na sua voz, meramente um desinteresse frio. "Eu também era assim",


dizia. Foi a primeira vez que a ouvi falar da sua própria infância. "Na tua idade". O seu sorriso era retesado e sem alegria. Era-me impossível imaginá-la como tendo sido jovem. Apunhalei a minha paupiette envolta no seu molho esfiado. "Queria sempre discutir com toda a gente também", disseme a minha mãe. "Teria sacrificado tudo ou magoado qualquer pessoa só para provar que eu é que tinha razão. Para ganhar". Olhou para mim com atenção, com curiosidade, com aqueles olhos escuros como pontinhos no alcatrão. "Do contra, é o que tu és. Sabia que ias ser assim mal nasceste. Contigo começou tudo outra vez, pior do que nunca. Gritavas toda a noite e não comias, e eu deitada e acordada, com as portas fechadas e a cabeça a latejar". Não lhe respondi. Passado algum tempo ela desatou a rir de modo algo desdenhoso e começou a levantar a mesa. Foi a última vez que falou da guerra entre nós as duas, embora essa guerra estivesse contudo longe do fim. 55 3. O posto de Vigia era um enorme olmo na margem do Loire, meio-inclinado sobre a água, um emaranhado de raízes grossas saídas das profundezas da terra seca da margem. Era muito fácil subi-lo, até para mim, e dos ramos mais altos via Les Laveuses inteira. O Cassis e o Paul tinham construído uma casinhota primitiva lá no cimo - uma plataforma e uns ramos dobrados para fazer de telhado -, mas era eu quem passava mais


tempo no abrigo. A Reinette não gostava de subir até lá acima, apesar de termos posto uma corda com nós para facilitar a subida, e o Cassis quase deixara de lá ir; portanto, tinha muitas vezes a árvore só para mim. Ia para lá para pensar e para observar a estrada, onde por vezes via os alemães passarem de jipe - ou, mais frequentemente, de mota. É claro que havia muito pouco que interessasse aos alemães em Les Laveuses. Não havia quartéis ou escolas ou edifícios públicos que eles pudessem ocupar. Em vez disso, instalaramse em Angers com apenas algumas patrulhas nas aldeias vizinhas e, tirando os jipes na estrada, só os víamos quando vinham em grupo, uma vez por semana, requisitar produtos da quinta dos Hourias. A nossa quinta não era tão frequentada uma vez que não tínhamos vacas, só alguns porcos e cabras. A nossa maior fonte de rendimento era a fruta, e a estação mal começara. Vinham dois soldados uma vez por mês, sem muita vontade, mas o melhor do que tínhamos estava bem escondido e a mãe mandava-me sempre para o pomar quando eles chegavam. 56 Mesmo assim, aqueles uniformes cinzentos despertavam-me a curiosidade quando às vezes os via do Posto de Vigia, onde me sentava a atirar bombas imaginárias aos jipes quando eles passavam. Não era verdadeiramente hostil, nenhuma das crianças era; éramos apenas curiosos e repetíamos os insultos que os nossos pais nos ensinavam - boche imundo ou porco nazi apenas por instinto para o mimetismo. Eu não fazia ideia do que se passava na França Ocupada e muito menos de onde ficava


Berlim. Uma vez requisitaram o violino do Denis Gaudin, o avô da Jeannette. Ela contara-me isso no dia seguinte. Estava a escurecer e as portadas já estavam fechadas quando ela ouvira bater à porta. Abrira e vira um oficial alemão. O oficial dirigiu-se ao avô dela, num francês bem-educado e um pouco rebuscado. "Monsieur, disseram-me... que... o senhor... tem... um violino. Eu... preciso dele". Ao que parecia, alguns dos oficiais tinham decidido formar uma banda. Imagino que até os alemães precisavam de passar o tempo de alguma maneira... O velho Denis Gaudin olhou para ele. "Um violino, mein Herr, é como uma mulher", respondeu, simpático. "Não se empresta". E, muito delicadamente, fechou a porta. Fez-se silêncio enquanto o oficial digeria aquilo. A Jeannette olhou para o avô, espantada. Então, do outro lado da porta ouviram o oficial a rir-se e a repetir: "Wie eine Frau! Wie eine Frau!". O oficial nunca mais voltou e o Denis manteve o violino até muito mais tarde, quase até ao fim da guerra. 57 4. Pela primeira vez naquele Verão, contudo, o meu interesse principal não era os alemães. Passei a maior parte dos dias e grande parte das noites a conceber maneiras de apanhar ao Velho. Estudei as várias técnicas de pesca. Linhas para as enguias, caixas para os lagostins, redes de arrasto, redes normais, isco vivo e isco flutuante. Fui falar com o Hourias e não descansei enquanto não me ensinou tudo o que sabia sobre


engodo. Desenterrava minhocas das margens do rio e aprendi a mantê-las na boca para que permanecessem aquecidas. Apanhava varejas e enrolava-as em linhas brilhantes de anzóis como uma estranha bugiganga. Fiz armadilhas de salgueiro e linha e iscava-as com comida. Um simples toque na linha da armadilha e esta fechava-se imediatamente, e toda aquela engenhoca era ejectada para fora de água quando o ramo sob ela era solto. Estiquei pedaços de rede ao longo dos canais mais estreitos entre os bancos de areia. Deixei linhas com bolinhas de carne podre presas na margem do outro lado. Apanhei assim um sem-número de percas, de trutas pequenas, de gábios, de vairões e de enguias. Alguns levava para casa para comer e ficava a ver a mãe a prepará-los. A cozinha transformara-se no único local neutro da casa, um local onde a nossa guerra se suspendia brevemente. Costumava pôr-me ao lado dela, a ouvir o que dizia daquela maneira monótona com que ela falava, e juntas fazíamos a boullabaisse angevine dela - uma caldeirada com cebola roxa e tomilho - e perca assada com estragão e cogumelos bravos. Alguns dos peixes que apanhava, deixava nas Pedras Direitas a servir de enfeites malcheirosos: um aviso e um desafio. 58 Mas o Velho não apareceu. Aos domingos, quando a Reine e o Cassis não estavam na escola, tentava infundir-lhes a minha paixão pela pescaria. Mas desde que a Reine-Claude tinha sido admitida no collège no princípio desse ano, os dois tinham-se transformado numa raça à parte. O Cassis tinha cinco anos a


mais que eu e mais três que a Reine. E contudo, para mim eles pareciam muito mais próximos um do outro do que isso, iluminados já pela luz da idade adulta, tão parecidos, com as suas faces douradas e maçãs do rosto bem demarcadas, que quase podiam ser gémeos. Era frequente andarem em segredinhos, a rirem baixinho, a falarem de amigos que eu nunca conhecera, a rirem de piadas que só eles entendiam. As suas conversas eram pontuadas por nomes desconhecidos. Monsieur Toupet, Madame Froussine, Mademoiselle Culourd. O Cassis tinha alcunhas para todos os professores e imitava-lhes os tiques e as vozes para fazer a Reine rir. Outros nomes, segredados sob o manto da noite quando eu dormia, pareciam ser os dos amigos. Heinemann. Leibniz. Schwartz. Aqueles nomes provocavam um riso estranho, um riso malicioso com uma ponta de culpabilidade e histeria. Eram nomes que eu não reconhecia, nomes estrangeiros e, quando lhes fazia perguntas sobre eles, o Cassis e a Reine-Claude limitavam-se a rir e desatavam a correr, de mão dada, em direcção ao pomar. Esta esquiva perturbou-me mais do que eu poderia ter imaginado. O Cassis e a Reine passaram de meus iguais a conspiradores. De repente, passaram a considerar infantil tudo o que fizéramos juntos. O Posto de Vigia e as Pedras Direitas eram só minhas. A Reine-Claude dizia que não queria ir pescar porque tinha medo das cobras. Ficava então no quarto a criar penteados complicados e a suspirar em frente de fotografias de actrizes de cinema. O Cassis ouvia-me sem prestar muita atenção quando eu lhe contava, excitada, os meus planos, e


depois arranjava desculpas para me deixar sozinha: uma cópia a fazer, verbos em latim que o Monsieur Toubon mandara estudar. Que quando fosse mais velha entenderia. Faziam o possível por me manter à distância. Marcavam encontros comigo e depois não apareciam, mandavam-me ir fazer recados que ninguém pedira, 59 prometiam ir ter comigo ao rio e depois iam sozinhos para o bosque enquanto eu esperava, com lágrimas de raiva queimando-me os olhos. Quando os confrontava, fingiam-se inocentes, levando a mão à boca em sinal de falso espanto "Tínhamos mesmo combinado ao pé do olmo grande? Tinha a certeza de que tínhamos dito o segundo carvalho", - e depois riam-se quando eu me afastava. Só muito raramente iam nadar ao rio. A Reine-Claude entrava na água com cuidado e sempre só nas partes mais fundas e límpidas, onde era improvável haver cobras. Eu tentava atrair-Lhes a atenção dando mergulhos extravagantes da margem e ficando debaixo de água durante tanto tempo que a Reine-Claude começava a gritar que me afogara. Mas mesmo assim sentia que se afastavam pouco a pouco, e a solidão inundoume. O Paul foi o único que se manteve leal naquela altura. Apesar de ser mais velho que a Reine e quase da mesma idade que o Cassis, parecia mais novo, menos sofisticado. Quando eles estavam por perto, era incapaz de se expressar bem e sorria envergonhado quando eles falavam da escola. O Paul mal


sabia ler e escrevia com dificuldade, com a letra a custo legível de uma criança muito mais nova. Mas gostava de histórias, e quando vinha ter comigo ao Posto de Vigia eu lia-Lhe coisas das revistas do Cassis. Costumávamos sentarnos na plataforma e, enquanto eu Lhe lia O Túmulo da Múmia ou A Invasão de Marte, ele aparava um pedaço de madeira com o canivete. Trazíamos pão, do qual ele cortava uma fatia de vez em quando, e às vezes trazia rillettes embrulhadas em papel vegetal ou meio queijo camembert. A este nosso pequeno banquete acrescentava eu um punhado de morangos ou um dos queijos de cabra enrolados em cinza a que a mãe chamava petits cendrés. Do Posto podia ver todas as minhas linhas e armadilhas e verificava-as de hora a hora, voltando a armá-las se necessário e recolhendo o peixe pequeno. - Qual vai ser o teu desejo quando o apanhares? Por esta altura o Paul acreditava cegamente que eu apanharia o Velho, e a pergunta foi feita com uma espécie de admiração relutante. Pensei e disse: - Não sei. - Comi um bocadinho de pão e rillettes. - Não vale a pena estar a fazer planos até o ter apanhado. E isso ainda pode demorar. 60 Era tempo que eu estava disposta a esperar. Já íamos na terceira semana de Junho e o meu entusiasmo não diminuíra. Bem pelo contrário. E a indiferença do Cassis e da Reine-Claude servira só para aumentar a minha teimosia. O Velho era um talismã, um talismã negro e furtivo, e se conseguisse alcançá-lo, poderia endireitar tudo o que estava mal. Iam ver. Quando apanhasse o Velho, todos me admirariam. O Cassis, a Reine-Claude... e queria ver a cara da mãe, queria que ela me visse, se calhar ia cerrar os punhos de raiva... ou


sorrir com uma doçura especial e estender-me os braços abertos. Mas a minha fantasia parava aqui; não me atrevia a imaginar mais nada. - E depois - disse eu com uma despreocupação estudada -, não acredito em desejos. Já te tinha dito. - Se não acreditas em desejos - retorquiu o Paul sarcasticamente -, por que é que andas a tentar apanhá-lo? Abanei a cabeça. - Não sei - disse por fim. - Para ter alguma coisa que fazer. Ele riu-se. - É mesmo teu, Boise - disse entre gargalhadas. - É mesmo teu, não há dúvida! Andar a tentar apanhar o Velho para ter alguma coisa que fazer! - E riu-se outra vez, rebolando perigosamente perto da borda da plataforma ao ritmo daquela incompreensível hilaridade até que o Malabar, atado à árvore por um cordel, desatou a ladrar e nós nos calámos antes que alguém nos descobrisse. 61 5. Foi pouco depois desse dia que encontrei o bâton debaixo do colchão da Reine-Claude. Era um sítio estúpido para esconder fosse o que fosse, realmente - qualquer pessoa podia tê-lo encontrado, inclusive a mãe -, mas a Reinette nunca teve muita imaginação. Era a minha vez de fazer as camas e aquilo devia ter-se enfiado entre o lençol de baixo porque foi aí que o encontrei, entalado entre a borda do colchão e a tábua da cama. No início não reconheci aquilo. A mãe nunca usava maquilhagem. Era um pequeno cilindro dourado, como uma


caneta grossa. Rodei a tampa, que resistiu um pouco, e abri-o. Estava a experimentar cuidadosamente no braço quando senti uma respiração atrás de mim e a Reinette me agarrou e me virou. Tinha o rosto pálido e contorcido. - Dá cá isso! - silvou. - É meu! - Arrancou-me o bâton das mãos mas caiu ao chão e rolou para debaixo da cama. Baixouse logo para o apanhar, com a cara muito vermelha. - Onde arranjaste isso? - perguntei, curiosa. - A mãe sabe que tens isso? - Não tens nada com isso - ofegou ela, saindo de debaixo da cama. - Não tens nada que andar a mexer nas minhas coisas. E se te atreves a contar a alguém... Sorri. - Talvez conte - disse. - E talvez não. Depende. Deu um passo em frente mas eu era quase da altura dela e, apesar de a raiva lhe ter dado coragem, sabia que não devia meter-se comigo. 62 - Não contes - disse numa voz aduladora. - Vou pescar contigo hoje à tarde, se quiseres. Podíamos ir para o Posto de Vigia ler revistas. Encolhi os ombros - Talvez. Onde arranjaste o bâton? A Reinette olhou para mim. - Promete que não contas a ninguém. - Prometo. - Cuspi na mão. Depois de hesitar uns segundos imitou-me. Selámos o acordo com um aperto de mão pegajoso de cuspo. - Está bem. - Sentou-se na beira da cama, de pernas dobradas. - Foi na escola, na Primavera. Tínhamos um professor de Latim, o Monsieur Toubon. O Cassis chama-lhe Monsieur Toupet porque até parece que ele usa peruca. Nunca nos deixava


em paz. Foi ele que obrigou a turma inteira a ficar na aula nesse dia. Toda a gente o odiava. - Foi um professor que to deu? - Eu estava incrédula. - Não sejas parva. Ainda não acabei. Sabes que os boches requisitaram os corredores de baixo e do meio e as salas à volta do pátio. Como aquartelamento. E para treinos. Já tinha ouvido aquilo. A velha escola perto do centro de Angers, com salas grandes e pátios interiores, era perfeita para os seus propósitos. O Cassis tinha-nos contado das manobras dos alemães com aquelas máscaras cinzentas parecidas com cabeças de vaca, e que ninguém era autorizado a ver, e que naquela altura era preciso fechar todas as portadas à volta do pátio. - Alguns de nós costumávamos esgueirar-nos lá dentro e espreitávamo-los pelos buracos das portadas - contou a Reinette.Não era muito interessante. Marchavam de um lado para o outro e gritavam em alemão. Não percebo por que é que tinha de ser secreto. - Espetou os lábios para fora numa expressão de insatisfação. - Enfim, o velho Toupet apanhou-nos, um dia - continuou. Deu-nos cá um sermão: ao Cassis, a mim e, bem, a uma data de gente que tu não conheces. Fez-nos perder a tarde livre da quinta-feira. Deu-nos trabalhos extra de Latim para fazer. Voltou a torcer a boca. - Também, não sei por que é que o acham tão santinho. Ele próprio também vinha ver o que os alemães estavam a fazer.Encolheu os ombros. - Enfim - continuou, baixando a voz. - Lá conseguimos vingar-nos. O velho Toupet vive no collège, 63 tem alojamentos ao lado do dormitório dos rapazes, e um dia, quando ele não estava lá, o Cassis entrou no quarto dele e


adivinha o que viu. Encolhi os ombros. - Tinha um rádio enorme no quarto, escondido debaixo da cama. Uma daquelas maquinetas de ondas longas - Calou-se, sentindo-se de repente pouco à vontade. - E então? - Olhei para o pequeno cilindro dourado que ela tinha na mão, a tentar perceber o que tinha a ver com a história. A Reinette sorriu um desagradável sorriso adulto. - Eu sei que não nos devemos relacionar com os boches, mas não se consegue evitar sempre as pessoas - disse num tom altivo. Quer dizer, a gente vê-os no portão, ou quando vamos ao cinema em Angers. Isto era um privilégio que eu muito invejava a ela e ao Cassis, pois às quintas à tarde podiam ir de bicicleta ao centro da cidade e ir ao cinema ou ao café - e fiz então uma careta. - Continua lá a história - disse. - É o que estou a fazer - queixou-se a Reinette. - Meu Deus, Boise, és tão impaciente. - Alisou o cabelo. - Como eu estava a dizer, acabamos por ver os alemães algumas vezes. E não são todos maus. - Aquele sorriso mais uma vez. - Alguns até são bem simpáticos. Mais simpáticos que o velho Toupet, pelo menos. Encolhi os ombros, indiferente. - Ou seja, foi um deles que te deu o bâton - disse eu com desprezo. Tanta conversa para tão pouco, pensei. Era típico da Reinette entusiasmar-se por tão pouco. - Nós contámos-lhes... quer dizer mencionámos a um deles... que o Toupet tinha um rádio - disse ela. Por alguma razão, ficou corada. - Ele deu-nos o bâton e cigarros para o Cassis e, enfim, muito mais coisas - disse ela muito depressa, sem parar, com os olhos a brilhar. - E depois a Yvonne Cressonnet disse que os viu sair do quarto do velho Toupet e que levavam o rádio e que ele ia com eles, e agora em vez de Latim temos mais uma aula de


Geografia com a Madame Lambert e ninguém sabe o que Lhe aconteceu a ele. Olhou para mim. Lembro-me de que os olhos dela eram quase dourados, da cor do açúcar quando começa a transformar-se em caramelo. 64 Encolhi os ombros: - Não deve ter acontecido nada contrapus. - Quer dizer, não iam enviar um velhote para a Frente só Porque tinha um rádio. - Não, claro que não - respondeu ela muito depressa. - DE, qualquer maneira, ele não devia era ter um rádio, não é? Concordei que não devia. Era contra as regras. Um professor devia saber isso. A Reine olhou para o bâton, revirando-o delicada e amorosamente na mão. - Não contas a ninguém então? - Fez-me uma festa no braço. Não contas, pois não, Boise? Afastei o braço, esfregando automaticamente onde ela me tocara. Nunca gostei que me fizessem festas. - Tu e o Cassis vêem esses alemães muitas vezes? - perguntei-lhe. Encolheu os ombros. - De vez em quando. - E contam-lhes mais coisas? - Não - respondeu demasiado depressa. - Só conversamos. Ouve, Boise, não vais contar a ninguém, pois não? Sorri. - Talvez não. Só se me fizeres uma coisa. Olhou-me de olhos cerrados. - Que queres dizer com isso? - Gostava de ir a Angers às vezes, contigo e com o Cassisdisse timidamente. - Ir ao cinema, ao café, essas coisas. - Calei-me para ver o efeito, e olhou para mim com olhos cerrados e brilhantes como facas. - Ou - continuei num tom falsamente moralista - podia ir contar à mãe que vocês andam a falar com os homens que mataram o nosso pai. A falar


com eles e a espiar as pessoas para eles. Inimigos da França. Vais ver o que é que ela diz a isso. A Reinette pareceu preocupada: - Boise, tu prometeste... Abanei a cabeça solenemente: - Isso não conta, é o meu dever de patriota. Devo tê-la convencido, porque se pôs muito pálida. Contudo, aquelas palavras não significavam nada para mim. Não sentia uma hostilidade real em relação aos alemães. Mesmo quando pensava que eles tinham matado o meu pai, que o homem que o fez podia até estar ali, mesmo ali em Angers, a uma hora de bicicleta, a beber Gros-Plant e a fumar Gauloises nalgum bar-tabac. Era uma imagem que não me era difícil invocar, mas pouco potente. Talvez porque a cara do pai estivesse já a esborratar-se na minha memória. 65 Talvez do mesmo modo que as crianças raramente se metem nas discussões dos adultos, e assim como os adultos raramente compreendem as súbitas hostilidades que rebentam entre as crianças por nenhuma razão compreensível. A minha voz era afectada e moralista, mas o que eu queria mesmo não tinha nada a ver com o nosso pai, com a França ou com a guerra. Eu queria fazer parte do grupo novamente, ser tratada como um adulto, uma guardiã de segredos. E queria ir ao cinema, ver o Bucha e o Estica ou o Bela Lugosi ou o Humphrey Bogart, sentar-me na semiobscuridade entre o Cassis e a Reinette, talvez com um cone de batatas fritas na mão ou uma tira de caramelo. A Reinette abanou a cabeça. - Estás doida - disse por fim. Sabes bem que a mãe nunca te deixaria ir sozinha à cidade, ainda és demasiado nova. Além disso...


- Mas eu não ia sozinha. Tu ou o Cassis podiam levar-me nas vossas bicicletas - insisti, teimosa. A Reinette andava na bicicleta da mãe e o Cassis levava para a escola a que era do pai, uma coisa preta e antiquada, parecida com uma calha de guindaste. Era demasiado longe para se ir a pé e, sem as bicicletas, teria sido necessário serem internos no collège, como muitas outras crianças do campo. - O semestre está quase no fim. Podíamos ir todos a Angers, ver um filme, dar uma volta. A minha irmã não queria deixar-se convencer. - Ela vai querer que fiquemos a trabalhar na quinta - disse. - Vais ver. Ela nunca quer que ninguém se divirta. - Ultimamente tem andado tantas vezes a sentir o cheiro de laranjas - disse-lhe em tom prático - que acho que não vai haver problema. Podemos sair sem ela saber. Da maneira como ela está, nem vai notar. Era fácil. A Reinette sempre foi fácil de convencer. Tinha uma passividade adulta e a sua natureza doce e discreta escondia uma espécie de preguiça, de quase indiferença. Olhou para mim e atirou-me a última desculpa, fraca como uma mão-cheia de pó. - Estás doida! - Naquela altura, tudo o que eu fazia era doidice para a Reinette. Era doida por nadar debaixo de água, por andar ao pé-coxinho no Posto de Vigia, por ser respondona, por comer figos verdes ou maçãs amargas. 66 Abanei a cabeça e disse-lhe, segura de mim: - Vai ser fácil. Acredita no que te digo. Já estão a ver como tudo começou tão inocentemente. A nossa intenção nunca foi magoar ninguém e, contudo, há dentro de


mim um sítio duro que se lembra implacavelmente e com perfeita precisão. A mãe percebeu os perigos antes de qualquer um de nós., Eu tão escorregadia e instável como a dinamite. Ela percebeu isso à sua maneira estranha, tentou proteger-me mantendo-me perto dela, mesmo quando teria preferido o contrário. Ela percebia mais o que eu imaginava. Não que isso me importasse. Tinha o meu próprio plano, um plano tão complexo e cuidado como as armadilhas no rio para o lúcio. Houve uma altura em que pensei que o Paul adivinhara mas, se assim foi, ele nunca disse nada. Começos modestos, que levaram a mentiras, a enganos e a pior. Tudo começou com uma banca de fruta numa manhã de sábado no mercado. Foi a cinco de Julho, dois dias depois de ter feito nove anos. Tudo começou com uma laranja. 67 6. Até então sempre fora considerada demasiado nova para ir à cidade em dia de mercado. A mãe chegava a Angers por volta das nove e montava a banca ao pé da igreja. O Cassis e a Reinette iam muitas vezes com ela. Eu ficava na quinta, supostamente a realizar pequenas tarefas domésticas, apesar de habitualmente passar o dia no rio a pescar ou no bosque com o Paul. Mas aquele ano foi diferente. Tinha agora idade suficiente para ser útil, disse-me ela no seu modo brusco. Não podia ser uma criança para sempre. Olhou para mim, curiosa. Tinha os


olhos da cor de urtigas velhas. E além do mais - tudo dito casualmente, sem dar a impressão de estar a fazer-me um favor -, podia querer ir a Angers mais lá para o fim do Verão, talvez ao cinema, com os meus irmãos... Aquilo era obra da Reinette. Mais ninguém a teria convencido. Mas a Reinette sabia amaciá-la. Podia ser dura, mas havia um ar mais doce no seu olhar quando falava com a Reinette, como se algo se comovesse sob a aspereza exterior. Resmunguei qualquer coisa pouco elegante em resposta. - Além disso - continuou a mãe -, talvez precises de um pouco de responsabilidade. Para ver se deixas de ser tão selvagem. Talvez aprendas alguma coisa sobre o que é importante nesta vida. Assenti com a cabeça, tentando ser dócil como a Reinette. Não me parece que a mãe se tivesse deixado enganar. Ergueu uma sobrancelha satírica. - Podes ajudar-me na banca - disse ela. 68 E assim, pela primeira vez, acompanhei-a à cidade. Fomos juntas na carroça, com os nossos produtos empacotados ao nosso lado cobertos com um oleado. Tínhamos bolachas e bolos numa caixa, queijos e ovos noutra e fruta nas restantes. Era o início da estação e, apesar de os morangos terem sido bons, não tínhamos quase mais a pronto para vender. Complementávamos os nossos proventos vendendo geleia, adoçada com as beterrabas do Outono do ano anterior, até que a estação realmente começasse. Angers ficava num bulício em dia de mercado. Havia carroças paradas lado a lado na rua principal, bicicletas que puxavam


cestos de viga, carretas de caixa aberta carregadas de vasilhas de leite, uma mulher com um tabuleiro de pão à cabeça, bancas cheias de tomates de estufa, beringelas, courgettes, cebolas, batatas. Aqui vendia-se lã ou loiça de barro, ali vinho, leite, conservas, talheres, fruta, livros em segunda-mão, pão, peixe, flores. Instalámo-nos cedo. Ao lado da igreja havia uma fonte onde os cavalos podiam ir beber e onde fazia sombra. O meu trabalho era embrulhar a comida e entregá-la aos clientes enquanto a mãe recebia o dinheiro. A memória e a velocidade de cálculo dela eram impressionantes. Conseguia somar de cabeça uma lista de preços sem sequer ter de os escrever e nunca hesitava no troco. Notas de um lado, moedas do outro; guardava o dinheiro nos bolsos do avental e o que não cabia ia para dentro de uma velha lata de bolachas que estava debaixo do oleado. Ainda me lembro dele: cor-de-rosa com flores à volta. Lembro-me das notas e das moedas batendo no metal; a mãe não acreditava em bancos. Guardava as nossas economias numa caixa enterrada no chão da cave juntamente com algumas das garrafas de vinho mais valiosas. Naquele primeiro dia de mercado, uma hora depois de termos chegado já tínhamos vendido todos os ovos e todos os queijos. As pessoas tinham consciência dos soldados que estavam no cruzamento, de armas descuidadamente apoiadas num braço, as caras aborrecidas e indiferentes. A mãe apanhou-me a olhar para o uniforme cinzento e chamou-me rispidamente a atenção: "Deixa de pasmar, rapariga!" Mesmo quando se misturaram com a multidão, tivemos de os


ignorar, mas senti a mão impeditiva da mãe no meu braço. Um tremor percorreu-lhe o corpo quando um deles parou em frente da nossa banca, mas a cara permaneceu impassível. 69 Era um homem forte, de cara redonda e vermelha, um homem que, noutra vida, podia ter sido dono de um talho ou um comerciante de vinhos. Tinha um brilho alegre nos olhos azuis. - Ach, raas für schne Erdbeeren! - A voz era jovial, ligeiramente embriagada, a voz de alguém preguiçoso e em férias. Pegou num morango com os dedos gordos e meteu-o na boca. - Schmeckt gut, ja? - Riu-se, sem mdelicadeza, as bochechas a rebentar. - Wu-n-der-shn! - Olhou para mim e fez uma careta de exagerado prazer, fazendo rolar os olhos. Sem querer, sorri. Senti a mão da mãe a apertar-me o braço, como um aviso. Podia sentir-lhe um calor nervoso na ponta dos dedos. Olhei uma vez mais para o alemão, tentando entender o porquê de toda aquela tensão. Não parecia mais intimidante do que os homens que vinham de vez em quando à aldeia; até menos, aliás, com aquele chapéu de pala e uma só pistola no coldre no flanco. Sorri outra vez, mais para desafiar a mãe do que por outra razão qualquer. - Gut, ja - repeti, acenando que sim com a cabeça. O alemão riu-se mais uma vez, tirou outro morango e voltou ao seu posto através da multidão, o uniforme preto estranhamente fúnebre em contraste com a miscelânea colorida do mercado.


Mais tarde, a mãe tentou explicar-me. Todos os uniformes eram perigosos, disse-me, sobretudo os pretos. Os pretos não faziam simplesmente parte do exército, eram a polícia do exército. Até os outros alemães tinham medo deles. Podiam fazer o que quisessem. Para eles não teria qualquer importância que eu tivesse apenas nove anos. Um passo em falso e podia ser fuzilada. Fuzilada. Teria eu compreendido? O seu rosto tinha uma expressão inflexível, mas a voz tremia-lhe e levava constantemente as mãos às têmporas num estranho gesto de impotência, como se se aproximasse uma das suas dores de cabeça. Mal ouvi o seu aviso. Era o meu primeiro encontro cara a cara com o inimigo. Já no alto do Posto de Vigia, quando voltei a pensar no que acontecera, o homem do mercado parecia estranhamente inócuo, quase uma desilusão. Tinha esperado algo mais impressionante. O mercado acabou ao meio-dia. Vendêramos tudo muito antes, mas ficámos para fazermos também algumas compras, e para recolhermos os produtos semiestragados que os donos das outras bancas às vezes ofereciam: fruta demasiado madura, restos de carne, legumes pisados que não durariam outro dia. A mãe mandou-me à banca do merceeiro enquanto ela comprava às escondidas, na loja da Madame Petit, um pedaço de seda de um pára-quedas que acomodou cuidadosamente no bolso do avental. Era difícil encontrar-se qualquer tecido, e todos vestíamos roupa em segunda-mão. O vestido que eu própria levava fora feito de dois outros, a parte de cima era cinzenta e a saia de linho azul. O pára-quedas, contou-me a mãe, fora encontrado num campo perto de Courlé, e daria uma blusa para a Reinette.


- Custou-me os olhos da cara - resmungou meia-amuada, meia-exaltada. - Não há como a gente dela para saberem como sobreviver, até durante uma guerra. Caem sempre de pé. Perguntei-lhe o que queria dizer. - Judeus - disse. - Sabem como fazer dinheiro. Cobra uma fortuna por um pedaço de seda que a ela não lhe custou um tostão. - Disse aquilo sem qualquer inveja, num tom quase admirativo. Quando lhe perguntei o que é que os judeus faziam, encolheu os ombros e percebi que não sabia bem. - O mesmo que nós, imagino - respondeu. - Fazem o que podem. - Passou a mão pelo pedaço de seda no bolso e acrescentou: Mesmo assim, não está certo. Aproveitam-se dos outros. Encolhi os ombros. Tanta coisa por um bocado de seda velha. Mas o que a Reinette queria, conseguia. Restos de fita de veludo obtidos por troca e depois de muito esperar; as melhores roupas que haviam sido da mãe; soquetes brancos para ir para a escola e, muito depois de termos sido todos condenados a usar socas de madeira, a Reinette usava uns sapatos pretos de pele com uma fivela. Eu não me importava. Estava habituada às inconsistências da mãe. Entretanto, fui então de banca em banca com o meu cesto vazio. As pessoas viam-me e, como conheciam a história da família, davam-me o que não podiam vender: dois melões, beringelas, endívias, espinafres, um molho de brócolos, uma mancheia de pêssegos tocados. Comprei pão e o padeiro deume croissants, despenteando-me o cabelo com a mão grande e suja de farinha. Troquei histórias de pesca com o homem da peixaria e ele deu-me uns restos bons, embrulhados em papel de jornal. Demorei-me junto a uma banca de fruta e legumes enquanto o


dono se baixava para pegar numa caixa de cebolas roxas, tentando que os meus olhos não me traíssem. 70 - 71 Foi então que as vi, no chão mesmo ao lado da banca junto a uma caixa de chicória. Naquela época era raro verem-se laranjas. Estavam embrulhadas individualmente em papel roxo e postas num tabuleiro à sombra. Nunca tinha imaginado que veria laranjas na minha primeira visita a Angers, mas ali estavam elas, macias e secretas nas suas conchas de papel, cinco laranjas cuidadosamente alinhadas, prontas para voltarem a ser empacotadas. De repente quis uma, tinha tanto de ter uma que mal parei para pensar. Não teria oportunidade melhor; a mãe estava ocupada. A laranja mais perto de mim rebolara para a borda do tabuleiro e quase me tocava no pé. O merceeiro ainda estava de costas. O ajudante dele, um rapaz da idade do Cassis ou quase, estava ocupado a arrumar as caixas na parte traseira da carrinha. Era raro verem-se outros veículos além dos autocarros. O merceeiro devia ser um homem rico, pensei. Isso tornou mais fácil justificar os meus planos. Fingindo olhar para umas sacas de batatas, descalcei a soca. Depois estendi furtivamente o pé e, com dedos experientes de anos de escaladas, sacudi rapidamente a laranja para fora do tabuleiro. Rebolou um pouco, como eu sabia que faria, e ficou semiescondida pelo tecido verde que cobria uma armação próxima. Pus imediatamente o cesto em cima dela e baixei-me, fingindo


tirar uma pedra de dentro da soca. Por debaixo das pernas, vi o merceeiro pegar nas restantes caixas e pô-las dentro da carrinha. Não me viu quando enfiei a laranja roubada no meu cesto. Tão fácil. Fora tão fácil. O meu coração batia com tanta força e a minha cara estava tão quente que tinha a certeza de que alguém repararia. Sentia a laranja no meu cesto como uma granada prestes a explodir. Levantei-me, muito casualmente, e fui ter com a minha mãe. Então fiquei paralisada. Um dos alemães observava-me do outro lado da praça. Estava de pé ao lado da fonte, a cabeça inclinada, um cigarro encoberto pela mão. As pessoas evitavam chegar perto dele e ele ali estava no seu pequeno círculo de silêncio, de olhos fixos em mim. De certeza que me vira roubar. Dificilmente não teria visto. 72 : Durante uns instantes olhei para ele, incapaz de me mover. O seu rosto estava rígido. Só agora me vinham à memória as histórias que o Cassis contava sobre a crueldade dos alemães. Ele continuava a observar-me; o que seria que os alemães faziam com os ladrões? E então, piscou-me o olho. Olhei para ele por um segundo e então voltei-me abruptamente, a cara a arder e a laranja quase esquecida no fundo do cesto. Não me atrevia a voltar a olhar e a mãe estava muito próxima do sítio onde ele estava. Estava a tremer de tal maneira que tinha a certeza de que a mãe iria notar, mas ela tinha outras preocupações. Sentia por trás de nós os olhos do alemão postos em mim, sentia a pressão daquela piscadela furtiva e jocosa, como um prego na testa. Durante o que me pareceu uma eternidade, esperei pela pancada que nunca veio. Então fomos embora, depois de desmontar a banca e de


arrumar a lona e a armação na carroça. Destapei a cabeça da mula e guiei-a calmamente por entre a multidão, sentindo sempre os olhos do alemão nas minhas costas. Tinha escondido a laranja no bolso do meu avental, embrulhando-a num bocado de jornal húmido do peixeiro para que a mãe não a cheirasse. Mantive as mãos dentro dos bolsos, não fosse algum solavanco denunciar a sua presença, e fiquei em silêncio durante a viagem de regresso a casa. 73 7. Só contei ao Paul da laranja, e só porque apareceu inesperadamente no Posto de Vigia e me viu tão exultante. Ele nunca vira uma laranja. Primeiro pensou que fosse uma bola. Pegou no fruto com as duas mãos em taça, quase reverencialmente, como se a qualquer momento pudesse criar asas mágicas e voar para longe. Dividimos a fruta ao meio, mantendo cada metade por cima de folhas grandes para que nenhum do sumo se desperdiçasse. Era boa, amarga e tinha a pele fina. Lembro-me de como chupámos cada gota do sumo, como raspámos a casca com os dentes até tirar toda a polpa e de como depois voltámos a chupar o que restava até termos a boca amarga e áspera. O Paul quase deitou fora a casca ali do topo do Posto de Vigia, mas consegui impedi-lo a tempo. - Dá-me isso - disse-lhe.


- Porquê? - Preciso disso para uma coisa. Depois de ele se ter ido embora, prossegui com a última parte do meu plano. Com o meu canivete, cortei as duas metades da laranja aos bocadinhos. O aroma do líquido amargo e evocativo enchia-me as narinas. Cortei também as folhas que utilizáramos como pratos; cheiravam tenuamente mas ajudariam a manter o conjunto húmido por mais tempo. Depois atei a mistura num pedaço de musselina - roubado do quarto que a mãe utilizava para os frascos de doce - e apertei o embrulho com força. Pus a saqueta de musselina com o seu conteúdo fragrante dentro de uma caixinha de tabaco que guardei no bolso. 74 Estava tudo pronto., Eu teria dado uma boa assassina. Foi tudo meticulosamente planeado e livrei-me dos poucos vestígios do crime em segundos. Lavei-me no rio para me desfazer do cheiro que tinha na boca, na cara e nas mãos, esfregando nas palmas a terra áspera da margem atté brilharem rosadas e limpando sob as unhas com um pauzinho afiado. A caminho de casa através dos campos, apanhei ramos de hortelã-pimenta selvagem e esfreguei-os nos sovacos, no pescoço, nos joelhos e nas mãos para que qualquer resto de cheiro fosse substituído pelo cheiro verde e quente das folhas frescas. De qualquer maneira, quando cheguei a casa a mãe não notou nada. Estava a fazer caldeirada de peixe com


os restos que trouxéramos do mercado e vinha da cozinha o rico aroma do alecrim e do alho e dos tomates a refogar em azeite. Bom. Toquei na caixinha de tabaco. Muito bom. Preferia que fosse uma quinta-feira, claro. Normalmente era quando o Cassis e a Reinette iam a Angers, quando recebiam a semanada. Eu era tida como demasiado nova para receber semanada - em que ia eu gastar o dinheiro? - mas tinha a certeza de que, ia conseguir arranjar alguma coisa. Além do mais, pensei, nada garantia que o plano fosse funcionar. Havia que experimentar antes. Escondi a caixinha - aberta - debaixo do fogão da sala. Estava frio, claro, mas os canos que o ligavam à cozinha quente estavam suficientemente aquecidos para aquilo que eu pretendia. Daí a poucos minutos já o saquinho de musselina soltava um forte aroma. Sentámo-nos para jantar. A caldeirada estava boa; cebolas roxas e tomates refogados em alho e especiarias e uma chávena de vinho branco, os restos de peixe marinando ternamente por entre as batatas fritas e as chalotas inteiras. A carne fresca era escassa naquela altura, mas os legumes cultivávamo-los nós e a mãe tinha três dúzias de garrafas de azeite escondidas sob o chão da cave, juntamente com as melhores garrafas de vinho. Comi com vontade. "Boise, tira os cotovelos de cima da mesa!" 75 A voz dela era aguda mas notei que os dedos dela lhe fugiam inconscientemente para as têmporas naquele gesto familiar, e eu sorri então. Estava a funcionar.


O lugar da mãe era o que estava mais perto dos canos. Comemos em silêncio, mas os dedos fugiram-lhe furtivamente, mais duas vezes, até à cabeça, à cara e aos olhos, como para se certificar da espessura da pele. O Cassis e a Reinette, de cabeça quase dentro do prato, não diziam nada. O ar ficava pesado à medida que o calor do dia se tornava pesado, e quase me doía também a mim a cabeça por empatia. De repente ela espevitou: - Cheira-me a laranjas! Algum de vocês trouxe laranjas para dentro de casa? - A voz era aguda, acusativa. - E então? E então? Abanámos as cabeças mudamente. Mais uma vez, aquele gesto. Agora mais leve, os dedos como que a massajar, a sondar. - Sei que me cheira a laranjas. Têm a certeza de que não trouxeram laranjas para dentro de casa? O Cassis e a Reinette estavam mais afastados da caixinha de tabaco e tinham no meio a panela com a caldeirada, que soltava ainda o bom aroma a vinho, peixe e azeite. Além disso, estávamos habituados aos achaques da mãe; nunca lhes ocorreria que o cheiro a que ela se referia não passava de imaginação sua. Eu sorri mais uma vez, tapando a boca com a mão. - Boise, pão, por favor. Passei-lhe o cesto redondo, mas o pedaço que ela tirou permaneceu intacto durante a refeição. Revirava-o pensativamente sobre a cobertura encarnada da mesa, uma e outra vez, enfiando os dedos no miolo mole e espalhando migalhas pelo prato. Se tivesse sido eu a fazer aquilo, não teria deixado de gritar comigo. "Boise, vai buscar a sobremesa, por favor. Levantei-me da mesa com um alívio mal reprimido. Quase me sentia mal de tanto nervosismo e medo e pus-me a fazer caretas a mim mesma nos fundos brilhantes das panelas de cobre. A sobremesa era fruta e algumas das bolachas que a mãe fizera


as partidas, claro; as melhores vendia-as, conservando apenas as deformadas. Notei que a mãe examinou desconfiada os alperces que trouxéramos do mercado, revirando-os um a um na mão e até cheirando-os, como se algum deles pudesse ser uma laranja disfarçada. 76 tinha agora a mão na testa, como que para proteger os olhos do sol ofuscante. Pegou numa metade de bolacha, esmigalhou-a e abandonou-a no prato. - Reine, lava a louça. Acho que vou para o meu quarto deitar-me um bocado. Vem aí uma daquelas dores de cabeça. -A voz estava sem inflexão, só aquele tique dela (os pequenos e rápidos movimentos dos dedos pela testa e pelas têmporas) traía o seu desconforto, - Reine, não te esqueças de correr as cortinas. E as portadas. Boise, certifica-te de que os pratos ficam bem arrumados. Vê lá se não te esqueces. - Até naquele momento estava preocupada com que tudo fosse feito à sua maneira rígida. Os pratos, arrumados por tamanho e cor, cada um enxugado com um pano seco e passado com um outro pano engomado. Não podia ficar nada a escorrer desleixadamente; isso seria demasiado fácil. E os panos deviam ser pendurados a secar em fileiras bem nítidas. - E água quente para os meus pratos bons, ouviram? - Agora parecia irritada, preocupada com os pratos bons. - E limpem-nos bem, dos dois lados, ouviram? Nada de os arrumarem ainda húmidos, ouviram-me? Anuí com a cabeça. Ela virou-se, com uma careta. - Reine, vê se ela faz o que lhe disse. - Tinha os olhos a brilhar e um ar


quase febril. Olhou para o relógio com um movimento peculiar da cabeça. - E tranquem as portas. E as janelas. - Parecia enfim pronta a ir-se embora. Mas voltou a virar-se, a parar, relutante em deixar-nos sós, entregues às nossas secretas liberdades. - Tem cuidado com os pratos, Boise, é tudo - disse-me naquele tom brusco e abrupto que escondia a sua ansiedade. Depois saiu. Ouvi-a deitar água no lavatório. Fechei as portadas da sala, recuperei a caixinha de tabaco e depois, já no corredor, disse em voz alta para que também a mãe me ouvisse: - Eu fecho as portadas dos quartos. Primeiro o quarto da mãe. Fechei a portada, corri a cortina e prendi-a. Depois olhei rapidamente à minha volta. Ouvia ainda o barulho da água no quarto de banho e também o som da mãe a lavar os dentes. Rapidamente e em silêncio, tirei a almofada dela de dentro da fronha, cortei a costura um bocadinho com a ponta do meu canivete e enfiei o saquinho de musselina lá dentro. Empurrei-o o mais que pude com o cabo do canivete para que não se notasse nenhum volume que pudesse trair a sua presença. Com o coração a martelar acelerado, 77 voltei a enfiar a fronha e alisei a colcha cuidadosamente por causa dos vincos. A mãe estava sempre a reparar em coisas assim. Acabei mesmo a tempo. Cruzámo-nos no corredor mas, apesar de ter olhado para mim com um ar desconfiado, não disse nada. Estava com um ar vago e distraído, os olhos semicerrados, o cabelo castanho-acinzentado solto. Cheirava a sabão e, no escuro do corredor, parecia Lady Macbeth - uma história que ficara a conhecer recentemente através de um dos livros do Cassis - a esfregar as mãos, a levá-las ao rosto,


acariciando-o, embalando-o e voltando a esfregá-las, como se o sangue, e não o sumo de laranjas, fosse a mancha que tentava lavar em vão. Hesitei por instantes. Pareceu-me tão envelhecida, tão cansada. A minha cabeça começara também a doer-me e tentei imaginar o que a mãe faria se fosse ter com ela e a pousasse no seu ombro. Senti os olhos a arder por um momento. Por que razão estava eu a fazer isto afinal? Depois lembrei-me do Velho à espera no lodo, do seu olhar enraivecido e cheio de ódio, do prémio na sua barriga. - Então? - A voz da mãe era fria e dura. - Estás a olhar para quê, minha idiota? - Nada. - Os meus olhos estavam novamente secos. Até a dor de cabeça estava a desaparecer tão subitamente quanto aparecera. - Nada de nada. Ouvi-a fechar a porta do quarto e voltei para a sala, onde os meus irmãos estavam à minha espera. Por dentro, toda eu ria. 78 8. - Estás doida! - Era outra vez a Reinette, o seu habitual grito quasE desamparado quando já não tinha argumentos: o que não demorava muito, pois, tirando bâtons e estrelas de cinema, a sua capacidade argumentativa foi sempre limitada. - É uma altura tão boa como outra qualquer - respondi-lhe imediatamente. - Ela vai dormir até tarde. Desde que façamos aquilo que ela pediu, depois podemos ir aonde quisermos. -


Olhei-a com dureza. Ainda havia aquele assunto do bâton por resolver, diziam-lhe os meus olhos. Há duas semanas. Não me esquecera. O Cassis olhou-nos com curiosidade; eu tinha a certeza de que ela não lhe contara nada. - Se ela descobrir, vai ficar furiosa - disse ele lentamente. Encolhi os ombros. - E como é que vai descobrir? Dizemoslhe que fomos ao bosque apanhar cogumelos. O mais provável é ela nem acordar antes de voltarmos. O Cassis considerou a ideia em silêncio. A Reinette olhou para ele, ansiosa e suplicante. - Vá lá, Cassis - disse ela. E depois, em voz mais baixa: Ela já sabe. Descobriu aquilo do... - a voz falhou-lhe. - Tive de lhe contar, pelo menos partes - terminou, infeliz. - Ah. - Ele olhou-me por uns momentos e eu senti algo passar entre nós, uma mudança; o seu olhar era quase de admiração. Encolheu os ombros - E depois? - Mas os olhos permaneceram alerta, cuidadosos. 79 - A culpa não foi minha - disse a Reinette. - Pois não. Ela é esperta, não é? - disse o Cassis com suavidade. - Teria descoberto mais cedo ou mais tarde. - Era um grande elogio, e uns meses antes ter-me-ia feito inchar de orgulho, mas agora limitava-me a olhá-lo nos olhos. - E depois - continuou ele no mesmo tom despreocupado -, se ela estiver envolvida, não poderá ir a correr fazer queixinhas à mãe. - Eu ainda só tinha nove anos e, apesar de madura para a minha idade, ainda era suficientemente infantil para ficar magoada com o desdém descuidado das suas palavras. - Eu não faço queixinhas! Ele encolheu os ombros. - Por mim, podes vir, desde que pagues a tua parte - continuou. - Não há razão nenhuma para


pagarmos por ti. Levo-te na minha bicicleta. Mais nada. O resto é contigo. De acordo? Era um teste. Podia ler-lhe o desafio no olhar. O sorriso dele era de gozo, o sorriso não-realmente-simpático do irmão mais velho que umas vezes me dava o último pedaço de chocolate que Lhe restava, mas que outras vezes me beliscava com tanta força que me fazia nódoas negras. - Mas ela não tem dinheiro - queixou-se a Reinette. - Qual é a ideia de... O Cassis encolheu os ombros. Era o gesto final típico, o gesto de um homem. - Já disse. - Esperou pela minha reacção de braços cruzados, aquele sorrisinho nos lábios. - Está bem - disse, tentando parecer calma. - Por mim, está bem. - Bem - decidiu -, então vamos amanhã. 80 9. Era aqui que as tarefas do dia começavam. Baldes de água eram tirados E trazidos do poço para a cozinha para cozinhar e lavar. Não tínhamos água quente - aliás, não tínhamos água corrente, tirando a bomba que estava ao pé do poço, a alguns metros da porta da cozinha. A electricidade demorou a chegar a Les Laveuses, e quando as botijas de gás começavam a escassear, cozinhávamos no fogão a lenha. O forno estava do lado de fora da cozinha - um grande e antigo forno a carvão que tinha a forma de um pão de leite - e ao lado ficava o poço. Quando precisávamos de água, era daí que a tirávamos, com um de nós a dar à bomba enquanto o outro segurava no balde. O poço tinha uma tampa de madeira, sempre fechada


com um cadeado desde muito antes de eu ter nascido, para evitar acidentes. Quando a mãe não estava a olhar, púnhamo-nos debaixo da bomba para nos lavarmos, encharcando-nos de água fria. Quando ela estava por perto, tínhamos de utilizar bacias de água aquecida nas grandes panelas e o áspero sabão de alcatrão que nos arranhava a pele como pedra-pomes e deixava uma espuma cinzenta a boiar na água. . Naquele domingo, sabíamos que a mãe não ia aparecer tão cedo. Tínhamo-la ouvido toda a noite, a falar sozinha, queixando-se; dando voltas na velha cama que partilhara com o pai, às vezes levantando-se e andando para trás e para diante no quarto, abrindo as janelas para entrar ar, e as portadas batendo com tanta força contra a parede e fazendo o chão tremer. 81 Permaneci acordada durante muito tempo, a ouvir enquanto ela se mexia, andava, suspirava e discutia consigo mesma daquela sua maneira sussurrada e penetrante. E por volta da meianoite adormeci, mas despertei mais ou menos uma hora depois, e ela ainda estava acordada. Agora pareço insensível, mas na altura só sentia triunfo. Não sentia qualquer culpa pelo que tinha feito, nenhuma pena pelo que ela estava a sofrer. Na altura não percebia, não sabia o tormento que uma insónia pode causar. Parecia quase impossível que aquele saquinho com casca de laranja dentro da almofada dela pudesse ter provocado uma reacção assim. Quanto


mais se mexia e suspirava na almofada, mais o cheiro se devia ter intensificado, aquecido pela temperatura febril da nuca dela. Quanto mais forte o cheiro, maior a ansiedade. A dor de cabeça tem de estar a aparecer, pensava ela. De algum modo, a antecipação da dor pode ser ainda mais perturbadora, mais penosa que a própria dor. A ansiedade, visível pela permanente ruga que tinha na testa, mordiscava-lhe o espírito como um rato numa caixa, afastando o sono. O nariz dizia-lhe que havia ali laranjas, mas a razão dizia-lhe que era impossível - como poderia haver ali laranjas, valha-me Deus? E, contudo, o cheiro a laranja, amargo e amarelo como a velhice, invadia cada recanto escuro daquele quarto. Às três levantou-se e acendeu uma luz para poder escrever no álbum. Não posso ter a certeza de que foi naquele dia - ela nunca escreveu datas -, e contudo sei que foi. Pior do que nunca, escreve. A letra é minúscula, uma coluna de formigas garatujadas ao longo da página a tinta roxa. "Deito-me na cama e pergunto-me se alguma vez voltarei a dormir. Aconteça o que acontecer, não pode ser pior que isto. Até enlouquecer seria um alívio". E um pouco mais adiante, por debaixo de uma receita de tarte de batata e baunilha, escreve: "Como o relógio, estou dividida. Às três da madrugada tudo é possível". Depois levantou-se para tomar os comprimidos de morfina. Guardava-os no armário da casa de banho, ao lado das coisas de barbear do meu pai. Ouvi a porta abrir-se e depois o guinchar cansado que os seus pés transpirados faziam no chão encerado. O frasco chocalhou e ouvi o tinido de um copo quando ela verteu a água do jarro. Imagino que seis horas de insónia acabaram por finalmente Lhe provocar uma dor de cabeça. De


qualquer maneira, estava profundamente adormecida quando me levantei algum tempo depois. 82 A Reinette e o Cassis também estavam a dormir ainda, e a luz que passava através da espessa cortina era esverdeada e pálida. Era possível que fossem cinco horas; não havia relógio no nosso quarto. Sentei-me na cama, procurei a minha roupa no escuro e vestie rapidamente. Conhecia cada canto daquele quartinho. Podia ouvir a respiração do Cassis e da Reinette a dele mais superficial, leve ressonar - e passei pelas camas deles com muito cuidado. avia muito a fazer antes de os acordar. Primeiro pus-me à escuta à porta do quarto da mãe. Silêncio. Sabia que tinha tomado os comprimidos e que o mais provável era que estivesse profundamente adormecida, mas não podia correr o risco de ser apanhada. Rodei a maçaneta muito devagarinho. Uma tábua do soalho estalou como um foguete. Parei a meio, atenta a qualquer mudança no ritmo da respiração dela. Nada. Empurrei a porta. Uma das portadas tinha sido deixada entreaberta e o quarto tinha luz. A mãe estava atravessada na cama. Durante a noite afastara os cobertores e uma das almofadas caíra ao chão. A outra estava semicoberta pelo braço caído para o lado e a cabeça pendia num ângulo desconfortável, com o cabelo a escovar o soalho. Notei, sem surpresa, que a almofada na qual escondera o saquinho de musselina era aquela sobre a qual descansava. Ajoelhei-me ao seu lado; tinha a respiração pesada e lenta. As pupilas moviam-se freneticamente debaixo das pálpebras maceradas. Enfiei lentamente os dedos na fronha. .


Foi fácil. Os meus dedos procuraram o altinho no meio da almofada, puxando-o em direcção à pequena abertura na costura. Toquei no saquito e puxei-o com as unhas, tirando-o finalmente do esconderijo e guardando-o a salvo na palma da minha mão. A mãe nem se mexeu. Só os olhos não paravam debaixo da pele escurecida, como se seguissem constantemente algo brilhante e fugidio. Tinha a boca um pouco aberta e um fio de baba escorreralhe ao longo da face até ao colchão. Seguindo um impulso, levei o saquinho às narinas dela, apertando-o para libertar o aroma, e ela gemeu, virando a cara para o outro lado e franzindo o sobrolho. Depois, deitando-Lhe uma última olhadela como se ela fosse um animal perigoso e o sono fosse fingido, pus me ao trabalho. Dirigi-me ao tampo da lareira. Havia ali um relógio, uma peça pesada com uma face redonda, uma redoma de vidro e dourados. 83 Destoava ali, por cima da lareira modesta, era demasiado ornamentado para quarto da minha mãe, mas ela herdara-o da mãe e era uma das coisas que mais estimava. Levantei a redoma de vidro e rodei cuidadosamente os ponteiros para trás. Cinco horas. Seis. Depois pus a redoma no lugar. Arrumei os objectos de maneira diferente - uma fotografia emoldurada do pai, outra de uma mulher que eu sabia ser minha avó, uma jarra com flores secas, um pratinho com três ganchos


e uma amêndoa do baptizado do Cassis. Virei as fotografias para a parede, pus a jarra no chão, peguei nos ganchos e fui pô-los dentro do bolso do avental da mãe. Depois peguei na roupa dela, espalhei-a artisticamente pelo quarto. Uma soca em cima do candeeiro, a outra no parapeito da janela. Ao vestido, deixei-o muito bem pendurado atrás da porta, mas ao avental, abri-o no chão como uma toalha de piquenique. Por fim, abri o guarda-roupa de maneira a que o espelho no interior da porta reflectisse a cama exactamente onde ela estava. A primeira coisa que veria quando acordasse seria a si mesma. Fiz tudo isto sem verdadeira malícia. O meu objectivo não era magoá-la mas desorientá-la, levá-la a pensar que o seu ataque imaginário fora real e que fora ela mesma que, sem se dar conta, movera os objectos, espalhara a roupa e atrasara o relógio. Sabia, pelo pai, que por vezes ela fazia coisas das quais depois se esquecia, que, no pico da dor e da confusão, ficava com a visão perturbada e os pensamentos ainda mais. O relógio da cozinha podia, de repente, aparecer partido, uma metade claramente visível e a outra não, nada para além da parede nua por trás dele; ou um copo podia parecer mexer-se sozinho, mudando dissimuladamente de um lado do prato dela para o outro. Ou um rosto, um rosto humano - o meu, o do pai, o do Raphaél do café -, aparecia subitamente com apenas metade das feições, como se por meio de uma terrível cirurgia, ou a metade da página do livro de receitas desaparecia quando ela lia, deixando o resto das letras a dançar incompreensivelmente. É claro que na altura não sabia isto tudo. Descobri a maior parte das coisas através do álbum, das notas gatafunhadas, algumas frenéticas, quase desesperadas - Às três da manhã tudo parece possível -, outras quase clínicas pelo seu desprendimento, anotando sintomas com uma fria curiosidade científica.


Como o relógio, estou dividida. 84 10. A Reinette e o Cassis dormiam ainda quando saí e devia ter mais ou menos meia hora para fazer o que queria fazer antes de eles acordarem. Olhei para o céu - estava limpo e esverdeado, com uma leve risca amarela no horizonte. Deviam faltar mais ou menos dez minutos para a alvorada. Tinha de me despachar. Fui à cozinha buscar um balde, calcei as socas que estavam no tapete da entrada e corri o mais depressa que pude em direcção ao rio. Fui pelo atalho que passava pela parte traseira da quinta dos Hourias onde os girassóis de Verão se erguiam peludos, cabeças sempre verdes em direcção ao céu pálido. Mantive-me curvada, escondida sob as folhas, o balde batendo-me contra a perna a cada passo que dava. Demorei menos de cinco minutos a chegar às Pedras Direitas. Às cinco da manhã o Loire está ainda calmo e sumptuosamente coberto de nevoeiro. Àquela hora a água está linda, fresca e de uma palidez mágica, os bancos de areia erguendo-se como continentes perdidos. A água cheira a noite e, aqui e ali, um raio de sol projecta sombras cor de mica na superfície. Descalcei-me, despi o vestido e observei a água. Parecia enganadoramente calma. A última das Pedras Direitas, a Pedra do Tesouro, estava mais ou menos a nove metros da margem e a água na sua base tinha um aspecto estranhamente sedoso à superfície, sinal de que a corrente estava muito forte. Podia morrer afogada aqui, pensei de repente, e ninguém saberia sequer onde procurar-


me. 85 Mas não tinha escolha. O Cassis desafiara-me. Tinha de ser eu a pagar as minhas despesas. Como poderia fazê-lo, sem semanada, sem utilizar a bolsa escondida na Arca do Tesouro? Existia, claro, a possibilidade de ele a ter tirado de lá. Se fosse assim, teria de arriscar-me a roubar da carteira da mãe. Mas isso não era coisa que me agradasse fazer. Não porque pensasse que não se devia roubar, mas pela memória fora do normal que a mãe tinha para os números. Sabia exactamente quanto dinheiro tinha até ao último centime e descobriria logo o que eu fizera. Não. Tinha de ser a Arca do Tesouro. Desde que o Cassis e a Reinette tinham acabado as aulas, houvera poucas expedições ao rio. Eles tinham agora outros tesouros - tesouros de adultos - com os quais ocupar o tempo. As poucas moedas na bolsa somavam ao todo um par de francos, não mais do que isso. Contava com a preguiça do Cassis, com a certeza dele de que mais ninguém era capaz de chegar à caixa atada ao pilar. Tinha a certeza de que o dinheiro ainda lá estava. Desci com cuidado até à água. Estava fria e o lodo do rio escorregava-me por entre os dedos dos pés. Fui entrando a pouco e pouco até ter água pela cintura. Podia sentir a corrente agora, como um cão impaciente pela trela. Meu Deus, já estava bastante forte! Estendi a mão até tocar no primeiro pilar, apoiando-me nele para avançar contra a corrente, e dei um passo em frente. Sabia que havia um declive logo ali, um ponto onde a calma das águas baixas da margem desaparecia no nada. Quando o Cassis nadava até à Pedra do Tesouro, fingia sempre afogar-se aqui, virando-se de barriga para cima na


água opaca e desatando a bater os braços, a gritar e a cuspir a água acastanhada. Conseguia sempre enganar a Reinette, não importava quantas vezes o tivesse já feito, fazendo-a gritar horrorizada ao vê-lo desaparecer sob a superfície. Eu não tinha tempo para esse tipo de demonstrações. Com o pé, procurei o declive. Ali estava. Empurrando contra o fundo, atirei-me o mais longe possível, mantendo as Pedras Direitas do meu lado direito. À superfície a água estava menos fria e o puxão da corrente não era tão forte. Nadei com calma, num arco suave, da primeira pedra à segunda. As pedras estavam talvez afastadas cerca de três metros e meio no ponto mais largo, espalhando-se desigualmente desde a margem. 86 Propulsionando-me com os pés contra os pilares, avançava cerca de metro e meio corrente acima, voltando até ao pilar seguinte, onde recomeçava o processo. Como um barquinho lutando contra um vento forte, lá fui em direcção à pedra do Tesouro, sentindo a corrente tornar-se cada vez mais forte. Estava cheia de frio. Cheguei então ao quarto pilar e atireime em direcção ao meu objectivo. Quando a corrente me arrastou em direcção à Pedra do Tesouro, passei ao lado do pilar e houve um omento de um pânico súbito e faiscante à medida que comecei a descer rio abaixo, batendo com os pés e as mãos contra a água. Ofegante, quase a chorar de pânico, consegui chegar perto da pedra e agarrar o cadeado que prendia a Arca do Tesouro. Estava coberto de algas e o toque era desagradável, viscoso da lama acastanhada do rio, mas usei-a para chegar ao outro lado da pedra. Fiquei ali afincada por uns momentos, deixando que o meu


coração latejante se acalmasse. Depois, de costas encostadas com segurança contra o pilar, puxei a Arca do Tesouro do fundo do seu berço lamacento. Uma tarefa difícil. A caixa em si não era muito pesada, mas a corrente e a lona que a envolvia transformavam-na num peso morto. Já a tremer de frio, com os dentes a bater, debati-me com o cadeado e finalmente senti que algo dava de si. Batendo freneticamente com os pés para manter a minha posição contra o pilar, icei com mais força. Quase entrei de novo em pânico quando senti a lona viscosa tocarme nas pernas e depois senti finalmente a corda que prendia a caixa. Durante uns segundos tive a certeza de que os meus dedos perros não iam conseguir abrir a caixa, depois o fecho cedeu, deixando entrar água. Gritei um palavrão. Mas, enfim, lá estava a carteira, uma velha coisa de pele que a mãe deitara fora por ter o fecho estragado. Peguei nela e entalei-a entre os dentes, e depois, num último esforço, fechei a caixa e deixei-a ir ao fundo sob o peso do cadeado. A lona desaparecera, claro, e o resto do tesouro estava encharcado, mas não havia nada a fazer. O Cassis teria de encontrar um local mais seco para esconder os cigarros. Tinha o dinheiro, e isso era o que importava. Nadei de volta à margem, não consegui chegar aos dois últimos pilares e fui à deriva pelo menos vinte metros em direcção à estrada até conseguir livrar-me da corrente, que era agora, mais do que nunca, como um enraivecido cão acastanhado, com a trela loucamente emaranhada à volta das minhas pernas geladas. 87 Acho que todo aquele episódio deve ter demorado uns dez minutos. Obriguei-me a descansar uns minutos, sentindo na cara o


leve calor dos primeiros raios de sol a secarem-me na pele a lama do Loire. Tremia de frio e de excitação. Contei o dinheiro; havia o suficiente para um bilhete de cinema e um sumo. Óptimo. Depois fui até onde deixara a roupa. Vesti a velha saia e uma camisa de homem, vermelha e sem mangas, cortada para fazer de macacão e, calcei as socas. Fui dar uma olhada superficial às minhas armadiLhas, deitando fora o peixe miúdo ou deixando-o como isco. Numa das armadilhas para camarão-de-água-doce ao pé do Posto de Vigia havia um bónus inesperado, um pequeno lúcio - não o Velho, claro - e pu-lo dentro do balde que trouxera de casa. Enfiei as outras pescarias no balde: enguias apanhadas nos baixios lamacentos ao lado do grande banco de areia, e um alburnete de tamanho considerável numa das minhas redes apanha-tudo. Seriam o meu álibi se o Cassis e a Reine estivessem já a pé quando eu chegasse. E assim segui para casa pelos campos, tão discretamente como viera. E fiz bem em trazer o peixe. Quando cheguei, o Cassis estava a lavar-se debaixo da bomba e a Reinette aquecera uma panela de água e estava a lavar a cara delicadamente com uma toalha ensaboada. Durante uns segundos olharam para mim espantados mas depois a expressão do Cassis passou a um alegre desprezo. - Nunca desistes, pois não? - disse, virando a cabeça a pingar para o balde. - O que é que trazes aí afinal? Encolhi os ombros. - Um par de coisas - disse despreocupadamente. Tinha a carteira no bolso da camisa e sorri para mim ao sentir-lhe o peso reconfortante. - Um lúcio. Pequeno - acrescentei. O Cassis riu-se. - Podes conseguir apanhar os pequenos, mas


nunca apanharás o Velho - disse. - E mesmo que o apanhasses, o que é que fazias com ele? Um lúcio assim tão velho já não é bom para comer. Deve ser amargo como tudo e cheio de espinhas. - Hei-de apanhá-lo - disse, teimosa. - Ai sim? - O tom dele era despreocupado, de cepticismo. - E depois? Pedes um desejo, é? Pedes um milhão de francos e um apartamento na Margem Esquerda? Abanei a cabeça sem dizer palavra. 88 - Eu pediria para ser uma estrela de cinema - disse a Reine, enxugando a cara. - Para ver Hollywood e as luzes e Sunset Boulevard, e andar de limusina e ter dezenas e dezenas de vestidos. O Cassis lançou-lhe um breve olhar de desdém, o que me alegrou imenso. Depois virou-se para mim. - Bem, e tu, Boise? - O seu sorriso era impertinente e irresistível. - O que é que vai ser? Casacos de peles? Carros? Uma villa em Juan-les-Pins? Abanei novamente a cabeça. - Só vou saber quando o apanhar disse sem mais. - E vou apanhá-lo, vou. Vais ver se não. O Cassis observou-me por um momento, o sorriso fugindolhe do rosto. Depois fez um pequeno som de desagrado e tornou a prestar atenção às suas abluções. - És de mais, Boise - disse. - De mais mesmo, sabias? Depois despachámo-nos a acabar as tarefas diárias antes que a mãe acordasse. 89


11. Havia sempre muito que fazer numa quinta. Ir buscar água à bomba e deixá-la em baldes metálicos na cave para que o sol não a aquecesse; ordenhar as cabras, deixar o balde coberto com um pano de musselina e entregá-lo na leitaria; levar depois as cabras a pastar para que não comessem todos os legumes da horta, dar de comer aos patos e às galinhas; apanhar os morangos maduros do dia; atiçar o lume do forno, apesar de eu duvidar que a mãe fosse dedicar-se muito aos bolos nesse dia; levar o cavalo, Bécassine, a pastar e pôr água fresca no bebedouro. Naquele dia, trabaLhando o mais depressa que podíamos, demorámos quase duas horas a fazer tudo e, quando acabámos, o calor do dia aumentava, fazendo a humidade da noite começar a evaporar-se dos carreiros de terra batida e secando o orvalho na relva. Era hora de irmos. Nem o Cassis nem a Reinette mencionaram a questão do dinheiro. Não havia necessidade. Tinha de ser eu a pagar as minhas despesas, dissera o Cassis, pensando que tal seria impossível. Quando estávamos a apanhar os últimos morangos, a Reine olhara para mim de um modo estranho, talvez espantada de me ver tão segura de mim, e soltara uma gargalhadita quando cruzou o olhar com o do Cassis. Notei que se vestira com um cuidado especial naquela manhã: a saia às pregas de ir à escola, uma camisola vermelha de manga curta, meias pelo tornozelo e sapatos, e o cabelo enrolado na nuca numa espécie de gorda salsicha presa com ganchos. 90


Também tinha um cheiro estranho, um cheiro a pó doce, a malva e a violetas, e pusera o bâton vermelho. Iria encontrar-se com alguém? Talvez com um rapaz. Um colega da escola. O certo é que parecia mais nervosa que habitualmente, apanhando os morangos com a delicada pressa de um coelho a alimentar-se rodeado de doninhas. Enquanto avançava por entre canteiros de morangos, ouvi-a bichanar algo ao Cassis e depois ouvi o seu riso alto e nervoso. Pouco me importava. Provavelmente estavam a combinar ir a algum lado sem mim. Tinha persuadido a Reine para me levar, e eles cumpririam a promessa. Mas, para eles, eu não tinha dinheiro. Isso significava que podiam ir ao cinema sem mim, deixando-me talvez à espera ao pé da fonte na praça do mercado, ou enviando-me a fazer um recado imaginário enquanto iam encontrar-se com os amigos. Irritada, fiquei a remoer aquele pensamento. Era assim que eles supunham que ia acontecer. Estavam tão seguros de si mesmos que o óbvio nem sequer lhes ocorreu. A Reine nunca teria nadado no Loire até à Pedra do Tesouro. Para o Cassis, eu era ainda a irmã mais nova, com demasiada admiração e respeito pelo irmão mais velho para me atrever ao que quer que fosse sem a autorização dele. De vez em quando olhava para mim e sorria satisfeito, com um brilho de gozo nos olhos. Partimos para Angers às oito, comigo atrás na enorme e desajeitada bicicleta do Cassis, com os pés perigosamente enfiados debaixo do guiador. A bicicleta da Reine era mais pequena e mais elegante, com o guiador mais alto e um selim de pele. Na parte da frente tinha um cesto onde ela pusera um


termos com cevada e os três pacotes idênticos com as sandes. Atara um lenço branco à volta da cabeça para proteger o cabelo e as pontas fustigavam-lhe a nuca enquanto pedalava. Parámos três ou quatro vezes no caminho, para beber do termos, para verificar um pneu frouxo e para comer um pedaço do pão com queijo à laia de pequeno-almoço. Por fim, chegámos aos arredores de Angers, passámos pelo collège - fechado agora durante as férias e guardado por dois soldados alemães junto ao portão - e descemos por ruas ladeadas de casas de reboco em direcção ao centro O cinema, o Palais-Doré, ficava na praça principal, ao pé do sítio onde era o mercado. Havia várias fileiras de lojas à volta da praça, estando a maioria a abrir, e um homem estava a lavar o passeio armado de um balde de água e uma vassoura. 91 Lá prosseguimos empurrando as bicicletas, levando-as para uma ruela entre um barbeiro e um talho ainda fechado. A ruela era tão estreita que nem dava para passar e o chão estava cheio de lixo e restos; pensámos que as bicicletas ali estariam em segurança. Uma mulher sorriu-nos e acenou de um terrace de um café onde havia já alguns fregueses de domingo a beber canecas de cevada e a comer croissants ou ovos cozidos. Um moço de entregas passou por nós de bicicleta, fazendo tocar a campainha cheio de importância. Ao lado da igreja, um quiosque vendia boletins de uma página. O Cassis olhou em volta e aproximou-se do quiosque. Vi-o estender algo ao homem dos


jornais e este dar-lhe um embrulho que o Cassis rapidamente enfiou na cintura. - Que é isso? - perguntei curiosa. O Cassis encolheu os ombros. Percebi que estava muito contente consigo mesmo, demasiado contente para revelar a informação, só para me irritar. Deixou-me espreitar os papéis enrolados que voltou a esconder imediatamente a seguir, e, baixando a voz, disse em tom conspirativo: - Banda desenhada. Uma história de assassínio. - Piscou o olho à Reine com um ar importante. - Uma revista americana de cinema. A Reine deu um gritinho de entusiasmo e estendeu o braço. Deixa-me ver! Deixa-me ver! O Cassis abanou a cabeça, irritado. - Chiu! Por amor de Deus, Reine! - E depois em voz baixa mais uma vez: - Deviame um favor. Mercado negro - murmurou. - Tinha-as debaixo do balcão guardadas para mim. A Reinette olhou para ele cheia de admiração. Eu estava menos impressionada. Talvez porque não estivesse tão consciente da raridade de coisas daquele género; talvez porque as sementes da revolta que crescia já em mim me levavam a menosprezar tudo aquilo de que o meu irmão se sentisse demasiado orgulhoso. Encolhi os ombros para lhe mostrar a minha indiferença. Mesmo assim, tentei imaginar que tipo de favor o homem do jornais devia ao Cassis, e concluí que estava avangloriar-se. E disse-lho. - Se eu tivesse contactos no mercado negro - disse eu com uma sofrível demonstração de cepticismo -, faria com que me arranjassem algo melhor que velhos jornais ou revistas. 92 O Cassis parecia magoado. - Eu posso arranjar tudo aquilo que quero - disse com rapidez. - Banda desenhada, cigarros,


livros, café a sério, chocolate... - Desatou a rir com escárnio. - E tu nem consegues arranjar dinheiro para um mísero bilhete de cinema! - Ai não? - Sorri e tirei a carteira do bolso da frente. Abanei-a um bocadinho, para que ele ouvisse as moedas. Esbugalhou os olhos ao reconhecer a carteira. . - Ladra! - disse por fim. - És uma ladra, uma grandessíssima ladra! Olhei para ele sem dizer nada. - Onde é que arranjaste isso? - Nadei até à Pedra e tirei-a da caixa - respondi em tom de desafio. - De qualquer maneira, não foi roubar. O tesouro pertencia a todos. . Mas o Cassis nem me estava a ouvir. - Minha grandessíssima ladra! - disse de novo. Estava claramente perturbado por ver que não era só ele que conseguia o que queria por meio da astúcia. - Não vejo a diferença entre o que eu fiz e o teu mercado negro - disse eu calmamente. - É tudo o mesmo jogo, não é? E deixei-o digerir aquilo antes de continuar. - Tu estás é chateado por eu ser melhor que tu. Olhou para mim. - Não é nada a mesma coisa - disse por fim. Mantive a expressão de descrença. Era sempre tão fácil fazer o Cassis trair-se. Tal como o filho dele seria anos depois. Nenhum dos dois percebia o que era ser astuto. O Cassis pôs se muito vermelho e quase gritava, esquecendo-se do tom conspirativo: - Eu posso arranjar-te tudo o que queiras. Equipamento como deve ser para aquele teu estúpido lúcio sibilou com fúria. - Pastilha elástica, sapatos, meias de seda, e até roupa interior de seda! Desatei a rir perante aquilo. Educados como havíamos sido, a ideia de roupa interior de seda era ridícula. Furioso, o Cassis agarrou-me pelos ombros e começou a abanar-me. Pára com isso! - A voz esganiçada de fúria. - Eu tenho amigos! Conheço gente! Podia arranjar-te tudo o que quisesses!


Estão a ver como era fácil provocá-lo. De uma certa maneira, o Cassis era também um mimado, demasiado habituado a ser o admirado irmão mais velho, o homem da casa, o primeiro a ir para a escola, o mais alto, o mais forte, o mais esperto. 93 Os seus ocasionai repentes de rebeldia - quando fugia para o bosque, quando se armava em valente no Loire, quando roubava das bancas do mercado e das lojas de Angers - eram descontrolados, quase de histeria, Não tirava disso nenhum prazer. Era como se necessitasse de nos provar algo, ou a ele próprio. Sabia que o tinha surpreendido. Os seus polegares estavam tão enterrados nos meus braços que no dia a seguir teria duas grandes marcas tipo amoras maduras, mas fingi que não sentia nada. Limitei-me a olhar firmemente e tentei retribuir-lhe o olhar fixo. - Eu e a Reine temos amigos - continuou agora numa voz mais baixa, quase normal, com os polegares ainda espetados nos meus braços. - Amigos poderosos. Como é que achas que ela arranjou aquele estúpido bâton? Ou o perfume? Ou aquela porcaria que ela põe na cara à noite? Como é que achas que conseguimos essas coisas todas? Como é que achas que as ganhámos? Largou-me então os braços, com uma expressão de orgulho misturado com consternação, e apercebi-me então de que ele estava cheio de medo. 94


12. Não me lembro muito bem do filme que fomos ver, Circonstances Atténuantes, com Arletty e Michel Simon, um filme antigo que o Cassis e a Reine já tinham visto. Mas isso não pareceu incomodar a Reine, que passou o filme inteiro a olhar para o ecrã em transe. A mim a história pareceu-me inverosímil, demasiado distante da minha realidade. Além disso, tinha outras coisas em que pensar. A fita partiu-se duas vezes; da segunda vez, as luzes acenderam-se e as pessoas desataram a protestar. Um homem vestido de smoking e com um ar de sofrimento rogava que se fizesse silêncio. Um grupo de alemães sentados a um canto, com os pés em cima das cadeiras da frente, começaram a bater palmas lentamente. De repente, a Reine, que saíra do transe para se queixar irritada da interrupção, deu um gritinho de excitação. - Cassis! - Inclinou-se por cima de mim e pude cheirar o adocicado aroma químico no cabelo dela. - Cassis, ele está aqui! - Chiu! - sibilou o Cassis, furioso. - Não olhes para trás. A Reine e ele sentaram-se virados para a frente, tão inexpressivos como bonecos. Depois ele disse baixinho, como alguém a murmurar na missa. - Quem? A Reinette deitou uma olhadela aos alemães pelo canto do olho. - Ali atrás - respondeu ela da mesma maneira. - Com outros que não conheço. À nossa volta, estavam todos aos gritos e a bater com os pés. O Cassis atreveu-se a dar uma espreitadela rápida. 95


- Vou esperar até as luzes se apagarem - disse ele. Dez minutos depois as luzes diminuíram e o filme continuou. O Cassis levantou-se do assento, dirigindo-se para a parte de trás da sala. Segui-o. No ecrã, Arletty passeava-se com um vestido curto e decotado, fazendo olhinhos. O reflexo da imagem iluminava as nossas figuras seguidas e curvadas, tornando o rosto do Cassis numa máscara lívida. - Volta para trás, sua idiota - murmurou-me ele. - Não te quero comigo, a atrapalhar-me. Abanei a cabeça. - Eu não te atrapalho. A menos que tentes impedir-me de ir contigo. O Cassis fez um gesto de impaciência. Sabia que eu não estava a brincar. Apesar da escuridão, sabia que ele estava a tremer de excitação ou nervosismo. - Baixa-te - acabou por dizer. - E não digas nada. Sentámo-nos finalmente na parte de trás da sala, perto do grupo de soldados alemães que eram como uma ilha no meio dos espectadores. Vários deles estavam a fumar; de vez em quando víamos pontinhos vermelhos brilharem-lhes nas caras. - Vês aquele, lá ao fundo? - sussurrou ele. - É o Hauer. Quero falar com ele. Ficas ao pé de mim e não dizes nada, percebes? Não respondi. Não queria prometer nada. Foi sentar-se ao lado do soldado chamado Hauer. Olhei com curiosidade à volta e vi que ninguém estava a prestar-nos a menor atenção, excepto um alemão sentado atrás de nós, um jovem esguio, de feições duras, de boné inclinado para trás e um cigarro na mão. Ao meu lado, o Cassis sussurrava apressadamente com o Hauer e depois ouvi o barulho de papéis. O alemão de feições duras riu-se para mim e acenou com o cigarro. De repente reconheci-o, com um sobressalto. Era o soldado que estava no mercado, o que me tinha visto tirar a laranja. Durante um minuto fixei-o como que hipnotizada, sem me conseguir mexer. O alemão acenou de novo. O brilho do ecrã iluminava-lhe a


cara, criando-lhe sombras dramáticas nos olhos e faces. Lancei um olhar nervoso para o Cassis, mas o meu irmão estava demasiado embrenhado a falar com o Hauer para notar. O alemão continuava a olhar com expectativa, com um pequeno sorriso nos lábios, sentado a alguma distância dos outros. 96 Pegava no cigarro com a ponta virada para dentro e conseguia ver-lhe a mancha escura dos ossos sob a carne a brilhar. Estava de uniforme, mas tinha o casaco desabotoado. Por qualquer razão obscura, isso acalmou-me. - Anda cá - disse ele baixinho. Não conseguia falar. Sentia a boca como se estivesse cheia de palha. Teria desatado a correr se as minhas pernas me tivessem obedecido. Em vez disso, levantei o queixo e fui ter com ele. O alemão sorriu e levou mais uma vez o cigarro aos lábios. - És a rapariguinha da laranja, não és? - perguntou quando me aproximei. Não respondi. O alemão não parecia importar-se com o meu silêncio. - És rápida. Tão rápida como eu quando era miúdo. - Levou a mão ao bolso e tirou algo embrulhado em papel prateado. - Toma. Vais gostar. É chocolate. Olhei para ele com desconfiança. - Não quero. O alemão sorriu mais uma vez. - Gostas mais de laranjas, é isso? - Perguntou. Não respondi. - Lembro-me de um pomar ao pé do rio - disse o alemão baixinho. - Perto da aldeia onde cresci. Tinha as ameixas maiores e mais pretas que possas imaginar. Havia um muro alto a toda a volta. E cães de guarda. Durante o Verão inteiro quis chegar àquelas ameixas. Tentei de tudo. Já não me conseguia lembrar de mais nada.


Tinha uma voz agradável e com um leve sotaque e os olhos brilhantes por detrás da cortina de fumo. Observei-o, desconfiada, não me atrevendo a mexer, indecisa se ele estava a falar a sério ou a fazer pouco de mim. - Aliás, o que é roubado sabe sempre melhor do que o que nos dão de graça, não achas? Agora sabia que estava a fazer pouco de mim, e abri os olhos, indignada. O alemão viu a minha expressão e riu-se ainda com o chocolate na mão. - Vá lá, Backfisch, toma. Faz de conta que o estás a roubar aos boches. O quadrado de chocolate estava meio-derretido e comi-o logo. era chocolate a sério; nada daquela coisa esbranquiçada e granulosa que às vezes comprávamos em Angers. 97 Observou-me divertido enquanto eu comia e comecei a encará-lo com menos desconfiança mas com mais curiosidade. - E conseguiste apanhá-las? - perguntei por fim, com a boca cheia de chocolate. - As ameixas. O alemão assentiu com a cabeça. - Sim, Backfisch, cheguei. Ainda me lembro do sabor que tinham. - E não foste apanhado? - Fui. - O sorriso era agora de arrependimento. - Comi tantas que fiquei maldisposto e assim descobriram o que fizera. Levei cá uma tareia. Mas consegui o que queria. É isso que conta, não achas? - Acho - concordei. - Eu gosto de ganhar. - Calei-me.Foi por isso que não disseste a ninguém aquilo da laranja? O alemão encolheu os ombros. - Por que é que havia de dizer a alguém? Não era nada comigo. Além do mais, o merceeiro tinha muitas mais. Podia bem dispensar uma.


Anuí com a cabeça. - Ele tem uma carrinha - contei-lhe, lambendo a prata para não desperdiçar nenhum bocadinho de chocolate. O alemão parecia concordar comigo. - Algumas pessoas querem ficar com tudo para elas - disse. - Não é justo, pois não? Abanei a cabeça. - Como a Madame Petit, na loja de costura - disse eu. - Cobra uma fortuna por um bocado de seda de pára-quedas que não lhe custou nada. - Exactamente. Ocorreu-me então que talvez não devesse ter mencionado Madame Petit, e lancei-lhe um rápido olhar, mas ele nem parecia estar a ouvir. Estava a olhar para o Cassis, que ainda falava baixinho com o Hauer no fim da fila. Senti uma pontinha de irritação pelo facto de o Cassis poder interessá-lo mais do que eu. - É meu irmão - disse. - Ai é? - O alemão voltou a olhar para mim, a sorrir. - Que família. E são só vocês ou há mais? - Sou a mais nova, Framboise. - Muito prazer em conhecer-te, Françoise. Sorri-lhe. - Framboise - corrigi-o. - Leibniz. Tomas - E estendeu a mão. Hesitei uns segundos e depois apertei-lha. 98 13. foí assim que conheci o Tomas Leibniz. Por qualquer razão, a Reinette ficou furiosa por eu ter falado com ele e amuou durante o resto do filme. O Hauer dera sorrateiramente ao Cassis um maço de Gauloises e esgueirámo-nos de novo para os nossos lugares, com o Cassis a fumar um dos cigarros e eu


perdida em especulação. Só quando o filme acabou é que estava pronta para fazer perguntas. - Esses cigarros, era disso que estavas a falar quando disseste que conseguias arranjar coisas? - Claro. - O Cassis parecia contente consigo mesmo, mas eu sentia que a ansiedade não desaparecera. Segurava no cigarro com a ponta virada para a palma da mão, como se a imitar os alemães mas nele o gesto parecia desajeitado e pouco natural. - Contas-lhe coisas? É isso? - Nós às vezes... contamos-lhes coisas - admitiu o Cassis, sorrindo de modo afectado. - Que coisas? O Cassis encolheu os ombros. - Tudo começou com aquele velho parvo e o rádio - disse baixinho. - Só teve o que mereceu. Ele não devia ter aquilo afinal, e não devia ter fingido que estava muito chocado, quando tudo o que estávamos a fazer era observar os alemães. Às vezes deixamos recados a um mensageiro ou no café. Às vezes o homem dos jornais dá-nos as coisas e eles deixaram para nós. Às vezes são eles que as trazem. Tentava parecer descontraído, mas eu sentia que estava nervoso, irritadiço. 99 - Não é nada de importante - continuou. - De qualquer maneira, a maioria dos boches também utiliza o mercado negro, para mandar coisas para casa na Alemanha. Coisas que requisitaram, sabes. Portanto, não tem importância. Pensei naquilo. - Mas a Gestapo... - Oh, não sejas criança, Boise. - De repente estava irritado, como sempre que o pressionava. - Que sabes tu da


Gestapo. - Olhou em redor, nervoso, e voltou a baixar a voz. É claro que com esses não lidamos. Isto é diferente. Já te disse, é apenas negócio. E de qualquer maneira, não tens nada a ver com isso. Olhei para ele, magoada. - Porquê? Eu também sei coisas. Desejei ter dito ao alemão mais coisas sobre Madame Petit, dizer-lhe que ela era judia. O Cassis abanou a cabeça com desprezo. - São coisas que tu não entendes. Voltámos para casa num silêncio apreensivo, talvez com medo de que a mãe se tivesse apercebido da nossa viagem clandestina, mas quando chegámos estava até com uma disposição inusual. Não disse nada sobre o cheiro a laranjas, a insónia da noite, nem sobre as mudanças que eu fizera no quarto dela, e a refeição que nos preparou era quase um jantar festivo: sopa de chicória e cenoura, boudin noir com maçãs e batatas e, de sobremesa, panquecas de trigo-sarraceno e clafoutis pesado e húmido com as maçãs do ano anterior polvilhadas com açúcar mascavado e canela. Comemos em silêncio, como sempre, mas a mãe parecia ausente, até se esqueceu de me dizer que tirasse os cotovelos de cima da mesa e nem notou o meu cabelo despenteado e a minha cara suja. Talvez a laranja a tivesse domado, pensei. Mas no dia seguinte recuperou, voltando a ser como sempre, como que em vingança. Evitámo-la o mais possível, fazendo à pressa o que tínhamos de fazer e desaparecendo depois para o Posto de Vigia e para o rio, onde brincámos com pouca vontade. Às vezes o Paul vinha também, mas ele sentia que já não fazia parte de nós, que o havíamos excluído do nosso círculo.


Sentia-me um pouco culpada e com pena dele porque sabia o que era sentir-se excluído, mas não podia fazer nada para mudar a situação. O Paul teria de se defender sozinho, como eu. Além do mais, a mãe não gostava do Paul, tal como não gostava da família Hourias. Para ela, o Paul era um preguiçoso, demasiado indolente para ir à escola, demasiado estúpido para aprender a ler na aldeia com as outras crianças. 100 Os pais dele eram a mesma coisa - um homem que vendia minhocas à beira da estrada e uma mulher que remendava as roupas das outras pessoas. Mas a mãe era especialmente maldosa com o tio do Paul. Ao princípio pensei que fosse simples rivalidade como acontece nas aldeias pequenas. Philippe Hourias era dono da maior quinta de Les Laveuses, acres de girassóis, batatas, couves e beterrabas, vinte vacas, porcos, cabras, um tractor (numa altura em que a maioria das pessoas usava ainda arados manuais e cavalos) e uma verdadeira máquina de ordenha. Era ciúmes, pensava eu, o rancor da viúva lutadora contra o viúvo rico. Mesmo assim, parecia estranho, porque Philippe Hourias fora o melhor amigo do pai. Tinham crescido juntos, pescando e nadando juntos e partilhando segredos. Philippe esculpira ele mesmo o nome do pai no memorial de guerra e todos os domingos punha lá flores. Mas a mãe não lhe concedia mais do que um simples aceno de cabeça. Nunca uma alma gregária, depois do incidente da laranja parecia que a hostilidade dela aumentara ainda mais em relação a ele. Com efeito, foi só muito mais tarde que comecei a


aperceber-me da verdade. Quando li o álbum, mais de quarenta anos depois. Aquela letra minúscula e vacilante ao longo das páginas unidas e que me provocava dores de cabeça. "O Hourias já sabe", escreveu. "Vejo-o a olhar para mim de vez em quando. Pena à mistura com curiosidade, como se eu fosse algo que ele tivesse atropelado na estrada. Ontem à noite viu-me a sair do La Rép com as coisas que ali preciso de comprar. Não disse nada, mas soube que ele adivinhou. Ele acha que nos devíamos casar, claro. Para ele faz sentido que viúvo e viúva se juntem, casando assim as respectivas terras. O Yannick não tinha irmãos que tomassem conta da quinta quando morreu, e não se espera que uma mulher governe uma quinta sozinha". Se ela fosse uma mulher carinhosa por natureza, talvez eu tivesse suspeitado de algo mais cedo. Mas Mirabelle Dartigen não era uma mulher carinhosa; era feita de pedras de sal e lama do rio, as suas fúrias tão rápidas e selvagens e inevitáveis como relâmpagos de Verão. Nunca procurei saber a causa, simplesmente evitava as consequências o melhor que podia. 101

14. naquela semana não houve mais viagens a Angers, e nem o Cassis nem a Reinette pareciam dispostos a falar do nosso encontro com os alemães. Quanto a mim, sentia-me relutante em falar da minha conversa com o Leibniz, apesar de não conseguir


esquecê-la. Tanto me fazia sentir apreensiva como estranhamente poderosa. O Cassis andava irrequieto; a Reinette, amuada e descontente; e, para piorar as coisas, choveu a semana inteira, o Loire inchou, agourento, e os campos de girassóis estavam azuis com tanta água. Tinham passado sete dias desde a nossa última visita a Angers. Chegou o dia do mercado e desta vez a Reine acompanhou a mãe à cidade. O Cassis e eu ficámos na quinta zanzando descontentes debaixo das árvores encharcadas do pomar. As ameixas verdes lembravam-me o Leibniz - pensava nele com uma mistura de curiosidade e inquietude. Perguntava-me se alguma vez voltaria a vê-lo. E, então, inesperadamente, vi-o. Era dia de mercado, de manhã cedo, e era a vez do Cassis de ajudar com as provisões. A Reine tinha ido ao quarto fresco buscar os queijos novos embrulhados em parras, e a mãe recolhia os ovos no galinheiro. Eu acabava de voltar do rio com a pescaria da manhã, algumas percas e alburnetes que cortara em pedaços para servir de isco e pusera num balde ao pé da janela. Não era o dia em que os alemães costumavam aparecer, e portanto fui eu que abri a porta quando eles bateram. 102 Eram três; dois não reconheci, e o terceiro era o Leibniz, agora muito direito no seu uniforme, com a espingarda apoiada no braço. Os olhos dele abriram-se um pouco mais quando me viu, surpreendido, e depois sorriu. Se fosse outro alemão qualquer, talvez lhes tivesse fechado a porta na cara, como fez o Denis Gaudin quando lhe


quiseram requisitar o violino. De certeza que teria chamado a mãe. Mas desta vez fiquei insegura; fiquei à porta indecisa e pouco à vontade, a pensar no que devia fazer. O Leibniz virou-se para os outros dois e falou-lhes em alemão. Pelos gestos que acompanhavam as palavras, pareceu-me que tinha a intenção de inspeccionar ele próprio a nossa quinta enquanto os outros dois seguiam para as quintas dos Ramondins e dos Hourias. Um dos alemães olhou para mim e disse qualquer coisa. Os três riram, depois o Leibniz acenou com a cabeça e, ainda a sorrir, passou por mim em direcção à cozinha. Eu sabia que devia chamar a mãe. Quando os soldados apareciam, ela ficava mais maldisposta que nunca, tinha um ressentimento feroz em relação à presença deles e ao modo casual como se apropriavam do que quer que precisassem. E hoje mais que nunca. Já estava de mau humor e isto seria a gota de água. O Cassis explicara-me que as provisões estavam a diminuir. Até os alemães tinham de comer. "E comem como alarves", comentara indignado. "Devias ver a cantina deles: pães inteiros, com doce e patê e rillettes e queijo e anchovas salgadas e fiambre e couve e maçãs... nem ias acreditar!". O Leibniz fechou a porta atrás de si e olhou em volta. Afastado dos outros soldados, estava agora mais descontraído, mais como um civil. Tirou um cigarro do bolso e acendeu-o. - O que é que estás aqui a fazer? - perguntei por fim. - Nós não temos nada. - Ordens, Backfisch - respondeu com suavidade. - O teu pai está? - Não tenho pai - respondi, com um toque de desafio. - Foi morto pelos alemães. - Ah, lamento. - Parecia envergonhado, e senti-me inchar de prazer. - E a tua mãe?


- Está lá atrás. - Olhei-o nos olhos. - Hoje é dia de mercado. 103 - Se levarem o que temos para vender, ficamos sem nada. Com o que há, já só remediamos. Olhou em redor, pareceu-me que um pouco envergonhado. Vi que olhava para as lajes do chão, sempre limpas, para as cortinas, a toalha aos quadrados. Hesitava. - Tem de ser, Backfisch - disse baixinho. - Se não obedecer às ordens, castigam-me. - Podias dizer que não encontraste nada. Podias dizer que já não havia nada quando chegaste. - Talvez. - Os olhos dele detiveram-se no balde perto da janela. - Há um pescador na família, é? Quem? O teu irmão? Abanei a cabeça. - Eu. Ficara surpreendido. - Tu? Não pareces ter idade suficiente. - Tenho nove anos - disse, magoada. - Nove? - Os olhos brilhavam-lhe, mas mantinha uma expressão séria. - Eu também pesco, sabias? - segredou-me. - O que é que apanhas por aqui? Truta? Carpa? Perca? Abanei a cabeça. - Então? - Lúcio. Os lúcios são os mais inteligentes dos peixes de água doce. Astutos e cuidadosos apesar dos dentes enormes, é preciso escolher muito bem o isco para os atrair à superfície. Suspeitam da mais pequena coisa: uma minúscula mudança de temperatura, a sugestão de um movimento repentino. Não há uma maneira fácil e rápida de os pescar; além de muita sorte, pescar lúcio requer tempo e paciência.


- Bem, assim as coisas mudam de figura - disse ele, pensativo. - Não poderia nunca deixar de ajudar um pescador. Sorriu. - Com que então lúcios? Acenei que sim com a cabeça. - E usas o quê, minhoca ou pedaços de comida? - As duas coisas. - Muito bem. - Desta vez não sorriu; a coisa era séria. Observei-o em silêncio. Era uma táctica que deixava sempre o Cassis pouco à-vontade. - Não leves o que temos para vender no mercado - repeti. Silêncio outra vez. 104 Então o Leibniz assentiu. - Bem, suponho que podia inventar uma história qualquer para lhes contar - disse devagar. - Mas tens que ficar caladinha. Senão metes-me em trabalhos. Percebes? Acenei que sim com a cabeça. Era um pedido justo. Afinal, ele não dissera nada a ninguém sobre a laranja. Cuspi na palma da mão para selar o acordo. Sério, como se fosse um acordo entre adultos, o Leibniz apertou-me a mão. Em parte esperava que ele dissesse qualquer coisa em troca, mas não o fez, e isso agradou-me. O Leibniz não era como os outros, disse a mim mesma. Fiquei a vê-lo afastar-se. Não olhou para trás. Observei-o enquanto descia o carreiro em direcção à quinta dos Hourias; atirou a ponta do cigarro contra o anexo, fazendo saltar fagulhas vermelhas contra a parede de pedra cinzenta. 105 15.


Não contei nada nem ao Cassis nem à Reinette sobre o que se passara entre o Leibniz e eu. Contar o que acontecera seria desvalorizá-lo. Portanto, guardei bem o meu segredo, revirando-o na minha mente como um tesouro roubado. Isso dava-me um peculiar sentimento adulto de poder. Passei a sentir um certo desprezo pelas revistas de cinema do Cassis e pelo bâton da Reinette. Eles achavam-se tão espertos. Mas, na realidade, que tinham feito? Tinham-se portado como crianças a contar historinhas na escola. Os alemães tratavam-nos como crianças, subornando-os com bugigangas. O Leibniz não tentara subornar-me. Falara comigo de igual para igual, com respeito. A quinta dos Hourias fora duramente atingida. Foram requisitados ovos suficientes para uma semana, metade do leite, dois presuntos, quatro quilos e meio de manteiga, um barril de azeite, vinte e quatro garrafas de vinho, mal escondidas atrás de um painel falso na cave, mais uma série de compotas e picles. Foi o Paul que me contou. Senti pena dele eram os produtos do tio que alimentavam maioritariamente a família -, mas prometi a mim mesma partilhar a minha comida com ele sempre que pudesse. Além disso, estávamos apenas no início da temporada. Philippe Hourias cedo recuperaria o que perdera. E eu tinha outras coisas em que pensar. O saquinho com a casca de laranja estava ainda escondido onde eu o deixara. Não debaixo do meu próprio colchão, como a Reinette fazia para esconder os produtos de beleza que julgava serem secretos ainda. 106 O meu esconderijo secreto era bastante mais imaginativo. Pusera o saquinho dentro de um pequeno jarro com tampa de enroscar e afundara-o bem fundo dentro do barril que tinha


as anchovas salgadas que a mãe guardava na cave. Atara um cordel à volta da tampa para depois poder encontrá-lo quando precisava. Não era provável que fosse descoberto, pois a mãe odiava o cheiro forte das anchovas e geralmente mandava-me a mim buscar as que fossem precisas. Sabia que ia funcionar novamente. Sabia que voltaria a funcionar. Esperei até quarta-feira à noite. Desta vez escondi o saquinho no tabuleiro debaixo do fogão, onde o calor libertaria o vapor mais rapidamente. Não tardou muito para que a mãe começasse a esfregar as têmporas enquanto cozinhava no fogão, ralhando-me duramente se demorasse a levar-lhe lenha ou farinha, repreendendo-me: "Tem cuidado para não esbeiçares os meus pratos, rapariga!", e cheirando o ar como um animal confuso e angustiado. Fechei a porta da cozinha para concentrar os efeitos, e o aroma a laranja invadiu mais uma vez a divisão. Voltei a esconder o saquinho na almofada dela os pedaços de casca estavam já secos, enegrecidos pelo calor do fogão, e sabia que seria a última vez que poderia utilizar o saquinho -, cosendo-o por debaixo da cobertura às riscas. O jantar estava queimado. Ninguém ousou dizer nada, contudo, e durante a refeição a mãe não parou de levar as mãos à cabeça e de enfiar o dedo na frágil renda enegrecida das panquecas queimadas até eu quase gritar. Desta vez não perguntou se alguém tinha trazido laranjas para dentro de casa, mas notava-se que o queria fazer. Limitou-se a levar as mãos à cabeça e a esfarelar a comida e a enfiar os dedos e a remexer-se, quebrando por vezes o silêncio com uma dura exclamação de fúria por um de nós


desobedecer a uma regra doméstica menor. - Reine-Claude! O pão em cima da tábua do pão! Não quero que espalhes migalhas pelo chão que acabei de limpar! A voz dela estava irritadiça, exasperada. Cortei uma fatia de pão, deliberadamente virando o pão com a parte plana para cima. Nunca percebi porquê, mas isso sempre irritou a mãe, isso e o meu hábito de cortar os cantos do pão e não comer o resto. 107 - Framboise, vira o pão ao contrário! - Voltou a levar a mão às têmporas, fugidiamente, como para se certificar de que ainda lá estavam. - Quantas vezes é preciso dizer-te para... E interrompeu-se a meio da frase, a cabeça um pouco de lado e a boca aberta. Ficou assim mais ou menos trinta segundos, a olhar para o vazio com a expressão de um aluno a tentar lembrar-se do Teorema de Pitágoras ou da regra do ablativo absoluto. Os seus olhos eram de um verde-garrafa e vazios como o gelo de Inverno. Olhámos uns para os outros, a olhar para ela enquanto os segundos passavam. Depois mexeu-se de novo, um brusco e típico gesto de irritação, e começou a levantar a mesa, apesar de ainda irmos a meio da refeição. Mas também ninguém disse nada. No dia seguinte, como eu previra, não se levantou e nós fomos a Angers como da outra vez. Mas não fomos ao cinema; em vez disso, andámos pelas ruas, com o Cassis a fumar ostensivamente um dos cigarros dele, e fomos sentar-nos no terrasse de um café no centro, Le Chat Rouget. A Reinette e


eu pedimos um diabolo-menthe e o Cassis começou por pedir um pastis mas, cedendo ao olhar altivo do empregado, acabou por pedir um panaché. A Reine bebia com cuidado, tentando não esborratar o bâton. Parecia nervosa, movendo a cabeça de um lado para o outro como se estivesse à procura de alguma coisa. - Estamos à espera de quem? - perguntei-lhe com curiosidade. - Dos teus alemães? O Cassis olhou para mim. - O melhor é dizeres a toda a gente, não achas, minha idiota! - censurou. Baixou a voz. - Às vezes encontramo-nos aqui - explicou. - Podemos passar mensagens. Ninguém nota. Trocamos informação. - Que tipo de informação? Fez um som de escárnio. - De tudo - respondeu impaciente. Pessoas que têm rádio. Mercado negro. Traficantes. Resistência. Deu à última palavra uma ênfase especial, baixando ainda mais a voz. - Resistência - repeti. Tentem imaginar o que essa palavra significava para nós. Éramos crianças. Tínhamos as nossas regras. O mundo dos adultos era um planeta distante habitado por extraterrestres. Percebíamos muito pouco do que aí se passava. 108 Ainda percebíamos menos da Resistência, essa fabulosa quase-organização. Anos mais tarde, os livros e a televisão deram da Resistência uma imagem muito focada, mas eu não me lembro disso. Antes pelo contrário, lembro-me de uma grande confusão na qual boatos perseguiam contra-boatos, e


bêbedos nos cafés falando alto sobre o novo régime, e as pessoas fugiam para casa dos parentes que viviam no campo, longe do alcance do exército invasor que se espalhava já pelas cidades para além de qualquer tolerância. A Resistência única - o exército secreto do povo - era um mito. Havia vários grupos, comunistas, humanistas e socialistas, e candidatos a mártires e fala-baratos e bêbedos e oportunistas e santos, todos santificados pela passagem do tempo, mas não tinham nada de exército naqueles dias, e dificilmente era algo secreto. A mãe falava deles com desprezo. Segundo ela, tudo seria mais fácil para todos se as pessoas andassem de cabeça baixa. Mesmo assim, o que o Cassis murmurou, encheu-me de medo e admiração. Resistência. Era uma palavra que me sugeria aventura, drama. Despertava em mim imagens de bandos rivais lutando pelo poder, de fugas nocturnas, tiroteios, reuniões secretas, tesouros e perigos ultrapassados. De uma certa forma, era como os nossos jogos em anos anteriores - as armas das batatas, as palavras-passe, os rituais. O jogo tinha-se expandido um pouco, era só. As apostas eram mais altas. - Tu não sabes nada da Resistência - disse-lhe cinicamente, tentando não parecer impressionada. - Por enquanto talvez não - disse o Cassis. - Mas podíamos descobrir. Já descobrimos imensas coisas. - Não te preocupes - disse a Reinette -, não falamos de ninguém de Les Laveuses. Nunca denunciaríamos os nossos vizinhos. Anuí com a cabeça. Não seria justo. - De qualquer maneira, em Angers é diferente. Aqui toda a gente anda a fazer isso. Pensei naquilo. - Eu também podia descobrir coisas. - O que é que tu sabes? - disse o Cassis com desprezo. Estive quase a contar-lhe o que contara ao Leibniz sobre Madame Petit e o pára-quedas de seda, mas achei melhor


não. Em vez disso, fiz a pergunta que estava a perturbar-me desde que o Cassis mencionara o acordo com os alemães. 109 - O que é que eles fazem depois de vocês lhes contarem? Matam as pessoas? Enviam-nas para a Frente? - Claro que não. Não sejas parva. - Então fazem o quê? Mas o Cassis já não me estava a ouvir. Tinha os olhos fixos no quiosque dos jornais ao lado da igreja em frente, onde um rapaz de cabelo escuro, mais ou menos da nossa idade, estava a olhar insistentemente para nós. O rapaz fez um gesto impaciente na nossa direcção. O Cassis pagou as nossas bebidas e levantou-se. - Vamos disse. A Reinette e eu fomos atrás dele. O Cassis parecia amigo do rapaz - assumi que o conhecia da escola. A única coisa que consegui ouvir foi qualquer coisa sobre trabalho durante as férias e um riso nervoso e baixinho. Depois vi-o a dar ao Cassis um pedaço de papel dobrado. - Até logo - disse o Cassis, afastando-se casualmente. O papel era um recado do Hauer. Só o Hauer e o Leibniz falavam bem francês, explicou o Cassis enquanto líamos o bilhete à vez. Os outros - o Heinemann e o Schwartz - falavam um francês básico, mas o Leibniz podia passar por francês, por alguém da AlsáciaLorena talvez, com o sotaque gutural da região. Não percebi porquê, mas isso parecia agradar ao Cassis, como se passar informação a um quase-francês fosse menos repreensível. "Vem ter comigo ao portão da escola ao meio-dia", dizia o recado. "Tenho algo para ti". A Reinette tocou no papel com as pontas dos dedos. Estava corada de excitação. - Que horas são agora? - perguntou. -


Vamos chegar atrasados? O Cassis abanou a cabeça. - De bicicleta, não - disse, tentando um tom lacónico. Vamos lá a ver o que é que eles têm para nós. Enquanto tirávamos as bicicletas do lugar habitual no beco, notei que a Reinette tirou do bolso uma caixinha de pó-de-arroz e se viu rapidamente ao espelho. Fez uma careta; tirou o bâton do bolso do vestido, retocou os lábios de escarlate, sorriu, voltou a retocar e sorriu mais uma vez. 110

Depois fechou a caixinha. Aquilo não me surpreendeu nem um pouco. Já tinha percebido desde o início que os planos dela incluíam mais do que ir ao cinema. O cuidado com que se vestia, a atenção que prestava ao cabelo, o bâton e perfume, tudo isto devia estar destinado a atrair a atenção de alguém. Para ser franca, não era assunto que me interessasse por aí além. Já estava habituada às manias da Reinette. Aos doze anos, já parecia ter dezasseis. Com o cabelo arranjado naquele penteado sofisticado e de lábios vermelhos, até parecia mais velha. Eu já tinha reparado nos olhares que lhe deitavam as pessoas na aldeia. O Paul Hourias ficava de língua atada e todo envergonhado ao pé dela - e até o Jean-Benet Darius, que era um velho de quase quarenta anos, e o Guguste Ramondin eo Raphaél no café. Os rapazes olhavam para ela; isso eu sabia. E ela também. Desde o primeiro dia de aulas que a Reine voltara para casa com histórias sobre os rapazes que conhecera. Uma semana era o Justin, que tinha uns olhos lindos, ou o Raymond, que fazia rir a turma inteira, ou o Pierre-André, que jogava xadrês, ou o Guillaume, cujos pais se haviam mudado de Paris


no ano anterior. Agora que penso nisso, consigo lembrar-me da altura em que essas histórias cessaram. Deve ter sido mais ou menos na mesma altura em que as tropas alemãs chegaram. Mas aquilo interessava-me muito pouco. Era certo que havia algo de misterioso naquilo, disse a mim mesma, mas os segredos da Reinette raramente me intrigavam. O Hauer estava de guarda ao portão. Agora via-o melhor à luz do dia: um alemão de cara larga e uma expressão quase vazia. Disse em voz baixa, falando pelo canto da boca e acenandonos cheio de uma impaciência zombeteira, como se estivesse a mandar-nos fazer as malas: - Rio acima, mais ou menos uns dez minutos. - Montámos novamente nas nossas bicicletas, não olhando para ele uma segunda vez, nem sequer a Reinette, o que me levou a concluir que não podia ser ele o objecto da paixão dela. Daí a menos de dez minutos vimos o Leibniz. Ao princípio pensei que estava à paisana, mas depois percebi que simplesmente despira o casaco e descalçara as botas e estava sentado no parapeito com as pernas a abanar por cima da manhosa correnteza do Loire acastanhado. Saudou-nos com um jovial aceno de mão e fez sinal para nos aproximarmos. Levámos as bicicletas até à margem para que não ficassem à vista de quem passasse na estrada e depois sentámo-nos ao lado dele. 111


Parecia mais novo do que eu me lembrava, quase tão novo quanto o Cassis, se bem que se movesse com uma confiança despreocupada que o meu irmão nunca teria, por muito que tentasse. O Cassis e a Reinette olharam para ele em silêncio, como as crianças no jardim zoológico a olhar para um animal perigoso. A Reinette estava escarlate. O Leibniz não parecia impressionado com o nosso escrutínio e acendeu um cigarro, sorrindo. - A viúva Petit - disse por fim através de uma nuvem de fumo. - Muito bem. - Riu-se. - Seda de pára-quedas e uma data de outras coisas; era um verdadeiro mercado negro, aquela loja.Piscou-me o olho. - Bom trabalho, Backfisch. Os outros olharam para mim surpreendidos, mas não disseram nada. Permaneci em silêncio, dividida entre o prazer e o nervosismo por aquelas palavras de aprovação. - Esta semana tenho tido sorte - continuou o Leibniz no mesmo tom. - Pastilha elástica, chocolate e... - levou a mão ao bolso e tirou um embrulho - isto. Isto era um lenço, debruado a renda, que deu à Reinette. A minha irmã ficou vermelha de vergonha. Depois virou-se para mim. - Então e tu, Backfisch, o que é que tu queres? - Sorriu. - Bâton? Creme para a cara? Meias de seda? Não, isso faz mais o género da tua irmã. Uma boneca? Um urso de peluche? - Estava a fazer pouco de mim, mas sem malícia, de olhos brilhantes cheios de reflexos prateados. Agora teria sido a altura para admitir que aquilo da Madame Petit não passara de um descuidado lapso meu. Mas o Cassis ainda estava a olhar para mim com aquela expressão de espanto e o Leibniz sorria. De repente tive uma ideia. Nem hesitei. - Equipamento de pesca - disse de imediato. Equipamento de pesca verdadeiro. - Calei-me e olhei-o fixamente com um ar insolente, de olhos nos olhos: - E uma laranja.


112 16. Voltámos a encontrar-nos com ele no mesmo local uma semana depois. O Cassis contou-lhe um rumor sobre sessões de jogo ilegais que tinham lugar a altas horas da noite no Chat Rouget e sobre algo que ouvira o curé Traquet dizer no cemitério sobre um esconderijo secreto da prata da igreja. Mas o Leibniz parecia preocupado com outras coisas. - Tive de trazer isto às escondidas - disse-me. - Não iam gostar se soubessem que trazia isto para ti. - Tirou de debaixo do casaco, que pousara descuidadamente, um saco estreito, de tecido grosso e verde, que fez um barulhinho quando mo estendeu. - É para ti. Vá lá - disse ao ver-me hesitar. O saco continha uma cana de pesca. Não era nova, mas até eu podia ver que era de boa qualidade. Bambu escuro, quase preto com o uso, e um carretel de metal brilhante que rodava perfeitamente sob os meus dedos como se estivesse sobre rolamentos. Dei um longo e lento suspiro de espanto. - E... meu? - perguntei, achando aquilo difícil de acreditar. O Leibniz riu alegremente. - Claro - respondeu. - Nós, pescadores, temos de olhar uns pelos outros, não é verdade? Toquei na cana com dedos hesitantes e ávidos. O carretel estava frio e um pouco pegajoso, como se tivesse estado embrulhado em gordura. - Mas tens cuidado com ela, está bem, Backfisch? - disse-me. - E não dizes nada aos teus pais nem aos teus amigos. Sabes guardar um segredo, não sabes?


113 Acenei com a cabeça. - Claro. Ele sorriu. Os seus olhos eram límpidos, de um cinzento-escuro. - Vê se apanhas aquele lúcio de que falaste, está bem? Acenei novamente e ele riu-se. - Acredita no que te digo, com essa cana, até apanhavas um submarino! Olhei atentamente por um momento, só para ver se ele estava a fazer pouco de mim. Era óbvio que estava divertido, mas era uma espécie de brincadeira, decidi, e ele cumprira com a sua parte do acordo. Só uma coisa me perturbava. - A Madame Petit - comecei, hesitante. - Não lhe vai acontecer nada de mal, pois não? Levou mais uma vez o cigarro aos lábios e depois atirou a beata ao rio. - Acho que não - disse despreocupadamente. - A menos que ela comece a falar. - Lançou-me um súbito olhar penetrante, que incluía o Cassis e a Reinette. - E vocês os três também não contam nada disto a ninguém, ouviram? Anuímos com a cabeça. - Ah, tenho mais uma coisa para ti. - Levou a mão ao bolso. - Têm é de dividir porque só encontrei uma. - E estendeu-me uma laranja. Ele tinha charme, percebem? Estávamos todos sob o seu encanto; o Cassis menos que a Reine e eu, talvez, porque era mais velho e compreendia melhor os perigos que enfrentávamos. A Reinette era toda ela timidez e faces coradas e eu... enfim, talvez fosse eu quem mais estava sob o encanto dele. Tudo começou com a cana de pesca, mas também com uma série de outras coisas: o sotaque, os modos indolentes que tinha, o ar despreocupado, o riso. Oh, o Leibniz era um verdadeiro sedutor, não há dúvida, não era nada como o Yannick, o filho


do Cassis, com os seus modos bruscos e os seus olhos de fuinha. Não, o Tomas Leibniz tinha qualquer coisa, até para uma criança solitária com a cabeça cheia de tolices. Não sei bem o que era. A Reine talvez dissesse que era o modo como ele nos olhava sem dizer nada, ou a maneira como os olhos dele mudavam de cor - umas vezes verdesacinzentados, outras cinzentos-acastanhados como o rio -, ou o modo como andava, com o boné inclinado para trás e as mãos nos bolsos como um rapaz armado em cábula na escola. O Cassis talvez dissesse que era a sua imprudência, o modo como nadava no Loire na parte mais larga ou se pendurava de pernas para o ar 114 no Posto de Vigia como se tivesse catorze anos, com o desprezo pelo perigo que só se tem nessa idade. Sabia tudo sobre Les Laveuses mesmo antes de lá ter chegado. Era um rapaz do campo, da Floresta Negra, e estava sempre a contar histórias sobre a família, sobre as irmãs, sobre os irmãos, sobre os planos que tinha. Estava sempre a fazer planos. Havia dias em que tudo o que dizia parecia começar com as mesmas palavras: "Quando eu for rico e a guerra tiver acabado...". Ah, não havia limite para o que ele faria então. Foi o primeiro adulto que conhecemos que ainda pensava como uma criança, fazia planos como uma criança, e se calhar foi isso que, afinal, nos atraiu nele. Era como nós, é tudo. Jogava pelas nossas regras. Até àquela altura, matara um inglês e dois franceses. Não o escondia mas, da maneira como contava a história, podíamos jurar que não tivera alternativa. Um deles podia ter sido o nosso pai, pensei depois. Mas, mesmo assim, ter-lhe-ia perdoado. Ter-lhe-ia perdoado qualquer coisa. É claro que ao princípio não confiava nele. Encontrámo-nos


com ele mais três vezes, duas vezes só nós ao pé do rio, e outra no cinema com os outros - o Hauer, o Heinemann baixinho e de cabelo cenoura e o gordo e lento Schwartz. Enviámos duas vezes recados pelo rapaz do quiosque e das duas vezes recebemos cigarros, revistas, livros, chocolate e umas meias de nylon para a Reinette. Em geral, as pessoas não temem as crianças. Não se preocupam tanto com o que dizem. Juntávamos mais informação dessa maneira do que alguma vez se possa imaginar, e contávamos tudo ao Hauer, ao Heinemann, ao Schwartz e ao Leibniz. Os outros soldados quase nunca nos falavam. O Schwartz, que falava algum francês, às vezes punha-se a olhar para a Reinette e murmurava-lhe coisas num alemão gutural e pegajoso. O Hauer era desajeitado, e o Heinemann era cheio de uma energia nervosa, sempre a coçar a curta barba avermelhada que era como uma parte indelével do seu rosto. Com os outros não me sentia à vontade. Mas com o Tomas sim. O Tomas era um de nós. Conseguia tocar-nos de uma maneira que mais ninguém conseguia. Não era nada tão óbvio como a indiferença da nossa mãe, ou a morte do nosso pai, ou até a falta de amigos ou as privações da guerra. Aliás, nós nem tínhamos consciência dessas coisas, vivendo como vivíamos no nosso pequeno e travesso mundo imaginário. 115 É claro que nos surpreendia o modo como precisávamos desesperadamente do Tomas. Não pelo que nos trazia - o chocolate, as pastilhas elásticas, os produtos de maquilhagem e as revistas. Precisávamos de alguém que ouvisse as nossas proezas, alguém para impressionarmos, um companheiro de


conspiração com a energia da juventude e a sabedoria da experiência, um contador de histórias melhores com as quais o Cassis nem sonharia sequer. É claro que não aconteceu de um dia para o outro. Nós éramos animais selvagens, como dizia a mãe, e precisávamos de ser domados. Ele deve ter percebido isso desde o início, a avaliar pela maneira como se dispôs a ganhar a nossa confiança, fazendo cada um de nós sentir-se especial. Até hoje, meu Deus, quase acredito no que dizia. Até hoje. Escondi a cana de pesca bem escondida na Arca do Tesouro. Tinha de ter muito cuidado quando a utilizava, porque toda a gente em Les Laveuses gostava de se meter onde não era chamada e um pequeno comentário seria suficiente para alertar a mãe. O Paul sabia, claro, mas disse-lhe que pertencera ao meu pai e, gago como era, nunca foi pessoa para mexericos. De qualquer maneira, se ele alguma vez suspeitou de alguma coisa, nunca me disse nada, e eu estava-lhe muito grata por isso. Julho revelou-se quente e amargo, com trovoadas dia sim, dia não e revoltos céus púrpura-cinzentos sobre o rio. O Loire transbordou no fim do mês, levando todas as minhas armadilhas e redes pela corrente abaixo, e depois inundou os campos de milho dos Hourias, que estava amarelo-verde e a três semanas de ser apanhado. Choveu quase todas as noites naquele mês. Trovejava sem parar, como se alguém no céu estivesse a amachucar enormes folhas de papel de alumínio. A Reinette gritava e escondia-se debaixo da cama, e eu e o Cassis púnhamo-nos à janela de boca aberta a ver se conseguíamos captar ondas de rádio com os dentes. A mãe teve mais dores de cabeça do que nunca, e eu só utilizei o saquinho - agora revitalizado com a casca da laranja que o Tomas nos dera -


duas vezes nesse mês e no seguinte. O resto era problema dela; dormiu mal várias vezes e não foram poucas as que se levantou tarde, maldisposta e sem nenhuma paciência para nós. Nessas alturas eu pensava no Tomas como um esfomeado pensa em comida. Acho que os outros também. A chuva também destruiu muita da nossa fruta. Maçãs, pêras e ameixas inchavam de modo grotesco, depois abriam e apodreciam nas árvores; as vespas enfiavam-se nas fissuras apodrecidas e as árvores tornavam-se castanhas, num zumbido indolente. 116 A mãe fez o que pôde. Cobriu algumas das suas árvores preferidas com oleado para as proteger da chuva, mas até isso de pouco serviu. O solo, branco e seco depois do sol de Junho, estava feito num lamaçal, e as árvores estavam em poças de água, as raízes expostas e apodrecendo, A mãe pôs serradura e mais terra em volta das suas bases para impedir que apodrecessem, mas não adiantou. A fruta caiu ao chão e fez um adocicado caldo de lama. A que conseguimos salvar, apanhámos e transformámos em compota, mas todos sabíamos que a colheita estava arruinada. A mãe deixou completamente de nos falar. Durante aquelas semanas, a boca dela esteve permanentemente fechada numa linha branca horizontal, os olhos como buracos. O tique que anunciava as dores de cabeça era quase


permanente, e o nível do frasco de comprimidos diminuiu mais depressa que nunca. Os dias de mercado eram particularmente silenciosos e tristes. Vendemos o que pudemos - as colheitas tinham sido más em todo o condado e não havia um único agricultor ao longo do Loire que não tivesse sofrido; feijão, batata, cenoura, abóbora e até o tomate, tudo apodrecera com a água e o calor e havia pouco que vender. Tivemos de começar a vender as nossas provisões de Inverno, as conservas e os chouriços, terrines e confits que a mãe fizera da última vez que matáramos um porco e, como estava desesperada, tratava cada venda como se fosse a última. Por vezes tinha um ar tão carrancudo que os clientes preferiam recuar e desaparecer em vez de lhe comprarem o que quer que fosse, e eu ficava ali contorcendo-me de vergonha por ela - por nós -, enquanto ela continuava de cara-de-pau e cega a tudo, com um dedo na têmpora, como o cano de uma espingarda. Um dia chegámos ao mercado e vimos que a loja de Madame Petit estava fechada. Monsieur Loup, o homem da peixaria, disse-me que ela fizera as malas e se fora embora sem dar explicações nem dizer para onde ia. - Foram os alemães? - perguntei, pouco à vontade. - Quer dizer, por ela ser judia e isso? Monsieur Loup lançou-me um olhar esquisito. - Não sei de nada - respondeu. - Só sei que se foi embora. Do resto, não sei de nada, e se fores esperta não te ponhas para aí a dizer essas coisas. O olhar dele era tão frio e reprovador que pedi desculpa


toda embaraçada e afastei-me, quase me esquecendo de levar o meu embrulho de restos. 117 O meu alívio pelo facto de Madame Petit não ter sido presa misturava-se com um sentimento de desilusão. Meditei em silêncio por momentos, e depois comecei discretamente a fazer perguntas em Angers e na aldeia a respeito das pessoas sobre as quais passáramos informações aos alemães: Madame Petit; Monsieur Toupet ou Toubon, o professor de Latim; o barbeiro em frente ao Chat Rouget, que recebia tantas encomendas; os dois homens que ouvíramos conversar à porta do Palais-Doré numa quinta-feira depois do filme. Por estranho que pareça, a possibilidade de a nossa informação não ter nenhum valor talvez para divertimento do Tomas e dos outros - perturbavame mais que a possibilidade de termos feito mal às pessoas que denunciávamos. Penso que o Cassis e a Reinette já sabiam a verdade. Mas nove anos é um continente diferente de doze ou treze anos. Pouco a pouco descobri que nem uma das pessoas que denunciáramos tinha sido presa ou sequer interrogada, que nem um único lugar que mencionáramos fora revistado pelos alemães. Até o misterioso desaparecimento de Monsieur Toubon foi facilmente explicado. - Ah, foi ao casamento da filha, em Rennes - disse-me Monsieur Doux descontraidamente. - Não há mistério nenhum, filha. Eu próprio lhe entreguei o convite. Aquilo preocupou-me durante quase um mês, até a incerteza


se transformar num enxame de vespas, todas a zumbirem ao mesmo tempo na minha cabeça. Pensava naquilo enquanto estava a pescar ou a montar armadilhas, quando brincava com o Paul ou cavava tocas no bosque. Emagreci. A mãe olhava-me com um ar crítico e dizia que eu estava a crescer tão depressa que a minha saúde se ressentia. Levou-me ao Docteur Lemaitre, que me receitou um copo diário de vinho tinto, mas nem isso adiantou. Comecei a imaginar que me seguiam, que toda a gente falava de mim. Perdi o apetite. Comecei a pensar que talvez o Tomas e os outros fossem membros secretos da Resistência e que naquele mesmo momento planeavam eliminar-me. Por fim, contei ao Cassis o que me preocupava. Estávamos sozinhos no Posto de Vigia. Chovera novamente e a Reinette estava em casa com uma constipação. Não tencionava contar-lhe tudo mas, depois de começar, começaram a sairme as palavras como areia de um saco rebentado. Nada as parava. 118

Tinha na mão o saco verde com a cana e, num ataque de fúria, atirei-o da árvore para os arbustos, acabando por cair numa silva cheia de amoras. - Não somos nenhuns bebés. - gritei, furiosa. - Eles não


acreditam no que lhes contamos? Por que é que o Tomas me deu isto - fiz um gesto de desprezo em direcção à cana - se eu não o merecia? O Cassis olhou para mim, espantado. - Até parece que queres que alguém seja fuzilado - disse pouco à vontade. - Claro que não. - A minha voz era sombria. - Só pensei que... - Nunca pensaste nada. - O tom era o do Cassis mais velho, superior, impaciente e zombador. - Achavas mesmo que teríamos ajudado a prender pessoas ou a matá-las? É isso que achavas que fazíamos? - Parecia chocado, mas eu sabia que no fundo se sentia lisonjeado. . Era isso mesmo que pensava, disse a mim mesma. Se isso te conviesse, era exactamente o que farias, Cassis. Encolhi os ombros. - És tão ingénua, Framboise - disse o meu irmão, soberbo. - Realmente, és demasiado nova para estares envolvida numa coisa destas. Foi nessa altura que percebi que nem ele soubera exactamente o que se passava ao princípio. Fora mais rápido do que eu, mas ao princípio também não percebera. Naquele primeiro dia no cinema ele tivera medo a sério, ficara amargo de suor e excitação. E mais tarde, quando falava com o Tomas, eu vira-lhe medo nos olhos. Mais tarde, só mais tarde, é que ele percebera a verdade.O Cassis fez um gesto impaciente e virou-me as costas. - Chantagem! - gritou furioso na minha cara, fustigando-me com perdigotos. - Não percebes? É só isso! Achas que eles estão a divertir-se com esta situação na Alemanha? Achas que é fácil para eles? Achas que estão melhor que nós? Que os filhos


deles têm sapatos ou chocolate ou essas coisas? Não achas que às vezes eles também podem querer algumas dessas coisas? Olhei para ele, boquiaberta. - Nunca pensaste em nada. - Sabia que ele estava furioso, não com a minha ignorância, mas com a sua própria. - Lá a situação é exactamente a mesma, minha estúpida! - gritou. Eles andam a pôr coisas de lado para depois mandarem para casa. Tentam descobrir coisas sobre as pessoas e depois fazem-nas pagar para que não digam nada a ninguém. 119 Ouviste o que ele disse da Madame Petit: Um verdadeiro mercado-negro. Achas que a deixavam ir -se embora se ele tivesse contado a alguém o que sabia? - Agora estava a ofegar, quase a rir. - Nem penses! Não sabes o que fazem aos judeus em Paris? Nunca ouviste falar dos campos de concentração? Encolhi os ombros, sentindo-me estúpida. Claro que ouvira falar daquelas coisas. Só que em Les Laveuses era diferente. Claro que todos ouvíramos boatos, mas na minha cabeça tudo se havia de algum modo confundido com o Raio da Morte da Guerra dos Mundos. Hitler estava misturado com as fotografias de Charlie Chaplin que vira nas revistas de cinema da Reinette, os factos misturados com o folclore, boatos, ficção e reportagens da guerra confundiam-se com a série dos guerreiros intergalácticos além do planeta Marte, e com raides aéreos nocturnos sobre o Reno, pistoleiros confundiam-se com pelotões de fuzileiros, os submarinos com o Nautilus das Vinte Mil Léguas Submarinas. - Chantagem? - repeti, atónita. - Negócios - corrigiu o Cassis numa voz séria. - Achas justo


que algumas pessoas tenham chocolate e café e sapatos como deve ser e revistas e livros enquanto outras têm que passar sem isso? Não achas que deviam pagar por esses privilégios? Dividir com os outros aquilo que têm? E hipócritas e mentirosos como o Monsieur Toubon? Não achas que essas pessoas também deviam pagar? Ainda por cima podem pagar. O que fazemos não faz mal a ninguém. Até parecia o Tomas a falar. Isso fez com que aquelas palavras fossem difíceis de ignorar, e anuí lentamente. O Cassis parecia aliviado. - Nem sequer se pode dizer que é roubo - continuou com avidez. - As coisas do mercado negro pertencem a todos. Só o faço para recebermos a nossa parte. - Como o Robin dos Bosques. - Exactamente. Assenti mais uma vez. Posto daquela maneira, parecia perfeitamente justo e razoável. Satisfeita, fui buscar a cana onde caíra no silvado de amoras, feliz por afinal sempre a ter merecido. 120 TERCEIRA PARTE A Rulote dos Petiscos 1. Foi talvez cinco meses depois da morte do Cassis - três anos depois da história da Mamie Framboise - que o Yannick e a Laure voltaram a Les Laveuses. Estávamos no Verão e a minha filha Pistache viera passar uns dias com as filhas Prune e


Ricot, e até então tudo correra bem. As crianças estavam a crescer tão depressa e tão queridas, tal como a mãe - a Prune, de olhos cor de chocolate e cabelo encaracolado, e a Ricot alta e com faces de veludo, ambas tão alegres e marotas que quase se me parte o coração ao vê-las, tantas são as memórias que me despertam. Juro que me sinto quarenta anos mais nova cada vez que me vêm visitar, e naquele Verão ensinei-as a pescar e a preparar armadilhas, a fazer bolos de caramelo e doce de figo; a Ricot e eu lemos Robinson Crusoe e Vinte Mil Léguas Submarinas, e contei à Prune mentiras incríveis sobre o peixe que eu apanhara e todas trememos de medo com a história do terrível dom do Velho. - Diziam que quem o apanhasse e voltasse a soltá-lo tinha direito a um desejo, mas que aconteceria algo terrível a quem o visse, mesmo se fosse só pelo canto do olho, e não o apanhasse. A Prune olhou para mim com enormes olhos cor de margarida, com um polegar confortavelmente enfiado na boca. - Terrível como? - perguntou baixinho. - Morrias, querida - respondi numa voz baixa e ameaçadora. Ou outra pessoa qualquer. Alguém de quem gostasses. Ou algo ainda pior. De qualquer maneira, mesmo se sobrevivesses, a maldição do Velho seguir-te-ia até à morte. 123 A Pistache virou-se para mim com um olhar brando. - Maman, não percebo por que é que lhe conta essas coisas disse num tom de censura. - Quer quela tenha pesadelos e faç chichi na cama? - Eu não faço chichi na cama - protestou a Prune. Olhou para mim ansiosa, agarrando-me a mão - Mémée, alguma vez viste


o Velho? Viste? Viste? De repente senti um arrepio e desejei não lhes ter contado aquela história. A Pistache lançou-me um olhar penetrante e começou a levantar a Prune do meu colo. - Prunette, agora tens de deixar a Mémée em paz. Está quase na hora de ir para a cama, e nem sequer lavaste os dentes ainda nem... - Por favor, Mémée, Viste? Viste-o? Abracei a minha neta, e o arrepio diminuiu um pouco. Minha querida, tentei apanhá-lo durante um Verão inteiro, com redes e linha e nassas e armadilhas. Punha novas armadilhas todos os dias e ia duas vezes por dia ou mais ver se já tinha apanhado alguma coisa. A Prune olhou para mim com um olhar solene. - Querias muito o desejo, hum? Anuí. - Suponho que sim. - E apanhaste-o? Tinha o rosto a brilhar. Cheirava a biscoitos e a relva acabada de cortar, o maravilhoso aroma quente da juventude. Os velhos necessitam da juventude à volta deles, sabem, para recordarem. Sorri. - Apanhei-o sim. Ela arregalou os olhos. Perguntou-me num murmúrio: - E o que é que lhe pediste? - Não pedi nada, querida - respondi serenamente. - Ele fugiu? Abanei a cabeça. - Não, apanhei-o mesmo. A Pistache estava agora a olhar para mim, de rosto na sombra. A Prune pôs as mãozinhas rechonchudas na minha cara e perguntou com impaciência: - Então o que é que aconteceu? Olhei para ela durante uns momentos. - Não voltei a lançá-lo


à água - disse-lhe. - Acabei por o apanhar, mas depois não o soltei. Mas não tinha sido exactamente assim, disse a mim mesma. Não era bem verdade. 124 Beijei a minha neta e disse-lhe que depois lhe contava o resto, que de qualquer maneira não sabia por que é que estava a contar-lhe uma data de velhas histórias de pesca; e apesar dos protestos dela, lá conseguimos convencê-la a ir para a cama, com disparates e mimos. Nessa noite, muito depois de os outros estarem a dormir, voltei a pensar naquilo. Nunca tive problemas de insónia, mas naquela noite devo ter demorado horas até me acalmar, e mesmo assim sonhei com o Velho naquela água escura, eu a nadar, a ser puxada, a puxar, como se nenhum de nós suportasse largar o outro. Enfim, foi pouco depois disso que o Yannick e a Laure voltaram. Primeiro ao restaurante, quase humildemente, como clientes normais. Comeram brochet angevin e tourteau fromage. Observei-os furtivamente da cozinha, mas portaram-se bem e não causaram qualquer problema. Falavam um com o outro em voz baixa, não fizeram pedidos extravagantes de vinho e, pela primeira vez, refrearam-se de me chamarem Mamie. A Laure foi muito simpática e o Yannick cordial; queriam ambos agradar. Foi com alívio que reparei que já não se tocavam nem beijavam constantemente em público, e até consegui distender-me o


suficiente para falar com eles enquanto comiam a sobremesa e tomavam o café. A Laure envelhecera em três anos. Emagrecera - pode ser que esteja na moda, mas a ela não lhe ficava nada bem - e o cabelo era um liso capacete de cobre. Parecia também nervosa e adquirira o hábito de esfregar a barriga, como se ali tivesse uma dor. Tanto quanto podia ver, o Yannick não mudara nada. O restaurante estava a ir bem, disse-me contente. Bastante dinheiro no banco. Estavam a planear uma viagem às Bahamas na Primavera; há anos que não iam de férias juntos. Falaram do Cassis com afecto e, pareceu-me, com um pesar genuíno. Comecei a pensar que os julgara demasiado rispidamente. Estava enganada. . Mais tarde, nessa mesma semana, vieram até à quinta quando a Pistache estava quase a deitar as crianças. Trouxeram presentes para todos, doces para a Prune e a Ricot, flores para a Pistache. A minha filha olhou para eles com aquele olhar vazio e doce que eu sei significar antipatia mas que eles de certeza interpretaram como estupidez. A Laure observava as crianças com uma insistência curiosa que eu achei perturbadora; os olhos dela recaíam constantemente sobre a Prune, que estava no chão a brincar com pinhas. 125 sentou-se num cadeirão perto do lume. Senti a presença da Pistache sentada muito calada não muito longe de mim, e pedi com todo o meu coração que aqueles hóspedes indesejados partissem quanto antes. Contudo, essa não parecia ser a intenção deles. - A comida estava simplesmente deliciosa - disse o Yannick


preguiçosamente. - Aquele brochet; não sei o que é que lhe fez, mas estava simplesmente maravilhoso. - Esgotos - disse-lhe com agrado. - Hoje em dia quase todos os esgotos vão dar ao rio e os peixes praticamente não comem outra coisa. Chamamos-lhes caviar do Loire. Muito rico em sais minerais. A Laure olhou para mim, espantada. Depois o Yannick riu-se com aquele risinho dele: "é, hé, hé", e ela imitou-o. - A Mamie gosta de brincar. Hé, hé. Caviar do Loire. É uma brincalhona, querida. Mas reparei que nunca mais voltaram a pedir lúcio. Passados uns minutos começaram a falar do Cassis. Primeiro coisas inofensivas como: "o papá teria adorado ver a sobrinha e as filhas dela". - Estava sempre a dizer que queria que nós tivéssemos filhos - disse o Yannick. - Mas naquela altura da carreira da Laure... A Laure interrompeu-o. - Temos muito tempo - disse quase abruptamente. - Ainda sou suficientemente nova, não sou? Abanei a cabeça. - Claro que é. - E, é claro, nessa altura tínhamos também a despesa de cuidar do papá. Ele quase não tinha nada, Mamie - disse o Yannick, trincando um dos meus sablés. - Tudo o que ele tinha, provinha de nós. Até a casa dele. Era possível. O Cassis nunca fora pessoa para acumular riqueza. O dinheiro desaparecia-lhe entre os dedos como fumo, em geral para dentro da barriga dele. O Cassis fora sempre o seu próprio melhor cliente nos dias de Paris. - É claro que não lhe queremos mal por isso. - A voz da Laure era branda. - Nós gostávamos muito do papá, não gostávamos, chéri? O Yannick anuiu com mais entusiasmo que sinceridade. - Oh, sim. Muito mesmo. E ele era, claro, um homem tão generoso. Nunca sentiu nenhum ressentimento por causa desta casa, ou da herança, nem nada. Extraordinário. - Atirou-me


um olhar duro e malicioso. 126 - O que é que queres dizer com isso? - Levantei-me logo e entornei o meu café, ainda consciente da presença da Pistache ao meu lado, a ouvir em silêncio. Nunca contara às minhas filhas nada sobre a Reinette ou o Cassis. Nunca se conheceram; tanto quanto elas sabiam, eu era filha única. E nunca dissera uma única palavra sobre a mãe. O Yannick estava com um ar acabrunhado. - Então, Mamie, é que ele é que devia herdar a casa... - Não que nós a culpemos de nada... - Mas ele era o mais velho, e no testamento da sua mãe... - Calma aí! - Tentei evitar gritar, mas durante um segundo a minha voz foi a voz da minha mãe e vi que a Pistache se encolheu ligeiramente. - Eu paguei ao Cassis bom dinheiro por esta casa - continuei num tom mais baixo. - Afinal, não passava de uma carcaça depois do fogo, estava toda queimada, com as vigas a verem-se através das telhas. O Cassis nunca poderia ter vivido nela e, de qualquer maneira, nem o quereria. Paguei bom dinheiro, mais do que podia, e... - Shh. Pronto. - A Laure deitou uma olhadela ao marido. Ninguém está a sugerir que o vosso acordo tivesse sido de algum modo impróprio. Impróprio. É mesmo uma palavra da Laure: rechonchuda, cheia de auto-satisfação e exactamente com a dose certa de cepticismo. Senti a minha mão a fechar-se à volta da chávena de café, imprimindo pontinhos brilhantes de queimadura nas pontas dos dedos. - Mas tem de ver as coisas do nosso ponto de vista - disse o


Yannick, com o rosto largo a brilhar. - A herança da nossa avó... Não gostei do rumo que a conversa estava a levar. Não gostei sobretudo do facto de a Pistache estar presente, com os seus olhos redondos a absorver tudo. - Nenhum de vocês sequer chegou a conhecê-la - interrompi abruptamente. - Isso não tem nada a ver, Mamie - respondeu logo o Yanick. - O importante é que vocês eram três. E a herança foi dividida em três. Não é assim? Anuí com cautela. - Mas agora, que o papá já não está connosco, coitado, temos de perguntar-nos se o acordo informal que fizeram entre os dois foi verdadeiramente justo para o resto da família. 127 - Falava num ton descontraído, mas podia ver-lhe os olhos a brilhar, e desatei a gritar numa fúria repentina. - Qual acordo informal? Já vos disse que paguei bom dinheiro. Assinei papéis... A Laure pôs a mão no meu braço. - O Yannick não quis importuná-la, Mamie. - Ninguém me importunou - respondi friamente. O Yannick ignorou a interrupção e continuou: - É que algumas pessoas podem pensar que o acordo a que chegou com o pobre papá, um homem doente a precisar desesperadamente de dinheiro... - Podia ver a Laure a observar a Pistache e praguejei baixinho. - Além da terceira parte não reclamada, que devia ter ido para a tia Reine... - A fortuna enterrada na cave. Dez caixas de Bordeaux, do mesmo ano em que ela nasceu, tapadas e cimentadas por causa dos alemães, e o que veio depois: cada garrafa valendo hoje mil francos ou mais, à


espera de serem desenterradas. Raios! O Cassis nunca soube manter-se calado quando era preciso. Interrompi-o bruscamente. - Isso está lá à espera que ela o venha buscar. Não toquei em nada disso. - Claro que não, Mamie. Mesmo assim. - O Yannick sorriu tristemente, um sorriso tão parecido com o do meu irmão que quase me doeu vê-lo. Olhei novamente para a Pistache, sentada muito direita na cadeira, de olhar vazio. - Além disso, tem de admitir que a tia Reine não está em condições para reclamar agora, e não acha que seria muito mais justo para com as outras partes interessadas... - Tudo isso pertence à Reine - disse eu em tom neutro. - Não toco nisso. E não tu dava nem que pudesse. Isso responde à tua pergunta? A Laure virou-se então para mim. À luz amarela do candeeiro, vestida de preto como estava, pareceu-me bastante doente. - Peço-lhe desculpa - disse, deitando um olhar de cumplicidade ao marido. - Isto não era para ser sobre dinheiro. É claro que não estamos à espera que desista da casa, ou do que pertença à tia Reine. Se algum de nós Lhe deu a impressão de... Abanei a cabeça, estupefacta. - Então, que raio foi tudo...? A Laure interrompeu-me, de olhos a brilhar. - Havia um livro. - Um livro? - repeti. 128 O Yannick anuiu com a cabeça. - O papá contou-nos - disse. Mamie mostrou-lho. - Um livro de receitas - disse a Laure, estranhamente calma. A Mamie já deve conhecer as receitas de cor. Se nós pudéssemos simplesmente vê-lo... levá-lo emprestado...


- É claro que pagaríamos por tudo o que usássemos acrescentou logo o Yannick. - Considere que estamos a contribuir para manter vivo o nome Dartigen. Deve ter sido isso, deve ter sido por causa daquele nome. A confusão, o medo e a incredulidade tinham lutado entre si dentro de mim, mas ao ouvir aquele nome foi como se uma lança me trespassasse, e atirei as chávenas ao chão, despedaçando-se contra as lajes de terracota da minha mãe. Vi que a Pistache estava a olhar para mim de um modo estranho, mas já era tarde de mais para tentar controlar a minha raiva. - Não! Nunca! - A minha voz elevou-se como um papagaio de papel avermelhado, e durante um segundo abandonei o meu corpo e olhei para mim mesma sem qualquer tipo de emoção: uma mulher sombria, de feições severas e vestida de cinzento, com o cabelo ferozmente puxado para trás e preso na nuca com um nó. Vi uma estranha compreensão nos olhos da minha filha e hostilidade velada nas faces dos meus sobrinhos, e então a fúria atingiu-me outra vez e perdi o controlo por momentos. - Eu sei o que vocês querem! - rosnei. - Se não podem ter a Mamie Framboise, então contentar-se-iam com a Mamie Mirabelle. Não é isso? - A respiração trespassava-me como arame farpado. - Pois bem, não sei o que o Cassis vos disse, mas ele não tinha nada com isso, e vocês também não. Essa história morreu. Ela morreu, e de mim não obterão nada, nem que esperem cinquenta anos! - Estava agora sem fôlego e doía-me a garganta de tanto gritar. Peguei no presente mais recente que tinham trazido (uma caixa com lenços de linho que estava em cima da mesa da cozinha embrulhada em papel prateado) e empurrei-a furiosamente para a Laure. - Por isso podem levar os vossos subornos de volta - gritei roucamente. - E podem


enfiar tudo nesse vosso cu elegante, juntamente com os vossos menus parisienses e as vossas caldas de pêssego e os coitados dos vossos papás! Os nossos olhos encontraram-se durante um segundo e vi os dela desvelarem-se enfim, cheios de desprezo. 129 - Podia falar com o meu advogado - disse ela. Comecei a rir. - É isso mesmo. O seu advogado. É sempre aí que tudo vai dar, não é? - Estava agora a rir de um modo selvagem. - O seu advogado! O Yannick tentou acalmá-la, com os olhos brilhando de pânico: - Então, chérie, sabes bem que nós... A Laure virou-se para ele, selvagem: - Tira as putas das mãos de cima de mim! Eu uivava de riso, agarrada à barriga. Comecei a ver pontinhos escuros a dançar à minha frente. A Laure fuzilou-me com uma carga de ódio puro mas logo a seguir recuperou o controlo. - Desculpe - disse numa voz gelada. - Não sabe o que isto significa para mim. A minha carreira... O Yannick estava a tentar guiá-la em direcção à porta, sem deixar de olhar apreensivamente para mim. - Não era nossa intenção importuná-la, Mamie - disse apressadamente. Voltaremos quando esteja mais razoável. Afinal, não lhe estamos a pedir para ficarmos com o livro. Palavras a desmoronarem-se como um castelo de cartas. Rime ainda mais alto. Sentia o terror a crescer em mim, mas não conseguia controlar o riso, e mesmo depois de eles se irem embora, depois de ouvir o chiar do Mercedes estranhamente furtivo na noite, continuei a sentir espasmos ocasionais que iam amargando em meios soluços à medida que a adrenalina desaparecia, deixando-me com um sentimento de velhice e


quebranto. Tão velha. A Pistache estava a olhar para mim, de rosto ilegível. A carita da Prune apareceu à porta. - Mémée? O que é que se passa? - Volta para a cama, querida - disse a Pistache de imediato. - Não é nada. Está tudo bem. A Prune não estava convencida. - Por que é que a Mémée estava a gritar? - Não foi nada - A voz era agora aguda, ansiosa. - Volta para a cama! A Prune deu meia-volta relutantemente. A Pistache foi fechar a porta. E ali ficámos sentadas em silêncio. 130 Sabia que ela falaria quando estivesse pronta e conhecia-a demasiado bem para tentar apressá-la. Tem um ar doce, mas há nela uma teimosia. Sei como é; eu também sou assim. Portanto, lavei os pratos e as chávenas, limpei-os e arrumei-os. Depois peguei num livro e fingi ler. Momentos depois a Pistache falou: - De que herança é que eles estavam a falar? Encolhi os ombros. - Não sei. O Cassis fingiu ser um homem rico para que eles tomassem conta dele quando envelhecesse. Eles deviam ter percebido que não era verdade. É só isso. Tinha esperança que ela não fizesse mais perguntas, mas uma linha de teimosia entre os olhos prometia problemas. - Nem sabia sequer que tinha um tio - disse em tom neutro. - Nunca fomos chegados. Silêncio. Via que ela não conseguia parar de repassar aquilo na cabeça e desejei poder fazer com que deixasse de se preocupar, mas sabia que era impossível.


- O Yannick parece-se muito com ele - disse, tentando falar num tom despreocupado. - Bem-parecido e fraco. E a mulher controla-o como um urso amestrado. - Tentei imitá-lo, esperando fazê-la ao menos sorrir, mas o olhar pensativo dela tornou-se ainda mais carregado. - Pareciam convencidos de que tu o tinhas enganado - disse. - Que te tinhas aproveitado por ele estar doente. Forcei-me a não responder logo. Não seria bom para ninguém se voltasse a irritar-me. - Pistache - comecei pacientemente -, não acredites em tudo o que aqueles dois te dizem. O Cassis não estava doente. Pelo menos, não da maneira que tu pensas. Bebeu até à falência, deixou a mulher e o filho e vendeu-me a quinta para poder pagar as dívidas. A Pistache observava-me com curiosidade e tive de fazer um esforço para não levantar a voz. - Ouve, tudo isto foi há muito tempo. Já passou. O meu irmão está morto. - A Laure falou numa irmã. Anuí. - A Reine-Claude. - Por que é que não me disseste nada? Encolhi os ombros. - Nunca fomos... - Chegadas. Pois. - Falava agora numa voz pequenina e sem entoação. Senti medo outra vez e disse, mais agressivamente do que queria: 131 - Consegues perceber isso, não consegues? Afinal, tu e a Noisett nunca... - Tentei parar, mas era tarde de mais. Vi que a magoara e amaldiçoei-me. - Pois. Mas pelo menos eu tentei. Por ti. Raios. Esquecera-me de como ela era sensível. Durante todos aqueles anos considerara-a como a mais calada e vira a minha outra


filha crescer cada vez mais obstinada, cada vez mais dona de si. Sim, a Noisette sempre foi a minha preferida, mas julgava que tinha escondido isso bem. Se fosse a Prune, tê-la-ia abraçado, mas vê-la assim, esta mulher calma, de trinta anos, de expressão fechada, com um sorriso magoado e sonolentos olhos de gato... Lembrei-me da Noisette e de como, por teimosia e orgulho, a tornei numa estranha para mim. Tentei explicar. - Separámo-nos há muitos anos - contei-Lhe. - Depois... da guerra. A minha mãe estava... doente... e fomos viver com parentes diferentes. Não nos mantivemos em contacto. - Era quase verdade, pelo menos o mais próximo da verdade que eu conseguia aguentar. - A Reine foi... trabalhar... para Paris. Depois... adoeceu também. Está num hospital perto de Paris. Fui vê-la uma vez, mas... - Como explicar-lhe? O cheiro institucional do local: a couve cozida, cheiros de lavagem, de doença, as televisões aos gritos nos quartos cheios de pessoas perdidas que choravam quando não gostavam das maçãs cozidas e que por vezes gritavam umas com as outras com uma maldade inesperada, ameaçando-se impotentemente com punhos e empurrando-se contra as paredes de um verde pálido. Vira um homem numa cadeira de rodas, um homem relativamente jovem, com o punho cheio de cicatrizes e olhos desesperados e que gritara "Não gosto de estar aqui! Não gosto de estar aqui!" durante todo o tempo em que lá estive, até que a voz dele acabou por transformar-se em ruído de fundo, e até eu deixei de dar importância à sua angústia. Havia também uma mulher num canto, com a cara virada para a parede, a chorar desalmadamente. E a mulher na cama, aquela coisa enorme, inchada e com o cabelo pintado, ancas redondas e brancas e


braços frios e moles como massa fresca, sorrindo serenamente para si mesma e murmurando baixinho. Só a voz era ainda a mesma, senão nunca teria acreditado: uma voz de menina, dizendo sílabas sem sentido, os olhos vazios e redondos como uma coruja. Impusera a mim mesma tocar-Lhe. Reine. Reinette. 132 Mais uma vez aquele sorriso inane, o pequeno aceno de cabeça, como se nos sonhos fosse rainha e eu um mero súbdito. A enfermeira disse-me baixinho que ela se esquecera do próprio nome mas não era infeliz; tinha dias bons e adorava ver televisão, principalmente os desenhos animados, e que a penteassem enquanto ouvia rádio. "É claro que de vez em quando ainda temos os nossos ataques", dissera a enfermeira, e eu sentira-me paralisada ao ouvir aquelas palavras, o meu estômago deu uma volta num duro nó de pânico. "Ainda acordamos durante a noite..." - que estranho o uso daquele pronome, como se, partilhando a identidade daquela mulher, ela pudesse também partilhar da experiência de se ser louca e velha - "e às vezes temos os nossos acessozinhos, não temos?" - e sorriu-me. Era uma loira de vinte e poucos anos, e naquele momento odiara-a tanto pela sua juventude e ignorância jovial que quase lhe devolvi o sorriso. Senti o mesmo sorriso nos meus lábios ao olhar agora para a minha filha, e senti ódio de mim mesma. Tentei falar num tom mais despreocupado. - Já sabes como é - disse, apologética. - Não suporto velhos e hospitais. Mandei-lhe algum dinheiro. Não devia ter dito aquilo. Há alturas em que só dizemos o que não devemos. A minha mãe sabia-o bem. - Dinheiro - disse a Pistache com desprezo. - É a única


coisa que interessa às pessoas? Pouco depois foi para a cama, e as coisas não voltaram a ser as mesmas entre nós durante o resto do Verão. Duas semanas depois foi-se embora, uns dias antes do previsto, dizendo que se sentia cansada e que ainda tinha muito que fazer antes do começo das aulas, mas eu sabia que algo estava mal. Tentei conversar com ela uma ou duas vezes mas não serviu de nada. Permaneceu distante, de olhar cauteloso. Notei que ela estava a receber muito correio mas não pensei naquilo, só muito mais tarde. A minha mente estava ocupada com outras coisas. 133 2. A rulote das sandes chegou uns dias depois do que aconteceu ao Yannick e à Laure. Vinha atrelada a um enorme camião que descarregou a sua carga no canteiro de relva mesmo em frente à Crêpe Framboise. Lá de dentro saiu um rapaz com um chapéu de papel vermelho e amarelo. Na altura estava ocupada a servir e não lhe prestei atenção; por isso, quando mais tarde voltei a olhar lá para fora, fiquei surpreendida por ver que o camião já se tinha ido embora, deixando no canteiro uma pequena rulote onde as palavras Super Petisco estavam pintadas em letras grandes e vermelhas. Saí da loja para ir ver de mais perto. A rulote parecia abandonada, apesar de as persianas que a fechavam estarem bem trancadas com cadeados. Bati à porta, mas não obtive resposta. A rulote dos petiscos abriu no dia seguinte. Reparei nisso


por volta das onze e meia, a hora a que os meus primeiros clientes começam a chegar. As persianas estavam abertas e deixavam ver um balcão por cima do qual estavam penduradas várias bandeirinhas vermelhas e amarelas presas por um fio e onde figurava o nome de um prato e um preço - steak frites, 17F, saucisse- frites, 14F -, e ainda um sem-número de posters chamando a atenção para os Super Petiscos ou os Hambúrgeres bons e baratos e várias bebidas. - Parece que tens competição - disse o Paul Hourias que, como sempre, acabava de chegar exactamente ao meio-dia e um quarto. Nem lhe perguntei o que queria comer, é sempre o mesmo: o prato do dia e um demi, nunca falha. 134 Nunca fala muito, senta-se calmamente no mesmo lugar ao pé da janela e come enquanto observa a rua. Decidi que aquela observação era uma das suas raras brincadeiras. - Competição! - repeti com desdém. - Monsieur Hourias, no dia em que a Crêpe Framboise tiver de competir com um vendedor ambulante de gordura, arrumo os meus tachos e as minhas panelas de vez. O Paul riu-se. O prato do dia era sardinhas na brasa, um dos seus preferidos, servidas com o meu pão de avelãs. Comeu uma vez mais com aquele ar pensativo enquanto observava a rua. A presença da rulote não pareceu afectar o número de clientes da crêperie e durante as duas horas que se seguiram estive ocupada a supervisionar a cozinha enquanto a Lise, a minha empregada, anotava os pedidos. Quando voltei a olhar lá para


fora, duas pessoas tinham-se aproximado da rulote, mas eram jovens, não clientes habituais meus, um rapaz e uma rapariga com uma dose de batatas fritas na mão. Encolhi os ombros. Com aquilo podia eu. No dia seguinte havia uma dúzia deles, todos jovens, e um rádio tocava música roufenha no máximo. Apesar do calor que fazia, fechei a porta da crêperie, mas mesmo assim o som de guitarras e baterias entrava pelas janelas também fechadas, e Marie Fenouil e Charlotte Dupré, ambas clientes habituais, queixaram-se do calor e do barulho. . No dia seguinte a multidão era ainda maior, a música estava ainda mais alta e eu queixei-me. Ao aproximar-me da rulote, às onze e quarenta, fui imediatamente rodeada por um enxame de adolescentes, alguns dos quais reconheci, embora também houvesse muitos vindos de fora - raparigas de cai-cai e mini-saias ou calças de ganga, rapazes com os colarinhos das camisas levantados e botas de motociclista com as fivelas mal apertadas. Havia várias motas estacionadas ao lado da rulote, e um cheiro a gasolina misturava-se com o dos fritos e da cerveja. Uma rapariga de cabelo curto e brinco no nariz olhou para mim com um olhar insolente e depois, quando me aproximei do balcão, levantou o cotovelo e foi por pouco que não me bateu na cara. - Vá prá bicha, hé mémère - disse, armada em esperta, a boca cheia de pastilha elástica. - Não vê que há mais gente à espera? 135 - Ah, então é isso que estás a fazer, querida? Pensei que estivesses à procura de clientes - atirei. A rapariga ficou a olhar para mim de boca aberta e eu abri caminho à cotovelada sem voltar a virar-me para ela. O que


quer que Mirabelle Dartigen tenha feito, nunca educou os filhos para medirem as palavras. O balcão era alto e dei comigo a olhar para cima para um rapazito que não tinha mais de vinte cinco anos. Era bem-parecido, no estilo louro-sujo e arrogante, com o cabelo pelo ombro e apenas um brinco de ouro - uma cruz, creio - a balançar. Tinha uns olhos a que eu teria tido dificuldade em resistir há quarenta anos, mas agora estou velha e sou demasiado esquisita. Acho que deixei de interessar-me por essas coisas mais ou menos na altura em que os homens deixaram de usar chapéu. Aliás, ele fazia-me lembrar alguém, mas na altura não prestei atenção. Como é evidente, ele já sabia quem eu era. - Bom dia, Madame Simon - disse num tom de voz educado mas irónico. - O que é que posso oferecer-lhe? Tenho um delicioso burger américain se quiser provar. Estava irritada, mas tentei não o mostrar. O sorriso dele mostrava que esperava sarilhos, e que se sentia capaz de os enfrentar. Mostrei-lhe um dos meus sorrisos mais doces. - Hoje não, obrigada - respondi. - Mas agradecia que baixasse o rádio um bocadinho. Os meus clientes... - Mas com certeza. - A voz era doce e educada, e os olhos brilhantes, azuis-porcelana. - Não fazia ideia de que estava a incomodar. Ao meu lado, a rapariga do brinco no nariz fez um som de incredulidade. Ouvi-a dizer a uma amiga, uma outra rapariga com uns calções tão curtos que se viam duas meias-luas de carne abaixo da costura: - Ouviste o que ela me disse? Ouviste? O rapaz louro sorriu e, com relutância, reconheci-lhe charme e inteligência e qualquer coisa que me era (oh, sim) familiar, e que me espicaçava e mordia. Inclinou-se para pôr a música mais baixo. Fio de ouro ao pescoço, nódoas de suor numa T shirt cinzenta, mãos demasiado macias para cozinheiro. Oh, havia qualquer coisa nele - em tudo! - que não batia certo, e pela primeira vez não senti raiva, mas uma espécie de medo.


136 Solícito: - Está bem assim, Madame Simon? Acenei que sim com a cabeça. - Detestaria ser um vizinho inoportuno. As palavras eram correctas, mas eu não conseguia afastar a sensação de que alguma coisa não batia certo, de que de algum modo me escapava um certo escárnio naquele tom calmo e cortês. E apesar de ter conseguido o que queria, apressei-me a fugir dali, quase torcendo o calcanhar na beira do canteiro, com a pressão de todos aqueles corpos contra mim - agora deviam ser uns quarenta - e o som das suas vozes afogando-me. Saí rapidamente - nunca gostei que me tocassem - e quando entrei na Crêpe Framboise ouvi uma gargalhada rouca como se ele tivesse esperado que eu me afastasse para fazer algum comentário. Virei-me para trás com um olhar intenso, mas ele estava já de costas, virando uma fila de hambúrgeres com o à-vontade da experiência. Mas a sensação de incómodo continuava. Dei por mim a olhar pela janela mais vezes do que era costume, e quando Marie Fenouil e Charlotte Dupré, as clientes que se tinham queixado do barulho no dia anterior, não apareceram à hora habitual, comecei a sentir-me impaciente. Não há-de ser nada, pensei. Afinal de contas, só havia uma mesa vazia. A maioria dos meus clientes tinham vindo como de costume. E contudo, continuei a observar a rulote com fascinação, a observá-lo a ele enquanto trabalhava, a observar a multidão que se juntava à beira da estrada, gente nova a comer de cartuchos de papel e caixas de polistireno enquanto ele os entretinha. Parecia ser amigo de todos. Meia dúzia de raparigas - entre elas a do brinco no


nariz - não saíam de junto do balcão, algumas com uma lata de sumo na mão. Outras deixavam-se ficar por perto e havia muitos traseiros espetados e estudados requebros de anca. Parecia que aqueles olhos tinham tocado corações menos endurecidos que o meu. Ao meio-dia chegou-me à cozinha o barulho de motas. Um som terrível como o de vários martelos pneumáticos em uníssono, e larguei o garfo com que estava a virar os bolets farcis para correr para a rua. O barulho era insuportável. Tapei os ouvidos com as mãos mas mesmo assim senti uma dor aguda nos tímpanos, sensíveis por causa dos muitos anos a mergulhar no velho Loire. 137 Cinco motas que antes vira estacionadas ao lado da rulote estavam agora mesmo do outro lado da rua, e os donos - três, com raparigas elegantemente sentadas atrás - estavam a arrancar para se irem embora, competindo uns com os outros em volume e atitude. Gritei-lhes, mas só se ouvia o guincho torturado das máquinas. Alguns dos jovens na rulote riam e batiam palmas. Agitei os braços, furiosa, incapaz de me fazer ouvir, e os motoqueiros saudaram-me com escárnio, um deles arrancando sobre a roda traseira, num volume de ruído redobrado. Aquela brincadeira durou cinco minutos ao fim dos quais os meus bolets estavam queimados, os meus ouvidos a zumbir e o


meu mau humor a ponto de explodir. Não tinha tempo de voltar a queixar-me ao gerente da rulote, mas jurei a mim mesma lá voltar assim que os meus clientes se fossem embora. Nessa altura, contudo, já a rulote fechara e ninguém respondeu apesar de eu ter batido furiosamente nas persianas. No dia seguinte havia música outra vez. Tentei ignorá-la o mais que pude, depois desarvorei e fui protestar. Havia ainda mais gente que antes e alguns deles, reconhecendo-me, fizeram comentários insolentes enquanto eu tentava abrir caminho pela multidão. Demasiado irritada para ser bem-educada, olhei para o dono da rulote e cuspi: - Pensei que tínhamos chegado a um acordo! Ele sorriu, mostrando-me a dentadura inteira. Desculpe?disse, fingindo não perceber. Mas eu não estava com paciência para brincadeiras. - Não finja que não sabe do que é que estou a falar. Quero que desligue a música imediatamente! Bem-educado como sempre, e agora com ar de quem se sente magoado pela violência do meu ataque, desligou a música. - Com certeza, madame. Não pretendia ofendê-la. Se vamos ser vizinhos tão próximos, temos de tentar entender-nos. Estava tão irritada que quase não ouvi o sinal de alarme. - O que é que quer dizer com isso, vizinhos próximos? consegui por fim perguntar. - Quanto tempo acha que vai ficar aqui? Encolheu os ombros. - Quem sabe? - Uma voz de seda. Sabe como é isto de ter um restaurante. É tão imprevisível. Um dia uma multidão, no outro a casa meia-vazia. Quem sabe o que pode acontecer? 138


O sinal de alarme era agora impossível de ignorar e senti arrepios de frio. - A sua rulote está numa zona pública disse secamente. - A polícia virá correr consigo assim que saiba que está aqui. Ele abanou a cabeça. - Tenho autorização para estar aqui disse calmamente. - Tenho a papelada toda em ordem. - E olhou para mim com aquela sua insolência bem-educada: - E os seus papéis, Madame, estão em ordem? Continuei carrancuda enquanto o meu coração batia como o de um peixe fora de água. Ele sabia alguma coisa. Este pensamento girava-me vertiginosamente no espírito. Oh, meu Deus, ele sabia alguma coisa. Ignorei a pergunta. - E outra coisa - gostei da minha voz, a voz de uma mulher que não tem medo -, ontem houve aquela história com as motas. Se permite que os seus clientes voltem a perturbar os meus, faço queixa de si por perturbar a paz pública. Tenho a certeza de que a Polícia... - Tenho a certeza de que a polícia Lhe dirá que isso é da responsabilidade dos próprios motociclistas, não minha. Parecia divertido. - Por favor, madame, estou a tentar ser razoável, mas ameaças e acusações não vão resolver o problema. Voltei para a crêperie, sentindo-me estranhamente culpada, como se tivesse sido eu, e não ele, a fazer ameaças. Naquela noite dormi mal e de manhã gritei com a Prune por ela ter entornado um pouco de leite e com a Ricot por estar a jogar à bola demasiado perto do jardim da cozinha. A Pistache olhou para mim interrogadoramente - quase não faláramos uma com a outra desde a noite da visita do Yannick - e perguntou-me se me sentia bem. - Não é nada - respondi, e voltei para a cozinha em


silêncio. 139 3. A situação foi piorando gradualmente durante os dias que se seguiram. Durante dois dias não houve música, mas depois voltaram a ligar o rádio, ainda mais alto do que antes. O bando de motociclistas voltou várias vezes, acelerando violentamente ao chegarem e ao irem embora, dando voltas ao quarteirão e fazendo corridas uns contra os outros e soltando longos gritos ululantes. O grupo de clientes habituais à volta da rulote não deu sinais de diminuir e eu passava cada vez mais tempo a apanhar latas e papéis das bermas. O pior foi quando a rulote começou a abrir também ao fim do dia, das sete à meia-noite - coincidindo com as minhas horas de abertura. Comecei a temer o barulho da ligação do gerador da rulote, sabendo que daí a pouco a minha calma crêperie cedo enfrentaria uma interminável festa de rua. Uma luz de néon cor-de-rosa anunciava por cima do balcão da rulote: Chez Luc, Sandes-Petiscos-Batatas Fritas, e os cheiros de feira, a fritos e cerveja e panquecas quentes e doces, enchiam o ar macio da noite. Alguns dos meus clientes queixaram-se, outros simplesmente deixaram de vir. Ao fim de uma semana, sete dos meus clientes habituais aparentemente deixaram de vir de vez e durante a semana o restaurante esteve semivazio. No sábado chegou um grupo de nove de Angers, mas o ruído estava particularmente elevado e olhavam nervosos para a multidão lá fora onde tinham estacionado os carros, indo-se embora sem sobremesa ou


café e notoriamente sem deixar gorjeta. 140 As coisas não podiam continuar assim. Les Laveuses não tem esquadra de polícia mas há um gendarme, o Louis Ramondin - neto do François -, mas nunca falei muito com ele, pois fazia parte de uma das Famílias. No final dos seus trinta, tendo acabado por se divorciar depois de se casar demasiado cedo com uma rapariga da aldeia, era parecido com o seu tio-avô Guilherm, o da perna de pau. Não queria ir falar com ele agora, mas sentia as coisas a escaparem-me e necessitava de ajuda. Expliquei-lhe o que se passava com a rulote dos petiscos. Contei-lhe do barulho, do lixo, dos meus clientes, das motas. Ouviu-me com o ar de um jovem indulgente a falar com uma avó rezingona, sorrindo e acenando com a cabeça, de tal maneira que só me apetecia bater-lhe. Disse-me então, naquele tom paciente que os jovens reservam para os velhos e para os surdos, que até ali nenhuma lei estava a ser infringida. A Crêpe Framboise estava à beira de uma estrada principal, explicou. As coisas tinham mudado desde que eu chegara à aldeia. Que ia tentar ter uma conversa com o dono da rulote, o Luc, mas que eu tinha de ser compreensiva. Oh, sim, compreensiva. Vi-o mais tarde ao pé da rulote, à paisana, a conversar com uma bonita rapariga numa T shirt branca e calças de ganga. Tinha uma lata de cerveja Stella numa mão e uma panqueca açucarada na outra. O Luc deume um dos seus sorrisos satíricos quando passei com o meu cesto das compras, e ignorei-os aos dois. Eu era compreensiva. Nos dias que se seguiram, o negócio na Crêpe Framboise


afundou. O sítio estava agora apenas semicheio, mesmo aos sábados à noite, e era ainda pior durante a semana à hora do almoço. O Paul, o meu fiel amigo, continuava a vir comer o prato do dia e beber o seu demi, e, por simples gratidão, passei a oferecer-lhe uma cerveja por conta da casa, embora ele não pedisse mais do que o simples copo. A Lise, a minha pequena empregada, contou-me que o Luc estava hospedado em La Mauvaise Réputation, onde ainda alugavam quartos. - Não sei de onde ele é - disse-me. - De Angers, acho. Pagou três meses de renda adiantados; portanto, parece que veio para ficar. Três meses. Isso era quase até Dezembro. Não me admiraria se a clientèle dele não fosse tão entusiástica quando chegasse o frio. 141 Para mim era sempre uma estação de baixa, durante a qual vinham apenas alguns dos clientes habituais, e, do modo como as coisas estavam, nem sequer podia contar com esses. O Verão era a melhor altura do ano para mim, e durante esses meses de férias normalmente o restaurante dava dinheiro suficiente para me chegar até à Primavera. Mas naquele Verão... Da maneira como as coisas estavam, pensei calmamente, podia até ter prejuízo. Não era muito grave; tinha ainda algumas poupanças, mas havia o salário da Lise, mais o dinheiro que enviava à Reine, a comida para os animais, as compras, o combustível e o aluguer de máquinas. E com o Outono aí a chegar em breve, ia ter de pagar aos jornaleiros, aos apanhadores de maçãs e ao Michel Hourias por causa do


tractor, embora ainda pudesse vender cereais e cidra em Angers para me aguentar. Mesmo assim, podia não ser fácil. Passei horas a fazer contas e estimativas para nada. Esqueci-me de brincar com as minhas netas e, pela primeira vez na vida, desejei que a Pistache não tivesse vindo passar o Verão comigo. Ficou mais uma semana e depois foi-se embora com a Prune e a Ricot, e vi nos olhos dela que achava que eu não estava a ser razoável, mas não encontrei em mim ternura suficiente para Lhe explicar o que sentia. Havia em mim uma parte dura e fria onde devia estar o meu amor por ela, uma parte dura e seca como o caroço de um fruto. Abracei-a brevemente quando dissemos adeus e virei-Lhe as costas, de olhos secos. A Prune ofereceu-me um ramo de flores que apanhara nos campos, e de repente senti o pânico apoderar-se de mim. Estava a portar-me como a minha mãe, pensei. Severa e impassiva, mas secretamente repleta de medos e inseguranças. Tentei falar com a minha filha, explicar-Lhe que nada daquilo era culpa dela, mas não consegui. Ensinaram-nos sempre a esconder o que sentimos. É um hábito difícil de quebrar. 142 4. E assim passaram várias semanas. Voltei a falar com o Luc mas sem obter resultados nenhuns e tendo sempre que suportar o seu irónico civismo. Continuava a achar que ele me fazia


lembrar alguém, mas não havia maneira de me lembrar quem. Tentei descobrir o apelido dele mas ele pagava sempre em dinheiro no La Mauvaise Réputation e quando lá fui o café pareceu-me cheio de estranhos, os mesmos que se juntavam na rulote. Estavam lá também algumas pessoas da aldeia - a Murielle Dupré e os dois filhos dos Lelac com o Julien Lecoz -, mas na maioria eram forasteiros, meninas bonitas vestidas com cai-cais e calças de ganga de marca e rapazes com blusões de cabedal ou calções de ciclista. Notei que o jovem Brassaud acrescentara uma jukebox e uma mesa de snooker ao pobre conjunto de máquinas de jogo que existiam já; parecia que nem todos os negócios haviam sofrido em Les Laveuses. Foi talvez por isso que o apoio para a minha campanha foi tão desanimador. A Crêpe Framboise fica do outro lado da aldeia, na estrada para Angers. A quinta esteve sempre isolada, a meio quilómetro do centro da aldeia. Só o posto dos correios e a igreja ficam zuficientemente perto, mas o Luc teve o cuidado de manter a multidão em silêncio quando havia missa. Até a Lise, que sabia os problemas que aquilo estava a causar-nos, arranjava razões para o desculpar. Queixei-me duas outras vezes ao Louis Ramondin, mas, dados os resultados, foi como falar com uma parede. Que o homem não estava a fazer mal a ninguém, afirmou com convicção. Se ele infringisse a lei, então talvez se pudesse fazer algo. 143

Caso contrário, eu tinha de deixar o homem e o negócio dele em paz. Compreendia eu aquilo?


Foi então que começou a outra coisa. Pequenas coisas ao princípio. Uma noite foi fogo de artifício algures na estrada, depois motas a acelerarem em frente à minha casa às duas da manhã. Depois lixo à minha porta durante a noite, um vidro da minha porta partido. Outra noite, um motociclista entrou no meu campo e deixou marcas de pneus e desenhos de oitos por todo o meu trigo quase maduro. Pequenas coisas. Aborrecimentos. Nada que pudesse ser directamente relacionado com ele, ou mesmo com os forasteiros que pareciam segui-lo por todo o lado. Depois alguém abriu a porta do galinheiro e uma raposa entrou e matou todas as minhas lindas galinhas Poland. Dez galinhas, todas boas poedeiras, todas desaparecidas numa única noite. Contei ao Louis - que supostamente devia lidar com ladrões e transgressores -, mas ele praticamente acusou-me de me esquecer de fechar a porta. - Não acha possível que a porta se tenha aberto durante a noite? - E sorriu um grande sorriso aberto de homem do campo, como se esse sorriso pudesse trazer as minhas galinhas de volta à vida. Olhei para ele furiosa. - Portas trancadas não se abrem sozinhas - disse-lhe com azedume. - E era preciso uma raposa esperta para abrir o cadeado. Algum malvado fez isto de propósito, Louis Ramondin, e pagam-Lhe para descobrir essas coisas. O Louis ficou pouco à vontade e disse qualquer coisa baixinho. - O que disse? - perguntei abruptamente. - Olhe que eu não sou surda, meu jovem, é melhor acreditar em mim. Ora essa, lembro-me de quando... - Calei-me mesmo a tempo. Ia dizer que me lembrava do avô dele a ressonar na igreja, perdido de


bêbedo e com mijo pelas calças abaixo, escondido dentro do confessionário durante o serviço de Páscoa, mas isso eram coisas que la veuve Simon certamente nunca teria sabido, e fiquei arrepiada só de pensar que podia ter-me traído por causa de um estúpido mexerico. Percebem agora por que me mantinha afastada das Famílias o mais que podia. Enfim, o Louis acabou por ir à quinta dar uma vista de olhos, mas não encontrou nada, e eu tentei continuar a minha vida como podia. 144 A perda das galinhas prejudicou-me no entanto. Não tinha dinheiro para comprar outras e, além disso, quem me garantia que não voltaria a acontecer? Portanto, passei a comprar ovos na quinta dos Hourias, que pertencia agora ao casal Pommeau: cultivavam ilho e girassóis que depois vendiam à fábrica que havia lá em cima no rio. Sabia que o Luc estava por detrás de tudo o que estava a acontecer-me. Sabia, mas não podia provar nada, e aquilo estava a pôr-me doida. Pior: eu não sabia por que razão ele estava a fazer aquilo, e a minha fúria aumentava como uma prensa de cidra que me espremia a cabeça como uma maçã madura prestes a rebentar. Depois de a raposa ter entrado no galinheiro, comecei a sentar-me à janela, às escuras, com a espingarda junto ao peito, e que estranha visão devo ter sido para quem quer que me visse de camisa de noite e um leve casaco de Outono, a vigiar o meu jardim. Comprei cadeados novos para o portão e para o quintal e todas as noites ficava de vigia, à espera que aparecesse alguém, mas ninguém veio. O filho da mãe certamente sabia o que eu estava a fazer, mas desconheço como poderia ele saber. Comecei a pensar que ele talvez conseguisse ler-me os pensamentos.


145 5. Não demorei muito tempo a começar a sofrer as consequências da falta de sono. Comecei a não conseguir concentrar-me em nada durante o dia. Esquecia-me de receitas. Não me conseguia lembrar se já pusera sal na omelete, e ou punha sal a mais ou nenhum. Cortei-me com gravidade quando estava a picar cebolas, só me dando conta de que adormecera em pé quando acordei com a mão coberta de sangue e um corte enorme num dedo. Fui rude com os clientes que restavam e, apesar de o barulho da música e das motas ter diminuído consideravelmente, deve-se ter espalhado que não era assim porque alguns dos clientes habituais que perdera não voltaram. Oh, não fiquei completamente sozinha. Tinha alguns amigos que permaneceram ao meu lado, mas devia estar-me no sangue a enorme reserva e a constante desconfiança que fez com que Mirabelle Dartigen fosse sempre considerada uma estranha na aldeia. Também eu me recusava a ser objecto de piedade. A minha fúria afastou os meus amigos e assustou os clientes. Raiva e adrenalina eram o que me mantinha viva. E, por estranho que pareça, foi o Paul quem pôs um ponto final nisto. Durante a semana ele era muitas vezes o meu único cliente à hora do almoço, e era regular como o relógio da igreja, ficando exactamente uma hora, o cão obedientemente deitado sob a cadeira dele, a observar a rua enquanto comia em silêncio. Podia ser surdo, atendendo ao modo como não reparava na rulote, e raramente me falava senão para dizer "bom-dia"


e "adeus". 146 Um dia entrou mas não se sentou à mesa do costume, e vi logo que alguma coisa não estava bem. Foi uma semana depois de a raposa ter entrado no galinheiro e eu estava estafada. Tinha a mão ligada por causa do corte que fizera e tivera de pedir à Lise que cortasse os legumes para a sopa. Insisti em ser eu mesma a fazer a massa dos pastéis - imaginem ter de fazer massa com uma mão embrulhada em plástico - e foi trabalho duro. Quase a dormir em pé, encostada à porta da cozinha, quase não respondi à saudação do Paul. Olhou-me de lado enquanto tirava o boné e apagava o cigarro no chão, à porta do restaurante. - Bonjour, Madame Simon. Acenei com a cabeça e tentei sorrir. O cansaço era como um cobertor cinzento e brilhante que cobria tudo. As palavras dele chegavam-me como vindas do outro lado de um longo túnel. O cão foi deitar-se debaixo da mesa habitual junto da janela mas o Paul ficou em pé, com o boné na mão. - Parece cansada - observou naquela sua maneira vagarosa. - Estou bem - respondi simplesmente. - Não dormi bem a noite passada, é só... - Nem nenhuma noite este mês, parece-me. O que é, insónias? Lancei-lhe um olhar irritado. - O seu jantar está na mesa. Frango de fricassé e ervilhas. Não volto a aquecer-lho se ficar frio... Deu-me um sorriso ensonado. - Está a começar a falar comigo como se eu fosse seu marido, Madame Simon. As pessoas vão


comentar... Decidi que estava a tentar ser engraçado e ignorei-o. - Talvez eu possa ajudar - insistiu o Paul. - Não está certo tratarem-na desta maneira. Alguém devia fazer alguma coisa. - Não se preocupe, monsieur. - Depois de tantas noites sem dormir, tornava-se cada vez mais difícil evitar as lágrimas, e até aquelas palavras simples, bondosas, me deram vontade de chorar. Para compensar, fiz uma voz seca e sarcástica e virei a cara. - Eu tomo bem conta de mim mesma. O Paul não se deixou vencer. - Pode confiar em mim - disse baixinho. - Já devia saber isso. Depois destes anos todos... Virei-me para ele e, de repente, percebi. - Por favor, Boise. Fiquei rígida... - Não te preocupes. Não contei a minguém, pois não? 147 Silêncio. A verdade prolongava-se entre nós como um pedaço de elástico. - Não contei a ninguém, pois não? Abanei a cabeça. - Não, não contaste. - Então. - Deu um passo na minha direcção. - Nunca deixavas ninguém ajudar-te quando precisavas, nem quando eras pequena. - Pausa. - Não mudaste assim tanto, Framboise. É engraçado. Eu pensava que sim. - Quando é que adivinhaste? - perguntei por fim. Encolheu os ombros. - Não demorei muito - disse, lacónico. - Provavelmente da primeira vez que provei aquele kouign amann que a tua mãe costumava fazer. Ou talvez tenha sido o lúcio. Uma boa receita não se esquece. - Voltou a sorrir debaixo do bigode comprido, um sorriso que era ao mesmo tempo doce e bondoso e imensamente triste.


- Deve ter sido duro - comentou. Era cada vez mais difícil controlar as lágrimas. - Não quero falar sobre isso - disse. Ele acenou com a cabeça. - Sabes bem que não sou grande conversador - respondeu simplesmente. Depois sentou-se a comer o fricassé, parando de vez em quando para olhar para mim e sorrir. Ao fim de uns minutos fui sentar-me ao seu lado - afinal de contas, estávamos sozinhos e servi-me um copo de Gros-Plant. Permanecemos em silêncio durante algum tempo. Uns minutos depois pousei a cabeça na mesa e chorei baixinho. Só se ouviam os meus soluços e o barulho dos talheres do Paul, que continuou a comer sem olhar para mim, sem reagir. Mas eu sabia que o silêncio dele era bondoso. Quando parei de chorar, limpei cuidadosamente a cara ao avental. - Acho que agora gostava de conversar - disse. 148 6. O Paul sabe ouvir. Contei-lhe coisas que nunca pensei contar a ninguém e ele ouviu em silêncio, acenando ocasionalmente com a cabeça. Falei-Lhe do que se passara com o Yannick e a Laure, com a Pistache, e sobre como a deixara ir-se embora sem termos conversado, falei-lhe das galinhas, das noites passadas sem dormir e como o barulho do gerador me fazia sentir como se o interior do meu crânio fervilhasse de formigas. Contei-lhe os meus medos em relação ao restaurante, em relação a mim própria, à minha casa e ao nicho que conseguira arranjar para mim mesma no seio daquela aldeia. Falei-lhe do medo de envelhecer, de como achava os jovens


hoje tão mais estranhos e mais duros do que alguma vez nós havíamos sido, mesmo com o que víramos durante a guerra. Falei-lhe dos meus sonhos, com o Velho com uma laranja na boca e com Jeannette Gaudin e as cobras e, pouco a pouco, senti o veneno abandonar o meu corpo. Quando por fim me calei, fez-se silêncio. - Não podes ficar de guarda todas as noites - disse o Paul por fim. - Vais dar cabo de ti. - Não tenho outra alternativa - disse eu. - Aquela gente háde voltar em qualquer altura. - Fazemos turnos - respondeu simplesmente. E assim foi. 149 Preparei o quarto de visitas, onde podia ficar agora que a Pistache e as miúdas se tinham ido embora. Ele não dava trabalho nenhum, não falava muito, fazia a própria cama e mantinha tudo arrumado. A maior parte do tempo nem se dava por ele: presente, calado e discreto. Sentia-me culpada por um dia ter pensado que ele era pouco inteligente. Na verdade, muitas vezes era mais rápido que eu a perceber as coisas, e foi ele quem finalmente relacionou a rulote dos petiscos com o filho do Cassis. Passámos duas noites a vigiar a casa - o Paul das duas às seis e eu das dez às duas - e eu já começava a sentir-me melhor e mais capaz de trabalhar. Partilhar o problema foi suficiente para mim, era bom saber que tinha alguém com quem podia contar. É claro que os vizinhos começaram logo a fazer comentários. Num sítio como Les Laveuses é impossível manter um segredo, e já toda a gente sabia que o velho Paul Hourias deixara a sua cabana ao pé do rio para ir viver com a viúva.


Nas lojas fazia-se silêncio quando eu entrava. O carteiro piscava-me o olho quando vinha entregar o correio. Recebi alguns olhares de desaprovação, sobretudo da parte do curé e, das suas velhinhas da catequese, mas de uma maneira geral havia apenas risinhos discretos e indulgentes. O Louis Ramondin tinha andado a dizer que a viúva tivera um comportamento estranho nas últimas semanas e que agora já compreendia porquê. Ironicamente, alguns dos meus clientes voltaram ao restaurante durante um tempo, nem que fosse só para ver se o que se dizia era mesmo verdade. Eu ignorava-os. É claro que a rulote dos petiscos ainda estava no mesmo sítio e o barulho e o incómodo causado pelo número de pessoas que ali se juntava todos os dias não diminuíram. Desisti de tentar resolver as coisas conversando com o Luc; as próprias autoridades não pareciam interessadas no assunto, o que só nos deixou - ao Paul e a mim - uma alternativa. Começámos a investigar. O Paul passou a beber o seu demi da hora do almoço no La Mauvaise Réputation aonde iam todos os motoqueiros e as raparigas que os acompanhavam. Questionámos o carteiro, e a Lise, a minha empregada, também nos ajudou, apesar de durante o Inverno não poder dar-lhe trabalho, e também pôs o irmão, o Viannet, no caso, o que deve ter tornado o Luc no homem mais observado de Les Laveuses. Descobrimos algumas coisas. 150 - 151 7.


Voltaram uma semana depois. Era num domingo à tarde e há três semanas que fechava a crêperie aos domingos. A rulote estava também fechada - o Luc copiava o meu horário quase até ao minuto - e o Paul e eu estávamos sentados no jardim com os últimos raios do sol de Outono aquecendo-nos os rostos. Eu estava a ler, mas o Paul, que naquele tempo nunca lia, contentava-se com estar sentado sem fazer nada, ocasionalmente olhando para mim naquela sua maneira doce e de quem não espera nada em troca ou esculpindo um pedaço de madeira. Ouvi baterem à porta e fui ver quem era. Era a Laure, muito profissional no seu vestido azul-escuro e o Yannick de fato cor de antracite. Vinham todos sorridentes. A Laure trazia uma planta enorme com folhas vermelhas e verdes. Não os deixei passar da soleira. - Quem é que morreu? - perguntei-lhes com frieza. - Não fui eu, ainda não, se bem que não graças a vocês os dois. A Laure fez uma cara ofendida. - Então, Mamie - começou. - Não me venham com esses Então, Mamie, - interrompi-a, irritada. - Sei perfeitamente dos vossos joguinhos sujos de intimidação. Não vai resultar. Prefiro morrer a deixar-vos ganhar um centavo à minha custa; portanto, pode dizer ao seu irmãozinho que pode desmantelar a sua carroça gordurenta e voltar para casa, porque eu sei o que pretende, e se não me deixa em paz agora mesmo, juro que vou à polícia e conto exactamente o que têm andado a fazer. 152


O Yannick pareceu assustado e começou a fazer ruídos apaziguadores, mas a Laure era mais dura. A surpresa no seu rosto durou talvez dez segundos, depois endureceu num sorriso seco e forçado. - Eu sempre soube que teria sido melhor contar-lhe logo tudo - disse, com uma olhadela de desprezo para o marido. - Esta história não está a ajudar ninguém, e tenho a certeza de que, assim que lhe explicar tudo vai perceber o valor de um pouco de cooperação. Cruzei os braços. - Pode explicar tudo o que quiser - disse. - Mas a herança da minha mãe pertence-me a mim e à Reine-Claude e, seja lá o que for que o meu irmão vos contou, não há mais nada a dizer sobre o assunto. A Laure sorriu-me, cheia de ódio e antipatia. - É isso que pensa que nós queremos, Mamie? O seu dinheirinho? Por favor! Deve pensar que somos um par diabólico. - De repente vi-me através dos olhos deles: uma velha com um avental sujo, olhos escuros e amargos e o cabelo preso num carrapito tão apertado que repuxava a pele. Rosnei-lhes como um cão desorientado, e tive de me encostar à porta para recuperar o equilíbrio. O ar saía-me em golfadas, cada uma delas uma viagem por entre espinhos. - Não é que o dinheiro não nos desse jeito - disse o Yannick honestamente. - Neste momento o restaurante não vai lá muito bem. Aquela crítica da Hôte Cuisine não ajudou. E temos tido problemas com... A Laure fê-lo calar com um simples olhar. - Não quero dinheiro nenhum - repetiu. - Eu sei perfeitamente o que vocês querem - disse novamente, ríspida, tentando esconder a minha desorientação. - As receitas da minha mãe. Nunca as terão. A Laure olhou para mim, ainda a sorrir. Percebi que não era


só isso que ela queria, e um punho frio apertou-me o coração. - Não - Murmurei. - O álbum da Mirabelle Dartigen - disse a Laure calmamente. - O álbum que ela própria fez. Com os seus pensamentos, as suas receitas, os seus segredos. A herança da nossa avó pertence-nos a todos. É um crime manter algo assim escondido para sempre. 153 - Não! Aquela palavra arrancara-se de mim, e senti como se metade do meu coração fosse arrancado com ela. A Laure começou e o Yannick recuou um passo. A respiração doía-me, como se a garganta estivesse cheia de anzóis. - Não pode guardar segredo para sempre, Framboise - disse a Laure suavemente. - É incrível que ninguém tenha descoberto nada antes. - Estava corada, quase bonita da excitação. Mirabelle Dartigen, uma das criminosas mais ardilosas e enigmáticas do século XX. Sem mais nem menos, mata um soldado alemão e mantém-se fria enquanto em paga metade da aldeia é fuzilada, e depois desaparece sem dar nenhuma explicação. - Não foi assim - disse sem querer. - Então diga-me como foi - disse a Laure, dando um passo em frente. - Eu consultá-la-ia em tudo. Temos uma oportunidade única de contar uma história em exclusivo, e eu sei que daria um livro fabuloso. - Que livro? - perguntei estupidamente. A Laure estava impaciente. - Como assim, que livro? Pensei que já tivesse percebido. Quando disse... Senti a língua colar-se ao céu da boca. Com dificuldade,


disse: - Pensei que andavam atrás do livro de receitas. Tinham dito que... Abanou a cabeça com impaciência. - Não. Preciso do álbum para o meu livro. Leu o meu panfleto, não leu? Deve ter percebido que o caso me interessava. Depois o Cassis dissenos que ela era da nossa família. A avó do Yannick. - Parou novamente e agarrou-me a mão. Os dedos eram compridos e frios, as unhas pintadas de cor-de-rosa, como os lábios. - A Mamie é a última dos filhos dela. O Cassis morreu e a Reine-Claude está inútil. - Foi vê-la? A Laure acenou que sim. - Ela não se lembra de nada. Um perfeito vegetal. Ainda por cima, ninguém em Les Laveuses se lembra de nada de jeito, ou, se se lembram, ninguém quer falar. - Como é que sabe? - A raiva fora substituída por uma sensação de frio, o sentimento de que isto era muito pior do que eu suspeitara. Encolheu os ombros. - Pelo Luc, claro. Pedi-lhe que viesse para cá, que fizesse algumas perguntas, que pagasse umas rodadas no velho clube dos pescadores, sabe como é. 154 - Aquele olhar impaciente e estranho. - Disse-me que já sabia disto tudo. Assenti em silêncio, entorpecida de mais para falar. - Tenho de admitir que conseguiu manter o segredo durante mais tempo do que eu teria pensado possível - continuou a Laure com admiração. - Ninguém imagina que não seja uma simpática senhora da Bretanha, la veuve Simon. É bastante respeitada. Tem aqui uma vida boa. Ninguém suspeita de nada. Nem sequer contou à sua filha. - À Pistache? - Soei estúpida a mim mesma, a boca num bocejo, como a mente. - Estiveram a falar com ela?


- Escrevi-lhe algumas cartas. Pensei que talvez soubesse algo sobre a Mirabelle. Mas nunca lhe contou, pois não? Oh, meu Deus, oh Pistache. Sentia-me numa derrocada, quando cada movimento provoca uma nova avalanche, causando um novo colapso do mundo que eu pensava ser tão sólido. - E a sua outra filha? Quando foi a última vez que falou com ela? E o que é que ela sabe? - Não pode fazer isto, não têm o direito de fazer isto. - As palavras eram ásperas como sal na boca. - Não têm ideia do que significa para mim. Se se descobrir... - Ora, ora, Mamie. Estava demasiado fraca para a repelir, e ela abraçou-me. - É claro que não mencionaríamos o seu nome. E mesmo que viesse a saber-se... e tem de enfrentar a possibilidade de isso acontecer um dia... iria para outro lugar. Um lugar melhor. De qualquer maneira, com a sua idade, não devia estar a viver numa velha quinta arruinada como esta; nem sequer tem uma canalização como deve ser, valha-me Deus. Podíamos pô-la num apartamento confortável em Angers. Manteríamos a imprensa longe de si. Nós gostamos muito de si, Mamie, apesar do que possa pensar. Não somos monstros. Queremos o que é melhor para si. Empurrei-a com mais força do que pensava ter. - Não! A pouco e pouco apercebi-me do Paul atrás de mim e em silêncio, e o meu medo desabrochou numa enorme flor de raiva e orgulho. Não estava só. O Paul, o meu fiel e velho amigo, estava comigo. - Pense no que significaria para a família, Mamie. 155


- Não! - Comecei a fechar a porta, mas a Laure pôs o tacão na frincha. - Não pode esconder-se para sempre. Então o Paul avançou. Falou numa voz calma e ligeiramente arrastada, a voz de um homem que ou está completamente em paz ou é um pouco lento de raciocínio. - Talvez não tenham ouvido a Framboise. - O seu sorriso era quase ensonado, não fosse o modo como me piscou o olho, e nesse momento amei-o totalmente, num repente que espantou a raiva que ainda tinha em mim. - Se bem percebi, ela não quer nada convosco. Não é assim? - Quem é este? - perguntou a Laure. - O que é que ele está aqui a fazer? O Paul deu-lhe aquele seu sorriso doce e sonolento. - Um amigo - respondeu simplesmente. - De há muitos anos. - Framboise - chamou a Laure por cima do ombro do Paul. - Pense no que Lhe dissemos. Pense no que isso significa. Não Lhe pediríamos se não fosse importante. Pense no assunto. - Tenho a certeza de que o fará - disse o Paul delicadamente, e fechou a porta. A Laure começou a bater insistentemente e o Paul trancou a porta e pôs a corrente de segurança. Eu podia ouvir a voz dela, abafada pela grossura da madeira, que agora soava quase como um zumbido. - Framboise! Seja razoável! Eu digo ao Luc para se ir embora. As coisas podem voltar a ser como eram. Framboise! - Café? - sugeriu o Paul, dirigindo-se para a cozinha. - Vai fazer-te bem. Olhei para a porta. - Aquela mulher - disse com a voz a tremer. - Aquela mulher horrorosa. O Paul encolheu os ombros. - Vamos lá para fora - sugeriu simplesmente. - De lá não a ouviremos. Para ele era tão fácil quanto isto, e eu segui-o, exausta, enquanto ele me trazia o café com creme de canela e açúcar e


uma fatia de far de amora que estava no armário da cozinha. Comi e bebi em silêncio durante uns minutos, até que senti a coragem a voltar. - Ela não vai desistir - disse por fim. - Faça o que fizer, não vai descansar enquanto não me tirar daqui. E ela sabe que nessa altura já não haverá razão para guardar segredo. 156 - Levei a mão à cabeça, que me começava a doer. - Ela sabe que não vou conseguir resistir para sempre. Tüdo o que tem a fazer é esperar. Não vou durar muito, de qualquer maneira. - Vais desistir? - A voz do Paul era calma e curiosa. - Não - respondi com aspereza. Encolheu os ombros. - Então não devias falar como se fosses mais esperta do que ela. - Por alguma razão, corou. - E sabes que podes vencer se quiseres. - Como? - Sabia que parecia a minha mãe, mas não conseguia evitá-lo. - Contra o Luc Dessanges e os amigos? Contra a Laure e o Yannick? Ainda não passaram dois meses e já quase me arruinaram o negócio. Só têm de continuar a fazer o que fizeram até agora, e pela Primavera... - Fiz um furioso gesto de frustração. - E quando começarem a falar? Só têm de dizer... - Choquei contra as palavras. - Só têm que mencionar o nome da minha mãe... O Paul abanou a cabeça. - Não acho que vão fazer isso disse calmamente. - Não já, pelo menos. Querem ter alguma coisa com que negociar. Sabem que tens medo disso. - O Cassis disse-lhes - respondi pesadamente. Encolheu os ombros. - Não tem importância - disse. - Vão deixar-te em paz durante algum tempo; vão tentar convencerte, esperar que decidas tu própria ajudá-los.


- E depois? - Sentia a minha raiva dirigir-se agora para ele. - Quanto tempo é que isso me dá? Um mês? Dois? O que é que posso fazer em dois meses? Podia ser um ano inteiro que mesmo assim... - Isso não é verdade. - Falou sem alterar o tom de voz, sem qualquer ressentimento. Tirou um Gauloise amachucado do bolso da camisa e acendeu-o com um fósforo. - Tu consegues fazer tudo o que queres. Sempre foi assim. - Olhou para mim por cima da ponta vermelha do cigarro e fez o seu sorrisinho triste. Lembra-te dos velhos tempos. Apanhaste o Velho, não apanhaste? Abanei a cabeça. - Não é a mesma coisa - disse-lhe. - É sim senhora, mais ou menos - respondeu enquanto exalava o fumo ácido. - Sabes isso perfeitamente. Aprende-se bastante sobre a vida com a pesca. Olhei para ele, sem compreender. Continuou: - Olha o Velho, por exemplo. Como é que o apanhaste quando todos os outros não o conseguiram? 157 Pensei naquilo por um momento, recuando até aos meus nove anos. - Estudei o rio - disse por fim. - Aprendi os hábitos do velho lúcio, o que comia e onde. E esperei. Tive sorte, mais nada. - Hum - O cigarro brilhou outra vez e o Paul expirou o fumo pelas narinas. - E se esta Dessanges fosse um peixe? O que é que fazias? - Riu-se subitamente. - Descobre onde se alimenta,


descobre o isco certo, e é tua. Não é assim? Olhei para ele. - Não é assim? Talvez. A esperança riscou-me um fino trilho de prata no coração. - Estou velha de mais para lutar contra eles - disse. - Velha de mais e cansada de mais. O Paul pôs a mão áspera e bronzeada por cima da minha e sorriu. - Eu não acho - disse. 158 8. claro que ele tem razão. A pesca ensina-nos muito sobre a vida. E O Tomas ensinara-me isso, entre outras coisas. Conversáramos muito durante o ano em que fomos amigos. Às vezes o Cassis e a Reine estavam connosco e falávamos e trocávamos informação por pequenos objectos de contrabando: pastilha elástica, chocolate, um frasco de creme para a Reine ou uma laranja. O Tomas parecia ter um suprimento ilimitado deste tipo de coisas, que distribuía com indiferença. Nessas alturas vinha quase sempre sozinho. Desde que tivera aquela conversa no Posto de Vigia com o Cassis, sentia que as coisas estavam esclarecidas entre o Tomas e eu. Cumpríamos as regras; não as regras sem sentido da mãe, mas regras simples que até uma criança de nove anos podia entender: "mantém os olhos abertos; procura o que é importante; partilha o que tens, partilha irmãmente". Os meus irmãos e eu tínhamos sido tão auto-suficientes durante tanto tempo que era um enorme alívio poder contar com alguém que controlasse as coisas; um adulto, alguém que mantivesse a ordem.


Lembro-me de um dia em que estávamos os três juntos e o Tomas estava atrasado. O Cassis ainda lhe chamava Leibniz apesar de a Reine e eu o tratarmos já pelo primeiro nome. O Cassis estava amuado e de mau humor, tendo-se sentado afastado de nós na margem do rio, a atirar pedras à água. Nessa manhã tivera uma discussão com a mãe por causa de algo sem importância: "Se o teu pai fosse vivo, não te atreverias a falar-me nesse tom!". 159 "Se o nosso pai fosse vivo, faria o que lhe digo, tal como a mãe!". Perante o chicote da língua dela, o Cassis fugiu, como sempre. Guardava o velho casaco de caça do pai debaixo de um colchão de palha que tínhamos na casa da árvore e vestira-o, todo acocorado dentro dele como um velho índio com uma manta pelos ombros. Era sempre mau sinal quando ele vestia o casaco do pai, e por isso eu e a Reine deixámo-lo em paz. Estava ainda ali sentado quando o Tomas chegou. O Tomas notou logo e sentou-se a alguma distância dele sem dizer nada. - Estou farto - disse o Cassis passado algum tempo e sem olhar para o Tomas. - Coisas de crianças. Tenho quase catorze anos. Estou farto disto. O Tomas despiu o enorme sobretudo militar e atirou-o para o lado para que a Reinette pudesse revistar os bolsos. Eu deitei-me na margem do rio a observá-los. O Cassis falou outra vez: - Banda desenhada, chocolate; só porcaria. A guerra não é isto. Isto não é nada. - Levantou-se, parecendo agitado. - Nada disto é a sério. Não passa de um


jogo. Rebentaram com a cabeça ao meu pai mas para ti isto não passa de um estúpido jogo, não é? - É isso que pensas? - perguntou o Tomas. - Eu acho é que tu és um boche - cuspiu o Cassis. - Anda comigo - disse o Tomas, levantando-se. - Fiquem aqui meninas, está bem? A Reine estava satisfeita, poderia folhear as revistas e os tesouros dentro dos vários bolsos do sobretudo. Deixei-a entregue àquilo e fui atrás deles às escondidas através da vegetação, mantendo-me junto ao solo musguento. As vozes deles chegavam-me de longe, como grãos de poeira caindo do dossel das árvores. Não ouvi tudo. Estava agachada atrás de um tronco caído e mal respirava com medo. O Tomas tirou a arma do coldre e passou-a ao Cassis. - Pega nela se quiseres. Sente-a. Devia ser bem pesada. O Cassis levantou-a e apontou em direcção ao alemão. O Tomas pareceu não reparar. - O meu irmão foi fuzilado como desertor - disse o Tomas. 160 Tinha acabado a recruta. Tinha dezasseis anos e estava assustado. Era operador de metralhadora e o barulho deve têlo enlouquecido um pouco. Morreu numa aldeia francesa, mesmo no princípio da guerra. Se ele estivesse comigo, talvez o pudesse ter ajudado, podia tê-lo acalmado, evitando que se metesse em sarilhos. Mas não estava ao pé dele. O Cassis olhou para ele com hostilidade. - E depois? O Tomas ignorou a pergunta. - Os meus pais sempre o preferiram a mim. Era sempre o Ernst que rapava as panelas quando a minha mãe fazia bolos, era o Ernst que tinha


sempre as tarefas mais fáceis para fazer, era do Ernst que eles se orgulhavam. Eu? Eu era insignificante, servia apenas para ir pôr o lixo na rua e dar de comer aos porcos. Pouco mais. Agora o Cassis estava a prestar atenção. Sentia a tensão entre os dois, como alguma coisa a arder. - Quando recebemos a notícia, eu estava em casa de licença. Chegou uma carta. Era suposto ser segredo, mas no espaço de meia hora toda a gente na aldeia ficou a saber que o filho dos Leibniz era um desertor. Os meus pais não conseguiam compreender o que se passava; portaram-se como se tivessem sido atingidos por um raio. Comecei a arrastar-me para mais perto, camuflando-me atrás da árvore caída. O Tomas continuou. - O engraçado era que eu sempre pensara que era o cobarde da família. Acatava sempre tudo. Nunca me arriscava. Mas a partir daquele momento passei a ser um herói para os meus pais. De repente ocupei o lugar do Ernst. Foi como se ele nunca tivesse existido. Eu era como um filho único. Eu era tudo. - Isso não... não te assustou? - A voz do Cassis era quase inaudível. O Tomas anuiu com a cabeça. Ouvi então o Cassis suspirar, um som como o de uma porta pesada a fechar. - Ele não devia ter morrido - disse o Cassis. Assumi que se referia ao nosso pai. O Tomas esperou pacientemente e aparentemente impassivo. - Era sempre tão esperto. Tinha tudo sob controlo. Ele não era cobarde... - O Cassis calou-se e olhou para o Tomas, como se o silêncio dele implicasse algo. Depois começou a tremer: 161


as mãos, a voz. E depois desatou a gritar numa voz alta e torturada; palavras que eu quase não conseguia ouvir, derramando-se umas sobre as outras numa furiosa avidez para se libertarem. - Ele não devia ter morrido! Devia ter tomado conta de tudo e fazer com que tudo corresse bem, e em vez disso foi-se embora e deixou-se rebentar estupidamente. E agora sou eu que tenho de fazer tudo e eu... não... sei... já não sei o que fazer e tenho m-m-me... O Tomas esperou até ele se acalmar. Levou algum tempo. Depois estendeu a mão e recuperou calmamente a arma. - É esse o problema dos heróis - comentou. - Nunca correspondem às expectativas, não é? - Eu podia ter-te matado - disse o Cassis com um ar sombrio. - Há mais do que uma maneira de retaliar - respondeu o Tomas. Percebi que estavam a chegar ao fim e comecei a voltar para trás através dos arbustos para que não me encontrassem. A Reinette estava ainda no mesmo sítio, absorta com uma cópia de Ciné-Mag. Cinco minutos depois o Tomas e o Cassis voltavam de braço dado como irmãos e o Cassis trazia à cabeça o boné do Tomas inclinado de lado. - Fica com ele - disse o Tomas. - Eu arranjo outro. Mordera o isco. A partir daquele momento o Cassis era escravo dele. 162 9. Depois daquilo, o nosso entusiasmo pela causa do Tomas


aumentou ainda mais. Qualquer informação, por mais trivial que fosse, era-lhe proveitosa. Madame Henriot, que trabalhava nos correios e abria as cartas às escondidas; Gilles Petit do talho, que estava a vender gato por lebre, Martin Dupré tinha andado a dizer mal dos alemães a Henri Drouot no La Mauvaise Réputation; toda a gente sabia que os Truriands tinham um rádio escondido debaixo de uma armadilha no quintal das traseiras e que Martin Francin era comunista. E cada dia o Tomas visitava essas pessoas com a desculpa de ir requisitar provisões para o exército e voltava sempre com um pouco mais do que aquilo que tinha ido buscar - um punhado de notas ou tecido do mercado negro ou uma garrafa de vinho. Às vezes as vítimas pagavam com mais informação: um primo de Paris que estava escondido numa cave em Angers, uma cena de navalhadas por trás do Chat Rouget. No fim do Verão, o Tomas Leibniz conhecia metade dos segredos de Angers e dois terços dos de Les Laveuses e tinha já uma pequena fortuna bem aconchegada no colchão. Retaliação, era como ele descrevia o que fazia. Contra o quê, isso nunca precisou de explicar. Mandava dinheiro para casa, se bem que nunca soube como. Havia maneiras, claro. Malas diplomáticas e por mensageiro, nos comboios que levavam comida ou nos camiões de medicamentos. Havia imensas vias que um jovem ambicioso e imaginativo podia explorar se tivesse os contactos certos. 163 Trocava de turnos e de tarefas com os amigos para poder visitar as quintas locais. Punha-se à escuta atrás da porta da


cantina dos oficiais. As pessoas gostavam dele, confiavam nele e contavam-lhe coisas. E ele nunca esquecia nada. Era arriscado. Ele próprio mo disse um dia em que nos encontrámos ao pé do rio. Podia ser fuzilado ao mais pequeno erro. Mas os olhos brilhavam-lhe de riso quando o disse. "Só os parvos é que são apanhados", dizia a rir. "Os parvos baixam a guarda e tornam-se descuidados, e até gananciosos". O Heinemann e os outros eram parvos. Dantes precisava deles, mas agora era mais seguro continuar sozinho. Um impecilho, todos. Demasiadas fraquezas - o gordo Schwartz sempre de olho nas raparigas, o Hauer bebia de mais e o Heinemann, com os tiques constantes e sempre a coçar-se, era um candidato ideal para o manicómio. Não, dizia-me ele preguiçosamente, deitado de costas e com um pé de trevo entre os dentes, era melhor trabalhar sozinho, observar e esperar e deixar que os outros se arriscassem. - O teu lúcio, por exemplo - disse ele em tom pensativo. Não sobreviveu tanto tempo no rio arriscando-se desnecessariamente. Alimenta-se principalmente do que encontra no fundo do rio, apesar de os dentes que tem lhe permitirem atacar quase qualquer outro peixe do rio - Fez uma pausa para deitar fora o trevo e sentar-se virado para a água. - Sabe que está a ser perseguido, Backfisch, e por isso espera no fundo, come restos podres e esgotos e lama. No fundo está a salvo. Observa os outros peixes, os mais pequenos junto da superfície, vê as barrigas deles reflectindo o sol, e quando vê um que se afasta do resto, que está talvez em apuros, zás! - e demonstrou com um movimento rápido das mãos, fechando mandíbulas imaginárias sobre uma vítima invisível. Eu limitava-me a observá-lo de olhos arregalados.


- Mantém-se afastado das armadilhas e das redes; sabe reconhecê-las. Os outros peixes são gananciosos, mas o velho lúcio sabe dar tempo ao tempo. Sabe esperar. E o isco, também reconhece o isco. Os engodos não funcionam com o velho lúcio. Só aceita isco vivo, e mesmo assim só às vezes. É preciso ser-se muito esperto para apanhar um lúcio. - Sorriu. - Nós podíamos ambos aprender bastante com esse velho lúcio, Backfisch. 164 Acreditei nele. Encontrava-me com ele de quinze em quinze dias ou até uma vez por semana, às vezes sozinha, e as mais das vezes com os meus irmãos. Normalmente era a uma quinta-feira, junto do Posto de Vigia, e íamos para o bosque ou descíamos ao longo do rio, para longe da aldeia, para onde ninguém nos podia ver. Muitas vezes o Tomas vinha à paisana, deixando o uniforme escondido na casa da árvore para evitar que alguém fizesse perguntas. Nos dias em que a mãe estava de má disposição servia-me do saquinho da laranja para a manter no quarto enquanto nos encontrávamos com o Tomas. Nos outros dias, acordava às quatro da manhã e ia pescar antes das tarefas domésticas, tendo o cuidado de escolher as partes mais escuras e mais calmas do Loire. Apanhava peixe pequeno com as minhas armadilhas, mantendo-os vivos até poder usá-los como isco na minha cana de pesca nova. Depois fazia-os deslizar pela água, muito levemente, só o suficiente para as barrigas tocarem a superfície, varrendo a corrente com aquele engodo vivo. Apanhei assim vários lúcios, mas eram todos muito jovens, nenhum deles maior que uma mão ou um pé. Mesmo


assim, pregava-os às Pedras Direitas, junto das tiras malcheirosas das cobras-d'água que estiveram ali penduradas o Verão inteiro. Tal como o lúcio, pus-me à espera. 165 10. Estávamos no princípio de Setembro agora e o Verão estava a chegar ao fim. Ainda estava calor, havia no ar um cheiro a maduro, a algo rico e gordo, um doce aroma de mel fermentado. As más chuvas de Agosto tinham estragado a maioria da fruta e o que sobrevivera estava negro de vespas, mas apanhámo-la mesmo assim; não nos podíamos dar ao luxo de desperdiçar, e aquilo que não podia ser vendido como fruta fresca, podia dar para licores ou doce para o Inverno. A mãe coordenou a operação; deu-nos luvas grossas e pinças de madeira - dantes utilizadas para tirar a roupa da água a ferver nos caldeirões - para apanharmos a fruta caída. Lembro-me de que as vespas estavam particularmente cruéis nesse ano, sentindo talvez a aproximação do Outono e as suas mortes iminentes, porque, apesar das nossas luvas, nos picaram repetidamente quando atirávamos a fruta semiapodrecida para dentro das grandes panelas a ferver para fazer doce. O próprio doce era metade vespas ao princípio, e a Reine, que odiava insectos, ficou quase histérica por ter de retirar com uma escumadeira os corpos meios-mortos que subiam à superfície, atirando-as o mais longe possível para o chão num borrifo de sumo de ameixa, onde as companheiras logo se punham a rastejar todas


pegajosas. A mãe não tinha paciência para aquele tipo de comportamento. Não se esperava que tivéssemos medo de vespas e coisas do género, e quando a Reine gritou e chorou por ter de apanhar as enxameantes massas de ameixas caídas, a mãe foi severa com ela como em nenhuma outra ocasião. 166 - Não sejas mais parvinha do que aquilo que Deus te fez, rapariga - repreendeu-a ela. - Achas que as ameixas se apanham sozinhas? Ou estás à espera que os outros façam o teu trabalho. A Reine choramingou, com as mãos rigidamente estendidas bem longe do corpo, o rosto contorcido de nojo e medo. O tom da mãe tornou-se mais perigoso. Por um momento a voz dela soou véspida, zunindo de ameaça. - Faz o que te digo - disse -, ou ainda te dou uma razão a sério para choramingares - e empurrou a Reinette com força para um monte de ameixas que já apanháramos, um monte esponjoso, já meio-fermentado e coberto de vespas esvoaçantes. A Reinette viu-se no meio de um enxame de insectos e gritou, recuando para junto da mãe, de olhos fechados para não ver o súbito espasmo de fúria que atravessou a cara da mãe. A mãe ficou momentaneamente quase estática e depois agarrou na Reinette pelo braço, que ainda estava a gritar histericamente, e pô-la a marchar rapidamente e sem palavras em direcção à casa. O Cassis e eu olhámos um para o outro mas nenhum de nós se moveu para as seguir. Era melhor não. Quando a Reinette começou a gritar mais alto, cada grito pontuado por um som como o de uma espingarda de pressão de ar, limitámo-nos a


encolher os ombros e a voltar ao trabalho entre as vespas, usando as pinças de madeira para apanhar pedaços de ameixas estragadas e deitá-los nos baldes alinhados no carreiro. Depois do que nos pareceu bastante tempo, cessaram os sons da Reinette a ser chicoteada e ela e a mãe saíram de casa, a mãe ainda a segurar o pedaço de corda para estender a roupa que utilizara, e voltaram ao trabalho em silêncio, ocasionalmente interrompido pelas fungadelas da Reinette, que não parava de enxugar os olhos avermelhados. Pouco depois o tique da mãe voltou e ela foi para o quarto, deixando-nos com instruções estritas para acabarmos de apanhar todas as ameixas caídas e as pormos dentro das panelas a ferver. Nunca falou no incidente e pareceu até esquecer-se que acontecera, mas lembro-me de ouvir a Reinette a chorar e a remexer-se nessa noite e vi as marcas vermelhas nas pernas dela quando vestiu a camisa de dormir. Se bem que pouco normal, aquele incidente estava longe de ser a última coisa estranha que a mãe fez naquele Verão e depressa foi esquecido - excepto pela Reinette, claro. Tínhamos outras coisas em que pensar. 167 11. Durante esse Verão vi o Paul poucas vezes; com o Cassis e a Reinette sem escola, ele mantinha-se afastado. Mas em Setembro, com as aulas a aproximar-se, começou a aparecer mais vezes. Apesar de gostar bastante do Paul, não gostava da


ideia de ele conhecer o Tomas, e por isso muitas vezes evitava-o, escondendo-me nos arbustos ao lado do rio, ou ignorando os seus gritos ou fingindo não o ver quando me acenava. Ao fim de algum tempo parece que compreendeu a mensagem porque deixou completamente de aparecer. Foi por volta dessa altura que o comportamento da mãe se tornou realmente estranho. Desde o incidente com a Reinette que a observávamos de uma distância cautelosa, como primitivos aos pés do seu deus. Porque era isso o que ela era para nós, uma espécie de ídolo, um ser que arbitrariamente nos recompensava ou castigava e cujos sorrisos e cenhos carregados eram as lâminas que faziam girar o nosso catavento de emoções. E com Setembro a chegar ao fim e o começo das aulas dos dois filhos mais velhos daí a uma semana, ela transformou-se numa espécie de caricatura do que era antes, irritando-se à mais pequena coisa - um pano deixado ao lado do lava-louças, um prato por arrumar, um grão de poeira no vidro de uma fotografia emoldurada. As dores de cabeça importunavam-na quase todos os dias. Quase cheguei a sentir inveja do Cassis e da Reinette que passavam longos dias nas aulas, mas a escola primária da aldeia fechara e só no ano seguinte teria idade suficiente para me juntar a eles em Angers. 168 Utilizei o saquinho de laranja várias vezes. Apesar de viver constantemente com medo de que a mãe descobrisse, era mais forte que eu. Só se acalmava quando tomava os comprimidos,


e só os tomava quando sentia o cheiro de laranjas. Continuei a esconder as minhas provisões de casca de laranja bem fundo no barril das enchovas e tirava-as quando precisava. Era arriscado, mas proporcionava-me umas bem merecidas seis ou sete horas de paz. Entre esses breves momentos de cessar-fogo, a campanha entre nós continuava. Eu estava a crescer depressa; era já da altura do Cassis e mais alta que a Reinette. Tinha a cara severa da mãe, os seus olhos escuros e desconfiados e o mesmo cabelo preto e liso. Odiava esta semelhança com ela, mais do que o facto de ela ser tão estranha, e à medida que o Verão se transformava em Outono, senti o meu ódio crescer quase a ponto de me sufocar. Havia no nosso quarto um pedaço de espelho e comecei a ver-me nele em segredo. Nunca antes me interessara pela minha aparência, mas agora sentia curiosidade, e depois fiquei crítica. Contava os meus defeitos e ficava desolada por serem tantos. Gostava de ter o cabelo encaracolado, como a Reinette, e lábios cheios e vermelhos. Via às escondidas as fotografias das estrelas de cinema nas revistas que a minha irmã ocultava sob o colchão e decorei a cara de cada uma. Não com suspiros de êxtase mas com um desespero de fazer ranger os dentes. Torci o cabelo com trapos para o fazer encaracolar. Cheguei a beliscar com toda a força os pálidos botões acastanhados dos meus seios para os fazer crescer. Nada resultava. Permanecia a imagem da minha mãe; carrancuda, pouco eloquente e desastrada. Havia outras coisas estranhas. Tinha sonhos vívidos dos quais acordava sem fôlego e coberta em suor, apesar de as noites estarem a arrefecer. O meu sentido do cheiro apurou-se, tanto que às vezes conseguia sentir o


cheiro do feno a ser queimado na quinta dos Hourias apesar de o vento não estar a soprar na minha direcção, ou sabia quando o Paul estivera a comer presunto ou o que a mãe estava a cozinhar muito antes de chegar perto do pomar. Pela primeira vez, tinha consciência do meu próprio cheiro, o meu cheiro a peixe, salgado e morno, que persistia mesmo depois de me esfregar com essência de limão e hortelã-pimenta, e do forte cheiro um pouco oleoso do meu cabelo. 169 Tinha dores de estômago - eu, que nunca ficava maldisposta e dores de cabeça. Comecei a pensar que herdara todas as esquisitices da minha mãe, que estava a ser engolida por um terrível e enlouquecedor segredo. E então um dia acordei e vi sangue na cama. O Cassis e a Reinette estavam a preparar-se para ir para a escola de bicicleta e prestaram-me pouca atenção. Tapei instintivamente a mancha com o cobertor e vesti uma velha saia e uma camisola antes de desatar a correr em direcção ao rio para investigar a minha aflição. Tinha sangue nas pernas e lavei-me no rio. Tentei fazer uma ligadura com lenços velhos mas a ferida era demasiado profunda, demasiado complicada. Sentia-me como se estivesse a ser rasgada por dentro, nervo a nervo. Nunca me passou pela cabeça contar à mãe. Nunca ouvira falar de menstruação - a mãe era extremamente pudica em relação às coisas do corpo - e parti do princípio que estava muito ferida, provavelmente a morrer. Uma queda descuidada algures no bosque, um cogumelo venenoso; estava a sangrar por


dentro, talvez fosse até um pensamento venenoso. Não íamos à igreja a mãe não gostava do que ela chamava la curaille(1) e desdenhava das multidões que se dirigiam para a missa - e, contudo, educara-nos com uma profunda noção do pecado. "O mal vem sempre ao de cima", dizia-nos, e para ela nós estávamos cheios de maldade como odres cheios de um vinho avinagrado. Precisávamos de ser constantemente vigiados, escutados, cada olhar e som indicativos do mal profundo e instintivo que escondíamos dentro de nós. Eu era a pior de todos. Sabia-o perfeitamente. Via-o ao espelho nos meus olhos, tão semelhantes aos dela, repletos de uma insolência animal. "Podem chamar a morte com um simples mau pensamento", costumava dizer-nos, e naquele Verão todos os meus pensamentos tinham sido maus. Eu acreditava no que ela dizia. Escondia-me como um animal envenenado; subia até ao Posto de Vigia e enroscava-me no chão de madeira, à espera da morte. Doía-me a barriga como se fosse um dente podre. Como a morte não vinha, punha-me a ler uma das bandas desenhadas do Cassis e depois deitava-me a olhar para o dossel de folhas até adormecer. *1. Em francês no original: "padralhada". (N. do E.) 170


12. Mais tarde explicou-me quando me estendeu um lençol lavado. Sem qualquer expressão no rosto, tirando aquele olhar de avaliação que sempre punha na minha presença: a boca adelgaçando-se quase até ficar invisível e os olhos agressivos como pontas de arame farpado na sua palidez. - É a maldição que chega cedo - disse-me. - É melhor que ficas com isto. Estendeu-me um maço de rectângulos de musselina que me fizeram lembrar fraldas. Nem sequer me disse como utilizálos. Maldição?. Passei o dia inteiro no Posto de Vigia à espera da morte. A falta de expressão na cara dela punha-me furiosa e intrigava-me. Sempre gostei de drama. Havia-me imaginado morta,aos pés dela, com flores na cabeça, uma lápide de mármore com a inscrição Filha Amada. Dizia para mim que se calhar tinha visto o velho sem me ter dado conta. Estava amaldiçoada. - Sim, a maldição do Velho - disse ela, como se concordando. - Agora és como eu... E não voltou a falar no assunto. Durante um dia ou dois tive medo, mas não lhe disse nada. Ia lavar os rectângulos de musselina no Loire. Depois a maldição desapareceu por uns tempos e esqueci-me do assunto. Excepto o rancor. Agora mais nítido, afiado pelo medo e pelo acto de a minha mãe se recusar a oferecer-me qualquer tipo de consolo. As palavras dela perseguiam-me - "agora és como eu", 171 - e imaginava que estava a transformar-me nela imperceptivelmente, parecendo-me cada vez mais com ela


das maneiras mais perversas. Beliscava os braços e as pernas magras porque eram como os dela. Esbofeteava-me na cara para lhe dar mais cor. Um dia cortei o cabelo - tão curto que me magoei em vários sítios - porque se recusava a encaracolar. Tentei depilar as sobrancelhas mas não sabia fazê-lo e já as tinha arrancado quase todas quando a Reinette deu comigo de cara franzida em frente ao espelho com uma pinça e uma profunda ruga de raiva entre os olhos. Mas a mãe praticamente não notou. A minha história de que queimara o cabelo e as sobrancelhas ao acender o forno da cozinha pareceu satisfazê-la. Só uma vez - deve ter sido num dos seus dias bons -, estávamos na cozinha a fazer terrines de lapin, é que ela se virou para mim com um estranho olhar impulsivo. - Queres ir ao cinema hoje, Boise? - perguntou abruptamente. - Podíamos ir as duas. Aquele convite era tão pouco típico dela que fiquei em choque. Ela nunca saía da quinta senão para tratar de negócios. Nunca gastava dinheiro em divertimentos. De repente notei que tinha posto um vestido novo - enfim, tão novo quanto era possível naqueles tempos -, com um provocante corpete vermelho. Devia tê-lo feito a partir de restos de tecido durante as noites em que não conseguia dormir, porque eu nunca o tinha visto antes. Tinha a cara ligeiramente corada, quase de rapariguita, e tinha as mãos estendidas, cobertas de sangue de coelho. Encolhi-me. Fora um gesto de amizade, sem dúvida. Rejeitálo era impensável e, contudo, havia entre nós tantas coisas por


dizer para que isso fosse possível. Por um segundo, imaginei como seria ir ter com ela, deixar que os braços dela se fechassem à minha volta, contar-lhe tudo... Voltei imediatamente à realidade. Contar-lhe o quê?, perguntei-me com severidade. Havia muita coisa a dizer. Não havia nada a dizer. Nada de nada. Ela olhou para mim intrigada. - Boise? E então? - A voz era inusualmente calma, quase carinhosa. Tive uma súbita e aterradora visão dela na cama com o meu pai, de braços abertos e com o mesmo olhar de sedução. 172 - Nunca fazemos outra coisa senão trabalhar - disse baixinho. - Parece que nunca temos tempo para nada. Estou tão cansada. Foi a primeira vez que a ouvi queixar-se. Voltei a sentir vontade de me aproximar dela, de sentir o calor dela, mas era impossível. Não estávamos habituados a tais coisas. Praticamente nunca nos tocávamos. A ideia em si era quase indecente. Limitei-me a murmurar algo sem graça relativo a já ter visto o filme. As mãos manchadas de sangue permaneceram estendidas durante uns segundos mais, convidativas. Depois a cara dela fechouse e senti uma súbita pontada de uma feroz hilaridade. Até que enfim marcava um ponto no nosso longo e amargo jogo. - Claro - respondeu ela em tom neutro. Não voltou a falar em ir ao cinema e não fez qualquer comentário quando fui a Angers com o Cassis e a Reinette na quinta-feira dessa semana para ver esse filme que eu proclamava que já tinha visto. Talvez já


se tivessse esquecido. 173 13. Nesse mês a nossa mãe, arbitrária e imprevisível, encheu-se de uma nova série de caprichos. Num dia mostrava-se feliz, cantando para si mesma no pomar enquanto supervisionava a apanha da fruta que restava, no outro dia ralhando-nos se nos atrevíamos a aproximar-nos dela. Houve presentes inesperados; pedaços de açúcar, um precioso quadradinho de chocolate e uma blusa para a Reine feita da famosa seda de pára-quedas da Madame Petit com minúsculos botões de pérola. Também deve tê-la feito em segredo, como o vestido de corpete vermelho, porque eu não a vira cortar o tecido nem prová-la, mas estava linda. Como sempre, não disse nada ao entregar o presente, apenas um estranho e abrupto silêncio para o qual qualquer palavra de agradecimento teria parecido inapropriada. "Está tão bonita", escreveu no álbum. "Quase uma mulher, com os olhos do pai. Se ele não estivesse morto, sentiria ciúmes. Talvez a Boise os sinta, ela que, como eu, tem uma carinha de sapo. Tentarei descobrir algo de que ela goste. Ainda não é demasiado tarde". Se ao menos ela me tivesse dito qualquer coisa, em vez de o escrever em código naquela letrinha minúscula. Tal como eram as coisas, aqueles pequenos actos de generosidade - se era isto o que eram - enraiveciam-me ainda, e dei por mim a procurar maneiras de a atingir novamente, como daquela vez na


cozinha. Não arranjo desculpas. Quis magoá-la. O velho cliché é verdadeiro: "as crianças são cruéis. Quando enfiam a faca, vão bem mais fundo do que qualquer adulto", e nós éramos coisinhas ferozes, impiedosos se detectávamos sinais de fraqueza. 174 Aquele momento em que tentou abraçar-me na cozinha foi-lhe fatal, e talvez ela o soubesse, mas era demasiado tarde. Vira fraqueza nela e a partir daí fui impiedosa. A minha solidão bocejava furiosamente dentro de mim, esfomeada, abrindo galerias mais profundas e mais negras no meu coração, e se havia alturas em que também a amava com um desespero urgente e doloroso, bania o pensamento com memórias da sua ausência, da sua frieza, da sua ira. A minha lógica era maravilhosamente louca; "hei-de fazê-la arrepender-se", dizia a mim mesma. "Hei-de fazer com que me odeie". Sonhava frequentemente com a Jeanette Gaudin, com a pedra tumular branca decorada com o anjo e com lírios brancos num vaso na cabeça. Filha Amada. Por vezes acordava com a cara coberta de lágrimas e o maxilar dorido, como se tivesse estado a ranger os dentes durante horas. Por vezes acordava confusa, certa de que estava a morrer. A cobra-d'água sempre me mordera, dizia a mim própria sonolenta apesar de todas as minhas precauções. Tinha-me mordido mas, em vez de morrer depressa - flores brancas, mármore, lágrimas -, estava a transformar-me na minha mãe. Gemi no meio-sono febril, segurando a minha cabeça rapada entre as mãos., Houve alturas em que utilizei o saquinho de laranja por pura maldade e por secreta vingança pelos


sonhos. Ouvia-a a andar de um lado para o outro no seu quarto, às vezes a falar sozinha. O frasco de morfina estava quase vazio. Uma vez atirou qualquer coisa pesada contra a parede e partiu-se; mais tarde encontrámos no lixo os pedaços do relógio da mãe dela, a redoma em pedaços, o mostrador rachado no meio. Não senti pena nenhuma. Tê-lo-ia partido eu própria se tivesse tido coragem. Apenas duas coisas me mantiveram sã durante aquele mês de Setembro. A primeira era a minha caça ao lúcio. Apanhei vários utilizando a sugestão do Tomas de isco vivo - as Pedras Direitas empestavam com os seus cadáveres e o ar, repleto de moscas, tinha um tom arroxeado - e, apesar de o Velho continuar a escapar-me, estava convencida de que já não faltava muito. Compreendi que ele devia estar a observar, a raiva e o descuido aumentando. O desejo de se vingar seria a sua perdição, disse a mim mesma. 175 Não podia ignorar para sempre aquele ataque aos seus. Por muito paciente, por muito impassível que fosse, chegaria o momento em que perderia o controlo. Subiria então à superfície, lutaria, e eu tê-lo-ia. Persisti, e descarreguei a minha raiva nos corpos das vítimas com uma habilidade crescente, utilizando por vezes o que sobrava como engodo para as minhas armadilhas. A minha segunda fonte de conforto era o Tomas. Víamo-lo uma vez por semana quando ele podia, quase sempre numa quinta-feira, que era o seu dia de folga. Chegava de mota, que escondia juntamente com o uniforme nos arbustos por trás do Posto de Vigia, e trazia muitas vezes um pacote de coisas do mercado negro para partilharmos. Por muito estranho que


pareça, habituámo-nos tanto às suas visitas que a simples presença dele teria sido suficiente, mas ocultávamos esse facto, cada um à sua maneira. Na sua presença, mudávamos: o Cassis tornava-se indiferente, armando-se com uma fanfarronice desesperada - "Olha como eu consigo atravessar o Loire no ponto onde a corrente é mais forte. Olha como roubo mel das abelhas bravas" -, a Reine ficava coquete e tímida, espreitando-o com os seus olhos cheios de sombra e fazendo beicinho com a sua bonita boca pintada. Eu desprezava o comportamento da Reine. Como sabia que não podia competir com a minha irmã naquele seu jogo, fazia o que podia para ser melhor que o meu irmão em tudo o que ele fazia. Atravessava o rio em partes mais fundas e mais perigosas. Mergulhava durante mais tempo. Pendurava-me dos ramos mais altos do Posto de Vigia e, quando o Cassis se atrevia a igualar-me, penduravame de cabeça para baixo, conhecendo o seu secreto medo das alturas, rindo-me e gritando como um macaco para os outros lá em baixo. Com o meu cabelo curto, era mais arrapazada que qualquer rapaz e o Cassis já começava a dar sinais da fraqueza que o caracterizaria mais tarde. Eu era mais forte e mais corajosa que ele. Era demasiado nova para perceber o medo como ele o percebia, arriscando a vida alegremente só para passar à frente do meu irmão. Fui eu que inventei o Jogo das Raízes, que viria a ser um dos nossos preferidos, e passava horas a treinar, de modo que ganhava quase sempre. O princípio do jogo era simples. Ao longo das margens do Loire, mais vazio agora que deixara de chover, cresciam imensas raízes de árvores, limpas pela passagem da corrente.


176 Algumas tinham a largura da cintura de uma rapariga, outras apenas a de dedos mergulhando na corrente, muitas vezes voltando a enterrar-se no solo amarelo mais ou menos a um metro abaixo da superfície da água, de modo que formavam arcos de matéria lenhosa na escuridão. O objectivo do jogo era mergulhar através destes arcos - alguns deles muito apertados - dobrando o corpo abruptamente de maneira a atravessá-los e voltando para trás. Uma vez dentro da gruta escura, quem não passasse pelo arco à primeira e voltasse à superfície sem o ter feito ou se recusasse a aceitar um desafio, perdia. Quem conseguisse passár pelo maior número de arcos, sem falhar nenhum, ganhava. Era um jogo perigoso. Os arcos de raízes estavam sempre nas partes do rio onde a corrente era mais forte, onde as margens eram mais desgastadas. Viviam cobras em buracos sob as raízes e se a margem ruísse podíamos ficar presos debaixo do solo caído. A visibilidade era muito má e era preciso seguir às apalpadelas entre as raízes até encontrar a saída. Havia sempre a possibilidade de se ficar preso, de não conseguirmos soltar-nos por causa da força da corrente, e até podíamos morrer afogados. Mas claro que essa era a beleza do jogo e o seu atractivo. Eu era muito boa nele. A Reine quase nunca jogava e era frequentemente levada à histeria quando competíamos para impressionar, mas o Cassis nunca recusava um desafio. Ele era ainda mais forte que eu, mas eu tinha a vantagem de ser mais magra e de ter umas costas mais flexíveis. Era uma enguia, e quanto mais o Cassis se gabava e fazia poses, mais rígido se


tornava. Não me lembro de ter perdido uma única vez. As únicas vezes em que me encontrava sozinha com o Tomas era quando o Cassis e a Reine se tinham portado mal na escola. Só quando eram obrigados a ficar para trás às quintas-feiras quando os outros já tinham saído, sentadinhos nas suas carteiras na sala de castigo, a conjugar verbos ou a escrever cem vezes a mesma frase. Acontecia poucas vezes, mas aqueles eram tempos difíceis para todos. A escola ainda estava ocupada. Não havia muitos professores e as turmas chegavam a ter cinquenta ou sessenta alunos. A paciência era pouca; qualquer coisinha era suficiente - uma palavra dita fora de vez, uma má nota, uma briga, um trabalho de casa esquecido. Eu rezava por que isso acontecesse. 177 O dia em que aconteceu foi único. Recordo-o claramente, como a alguns sonhos, uma memória mais definida e mais colorida do que as outras, uma transparência perfeita no meio dos outros acontecimentos incertos e desfocados daquele Verão. Durante um dia, tudo aconteceu em perfeita sincronia, e pela primeira vez senti uma espécie de tranquilidade, de paz comigo mesma e com o meu mundo, um sentimento de que, se o escolhesse, podia fazer aquele dia perfeito durar para sempre. Foi um sentimento que nunca recuperei realmente, apesar de ter sentido algo parecido quando as minhas filhas nasceram, e talvez uma ou duas vezes com o Hervé ou quando um prato saía exactamente como eu queria. Mas daquela vez é que foi mesmo, o elixir, o


jamais-esquecer. A mãe estivera doente na noite anterior. Não por culpa minha desta vez; o saquinho de laranja já não funcionava; fora aquecido tantas vezes no último mês que a casca estava preta e queimada e o cheiro era quase imperceptível. Não, desta vez foi um dos seus achaques normais, e passado algum tempo tomou os comprimidos e foi-se deitar, deixando-me entregue a mim mesma. Acordei cedo e fui para o rio antes de a Reine ou o Cassis acordarem. Era um daqueles dias vermelhos-dourados do início de Outubro, o ar fresco e áspero e inebriante como aguardente de maçã e, mesmo às cinco da manhã, o céu era daquele tom claro, azul-arroxeado, que só os melhores dias de Outono proporcionam. Talvez haja três dias assim num ano, e aquele era um deles. Cantava enquanto verificava as armadilhas e a minha voz ressoava como um desafio nas margens enevoadas do Loire. Estávamos na estação dos cogumelos e assim, depois de levar a pescaria de volta para a quinta e de a ter limpado, preparei pão com queijo para o pequeno-almoço e fui para a floresta em busca de cogumelos. Sempre fui boa nisso. Ainda sou, para dizer a verdade, mas nessa altura tinha um nariz apurado como o de um porco para trufas. Conseguia descobrilos pelo cheiro; o chanterelle cinzento, o cor de laranja com o seu aroma a alperce, o bolet e o petit rose, o bufa-de-lobo comestível e o agárico e o chapéu-azul. A mãe sempre nos disse para levarmos à farmácia os cogumelos que apanhássemos para termos a certeza de que nenhum era venenoso, mas eu nunca me enganava. Conhecia o cheiro carnudo do bolet e o cheiro seco e


terroso do agárico. Conhecia-Lhes os habitats e os meios de cultura. Era uma apanhadora paciente. 178 Era quase meio-dia quando voltei para casa: O Cassis e a Reine deviam ter voltado da escola, mas não havia sinal de nenhum deles. Limpei os cogumelos e pu-los a marinar num frasco com azeite, tomilho e alecrim. Podia ouvir a respiração profunda e entorpecida da mãe por detrás da porta do quarto. O meio-dia e meia chegou e passou. Já deviam ter voltado. o Tomas vinha por volta das duas, o mais tardar. Comecei a sentir uma pontada de excitação na barriga. Entrei no nosso quarto e olhei-me no espelho da Reinette. O meu cabelo começara a crescer, mas atrás continuava curto como o de um rapaz. Pus o meu chapéu de palha, apesar de já não ser Verão, e pareceu-me que ficava melhor assim..... Uma da tarde. Estavam atrasados mais de uma hora. Imaginei-os na sala de castigo, com o sol a entrar pelas janelas altas e o cheiro a cera e a livros velhos. O Cassis devia estar amuado, a Reinette a fungar furtivamente. Sorri. Tirei o precioso bâton da Reinette de debaixo do colchão e pus um pouco nos lábios. Observei-me criticamente, depois apliquei a mesma cor nas pálpebras e repeti a operação. Estava diferente, pensei com aprovação, quase bonita. Não como a Reinette ou as actrizes das revistas, mas naquele dia isso não importava. Naquele dia a Reinette não estava. À uma e meia dirigi-me para o rio e para o nosso ponto de encontro habitual. Procurei-o do Posto de Vigia, quase à espera que não aparecesse - tanta sorte parecia ser para outra pessoa, não para mim -, e senti o aroma morno e viçoso das folhas avermelhadas e quase secas dos ramos que me rodeavam. Mais uma semana e o Posto de Vigia seria inútil nos seis


meses seguintes, a casa da árvore tão despida como numa colina, mas naquele dia havia ainda folhagem suficiente para me esconder. Senti o meu corpo a ser percorrido por tremores deliciosos, como se alguém estivesse a tocar um delicado xilofone mesmo acima do meu pélvis e a cabeça reverberava-me com uma indescritível sensação de leveza. "Hoje tudo é possível", pensei, como que em vertigem. "Absolutamente tudo". Vinte minutos depois ouvi o ruído de uma mota na estrada e saltei da árvore em direcção ao rio o mais depressa que pude. A sensação de vertigem era agora mais forte e sentia-me estranhamente desorientada, andando por um chão quase inexistente. Inundou-me um sentimento de poder, quase tão grande como a minha alegria. 179 O Tomas ia ser o meu segredo, ia pertencer só a mim. O que contássemos um ao outro ficaria somente entre nós. O que Lhe contasse... O Tomas estava a parar na berma da estrada, dando um olhar de relance para trás para ver se alguém o vira e depois escondendo a mota num arbusto de uma tamargueira ao lado da margem arenosa. Observei-o; sentia-me estranhamente relutante em aparecer agora que chegara a altura, de repente tímida da nossa solitude, da nossa intimidade. Esperei que despisse o casaco e o escondesse nos arbustos. Depois olhou em volta. Tinha na mão um pacote embrulhado com cordel e um cigarro na boca. - Os outros não vieram. - Tentei que a minha voz soasse


adulta para condizer com o olhar dele, consciente do bâton nos lábios e nos olhos. Perguntei-me se ele faria algum comentário. "Se ele se rir", pensei furiosa, "se ele se rir..." Mas o Tomas limitou-se a sorrir. - Está bem - disse casualmente. - Então estamos sozinhos. 180 14. Foi portanto um dia perfeito. Sessenta e cinco anos depois, é-me difícil explicar a alegria trémula daquelas poucas horas. Aos nove anos é-se tão inexperiente que uma palavra às vezes é suficiente para fazer sangue, e eu era mais sensível que a maioria das pessoas, quase esperando que ele estragasse tudo. Nunca me perguntei se o amava. Era irrelevante para aquele momento, e é impossível descrever o que sentia - aquela alegria doida e desesperada com a linguagem dos filmes favoritos da Reinette. E, contudo, era de amor que se tratava. A minha confusão, a minha solidão, o comportamento estranho da mãe e a separação dos meus irmãos tinham criado em mim uma espécie de fome, uma boca que se abria instintivamente ao mais pequeno sinal de bondade, mesmo vindo de um alemão, de um alegre extorcionário cuja única preocupação era manter os canais de informação abertos. Agora penso que isso era a única coisa que ele queria. Mesmo assim, algo em mim continua a negá-lo. As coisas não foram só isso. Houve algo mais. Ele gostava de se encontrar comigo, de falar comigo. Senão, por que teria ele ficado tanto tempo? Lembro-me de cada palavra, de cada gesto, de cada entoação.


Falou da casa na Alemanha, de Bierwurst e Schnitzel, da Floresta Negra e das ruas da velha Hamburgo e das terras do Reno, de Feuerzangenbohle, com uma laranja em fogo perfurada com cravinho numa taça de conche fumegante, e de Keks e de Strudel e de Backenoff e rikadelle com mostarda, e das maçãs que cresciam no jardim do avô dele antes da guerra, 181 e eu falei da mãe e dos seus comprimidos e do seu comportamento estranho e do saquinho de laranja e das armadilhas e do relógio partido e de como, quando recebesse o meu desejo, desejaria que aquele dia durasse para sempre. Nessa altura olhou para mim, e um olhar estranhamente adulto passou entre nós, como uma variante do jogo do sério do Cassis. Desta vez eu fui a primeira a desviar o olhar. - Desculpa - murmurei. - Não faz mal - disse-me. E, de algum modo, não fazia. Apanhámos mais cogumelos e tomilho silvestre - tão mais aromático do que a variedade doméstica, com as suas florzinhas púrpura - e alguns morangos tardios sob um toro. Quando ele trepava uma pilha de troncos, toquei-lhe nas costas fugazmente, sob o pretexto de me equilibrar, e senti o calor da pele dele queimar-me a palma da mão até horas depois, como um tição. E então sentámo-nos junto ao rio e vimos o disco vermelho do sol desaparecer por detrás das árvores, quando me pareceu ver algo. Algo preto na água preta, semivisível no centro de um grande V de ondinhas - uma boca, um olho, um flanco curvado a romper a superfície como uma mancha de


óleo, uma dupla fila de dentes cravada de velhos anzóis -, algo de proporções tremendas e inacreditáveis, que desapareceu assim que tentei perceber o que era, deixando apenas ondas e um remoinho de águas revoltas no sítio onde podia ter estado. Pus-me em pé de um salto, o meu coração a bater desordenadamente. - Tomas! Viste aquilo? O Tomas olhou-me com indolência, de cigarro entre os dentes. - Um tronco - disse laconicamente. - Um tronco puxado pela corrente. Acontece imensas vezes. - Não era nada! - A voz tremia-me de excitação. - Eu vi-o, Tomas! Era ele, era ele. O Velho, o Ve... - Comecei a correr com uma súbita e brusca explosão de velocidade, em direcção ao Posto de Vigia onde estava a minha cana de pesca. O Tomas riu-se. - Não vais conseguir - disse. - Mesmo que fosse o Velho, e acredita Backfisch: nenhum lúcio chega a ser daquele tamanho. - Era o Velho - insisti, teimosa. - Era. Era. Quatro metros de comprimento, diz o Paul, e preto como piche. Não podia ter sido outra coisa. Era ele. O Tomas sorriu. 182 Durante alguns segundos o meu olhar encontrou o dele, brilhante e desafiador, e depois baixei-o, vencida. - Era ele - repeti mais baixo. - Eu sei que era. Bem, pensei muitas vezes nisso. Talvez fosse só um tronco flutuante, como disse o Tomas. Realmente, quando o apanhei, o Velho não tinha quatro metros nem pouco mais ou menos, apesar de ser sem dúvida o maior lúcio que algum de nós alguma vez vira. Os lúcios nunca crescem tanto, pensava, e o que vira -


ou pensava que vira - no rio naquele dia era à vontade tão grande como os crocodilos com que o Johnny Weissmuller costumava lutar aos sábados de manhã no Majestic. Mas isso é o raciocínio de um adulto. Naquele tempo, nem a lógica nem o realismo interferiam com aquilo em que eu acreditava. Víamos o que víamos e se às vezes o que víamos fazia rir os adultos, quem podia dizer de que lado se encontrava a verdade? Sei, do fundo do coração, que naquele dia vi um monstro, algo tão esperto e velho quanto o próprio rio, algo que nunca ninguém seria capaz de apanhar. O Velho levou a Jeannette Gaudin. Levou o Tomas Leibniz. E quase me levou a mim. 183 QUARTA PARTE La Mauvaise Réputation 1. Limpar e amanhar as anchovas e esfregá-las por dentro com sal. Rechear generosamente cada uma com pedras de sal e ramos de salicorne. Pôr dentro de um barril, de cabeças para cima, e cobrir com sal às camadas. Mais outra mania. Quando se abria o barril, lá estavam, assentando nas caudas dentro do sal cinzento e brilhante, num apelo mudo e salgado. Retirar o necessário para a refeição e preencher o espaço vazio com mais sal e salicorne. No escuro da cave, as anchovas pareciam desesperadas, como crianças a afogarem num poço.


"Desfaz-te depressa desse pensamento, como uma corola de flor". A mãe escreve a azul, a letra bem alinhada e inclinada. Por baixo, acrescentou algo numa letra menos cuidada, mas é em bilininverlini, numa garatuja exótica a lápis de cera vermelho, grosso como bâton: Marabacalini isoloni lisodimirpmoclini - "acabaram os comprimidos..." Tinha-os desde o início da guerra, utilizando-os primeiro com cuidado, uma vez por mês ou menos, e depois cada vez mais, à medida que aquele estranho Verão avançava e ela estava sempre a dizer que lhe cheirava a laranjas. "O Y faz o que pode para ajudar", escreveu ela numa letra mal desenhada. "Alivia-nos a ambos. Vai buscar os comprimidos a La Rép, a um homem que o Hourias conhece de lá. E outras coisas, também. Não faço perguntas. Afinal, ele não é de pedra. Não é como eu. Tento não me importar. É inútil. Ele é discreto. Devia estar-lhe agradecida. 187 Toma conta de mim à maneira dele, mas é inútil. Estamos divididos. Ele vive na luz. Sei que não gosta de me ver sofrer. Sei que é verdade, e mesmo assim odeio-o por ser o que é. A seguir, depois da morte do meu pai: Acabaram-se os comprimidos. O alemão diz que pode arranjar mais, mas não aparece. É uma espécie de loucura. Venderia os meus filhos por uma noite de sono". Esta última entrada, ao contrário do resto, está datada. É por isso que sei. Era ciosa com os comprimidos, escondia o frasco no fundo de uma gaveta no quarto. Às vezes tirava o frasco do esconderijo e virava-o. Era de vidro castanho, com o rótulo mostrando ainda algumas palavras em alemão.


Acabaram os comprimidos. Foi na noite do baile, a noite da última laranja. 188 2. Hei, Backfisch, quase me esquecia. - Atirou aquilo descuidadamente, como um miúdo a lançar uma bola a ver se eu apanhava. Ele era assim, fingia que se esquecia, provocando-me, arriscando o prémio no Loire se eu fosse lenta ou desastrada. - O teu presente preferido. Apanhei-a com facilidade, com a mão esquerda, e sorri. - Diz aos outros para irem ter ao La Mauvaise Réputation hoje à noite - e piscou-me o olho, os olhos a brilharem verdes como os de um gato matreiro. - Pode ser divertido. É claro que a mãe nunca nos deixaria sair à noite. Apesar do recolher não ser tão estrito em aldeias remotas como a nossa, havia outros perigos. A noite ocultava negociatas, mais estranhas do que podíamos imaginar, e nessa altura alguns alemães tinham começado a aparecer no café para beber. Parece que gostavam de sair de Angers e de debaixo do olhar desconfiado das SS. O Tomas mencionara isto durante os nossos encontros, e por vezes eu ouvia o barulho das motas na estrada ao longe e pensava que era ele a voltar para casa. Imaginavao claramente, o cabelo voando ao sabor do vento, o luar a brilhar-lhe no rosto e na corrente fria do Loire. O motociclista podia ser qualquer pessoa, claro, mas eu imaginava sempre que era o Tomas. Naquele dia, contudo, era diferente. Encorajada talvez pelos nossos encontros secretos, tudo me parecia possível. Com o


casaco pelos ombros, o Tomas acenou-me indolentemente enquanto se afastava, levantando uma nuvem de poeira amarelada, e de repente senti o coração a dilatar-se insuportavelmente. 189 Invadida por uma sensação de perda, desatei a correr atrás dele, engolindo poeira e abanando os braços até muito depois de a mota dele ter desaparecido na estrada para Angers, sentindo as lágrimas a desenharem canais cor-de-rosa na máscara de pó na minha cara. Não fora o suficiente. Tivera o meu dia, um dia perfeito, e o meu coração ardia já de insatisfação e raiva. Olhei para o sol. Quatro horas. Um tempo imenso, uma tarde inteira, e mesmo assim não chegava. Queria mais. Mais. A descoberta deste novo contacto dentro de mim fazia-me morder os lábios em desespero; a memória deste nosso breve contacto ainda a queimar-me a mão. Várias vezes levei a mão aos lábios e beijei o sítio que queimava onde a pele dele tocara a minha. Relembrei as palavras dele como se fossem poesia. Revivi cada precioso momento com um crescente cepticismo, como quando durante as manhãs de Inverno tentava relembrar o Verão. Mas era um apetite que nenhum alimento conseguiria satisfazer. Queria vê-lo outra vez, naquele dia, naquele instante. Tinha pensamentos loucos de nós os dois a fugirmos juntos, a vivermos na floresta longe das pessoas, a construir-lhe uma casa numa árvore e a comermos cogumelos e morangos silvestres e castanhas até a guerra acabar. Encontraram-me no Posto de Vigia, deitada de costas, com a laranja na mão, a olhar para o dossel outonal.


- B-b-bem disse quela es-estaria aqui - disse o Paul, gaguejando muito como sempre acontecia quando a Reinette estava connosco. - V-v-vi-a v-vir para o b-bosque quando estava a pescar. - Sentia-se acanhado ao pé do Cassis, consciente das velhas calças azuis que trazia vestidas, cortadas de umas jardineiras do tio, e dos pés nus nas socas de madeira. Trazia com ele o Malabar, atado por uma corda. O Cassis e a Reine tinham as roupas da escola e a Reinette tinha o cabelo atado com uma fita de seda amarela. Sempre me perguntei por que é que, sendo a mãe dele costureira, o Paul andava sempre tão desleixado. - Estás bem? - A voz do Cassis soava aguda de ansiedade. Quando não apareceste em casa, pensei que... - Lançou um olhar rápido e sombrio ao Paul, e depois um olhar de aviso para mim. 190 - Sabes bem quem não apareceu aqui, não sabes? perguntou baixinho, claramente desejando que o Paul se fosse embora. Anuí com a cabeça. O Cassis fez um gesto de impaciência. Quantas vezes é preciso dizer? - disse baixinho e numa voz furiosa. - Nunca fiques sozinha com... - Outro olhar na direcção do Paul. - Enfim, o melhor é irmos para casa - disse mais alto. - A mãe já deve estar a ficar preocupada e está a fazer um pavé. É melhor despacharmo-nos e... Mas o Paul estava a olhar para a laranja. - Arran-j-jaste outra - disse naquela sua maneira lenta e curiosa. O Cassis olhou para mim com uma expressão de repulsa: Por que é que não a escondeste? Agora temos de dividi-la com ele. Hesitei. Não estava nos meus planos partilhar. Precisava da laranja para aquela noite. Contudo, via que a curiosidade crescia já dentro do Paul, estava a preparar-se para falar.


- Dou-te um bocado se não contares a ninguém - disse eu por fim. - Onde é que a arran-j-jaste? - Troquei no mercado - respondi cheia de lábia. - Por açúcar e um pedaço de seda de pára-quedas. A mãe não sabe. O Paul acenou com a cabeça e olhou timidamente para a Reine. - Podíamos c-comê-la juntos agora - disse ele com hesitação. - Tenho um canivete. - Dá-mo. - Não, deixa que eu corto - disse logo o Cassis. - Não, é minha. Eu corto-a. Tinha de ser rápida. É claro que podia recuperar parte da casca, mas não queria que o Cassis desconfiasse de nada. Virei-lhes as costas para partir a laranja, cortando-a cuidadosamente para não magoar a mão. Cortar aos quartos teria sido fácil - cortar ao meio e depois cortar outra vez -, mas desta vez precisava de um pedaço extra, suficientemente grande para o meu propósito, mas demasiado pequeno para que não se reparasse logo que faltava, um pedaço que podia enfiar no bolso para mais tarde. Ao abri-la, vi que a prenda do Tomas era uma laranja sanguínea de Sevilha, uma sanguine, e durante uns instantes fiquei como que hipnotizada pelo sumo vermelho que me escorria pelos dedos. 191 - Despacha-te, desastrada - disse o Cassis, impaciente. Quanto tempo é que é preciso para cortar uma laranja em quartos? - Calma - gritei. - A casca é dura.


- D-d-deixa qu-que eu faço. - O Paul inclinou-se na minha direcção e por pouco via-me esconder na manga o finíssimo pedaço que cortara a mais, o quinto quarto da laranja. - Não é preciso - disse. - Já está. Os quartos eram desiguais. Apesar do cuidado com que os cortara, havia um quarto que era visivelmente maior que os outros e outro bastante mais pequeno. Fiquei com esse para mim e o Paul deu o maior à Reine. O Cassis não estava contente. - Devias ter-me deixado cortar - disse. - O meu não é propriamente um quarto. És tão desajeitada, Boise. Chupei o meu pedaço em silêncio. Ao cabo de uns minutos o Cassis parou de se queixar e comeu a parte dele. Notei que o Paul me observava com uma expressão estranha, mas não disse nada. Deitámos as cascas ao rio. Consegui guardar um bocado da minha na boca, mas deitei o resto fora, pouco à vontade e consciente do olhar do Cassis, e fiquei aliviada ao vê-lo descontrair-se um pouco. Perguntei-me se ele desconfiaria de algo. Sentindo-me satisfeita comigo mesma, transferi o pedaço de casca da boca para o bolso, juntamente com o ilícito quinto quarto. Só esperava que fosse suficiente. Mostrei aos outros como lavar as mãos e a boca com hortelã e funcho e esfregar sob as unhas com lama para disfarçar a coloração alaranjada deixada pela casca e fomos pelos campos para casa, onde a mãe, cantando baixinho, estava a preparar o jantar. Fazer um refogado com as cebolas e as chalotas, em azeite e rosmaninho fresco, cogumelos e um pequeno alhofrancês. Juntar um punhado de tomates secos, manjericão e tomilho. Cortar quatro anchovas ao comprido e deixar fritar durante cinco minutos.


"Boise, vai buscar anchovas ao barril. Quatro das grandes". Desci à cave com um prato e as pinças de madeira para que o sal não me gretasse as mãos. Retirei o peixe e depois o jarro com o saquinho da laranja. 192 Juntei-lhe o novo pedaço de laranja, espremendo o sumo em cima da casca velha para a reavivar, cortei com o meu canivete a casca nova e voltei a atar o saquinho. Senti imediatamente o cheiro pungente. Voltei a pôr o saquinho dentro do frasco, esfreguei o sal que tinha e guardei tudo dentro do bolso do meu avental para que nem mais uma partícula do cheiro se dispersasse. Esfreguei um pouco as palmas das mãos no peixe salgado para enganar a mãe. Acrescentar um copo de vinho branco e as batatas já semicozidas e farinhentas. Juntar restos - bacon, restos de carne ou peixe - e uma colher de sopa de azeite. Tapar e deixar cozer em lume brando durante dez minutos sem mexer. Ouvi-a cantar sozinha na cozinha. Tinha uma voz rouca e monótona que subia e descia a intervalos regulares. - Juntar o milhete fresco, humm humm, e apagar o lume. Deixar repousar tapado, humm humm, sem mexer ou, hum humm, até o líquido ter sido absorvido. Transferir para um tabuleiro, humm hum, pincelar com azeite e levar ao forno a tostar. Prestando atenção ao que se passava na cozinha, pus o saquinho debaixo dos canos quentes pela última vez. Esperei. Durante um tempo achei que não ia resultar. A mãe não saía da cozinha e continuava a cantarolar para si mesma naquele modo átono e obstinado. Além do pavé, havia também um bolo coberto de bagas silvestres e salada de alface e tomate.


Quase um jantar de celebração, embora não fizesse ideia que razão teríamos para celebrar. Mas a mãe era assim às vezes; nos dias bons havia um festim, e nos dias maus tínhamos de nos contentar com panquecas frias e um bocadinho de rillettes. Naquele dia a aparência dela era quase desvairada, com o cabelo caindo-lhe fora do habitual nó severo em fios ao acaso e tinha as faces coradas e húmidas do calor do fogão. Havia nela algo de febril, na maneira como falou connosco, no abraço repentino e curto que deu à Reine quando ela entrou em casa uma raridade quase tão inusual como os breves episódios de violência -, no tom de voz, na maneira como as mãos se moviam na banca, na tábua, com rápidos e irrequietos volteios dos dedos. 193 Acabaram os comprimidos. Rugas entre os olhos, rugas à volta da boca, o sorriso forçado e contraído. Quando lhe estendi o prato com as anchovas, olhou para mim com um sorriso peculiarmente doce, um sorriso que, um mês antes, um dia antes, talvez me tivesse amolecido o coração. - Boise. Pensei no Tomas sentado na margem do rio. Pensei no que vira, naquela monstruosa beleza, gordurosa e brilhante, do seu flanco contra a água. Quem me dera, quem me dera... que ele estivesse lá hoje à noite no La Mauvaise Réputation, pensei, de casaco atirado sobre as costas de uma cadeira. Imagineime crescida, de repente bela e refinada como uma estrela de


cinema, com um comprido vestido de seda, todos a olharem para mim. Quem me dera, quem me dera. Se tivesse a minha cana... A mãe estava a olhar para mim com aquela estranha e quase incómoda expressão de vulnerabilidade. - Boise? - repetiu. - Estás bem? Sentes-te mal? Abanei a cabeça em silêncio. A onda de ódio de mim própria que me invadiu foi rápida como uma chicotada, uma revelação. Quem me dera, quem me dera. Tornei o meu rosto sombrio. Tomas. Só tu. Para sempre. - Tenho de ir ver as minhas armadilhas - respondi numa voz neutra. - Não demoro. - Boise! - ouvi-a chamar, mas ignorei-a. Corri em direcção ao rio, verifiquei cada armadilha duas vezes, certa de que desta vez, desta vez, quando eu necessitava do desejo... Todas vazias. Num ataque de raiva, voltei a atirar ao rio o peixe pequeno que apanhara: vairões, alburnetes, pequenas enguias. - Onde estás? - gritei com toda a força por sobre a água silenciosa. - Onde estás, velho cabrão manhoso? O Loire corria como sempre, castanho e trocista. Quem me dera, quem me dera. Apanhei uma pedra e atirei-a o mais longe que pude, com tanta força que magoei o ombro. - Onde estás? Onde é que te escondes? - A minha voz soavame rouca e histérica como a da mãe. O ar fervia com a minha fúria. - Mostra-te! Sai do teu esconderijo e mostra-te! Atreve-te! ATREVE-TE! 194 Nada. Só o rio castanho e ondulante, os bancos de areia quase submergidos sob o lusco-fusco. Sentia a garganta


dorida e arranhada. As lágrimas ferravam-me os cantos dos olhos como vespas. - Eu sei que me podes ouvir - disse baixinho. - Sei que estás aí. - O rio parecia estar de acordo comigo. Podia ouvir o barulho sedoso da água a bater contra a margem. - Eu sei que estás aí - repeti, quase docemente. Tudo parecia escutar-me agora, as árvores com as folhas a mudar de cor, a água, a relva queimada do Outono. - Sabes o que eu quero, não sabes? - Outra vez aquela voz que parecia de outra pessoa. Aquela voz adulta e sedutora. Tu sabes. Pensei na Jeannette Gaudin e na cobra-d'água, nos corpos castanhos e esguios pendurados nas Pedras Direitas e no que sentira naquele Verão há um milhão de anos atrás, a convicção. Era uma abominação, um monstro. Ninguém podia fazer um pacto com um monstro. Quem me dera. Quem me dera. Perguntei-me se a Jeannette teria estado ali como eu, descalça e a olhar para a água. Qual teria sido o desejo dela? Um vestido novo? Uma boneca para brincar? Outra coisa? Cruz branca. Filha Amada. De repente não me pareceu assim tão mau estar morta e ser amada, ter um anjo de gesso à cabeceira e silêncio. Quem me dera. Quem me dera. - Eu voltava a atirar-te à água - murmurei manhosamente. Sabes bem que sim. Durante um segundo pareceu-me ver algo, algo preto e reluzente na água, um silêncio brilhante como uma mina, todo dentes e metal. Mas não era só a minha imaginação. - Prometo - repeti baixinho. - Prometo que o fazia. Mas se ele chegara mesmo a estar ali há pouco, já lá não estava. Ao meu lado um sapo arrotou de repente, de modo absurdo. Estava a ficar frio. Virei-me e voltei para casa através dos


campos, por onde viera, apanhando algumas espigas de milho para poder explicar o meu atraso... Pouco depois comecei a sentir o cheiro do pavé e apressei o passo. 195 3. "Perdi-a. Estou a perdê-los a todos". Está escrito no álbum, ao lado de uma receita de bolo de amoras. Letras miudinhas como dores de cabeça, a tinta preta, com as linhas riscadas, como se o código em que escreve não fosse suficiente para esconder o medo que esconde de nós e dela mesma. Hoje olhou para mim como se eu não existisse. Queria tanto abraçá-la, mas ela está tão crescida e os olhos dela assustam-me. A R-C é a única que conserva um pouco de ternura, mas a B parece que já não é minha filha. O meu erro foi pensar que as crianças eram como as árvores. Que se as podasse um bocadinho cresceriam mais doces. Mas não é assim. Não é assim. Quando o Y morreu obriguei-os a crescer demasiado depressa. Não queria que fossem crianças. Agora são mais duros que eu. Como animais. A culpa é minha. Eu é que os fiz assim. Laranjas outra vez cá em casa hoje à noite, mas só eu é que sinto o cheiro. Dói-me a cabeça. Se ao menos ela pusesse a mão na minha testa. Acabaram os comprimidos. O alemão diz que me pode arranjar mais, mas não aparece. A Boise. Hoje à noite chegou


tarde outra vez. Como eu, dividida. O que escreve parece não fazer sentido, mas agora posso ouvir a voz dela claramente na minha mente. Aguda e queixosa, a voz de uma mulher a querer agarrar-se à sua sanidade com todas as forças que lhe restam. "O alemão diz que me pode arranjar mais, mas não aparece,. Oh, mãe. Se eu tivesse sabido". 196 4. O Paul e eu lemos o álbum aos poucos durante aquelas noites que iam ficando maiores. Eu decifrava o código enquanto ele tomava nota de tudo e verificava tudo servindo-se de pequenos cartões, tentando ordenar os acontecimentos cronologicamente. Nunca fazia comentários, mesmo quando eu passava algumas partes sem lhe dizer porquê. Em média, líamos duas a três páginas por noite, o que não era muito, mas em Outubro íamos já a meio do álbum. Por alguma razão, parecia uma tarefa mais fácil agora que já não estava sozinha, e muitas vezes ficávamos acordados até tarde a relembrar os velhos dias no Posto de Vigia e os rituais das Pedras direitas, os bons tempos antes do Tomas. Uma ou duas vezes estive perto de lhe contar a verdade, mas parava sempre a tempo. Não, o Paul não podia saber. O álbum da mãe era só parte da história, que ele já conhecia parcialmente. Mas a história por trás do álbum... Olhava para ele sentado à minha frente, a garrafa de Cointreau entre nós, e a cafeteira acobreada de café a aquecer no fogão atrás de


nós. A luz vermelha da lareira iluminava-lhe a cara e delineava-lhe o velho bigode amarelecido. Apanhava-me a olhar para ele - o que parece fazer cada vez mais agora - e sorria. E não era tanto o sorriso em si mas algo atrás do sorriso um olhar, uma espécie de busca, um ar sério - que fazia com que o meu coração batesse mais depressa e o meu rosto corasse mais do que o lume da lareira faria. Se lhe contar, pensava de repente, ele deixará de olhar para mim assim. Não lhe podia contar. Nunca. 197 Quando voltei, os outros estavam já sentados à mesa. A mãe saudou-me com a sua estranha alegria forçada, mas era visível que estava prestes a explodir. O cheiro a laranja picou-me as narinas sensíveis. Observei-a atentamente. Comemos em silêncio. O jantar de celebração era pesado, como se estivesse a comer argila, e o meu estômago revoltava-se contra isso. Remexi a comida no prato até ter a certeza de que ela não estava a olhar e transferi o que tinha no prato para o bolso do avental para deitar fora mais tarde. Não precisava de me ter preocupado. No estado em que ela estava, acho que nem teria reparado se tivesse atirado a comida contra a parede. - Cheira-me a laranjas. - A voz dela soava áspera de desespero. - Algum de vocês trouxe laranjas para dentro de casa? Silêncio. Olhámos para ela de olhar vazio, à espera. - Então? Trouxeram? Trouxeram laranjas? - A voz era agora mais alta, um pedido, uma acusação. A Reine olhou para mim de repente, sentindo-se culpada. - Claro que não - Tentei soar neutra e sombria. - Onde é que íamos arranjar laranjas?


- Sei lá! - Os olhos dela estavam semicerrados numa expressão de desconfiança. - Os alemães, talvez. Eu sei lá o que vocês fazem o dia todo sozinhos! Ela estava tão próxima da verdade que me sobressaltei, mas tentei não o mostrar. Encolhi os ombros, muito consciente dos olhos da Reinette que me observava. 198 Lancei-lhe um olhar de aviso: vê lá se deitas tudo a perder! A Reinette voltou a concentrar-se no bolo. Eu continuei a observar a mãe, a olhá-la nos olhos. Ela era melhor nisso que o Cassis, aqueles olhos inexpressivos como abrunhos. Depois levantou-se abruptamente, quase derrubando o prato e arrastando metade da toalha atrás. - Estás a olhar para quê? - gritou-me, apunhalando o ar com as mãos. - Estás a olhar para quê, raios? Para quê? Encolhi os ombros outra vez. - Nada. - Não mintas. - A voz agora afiada e precisa como o bico de um pica-pau. - Estás sempre a olhar para mim. Fixamente. Porquê? O que é que estás a pensar, minha grande cabra? Podia cheirar nela medo e angústia e senti-me encher de orgulho com a minha vitória. Ela desviou os olhos. Já está, pensei. Já está. Ganhei... Ela também o sabia. Voltou a olhar para mim durante mais uns segundos, mas a batalha estava perdida. Esbocei um pequeno sorriso que só ela podia ver. Levou a mão às fontes naquele velho gesto de impotência. - Dói-me a cabeça - disse com dificuldade. - Vou-me deitar. - Boa ideia - respondi em tom neutro. - Não se esqueçam de lavar a louça - acrescentou, mas falava por falar. - Não a arrumem ainda húmida. Não deixem... Interrompeu-se e ficou a olhar para o vazio durante uns segundos. Uma estátua, paralisada a meio de um gesto, a boca semiaberta.


- Os pratos a escorrer toda a noite - terminou, dirigindo-se cambaleante pelo corredor, parando na casa de banho para verificar se havia comprimidos. Olhámos uns para os outros. - O Tomas disse para irmos ter com ele ao La Mauvaise Réputation hoje à noite - disse-lhes. - Disse que podia ser divertido. O Cassis olhou para mim. - Como é que conseguiste fazer aquilo? - O quê? - Sabes bem. - A voz num tom baixo e urgente, quase assustado. Naquele momento parecia ter perdido toda a sua autoridade sobre nós. Eu era agora o líder, aquela a quem recorreriam quando precisassem de ajuda. 199 O mais estranho é que, apesar de isso me ter ocorrido imediatamente, não me deu qualquer prazer. Estava preocupada com outras coisas. Ignorei a pergunta dele: - Esperamos até ela adormecer decidi -, uma hora, talvez duas no máximo, e vamos pelos campos fora. Ninguém nos vai ver. Podemos esconder-nos na esquina e esperar por ele. Os olhos da Reinette iluminaram-se mas o Cassis parecia céptico. - Para quê? - perguntou. - O que é que fazemos quando lá chegarmos? Não temos nada para lhe contar, e ele já deixou as revistas de cinema... Olhei para ele. - Revistas! - repreendi-o. - É só nisso que pensas ? Pareceu ficar amuado. - Ele disse que podia ser que acontecesse algo interessante - disse-lhe. - Não tens curiosidade? - Nem por isso. Pode ser perigoso. Já sabes como a mãe... - Tens é medo! - disse eu com ferocidade.


- Não tenho nada! - Mas tinha. Via-se-lhe nos olhos. - Medricas! - Não vejo qual é o interesse... - Desafio-te! Silêncio. O Cassis lançou à Reine um súbito olhar suplicante. Comecei a olhar para ele fixamente. Ele aguentou durante dois segundos e depois desviou o olhar. - Coisas de crianças - disse com um ar de troça e indiferença. - Desafio-te. O Cassis fez um furioso gesto de impotência e derrota. Pronto, está bem. Mas estou a avisar-vos que vai ser uma perda de tempo. Ri-me em triunfo. 200 6. O café La Mauvaise Réputation - La Rép para os clientes mais regulares. Chão de madeira, bar lustroso e um piano a um canto - hoje em dia, claro, não tem metade das teclas e serve de canteiro a uma plantação de gerânios - uma fileira de garrafas (naquele tempo ainda não havia garrafas com medidores no gargalo) e copos pendurados de ganchos por baixo e à volta do balcão. A tabuleta com o nome do café fora substituída por uma coisa de néon azul e havia máquinas e uma jukebox, mas naquele tempo só havia um piano e algumas mesas, que se podia encostar à parede se alguém quisesse dançar. O Raphaêl tocava quando lhe apetecia e de vez em quando alguém cantava - uma das mulheres, a Colette Gaudin ou a Agnès


Petit. Naquele tempo ninguém tinha gira-discos e os rádios estavam proibidos, mas dizia-se que à noite o café era um lugar ammado, e às vezes, quando o vento soprava na direcção certa, o som da música chegava até à quinta através dos campos. Foi lá que o Julien Lecoz perdeu às cartas o terreno de pasto a sul - corria o boato de que apostara também a mulher mas que ninguém aceitara - e o café era o segundo lar dos bêbedos locais, que se sentavam na esplanada a fumar ou a jogar pétanqhe junto das escadas. O pai do Paul ia lá com frequência, facto que a mãe desaprovava fortemente, e apesar de eu nunca o ter visto bêbedo, também nunca parecia estar completamente sóbrio, sorrindo distraidamente a quem passava. e mostrando os grandes dentes quadrados e amarelados. 201 Era um sítio aonde nunca íamos. Éramos criaturas territoriais e considerávamos certos lugares como particularmente nossos, embora outros pertencessem à aldeia, aos adultos, lugares de mistério ou que nos eram indiferentes - a igreja, os correios onde a Michelle Hourias separava o correio e dava à língua, e a pequena escola onde passáramos os nossos primeiros anos e que permanecia agora fechada. La Mauvaise Réputation. Não íamos lá sobretudo porque a mãe no-lo proibira. Odiava sobretudo a bebedeira, e o modo de vida desleixado e sujo, e o café era para ela a epítome de tudo isso. Apesar de não ser religiosa, tinha uma visão quase puritana da vida, acreditando no trabalho árduo, numa casa limpa e em crianças bemeducadas e corteses.


Quando tinha de passar em frente ao café, baixava a cabeça como em protecção, com um lenço atado sobre o peito, a boca comprimida contra a música e o riso vindos do interior. É estranho que uma mulher assim, uma mulher que valorizava tanto a ordem e a disciplina, se tenha tornado dependente de drogas. "Tal como o relógio", escreve no álbum, "estou dividida. Quando a lua nasce, deixo de ser eu mesma". Refugiava-se no quarto para que não testemunhássemos a sua transformação. Depois de ler as passagens secretas do álbum, foi para mim um choque descobrir que ela frequentava o La Mauvaise Réputation regularmente. Ia lá uma vez por semana ou mais, em segredo e depois de escurecer, odiando cada segundo e desprezando-se a si mesma pela sua dependência. Não ia lá beber. Não. Para quê, quando tinha a cave cheia de dúzias de garrafas de sidra ou prunelle ou até calva da sua Bretanha nativa. Embebedar-se, dissera-nos uma vez num raro momento de confidências, é um pecado contra o fruto, a árvore, o próprio vinho. Era um ultraje, um abuso, tal como a violação é um abuso do acto de amor. Na altura corara e virara a cara com brusquidão: "Reine-Claude, passa-me o azeite e algum manjericão depressa!", mas eu não me esqueci. O vinho, destilado e nutrido, desde o rebento até ao fruto, e depois passando por todos os processos que o transformam no que é, merece mais do que ser engolido à pressa por idiotas que não têm nada na cabeça. Merece reverência, alegria, delicadeza. 202 Oh, a mãe compreendia o vinho. Compreendia o processo de adoçamento, de fermentação, a efervescência e maturação da vida dentro da garrafa, o escurecimento, as transformações lentas, o nascimento de uma nova colheita num ramalhete de


aromas, como um ramo de flores de papel de um mágico. Se ela tivesse tido tempo e aciência para nós. Um filho não é uma árvore de fruto. Só percebeu isso quando já era tarde de mais. Não existem receitas para ajudar um filho a chegar segura e docemente à idade adulta. Ela devia saber isso... É claro que ainda se vendem drogas no La Mauvaise Réputation. Até eu sei isso; não sou assim tão velha que não reconheça o aroma adocicado e vistoso do haxixe no meio do cheiro a cerveja e fritos. Deus sabe que era um aroma mais que presente à volta da rulote dos petiscos. Tenho o olfacto mais apurado que o idiota do Ramondin e certas noites até o ar ficava amarelado quando os motoqueiros vinham. Drogas recreacionais, é o que lhes chamam hoje em dia, isso e outros nomes rebuscados. Mas isso não existia naquele tempo em Les Laveuses. Os clubes de jazz de Saint Germain-des-Prés só abriram dez anos mais tarde e mesmo assim nunca chegaram realmente até nós, nem nos anos sessenta. Não, a mãe ia ao La Mauvaise Réputation por necessidade, pura necessidade, porque era lá que decorria a maior parte das negociatas. Coisas do mercado negro, tecidos e sapatos e coisas menos inócuas como facas, armas de fogo e munições. Tudo tinha o seu lugar no La Mauvaise Réputation, cigarros, brandy e fotografias de mulheres nuas, meias de nylon e roupa interior de renda para a Colette e a Agnès, que usavam o cabelo solto e pintavam a cara com rouge antiquado para se parecerem com bonecas holandesas, uma grande mancha vermelha em cada bochecha e um botão redondo nos lábios como a Lillian Gish. Nas traseiras, as sociedades secretas, os comunistas, os descontentes, os ambiciosos e os heróis faziam planos. No


bar, os fala-barato expunham as suas teorias e passavam pacotes entre si ou murmuravam baixinho e brindavam a futuros empreendimentos. Outros, com a cara cheia de fuligem e desafiando a hora do recolher obrigatório, atravessavam o bosque em direcção a Angers para reuniões secretas. De vez em quando - muito pouco frequente - ouviam-se tiros vindos do outro lado do rio. A mãe deve ter odiado aquilo tudo. Mas era ali que ela conseguia os comprimidos. 203 Escreveu tudo no álbum - comprimidos para as enxaquecas, morfina do hospital, três de uma vez ao princípio, e depois seis, doze, vinte. Os fornecedores variavam. Inicialmente era o Philippe Hourias. O Julien Lecoz conhecia alguém, um trabalhador voluntário. A Agnès Petit tinha um primo, um amigo de um amigo de Paris. O Guilherm Ramondin, o da perna de pau, deixava-se muitas vezes convencer a trocar alguns dos medicamentos dele por vinho ou dinheiro. Pequenos pacotes uns quantos comprimidos embrulhados em papel, uma ampola e uma seringa, uma tablete de comprimidos -, qualquer coisa à base de morfina. É claro que dos médicos não se conseguia nada. De qualquer modo, o mais próximo ficava em Angers e todas as provisões eram necessárias para tratar os soldados. Depois de os seus suprimentos terem acabado, a mãe vasculhava, vendia e trocava. Fez uma lista no álbum. 2 de Março de 1942. Guilherm Ramondin, 4 comprimidos de morfina por 12 ovos.


16 de Março de 1942. Françoise Petit, 3 comprimidos de morfina por uma garrafa de calvados. Ia a Angers vender as jóias - a fiada de pérolas que tem na fotografia do casamento, os anéis, os brincos de diamante que herdara da mãe. Era engenhosa. Quase tanto como o Tomas, embora fosse sempre justa nas trocas que fazia. Com um pouco de engenho, não se saía mal. Mas depois chegaram os alemães. Primeiro, um ou dois de cada vez. Alguns em uniforme, outros à paisana. Quando entravam no bar fazia-se silêncio, mas criavam eles mesmos o seu próprio divertimento, rindo-se e bebendo rodadas, até quase não conseguirem pôr-se de pé à hora do fecho, sorrindo à Colette ou à Agnès e atirando descuidadamente um punhado de moedas para cima do balcão. Às vezes traziam mulheres. Nunca as tínhamos visto, eram sempre raparigas da cidade com casacos de gola de pele. Raparigas com meias de nylon, vestidos brilhantes e o cabelo penteado à estrela de cinema brilhando cheio de ganchos, sobrancelhas depiladas muito finas, lábios num vermelho-escuro e dentes muito brancos, mãos de dedos elegantes a pegarem em copos de vinho. 204 Vinham só à noite, nas motas dos alemães, dando gritinhos de prazer à medida que aceleravam pela noite fora, cabelo ao vento. Quatro mulheres, quatro alemães. De vez em quando


as mulheres mudavam, mas os alemães eram sempre os mesmos. A mãe escreve sobre eles no álbum, sobre a primeira vez que os viu. Boches porcos e as putas deles. Olharam para mim vestida com o meu macacão, e riram-se tapando a boca com a mão. Apeteceu-me matá-los. Olhei para eles e senti-me velha. Feia. Só um deles tem uns olhos bondosos. A rapariga ao lado dele aborrecia-o, via-se. Uma rapariga vulgar, estúpida, com a costura das meias desenhada a lápis de cera. Quase senti pena dela. Mas ele sorriu-me. Tive de morder a lingua para não lhe devolver o sorriso. É claro que não posso provar que era o Tomas que ela descrevia. Podia ter sido qualquer um a caber naquelas poucas linhas. Não há qualquer descrição, nada que indique que podia ser ele, e contudo tenho a certeza absoluta de que era. Só oTomas podia tê-la feito sentir-se assim. Só o Tomas podia ter-me feito sentir assim. Está tudo no álbum. Podem lê-lo se quiserem, se souberem onde procurar. Não há qualquer sequência nos acontecimentos. Tirando os apontamentos sobre as transacções secretas, quase não há datas. Mas era meticulosa à maneira dela. Descreve o La Rép tão claramente que senti um nó na garganta ao lê-lo anos depois. O barulho, a música, o fumo, a cerveja, as vozes altas a rirem-se ou cheias de um humor embriagado. Não me espanta


que nos tivesse proibido de lá ir. Tinha demasiada vergonha do seu próprio envolvimento, demasiado medo do que podíamos aprender com os outros clientes. Na noite em que nos aproximámos do café foi uma desilusão. Imagináramos um covil secreto de vícios adultos. Esperara ver bailarinas nuas, mulheres com rubis no umbigo e cabelo até à cintura. O Cassis, fingindo ainda indiferença, imaginara agentes da Resistência, guerrilheiros vestidos de preto e com olhos duros debaixo da camuflagem. A Reinette imaginara-se maquilhada e cheia de cremes, com uma estola de pele e a beber Martinis. Mas naquela noite, ao espreitarmos pela janela suja, não pareceu haver ali nada de interessante. 205 Havia uns quantos velhotes sentados, um tabuleiro de gamão, um baralho de cartas, e a Agnès, de blusa de seda de páraquedas com três botões desabotoados, encostada ao velho piano a cantar. Ainda era cedo. O Tomas não chegara ainda. 9 de Maio, um soldado alemão (bávaro), 12 comprimidos de alto teor de morfina por uma galinha, um saco de açúcar e um pedaço de toucinho. 25 de Maio, soldado alemão (pescoço gordo), 16 comprimidos de alto teor de morfina por uma garrafa de calvados, um saco de farinha, um pacote de café, 6 frascos de conservas. Depois, uma última entrada, a data deliberadamente vaga:


Setembro, T/L, frasco de 30 comprimidos de alto teor de morfina. É a primeira vez que se esquece do seu próprio contributo para o negócio. Talvez seja apenas desleixo; a letra é quase ilegível, escrevinhada à pressa. Talvez desta vez tenha pago demasiado e não quisesse escrever isso. Qual era o preço? Trinta comprimidos devem ter parecido um prémio de riquezas inimagináveis. Não havia necessidade de voltar ao La Rép por uns tempos. Nada de trocar bens com gente grosseira como o Julien Lecoz. Imagino que ela tenha pago bastante pela paz que aqueles trinta comprimidos Lhe deram. Quanto pagara exactamente por aquela paz da mente? Com informações. Com outra coisa qualquer? Esperámos no que mais tarde se transformou no parque de estacionamento. Na altura não passava de área de despejo de lixo, onde estavam os caixotes e onde as entregas eram feitas - barris de cerveja ou ocasionais mercadorias de natureza mais ilícita. Havia um muro ao longo de metade do edifício, que depois desaparecia entre um emaranhado de sabugueiros e silvas. A porta das traseiras estava aberta - até em Outubro estava um calor sufocante - e uma brilhante luz amarelada espalhava-se pelo chão vinda do bar. Sentámo-nos no muro, prontos a saltar para o outro lado se aparecesse alguém, e esperámos. 206 7. Como já expliquei, não mudou muito. Umas luzes, máquinas,


mais gente, mas sempre o mesmo La Mauvaise Réputation, as mesmas pessoas com penteados diferentes, as mesmas caras. Aliás, entrar lá hoje é quase como viajar atrás no tempo: os mesmos velhos idiotas e os mesmos jovens com as mesmas raparigas e o mesmo cheiro a cerveja e perfume e tabaco. Cheguei a ir lá, sabem, quando a rulote voltou. O Paul e eu escondemo-nos no mesmo sítio onde me escondera com a Reine e o Cassis na noite do baile - no parque de estacionamento. É claro que desta vez havia lá carros. Mas também estava frio e chovia. Os sabugueiros e o emaranhado de silvas desapareceram e agora só há um chão alcatroado e outro muro para trás do qual vão os namorados ou os bêbedos quando querem mijar. Estávamos à procura do Dessanges, o nosso Luc com a sua cara atraente e de traços bem definidos, mas esperar ali no escuro, com o novo sinal de néon a fazEr pisca-pisca no alcatrão húmido, senti-me voltar aos meus nove anos, com o Tomas lá dentro com uma rapariga em cada braço - o tempo prega-nos partidas engraçadas. Havia duas filas de motas no parque de estacionamento a brilharem de humidade. Eram onze horas. De repente senti-me estúpida, ali encostada a um novo muro de cimento como uma rapariguinha tola a espiar os adultos, a criança de nove anos mais velha do mundo, com o Paul ali ao meu lado com o seu velho cão na sua inevitável corda. Estúpidos e cansados, dois velhos a observar um bar do escuro. Para quê? 207 Uma explosão de som da jukebox - nada que eu pudesse identificar. Até os instrumentos são estranhos hoje em dia,


coisas electrónicas que não precisam de bocas nem de dedos. Um riso feminino, alto e desagradável. Durante uns segundos a porta abriu-se e vimo-lo claramente, com uma rapariga em cada braço. Tinha vestido um blusão de pele que deve ter custado uns 2000 francos ou mais nalguma loja de Paris. As raparigas eram sedosas e de boca pintada de vermelho e extremamente jovens nos seus vestidos de alças finas. Senti um súbito desespero frio. - Olha para nós. - Notei que o meu cabelo estava molhado e os dedos rígidos como paus. - James Bond e Mata Hari. Vamos para casa. O Paul olhou para mim com aquele seu modo pensativo. Qualquer outra pessoa podia não ver inteligência nos olhos dele, mas eu sim. Tomou a minha mão entre as suas, em silêncio. Tinha as mãos confortavelmente quentes e podia sentir as filas de calos nas palmas dele. - Não desistas - disse-me. Encolhi os ombros. - Não estamos a fazer nada aqui. Parecemos uns palermas. Admite, Paul, nunca conseguiremos ganhar ao Dessanges; portanto, mais vale enfiar nas nossas cabeças velhas e teimosas que não vale a pena. Porque... - Não. - A voz era lenta e quase divertida. - Tu nunca desistes, Framboise. Nunca desististe. Paciência. Paciente, bondoso e suficientemente teimoso para esperar ali uma vida inteira. - Isso era dantes - disse-lhe sem olhar para ele. - Não mudaste assim tanto, Framboise. Talvez não. Há ainda algo em mim, algo duro e não necessariamente bom. Ainda o sinto de vez em quando, algo duro e frio, como uma pedra dentro de um punho cerrado. Sempre o senti, mesmo antigamente, uma coisa má e teimosa e com esperteza suficiente para aguentar o tempo que era preciso para ganhar. Como se o Velho tivesse entrado em mim naquele


dia e, indo direito ao coração, tivesse sido engolido por essa minha boca interior. Um fóssil de peixe dentro de um punho de pedra - vi um dia uma fotografia assim num dos livros de dinossáurios do Ricot -, a comer-se a si mesmo no seu obstinado desdém. 208 - Talvez devesse mudar - disse baixinho. - Talvez devesse. Acho que durante um tempo achei que era realmente o melhor que tinha a fazer. Sentia-me cansada, percebem. Um cansaço de morte. Haviam passado dois meses e tentáramos, Deus sabe que tentáramos tudo. Vigiáramos o Luc, tentáramos conversar com ele, elaboráramos planos fantásticos: uma bomba sob a rulote, um atirador vindo de Paris, uma bala perdida de um atirador furtivo no posto de Vigia. Oh, podia tê-lo matado, sim. A minha raiva consumia-me, mas o medo mantinha-me acordada de noite e os dias eram vidro partido e tinha dores de cabeça o tempo todo. Era mais do que o medo de ver a verdade vir à luz; afinal, sou filha de Mirabelle Dartigen. Tinha em mim o espírito dela. Preocupava-me com o restaurante, mas mesmo que o Dessanges conseguisse arruinar-me, mesmo que mais ninguém em Les Laveuses me dirigisse a palavra, eu sabia que podia lutar até ao fim. Não, o meu medo - escondido do Paul e mal admitido mesmo para mim mesma - era algo muito mais sombrio e complexo. Escondia-se nas profundezas do meu cérebro, como o Velho


no seu leito lamacento, pedindo apenas que nenhum engodo o tentasse. Recebi mais duas cartas, uma do Yannick e outra que me estava dirigida na caligrafia da Laure. Li a primeira com um desconforto crescente. O Yannick queixava-se e bajulava-me. Estava a passar uma fase má. A Laure não o compreendia, dizia. Usava constantemente a sua dependência económica como uma arma contra ele. Há três anos que tentavam ter um filho, sem sucesso, e ela também o culpava por isso. Tinha falado em divórcio. Segundo o Yannick, emprestar-lhes o álbum da minha mãe mudaria tudo. A Laure precisava de algo que a mantivesse ocupada, um projecto novo. A carreira dela precisava de um empurrão. O Yannick sabia que eu não podia ser tão insensível que recusasse. A segunda carta, queimei-a sem a abrir. Talvez fosse a memória das poucas palavras enviadas pela Noisette do Canadá, mas achei as confidências do meu sobrinho desprezíveis e embaraçosas. Não queria saber mais. Intrépidos, o Paul e eu preparámo-nos para o ataque final. Era a nossa última esperança. Não sei ao certo o que esperávamos; só uma verdadeira obstinação nos fazia continuar. Talvez ainda precisasse de ganhar, tal como naquele último Verão em Les Laveuses. 209 Talvez fosse o espírito ríspido e irracional da minha mãe em mim, recusando-se a ser vencido. Se desistes agora, pensava, todo o esforço dela terá sido em vão. Lutava pelas duas, e pensava que até a minha mãe teria ficado orgulhosa de mim. Nunca imaginara que o Paul se revelasse tão inestimável. Vigiar o café fora ideia dele e também fora ele quem


descobrira a morada do Dessanges na parte traseira da rulote. Durante esses meses passei a contar com ele para tudo e a confiar nos seus juízos. Sentávamo-nos muitas vezes juntos a vigiar a quinta, com um cobertor nos pés quando as noites esfriaram, uma caneca de café e uns cálices de Cointreau ao lado. Pouco a pouco o Paul tornou-se indispensável. Descascava os legumes para o jantar, trazia lenha e amanhava peixe. Apesar de os fregueses do Crêpe Framboise serem raros deixei de abrir a meio da semana e, mesmo aos fins-desemana, a presença da rulote só não desencorajava os clientes mais determinados, ele deitava um olho ao restaurante, lavava a louça e o chão. E quase sempre em silêncio, aquele silêncio confortável da intimidade, o silêncio simples da amizade. - Não mudes - disse ele por fim. Virei-me para me ir embora, mas ele pegou na minha mão e não me deixou. Podia ver que tinha gotinhas de chuva no bigode e na boina. - Acho que descobri qualquer coisa. - O quê? - A minha voz estava áspera de cansaço. A única coisa que eu queria era deitar-me e dormir. - Por amor de Deus, o quê? - Pode não ser nada. - Agora estava a ser cuidadoso, com uma lentidão que me dava vontade de gritar de frustração. - Espera aqui. Tenho de ir ver uma coisa, está bem? - Onde, o quê? - Quase gritei. - Paul, espera um... Mas ele já desaparecera em direcção à porta das traseiras, silencioso e rápido como um caçador furtivo. - Paul! - sibilei furiosa. - Não penses que vou ficar aqui fora à tua espera! Raios te partam, Paul! Mas fiquei. E enquanto a chuva ensopava e entrava pelo colarinho do meu único casaco bom de Outono, encharcandome lentamente o cabelo e pingando frios regatos entre os meus


seios, tive muito tempo para me aperceber de que, afinal, não mudara assim tanto. 210 8. O Cassis, a Reinette e eu estávamos à espera há mais de uma hora quando eles chegaram. Uma vez fora do La Rép, o Cassis deixou completamente de fingir que não estava interessado e pôs-se avidamente à espreita por uma frincha na porta da frente, empurrando-nos quando tentávamos espreitar também. O meu interesse era limitado. Afinal, até o Tomas chegar não havia grande coisa para ver. Mas a Reine era persistente. - Quero ver - guinchou. - Cassis, não sejas mau, quero ver. - Não há nada para ver - disse-lhe eu, impaciente. - Só velhotes sentados nas mesas e duas putas com as bocas pintadas de vermelho. - Na altura só tinha conseguido deitar uma olhadela, mas como me lembro! A Agnès ao piano e a Colette com um apertado casaco verde de malha, revelando os seios espetados como balas de canhão. Ainda me lembro onde estavam todos: o Martin e Jean-Marie Dupré estavam a jogar às cartas com o Philippe ourias e ao que parecia a espremerem-no, como de costume; o Henri Lemaitre sentado no bar com o seu eterno demt e um olho nas senhoras; o François Ramondin e o Arthur Lecoz, o primo do Julien, estavam a conversar furtivamente a um canto com o Julien Lanicen e o Auguste Truriand, e o velho Gustave Beauchamp estava sozinho ao pé da janela, de boina enfiada até às orelhas peludas a fumar cachimbo. Lembro-me


deles todos. Com um pouco de esforço, posso até ver o boné de pano do Philippe pousado no bar, junto a si, 211 consigo cheirar o aroma do tabaco - naquela altura o precioso tabaco era misturado com folhas de dente-de-leão e tresandava a madeira verde queimada - e o aroma a chicória. A cena tem a imobilidade de um quadro, o brilho dourado da nostalgia dominado pelo clarão vermelho-escuro do fogo. Oh, lembrome. Só queria não me lembrar. Quando finalmente chegaram, estávamos doridos e de mau humor por estarmos agachados contra a parede, e a Reinette estava quase a chorar. O Cassis tinha estado a espreitar pela porta e nós as duas encontráramos um sítio, por baixo de uma janela suja, por onde mal podíamos distinguir as formas que se moviam no interior à luz fumarenta. Fui eu que os ouvi primeiro, o som distante de motas a aproximarem-se na estrada de Angers, uma série de pequenas explosões quando chegaram ao carreiro poeirento que trazia ao café. Quatro motas. Devíamos ter adivinhado que trariam mulheres. Se tivéssemos lido o álbum da mãe, não teríamos ficado surpreendidos, mas apesar de tudo éramos bastante inocentes, e a realidade chocou-nos um pouco. Talvez porque quando entraram no bar pudemos ver que aquelas eram mulheres reais - roupas apertadas, pérolas falsas, uma levando na mão os sapatos de salto alto e fino, a outra vasculhando a carteira à procura do pó-de-arroz -, não


especialmente bonitas e nem sequer muito novas. Tinha esperado glamorr. Mas aquelas eram apenas mulheres normais, como a minha mãe, de expressões duras, cabelo preso por ganchos de metal, as costas arqueadas numa curvatura impossível por causa daqueles saltos dolorosos. Três mulheres normais. A Reinette estava de boca aberta. - Olha os sapatos dela! - O seu rosto, encostado ao vidro sujo, estava corado de prazer e admiração. Percebi que eu e ela víamos coisas diferentes, que a minha irmã ainda via o chique das estrelas de cinema com meias de nylon, golas de pele, malas de crocodilo e leves penas de avestruz, brincos brilhantes e penteados elaborados. Durante um minuto inteiro não parou de murmurar, extática. - Ohhhh! Olha aquele chapéu! Ohhhh! Aquele vestido! Ohhh! O Cassis e eu ignorámo-la. O meu irmão estudava as quatro caixas que vinham na parte traseira da quarta mota. Eu observava o Tomas. 212 Mantinha-se ligeiramente afastado dos outros, um cotovelo sobre o balcão. Vi-o dizer qualquer coisa ao Raphaêl, que começou a encher copos de cerveja. O Heinemann, o Schwartz e o Hauer sentaram-se a uma das mesas ao pé da janela com as mulheres, e notei que o velho Gustave se afastou para o outro lado da sala com a súbita expressão de nojo, levando a bebida com ele. Os outros portaram-se como se estivessem acostumados àquelas visitas, cumprimentando os alemães quando estes atravessaram o café, o Henri deitando o olho às três mulheres mesmo depois de se terem sentado. Senti uma súbita e absurda pontada de triunfo pelo facto de o Tomas continuar


desacompanhado. Ficou encostado ao balcão durante uns momentos, a falar com o Raphaél, e tive a oportunidade de observar as suas expressões, os seus gestos despreocupados, a boina inclinada para trás e o casaco do uniforme aberto sobre a camisa. O Raphaêl falava pouco, a cara bem-educada mas fechada. O Tomas parecia aperceber-se da contrariedade dele, mas mostrava-se mais divertido que zangado. Ergueu o copo à saúde do Raphaél de um modo ligeiramente sarcástico. A Agnès começou a tocar piano, uma valsa com um irritante plin plin numa das notas mais agudas onde uma das teclas estava estragada. O Cassis começava a aborrecer-se. - Não acontece nada - disse, amuado. - Vamos embora. Mas a Reinette e eu estávamos fascinadas, ela pelas luzes, as jóias, os vidros, o fumo subindo em elegantes espirais de uma elegante boquilha de lacre segurada por mãos de unhas pintadas, e eu... pelo Tomas, claro. Não me importava se não acontecia nada. Teria tirado igual prazer de o observar sozinho e a dormir. Havia um certo encanto em o observar assim, em segredo. Podia pôr as mãos contra o vidro embaciado e tocar-lhe na cara. Podia levar os lábios à janela e imaginar a pele dele contra a minha. Os outros três alemães tinham estado a beber muito, o gordo Schwartz com uma mulher sentada no joelho, a mão levantando-lhe a saia cada vez mais acima, de tal modo que de vez em quando podia ver a parte de cima da meia castanha e o cinto de ligas rosado que a segurava. Notei também que o Henri se chegara para mais perto do grupo, devorando com o olhar as mulheres que gritavam como galinhas a cada piropo que ele lhes dirigia. Os jogadores de cartas tinham parado o jogo, também para olhar para elas, e o Jean-Marie, que parecia ter ganho mais que os outros,


dirigiu-se descontraidamente para o bar em direcção ao Tomas. 213 Pôs dinheiro em cima do balcão e o Raphaêl trouxe mais bebidas. O Tomas olhou uma vez mais de relance para o grupo de bêbedos atrás deles e sorriu. A conversa durou pouco e deve ter passado despercebida a quem não estava a observar o Tomas tão atentamente. Acho que fui a única a ver a transacção, um sorriso, um murmúrio, um pedaço de papel passado por cima do balcão e depressa guardado no bolso do casaco do Tomas. Não me surpreendeu. O Tomas fazia negócio com toda a gente. Tinha esse dom. Observámos mais uma hora. Acho que o Cassis dormitou. O Tomas tocou piano e a Agnès cantou, mas gostei de ver que ele pouco ligava às mulheres que o rodeavam e acariciavam. Senti orgulho nele. Tinha mais bom gosto. Nesta altura já toda a gente tinha bebido bastante. O Raphaél tirou de trás do balcão uma garrafa de fine e serviu todos em chávenas de café mas sem café. Os irmãos Dupré e o Hauer começaram a jogar às cartas, observados pela Colette e pelo Philippe - as apostas eram bebidas. Podia ouvi-los rir através do vidro quando o Hauer perdia uma vez mais, todos de bom humor mas sem maldade, porque as bebidas já tinham sido pagas. Uma das mulheres torceu o tornozelo e sentou-se no chão, a rir, o cabelo caindo-lhe sobre o rosto. Só o Gustave Beauchamp continuava alheado; recusara-se a beber fine e


mantinha-se o mais possível afastado dos alemães. Houve uma altura em que o olhar dele cruzou o do Hauer e murmurou qualquer coisa, mas como o alemão não percebeu, limitou-se a olhá-lo com frieza antes de voltar a concentrar-se no jogo. Mas uns minutos mais tarde voltou a acontecer, e desta vez o Hauer - que, como o Tomas, era o único do grupo que falava francês - levantou-se, levando a mão ao cinto onde tinha a pistola. O velhote olhou para ele, o cachimbo sobressaindo entre os dentes amarelos como o canhão de um velho tanque. Por uns momentos a tensão entre os dois foi paralisante. Vi o Raphaèl fazer um gesto em direcção ao Tomas, que observava a cena com um ar divertido. Uma troca silenciosa passou entre eles. Pensei que não fosse fazer nada, que simplesmente os deixasse continuar para ver até onde chegariam. O velhote e o alemão encaravam-se, o Hauer pelo menos dois palmos mais alto que o Gustave, os olhos azuis raiados de sangue e as veias na fronte como minhocas sobre a pele morena. O Tomas olhou para o Raphaél e sorriu. 214 "Que te parece?", dizia o sorriso. "É uma pena ter de os interromper a gora que as coisas começavam a aquecer. Que te parece?" Depois deu um passo em frente, quase casualmente, em direcção ao amigo, enquanto o Raphaêl afastava o velhote do perigo. Não faço ideia do que disse ao Hauer, mas tenho a certeza de que o Tomas salvou nessa altura a vida do velho Gustave, pondo um braço à volta dos ombros do alemão e gesticulando em direcção às caixas que tinham trazido consigo


na traseira da quarta mota, as caixas secretas que tanto tinham intrigado o Cassis e que estavam agora encostadas ao piano à espera de serem abertas. O Hauer olhou para o Tomas durante uns instantes. Eu conseguia ver-lhe os olhos reduzidos a cortes nas bochechas gordas, como golpes num pedaço de couro. Depois o Tomas disse mais qualquer coisa e ele descontraiu-se, rindo com um troar de gigante sobre o súbito renovar de sonoridades no bar, e o momento passara. O Gustave voltou ao seu canto e à sua bebida e os outros dirigiram-se ao piano onde as caixas aguardavam. Por um momento só consegui ver corpos. Depois ouvi um som, uma nota musical mais clara e mais doce que as do piano, e o Hauer virou-se para a janela: segurava um trompete. O Schwartz tinha um tambor e o Heinemann um instrumento que não reconheci - mais tarde descobri que era um clarinete, mas até então nunca vira nada assim. As mulheres desviaram-se para dar à Agnès acesso ao piano, e vi o Tomas com o seu saxofone pendurado ao ombro como uma arma exótica. Por um segundo pensei que era uma arma. Ao meu lado, a Reinette soltou um longo suspiro de admiração. O Cassis, esquecido o aborrecimento, inclinou-se para a frente, quase me empurrando. Foi ele que nos disse o nome de todos os instrumentos. Em casa não tínhamos gira-discos, mas o Cassis tinha idade suficiente para se lembrar da música que costumávamos ouvir na rádio antes de essas coisas serem proibidas, e também vira fotografias da banda de Glenn Miller nas revistas de que tanto gostava. - Aquilo é um clarinete. - Subitamente a voz dele soava muito jovem, como a da irmã ao admirar os sapatos das mulheres da cidade. - E o Tomas tem um saxofone. Oh, onde é que eles


o arranjaram? Devem tê-los requisitado. Só mesmo o Tomas para... Espero que toquem, espero que... 215 Não faço ideia se tocavam bem ou não. Não tinha qualquer termo de comparação, e estávamos tão entusiasmados de admiração e de espanto que qualquer coisa nos teria encantado. Sei que hoje parece ridículo, mas naquela altura era tão raro ouvir música - o piano do La Mauvaise Réputation, o órgão da igreja para aqueles que iam à missa, o violino do Denis Gaudin no 14 de Julho ou no Mardi Gras quando íamos para a rua dançar. Não tanto depois da guerra ter começado, claro, mas ainda aconteceu algumas vezes, pelo menos até o violino ter sido finalmente requisitado, como tudo o resto. Mas agora aqueles sons surgiam do bar - exóticos, estranhos e tão distintos do som do velho piano do La Mauvaise Réputation, tal como a ópera é distinta do ladrar de um cão, e aproximámonos ainda mais da janela para não perder uma única nota. No início os instrumentos só faziam uns ruídos agudos e esquisitos imagino que deviam estar a afiná-los, mas não sei - e depois começaram a tocar uma música alegre que não reconhecemos, mas que devia ser um tipo qualquer de jazz. Uma batida leve do tambor, o borbulhar gutural do clarinete, mas do saxofone do Tom as saiu uma série de notas animadas, como luzes de Natal, um doce queixume, um murmúrio severo, subindo e descendo no todo meio-dissonante, como uma voz humana melhorada por magia,


contendo toda a gama de sentimentos humanos, da doçura à brutalidade, da alegria ao desgosto. É claro que a memória é uma coisa bastante subjectiva. É talvez por isso que sinto virem-me lágrimas aos olhos quando me lembro daquela música, música para o fim do mundo. O mais provável é não ter sido nada do que recordo - afinal, não passavam de um grupo de alemães bêbedos a tocarem uns compassos de jazz em instrumentos roubados -, mas para mim foi mágico. E também deve ter tido algum efeito sobre os outros, porque pouco depois estavam a dançar, alguns sozinhos outros aos pares, as mulheres da cidade nos braços dos irmãos Dupré, e o Philippe e a Colette muito juntinhos. Era um tipo de dança que nunca tínhamos visto antes, uma dança giratória, batida e esfalfante, em que os tornozelos se torciam e as mesas eram desviadas por traseiros rodando, e os risos penetravam os sons dos instrumentos, e até o Raphaél bateu com o pé, esquecendo-se de parecer carrancudo. Não sei quanto tempo aquilo durou, talvez menos de uma hora, talvez uns minutos apenas. 216 Sei que nos juntámos à euforia, alegres do outro lado da janela, saltitando e girando como diabinhos. A música era quente e o calor queimáva-nos como álcool numa flambée, com um aroma forte e amargo, e dançámos em roda como índios, sabendo que, com o volume do som lá dentro, podíamos fazer o barulho que nos apetecesse que ninguém nos ouviria. Felizmente, eu estava constantemente a olhar para a janela, porque fui eu que


vi o velho Gustave sair. Dei o alarme imediatamente e saltámos para trás do muro mesmo a tempo de o ver cambalear para a rua e para o fresco da noite, uma figura escura e curvada, a pipa incandescente do cachimbo fazendo-lhe uma rosácea no rosto. Estava bêbedo, mas não debilitado. Na verdade, creio que nos ouviu, porque parou encostado à porta e gritou para as sombras nas traseiras do edifício, uma mão contra a esquina do alpendre para se impedir de cair. - Quem está aí? - A voz era lamurienta. - Está alguém aí? Ficámos quietos atrás do muro, abafando as risadas. - Está aí alguém? - repetiu o velho Gustave. Depois, aparentemente satisfeito, resmungou qualquer coisa quase inaudível até para si mesmo e recomeçou a andar. Chegou ao muro e sacudiu o cachimbo contra as pedras. Uma chuva de fagulhas caiu do nosso lado e tive de tapar a boca à Reinette para a impedir de gritar. Depois fez-se silêncio. Esperámos, quase não nos atrevendo a respirar. Ouvimo-lo então a urinar longa e luxuriantemente contra as pedras do muro, dando grunhidos de satisfação. Sorri no escuro. Não era de admirar que estivesse tão ansioso em descobrir se estava ali alguém. O Cassis deu-me uma cotovelada com força,- tapando a boca com a mão. A Reine fez uma careta de nojo. Depois ouvimo-lo a apertar o cinto e o som de passos a arrastarem-se em direcção ao café. Depois nada. Esperámos mais uns minutos. - Onde é que ele foi? - perguntou o Cassis baixinho. - Não se foi embora. Com certeza que o ouvíamos. Encolhi os ombros. À luz do luar, podia ver a cara do Cassis a brilhar do suor e da excitação. Fiz um gesto em direcção ao muro. - Vai ver. Se calhar desmaiou ou assim. O Cassis abanou a cabeça. - Se calhar viu-nos. Só está à espera que um de nós ponha a cabeça de fora e pimba!


217 Encolhi de novo os ombros e espreitei com cuidado por cima do muro. O velho Gustave não desmaiara; estava sentado de costas para nós, a olhar para o café. Estava bastante imóvel. - Então? - perguntou o Cassis assim que voltei a baixar-me. Disse-lhe o que vira. - O que é que ele está a fazer? - perguntou o Cassis, pálido de frustração. Abanei a cabeça. - Raios partam o estúpido velho! Vai-nos obrigar a ficar aqui a noite inteira! Levei o dedo aos lábios: - Chiu! Vem aí alguém. O Velho Gustave também devia ter ouvido porque ouvimo-lo vir enquanto nos escondíamos mais fundo no meio do emaranhado das silvas. Não tão silenciosamente quanto nós e, se tivesse saltado uns metros mais para a esquerda, teria aterrado mesmo em cima de nós. Assim, caiu em cima de uma confusão de silvas, praguejando e fustigando com a bengala, e nós aproveitámos para recuarmos ainda mais para o meio dos arbustos. Estávamos numa espécie de túnel criado pelas silvas e pelas ervas e, jovens e ágeis como éramos, até seria possível rastejarmos até à estrada. Se conseguíssemos fazer isso, talvez nem tivéssemos de saltar o muro e pudéssemos sair dali sem ninguém nos ver. Estava quase decidida a fazê-lo quando ouvi vozes do outro lado do muro. Uma voz de mulher e uma voz alemã, a voz do Schwartz. Ainda se podia ouvir a música vinda do café e o Schwartz e a mulher deviam ter-se escapado cá para fora. De onde estava, podia distinguir vagamente as suas silhuetas por cima do muro e fiz sinal ao Cassis e à Reinette para não se


mexerem. Também podia ver o Gustave, encostado aos tijolos e sem consciência da nossa presença, a espreitar entre as falhas nas pedras. Ouvi o riso da mulher, alto e um pouco nervoso, seguido da voz grossa do Schwartz a dizer algo em alemão. Era mais baixo que ela, parecia um anão ao lado da figura esguia dela, e a maneira como se inclinava para o pescoço dela parecia estranhamente carnívora, tal como os sons que fazia ruídos de deglutição, como os de um homem a engolir o jantar à pressa. Ao saírem do alpendre ficaram iluminados pelo luar e vi que as enormes mãos do alemão estavam dentro da blusa da mulher - Liebschen, Liebling - e ouvi-a rir mais estridentemente que nunca - hlhlhlhlhi - enquanto punha os seios à disponibilidade dele. E então apareceu mais alguém; o alemão, contudo, não pareceu surpreendido, porque lhe acenou brevemente com a cabeça, embora a mulher não parecesse dar-se conta, e voltou a concentrar-se no que estava a fazer enquanto o outro homem os observava em silêncio e ávido, os olhos a brilhar como os de um animal na escuridão do alpendre. Era o Jean-Marie Dupré. Não me ocorreu na altura que o Tomas podia ter combinado aquele encontro. O espectáculo da mulher em troca de qualquer outra coisa; um favor, talvez, ou uma lata de café de contrabando. Não fiz qualquer ligação entre aquilo e o intercâmbio que testemunhara umas horas antes no café; aliás, nem sabia muito bem o que aquilo era, tal era a minha ignorância daquele tipo de coisas. O Cassis teria sabido, claro, mas ele continuava agachado atrás do muro com a Reinette. Fiz-lhe sinal freneticamente, pensando que era agora ou nunca a altura de desaparecermos, enquanto os três


protagonistas estavam entretidos. Ele acenou com a cabeça e começou a dirigir-se na minha direcção, deixando a Reinette na sombra do muro, vendo-se apenas a sua blusa branca de seda de pára-quedas. - Raios! Por que é que ela não vem? - disse o Cassis quando chegou ao pé de mim. O alemão e a mulher estavam agora tão perto do muro que já não os podia ver. O Jean-Marie seguia-os de perto - o suficiente para poder ver, pensei, sentindo-me culpada e enjoada ao mesmo tempo. Do outro lado do muro chegava-me a respiração deles, a respiração pesada e suja do alemão, a respiração excitada e áspera do observador e os gemidos agudos da mulher entre eles. Senti-me aliviada por não poder ver o que estava a passar-se e também por ser demasiado nova para perceber, porque aquilo parecia-me impossivelmente feio, impossivelmente confuso, apesar de estar a dar-lhes prazer, com aqueles olhos esbugalhados ao luar e as bocas abertas como peixes fora de água. De repente o alemão começou a empurrar a mulher contra o muro em pancadas pequenas e regulares, as costas e a cabeça dela batiam contra o muro e guinchava "Ah! Ah! Ah!" - e ele grunhia - "Liebschen, ja Liebling, ach ja" e a mim só me apetecia levantar-me e desatar a correr, e senti que toda a minha calma e compostura me abandonavam numa enorme onda de pânico. 218 - 219


Estava prestes a seguir o meu instinto quando, já semilevantada, a medir a distância dali até à estrada, os ruídos do outro lado do muro pararam e a voz do alemão se elevou, irritada: - Wie ist das? Foi então que a Reinette, que estivera pouco a pouco a aproximar-se de nós, entrou em pânico. Ela deve ter pensado que o alemão a vira porque, em vez de ficar quieta como quando o Gustave gritara no escuro, se levantou e desatou a correr, assustada com o luar na sua blusa de seda branca, e caiu em cima de umas silvas com um grito, a esfregar o tornozelo entre as mãos, ali sentada a chorar e a olhar para nós impotente, abrindo e fechando desesperadamente a boca sem conseguir dizer palavra. O Cassis foi rápido. Praguejando baixinho, desapareceu a correr pelo emaranhado de arbustos na direcção oposta, com os ramos de salgueirinhas chicoteando-lhe o rosto enquanto avançava e as silvas esfolando-lhe os tornozelos. Saltou o muro para o outro lado, sem sequer olhar para trás, e desapareceu na estrada. - Verdammt! - gritou o Schwartz. Vi a cara pálida dele aparecer por cima do muro e encolhi-me ainda mais nos arbustos. - Wer war das? O Hauer, que se lhe tinha juntado, abanou a cabeça. - Weiß nicht. Etwas über da! - e apontou. Três caras apareceram por cima do muro. A única coisa que podia fazer era esconder-me atrás da folhagem escura e esperar que a Reinette tivesse o bom senso de desaparecer dali o mais depressa possível. Pelo menos eu não tinha fugido como o Cassis, pensei com desprezo. Apercebi-me vagamente de que a música parara no café. - Esperem, ainda está ali alguém - disse o Jean-Marie,


espreitando por cima do muro. A mulher da cidade juntou-se a ele; a cara dela branca como farinha ao luar, a boca que parecia preta e maldosa em contraste com aquela palidez pouco natural. - Ora, sua desavergonhada! - gritou. - Tu aí! Levanta-te já! Sim, tu, aí escondida atrás do muro. A espiar-nos! - Falava alto e com um tom de indignação, e talvez com um pouco de culpa. A Reine levantou-se devagar, obediente. Tão bem-educada, a minha irmã. Sempre pronta a obedecer a uma voz autoritária. De muito lhe serviu. Podia ouvi-la a respirar depressa, em pânico. 220 A blusa desprendera-se da saia ao cair e tinha o cabelo em desalinho sobre o rosto. O Hauer falou baixinho com o Schwartz, que se inclinou para pegar na Reine e puxá-la para o outro lado do muro. Por momentos deixou-se levantar sem protestar. Nunca foi muito rápida a pensar e, de nós os três, era certamente a mais dócil. O seu primeiro instinto era sempre obedecer aos adultos sem questionar. Mas depois pareceu perceber. Talvez fosse o contacto das mãos do Schwartz, ou talvez tenha percebido o que o Hauer lhe murmurara, mas de repente começou a debater-se. Demasiado tarde. O Hauer segurou-a enquanto o Schwartz lhe arrancou a blusa. Vi-a voar por cima do muro como uma bandeira branca ao luar. Depois, outra voz - o Heinemann, acho - gritou algo em alemão e a minha irmã desatou aos gritos, gritos altos e ofegantes - "Ah! Ah! Ah!", com repulsa e terror. Por um segundo, vi a cara dela por cima do muro, o cabelo a esvoaçar, os braços enclavinhando-se na noite, e a cara embriagada do


Schwartz a sorrir para ela. Depois ela desapareceu, mas os gritos continuaram, os sons gulosos dos homens, e a voz da mulher, estridente e com uma espécie de triunfo: - É bem feita, minha puta! É bem feita! E sempre aquele riso nojento aquele "heh-heh-heh" que ainda hoje ouço nos meus pesadelos às vezes, isso e a música do saxofone, tão parecida com uma voz humana, tão parecida com a voz dele. Hesitei talvez durante trinta segundos. Não mais do que isso, se bem que parecesse muito mais enquanto estive ali escondida, a morder o punho para tentar concentrar-me melhor. O Cassis fugira já. Eu só tinha nove anos. Que podia eu fazer? Mas, apesar de perceber muito mal o que estava a acontecer, mesmo assim não podia abandoná-la. Levantei-me e abri a boca para gritar - tinha a certeza de que o Tomas não estaria longe e não tardaria a acabar com tudo aquilo -, só que alguém subia já desajeitadamente o muro, alguém com uma bengala que utilizou para bater nos espectadores com mais raiva que eficácia. Alguém que rugia numa voz cavernosa e furiosa: "Porco nazi! Porco nazi!". Era o Gustave Beauchamp. Voltei a esconder-me na vegetação. Quase não via nada do que estava agora a acontecer, mas percebi que a Reinette apanhara a blusa e corria a choramingar em direcção à estrada. 221 Podia ter-me juntado a ela nessa altura se não fosse a súbita exaltação que me percorreu quando ouvi a voz familiar dizer por cima daquele pandemónio: - Pronto! Pronto!


O meu coração saltou. Ouvi-o abrir caminho por entre a pequena multidão - outros tinham-se juntado já à briga e ouvi a bengala do velho Gustave bater mais duas vezes, fazendo um som mole como se ele estivesse a pontapear uma couve. Depois, palavras apaziguadoras - a voz do Tomas - em francês e em alemão: "Pronto, já passou, acalmem-se. Verdammt. Acalma-te, Frànzl, já fizeste o suficiente. Depois a voz furiosa do Hauer e protestos confusos da parte do Schwartz. - Já é a segunda vez que te metes comigo hoje, seu velho Arschloch! - O Hauer a tremer de fúria, a gritar para o Gustave. Ouvi então o Tomas gritar algo que não percebi e depois um grito do Gustave, cortado abruptamente por um som como o de um saco de farinha a cair no chão de pedra de um celeiro, um terrível estalo contra a pedra e depois um silêncio tão chocante como um duche frio. Durou mais de trinta segundos. Ninguém falou. Ninguém se mexeu. Depois a voz alegre e descontraída do Tomas. - Não é nada. Voltem para dentro do bar, acabem as vossas bebidas. O vinho deve ter-lhe subido à cabeça. Ouviu-se um murmúrio inquieto, um sussurro, um esboço de protesto. A voz de uma mulher; a Colette, acho: - Os olhos dele... - É da bebida - A voz do Tomas, seca e leve. - Um velhote desta idade. Não sabe quando parar. - O riso dele era perfeitamente convincente e, contudo, eu sabia que ele estava a mentir. - Frànzl, fica comigo e ajuda-me a levá-lo a casa. Udi, leva os outros para dentro. Assim que os outros voltaram para dentro do café, ouvi a música do piano começar e a voz de uma mulher elevar-se num


trinado nervoso de canção popular. Sozinhos agora, o Tomas e o Hauer começaram a conversar baixinho, em tom de urgência. - Leibniz, zvas muß... - começou o Hauer. - Halts Maul! - interrompeu o Tomas bruscamente. Dirigiu-se então para o sítio onde teria caído o corpo do velho e ajoelhou-se. Ouvi-o mover o Gustave e depois falar com ele várias vezes, docemente, em francês: - Acorda, velhote. Acorda. O Hauer disse algo em alemão numa voz rápida e furiosa que não percebi. O Tomas falou então, devagar e claramente, e foi mais o tom do que as palavras dele que percebi. Palavras lentas, deliberadas, quase divertidas naquele desprezo frio: - Sehr gut, Frünzl - disse o Tomas incisivamente. - Er ist tot. 222 - 223 9. Acabaram os comprimidos. Devia estar desesperada. Naquela noite terrível, com o cheiro a laranja à roda dela e nada a que pudesse agarrar-se. "Seria capaz de vender os meus filhos por uma noite de sono". Depois, por baixo de uma receita recortada de um jornal e colada numa das páginas, numa letrinha tão pequena que foi preciso uma lupa para a ler, escreve: "O TL voltou. Disse que tinha havido um problema no La Rép. Alguns soldados insubordinaram-se. Disse que a R-C talvez tivesse visto alguma coisa. Trouxe comprimidos.


Seriam trinta comprimidos com alto teor de morfina? Em troca do silêncio dela. Ou para outra coisa completamente diferente? 224 10. O Paul voltou meia hora depois. Tinha na cara a expressão embaraçada de um homem que espera ser repreendido e cheirava a cerveja. - Tive de beber - disse, pedindo desculpa. - Teria parecido estranho ficar a olhar para eles. Mas eu estava já meia-encharcada e irritadiça. - Qual é a magnífica descoberta? O Paul encolheu os ombros. - Pode não ser nada - disse pensativamente. - Prefiro... hum... esperar até ter a certeza. Olhei-o bem nos olhos. - Paul Désiré Dourias! - declarei. Esperei por ti séculos à chuva. Fiquei à porta deste maldito café a vigiar o Dessanges porque tu achaste que era boa ideia. Não me queixei uma única vez. - Neste ponto, olhou para mim com uma expressão de sarcasmo que ignorei. - O que, praticamente, faz de mim uma santa - disse rispidamente. Mas se te atreves a esconder-me alguma coisa, se estás sequer a pensar que podes... O Paul fez um gesto indolente de derrota. - Como é que sabes que o meu segundo nome é Désiré? - perguntou. - Eu sei tudo - respondi sem sorrir. 225


11. Não sei o que é que eles fizeram depois de termos fugido. Uns dias mais tarde, o corpo do Gustave foi encontrado no Loire por um pescador, ao pé de Courlé. Já estava meio-carcomido pelos peixes. No La Mauvaise Réputation ninguém mencionou o assunto, se bem que o comportamento dos irmãos Dupré parecesse mais furtivo que nunca e um silêncio de morte pairasse no café. A Reinette também não falou do que acontecera e eu fingi que fugira ao mesmo tempo que o Cassis, para que ela não suspeitasse do que eu vira. Mas ela mudara; parecia fria, quase agressiva. Quando pensava que eu não estava a ver, levava compulsivamente a mão à cara e ao cabelo como se para se certificar de que nada estava fora do lugar. Não foi à escola durante vários dias, dizendo que tinha dores de barriga. E a mãe, por estranho que pareça, deixou-a. Sentava-se com ela, preparava-Lhe bebidas quentes e falava-lhe baixinho. Até mudou a cama da Reinette para o quarto dela, coisa que nunca fizera comigo ou com o Cassis. Uma vez vi-a dar à Reinette dois comprimidos, que ela tomou relutantemente, a protestar. Ao escutar uma vez atrás da porta, pareceu-me ouvir a palavra maldição no meio de uma conversa entre elas. A Reinette ficou doente durante mais algum tempo depois de ter tomado os comprimidos, mas depois ficou bem e não se voltou a falar no assunto. Havia pouco sobre isto no álbum. Numa página escreve: "A R-C recuperou", por debaixo de um malmequer seco e de uma receita


de tisana de absinto. 226 Mas eu sempre desconfiei de alguma coisa. Será que os comprimidos eram uma espécie de purgativo para o caso de uma gravidez indesejada? Seriam os comprimidos de que a mãe fala numa das entradas do diário? E podia TL ser o Tomas Leibniz? Acho que o Cassis deve ter adivinhado algo, mas estava sempre demasiado absorvido nas suas coisas para dar grande importância à Reine. Em vez disso, concentrava-se na escola, lia as suas revistas, brincava no bosque com o Paul e fingia que nada acontecera. E talvez para ele fosse verdade. Uma vez tentei falar com ele sobre o assunto. - Aconteceu alguma coisa? O que é que queres dizer com isso? Estávamos no Posto de Vigia a comer sandes de mostarda e a ler A Máquina do Tempo. Era a minha história preferida naquele Verão e nunca me cansava de a ler. O Cassis olhou para mim, de boca cheia, os olhos dele não conseguindo encarar bem os meus. - Não tenho a certeza. - Estava a ter cuidado com o que dizia, ao mesmo tempo que observava a cara calma dele por cima da capa do livro. - Quer dizer, eu só fiquei mais um minuto que tu, mas... - Era difícil pô-lo em palavras. Não havia palavras no meu vocabulário para aquele tipo de coisa. Quase apanharam a Reinette - acabei por dizer à falta de melhor. - O Jean-Marie e os outros. Eles... empurraram-na contra o muro. Rasgaram-lhe a blusa. Mas havia mais, se eu soubesse como dizê-lo. Tentei relembrar a sensação de horror e de culpa que sentira na


altura; a sensação de que estava prestes a assistir a algo desconhecido e feio, mas tudo se tornara tremido, desfocado, como imagens num sonho. - O Gustave estava lá - continuei desesperada. O Cassis começava a ficar irritado: - E depois? - disse numa voz aguda. - E depois? Ele esteve lá o tempo todo, o velho idiota. Qual é a novidade? - Mas mesmo assim os olhos dele recusavam-se a encontrar-se com os meus, olhando para o livro ou para folhas mortas que passavam por nós levadas pelo vento. - Houve uma briga. Uma espécie de briga. - Tinha de o dizer. Sabia que ele não queria ouvi-lo, notei o seu olhar a evitar-me deliberadamente, concentrando-se na leitura e desejando que eu me calasse. 227 Silêncio. As nossas duas vontades lutavam uma contra a outra no silêncio, ele com os seus anos de experiência e eu com o peso daquilo que sabia. - Achas que talvez... Virou-se então para mim, furioso, os olhos a brilharem de raiva e terror: - Acho o quê, por amor de Deus? Acho o quê? Não achas que já fizeste o suficiente, com os teus planos, os teus negócios, as tuas ideias espertas? - Falava ofegante, a cara febril e muito perto da minha. - Não achas que já chega? - Não percebo o que... - Eu estava quase a chorar. - Bem, pensa. Por que é que não pensas um bocadinho? gritou o Cassis. - Digamos que suspeitas de algo, está bem? Digamos que sabes por que é que o velho Gustave morreu.Parou para ver a minha reacção, a voz baixando num murmúrio áspero. - Digamos que suspeitas de alguém. A quem é que vais contar? À polícia? À mãe? À porra da Legião Estrangeira?


Olhei-o nos olhos, da minha maneira insolente, sentindo-me cada vez pior mas tentando não deixar que ele notasse. - Não podíamos contar a ninguém - continuou o Cassis numa voz alterada. - A ninguém. Iam querer saber como é que nós sabíamos. Com quem é que tínhamos andado a falar. E se lhes disséssemos... - os olhos fugiram dos meus -, se alguma vez contássemos alguma coisa a alguém... - Não acabou a frase e voltou a concentrar-se no livro. Até o medo parecia ter desaparecido, substituído por uma indiferença cautelosa. - Ainda bem que não passamos de miúdos, não achas? observou mais calmo. - Os miúdos estão sempre a inventar coisas. A descobrir coisas, a brincar aos detectives, coisas assim. Toda a gente sabe que não é real. Toda a gente sabe que estamos sempre a inventar. Olhei para ele e disse: - E o Gustave? - Não passava de um velho - respondeu o Cassis, inconsciente de que estava a dizer o mesmo que o Tomas. - Caiu ao rio, não foi? Bebeu de mais. Não é a primeira vez que uma coisa assim acontece. Senti um arrepio. 228 - E nós não vimos nada - acrescentou com indiferença. - Nem eu, nem tu, nem a Reinette. Não aconteceu nada, percebeste? Abanei a cabeça. - Mas vi. Eu vi. Mas o Cassis não voltou a olhar para mim, escondendo-se atrás das páginas do livro, onde Morlocks e Eloi se guerreavam furiosamente por detrás das protectoras barreiras da ficção. E sempre que eu tentava abordar o assunto posteriormente, ele fingia que não percebia, ou que pensava que eu estava a brincar. Talvez com o tempo se tenha até convencido disso mesmo. Os dias passaram. Retirei o saquinho da laranja da almofada


da mãe e os restos de casca de laranja de dentro do barril das anchovas e enterrei tudo no quintal. Pressentia que nunca teria de voltar a utilizá-lo. "Acordei às seis da manhã", escreve, pela primeira vez desde há meses. "É estranho como tudo me parece diferente. Quando não se dorme, é como se o mundo estivesse a afastar-se a pouco e pouco. O chão deixa de estar direito debaixo dos nossos pés. O ar parece repleto de partículas brilhantes que fazem arder os olhos. Sinto-me como se tivesse deixado uma parte de mim pelo caminho, mas não sei qual. Olham para mim com uns olhos tão solenes. Acho que têm medo de mim. Todos menos a Boise. Não tem medo de nada. Gostava de a avisar que isso não dura para sempre". E tinha razão. Não dura. Soube-o quando nasceu a Noisette a minha Noisette, tão matreira, tão difícil, tão como eu. Tem agora uma filha também, que eu só vi numa fotografia. Chama-lhe Pêche. Pergunto-me muitas vezes como fazem para viver, tão longe de casa. A Noisette costumava olhar para mim assim, com aqueles mesmos olhos duros e escuros. Agora que penso nisso, a Noisette parece-se mais com a minha mãe do que comigo. Poucos dias depois do baile no La Rép, o Raphaêl apareceu lá


em casa. Com uma desculpa - comprar vinho ou qualquer coisa -, mas nós sabíamos o que ele queria realmente. O Cassis nunca o admitiu, claro, mas eu podia vê-lo nos olhos da Reine. Queria descobrir o que é que nós sabíamos. Imagino que estivesse preocupado; mais do que os demais porque, afinal, o café era dele e sentia-se responsável. Talvez estivesse apenas a tentar adivinhar. Talvez alguém tivesse falado. 229 De qualquer modo, estava muito nervoso quando a mãe lhe abriu a porta, os olhos como dardos espreitando para dentro de casa e depois para a rua outra vez. Desde o baile que o negócio do La Mauvaise Réputation ficara mau. Ouvira alguém dizer nos correios - talvez a Lisbeth Genêt - que aquele lugar estava perdido, que os alemães iam lá com as suas putas e que nenhuma pessoa decente era vista por lá, e apesar de ainda ninguém ter feito a ligação entre o que acontecera naquela noite e a morte do Gustave Beauchamp, não tardaria muito que alguém começasse a falar. Afinal, estávamos numa aldeia, e numa aldeia ninguém consegue manter um segredo por muito tempo. Enfim, a mãe não lhe deu propriamente umas boas-vindas calorosas. Talvez porque estivesse demasiado consciente de que nós os observávamos, do que ele sabia sobre ela. Talvez a doença dela a tivesse tornado severa, ou talvez aquele fosse o seu temperamento naturalmente rezingão. Fosse o que fosse, ele não voltou, se bem que uma semana depois ele e todos os


outros que tinham estado no La Mauvaise Réputation naquela noite estavam mortos; portanto, se calhar simplesmente não teve oportunidade de o fazer. A mãe faz apenas uma referência à visita do Raphaêl: "Aquele idiota do Raphaél veio cá a casa. Demasiado tarde, como sempre. Disse-me que sabia onde podia arranjar-me comprimidos. Eu não disse mais nada". Mais nada. E pronto. Se tivesse sido outra mulher, não teria acreditado, mas Mirabelle Dartigen não era uma mulher comum. Mais nada, disse ela. E aquela era a sua última palavra. Que eu saiba, não voltou a tomar morfina, mas isso também pode ter sido uma consequência do que aconteceu e não tanto fruto da sua enorme força de vontade. Mas depois disso também não voltou a haver laranjas, nunca mais. Acho que até eu deixei de gostar delas. 230 QUINTA PARTE As Colheitas 1. Contei-vos que a maior parte do que ela escreveu era mentira. Parágrafos inteiros, misturados com acontecimentos verdadeiros por todo o lado como trepadeira numa sebe, ainda


mais obscurecida pelo vocabulário que ela utilizava, linhas riscadas uma e outra vez, palavras invertidas e cada uma representando uma luta da minha vontade contra a dela para extrair o significado. "Hoje fui dar um passeio pelo rio. Vi uma mulher com um papagaio feito de madeira e de bidões de petróleo. Nunca pensei que uma coisa assim pudesse voar. Grande como um tanque e pintado com muitas cores e fitas a esvoaçarem na cauda. Pensei" - aqui as palavras ficaram obscurecidas por uma mancha de azeite, fazendo a tinta sagrar no papel num violeta carregado - "mas ela saltou para cima da barra e elevou-se no ar. Não a reconheci logo, pensei que pudesse ser a Minette mas", - uma mancha ainda maior borra a maior parte do que se segue, se bem que algumas palavras permaneçam legíveis. "Lindo" é uma delas. Por cima do primeiro parágrafo escreveu "baloiço" em letras normais. Por baixo, um diagrama rabiscado que podia ser qualquer coisa mas que parece representar uma figura em cima de uma forma em suástica. De qualquer maneira, pouco importa. A mulher do papagaio nunca existiu. Até a referência à Minette não faz qualquer sentido; a única Minette que conhecíamos era uma velha prima afastada do lado do meu pai, à qual as pessoas aludiam gentilmente como excêntrica mas que falava dos muitos gatos 233 que tinha como sendo "os meus bebés", e era frequentemente vista em lugares públicos a dar o peito a gatinhos, de rosto tranquilo por cima da carne descaída e escandalosa.


Só estou a contar-vos isto para que percebam. Havia todo o tipo de histórias fantásticas no álbum da mãe, histórias de encontros com pessoas há muito mortas, sonhos disfarçados de realidade, impossibilidades prosaicas - dias de chuva convertidos em dias radiantes; um imaginário cão de guarda; conversas que nunca tiveram lugar, algumas extremamente aborrecidas; um beijo de um amigo há muito desaparecido. Há partes em que a mentira está tão bem disfarçada que eu própria tenho dificuldade em distingui-la da verdade. Além do mais, não há um objectivo aparente. Talvez fosse a doença dela a falar, ou os devaneios do vício da morfina. Não sei se alguma vez pensou que outra pessoa veria o álbum. Também não funciona como biografia. Algumas partes são quase como um diário, quase; a sequência irregular priva o álbum de lógica e utilidade. Talvez fosse por isso que demorei tanto tempo a dar-me conta do que estava ali mesmo em frente dos meus olhos, a perceber o comportamento dela e as horríveis repercussões do meu. Às vezes as frases estão duplamente ocultas, entaladas entre as linhas de uma receita numa letrinha minúscula e rabiscada. Talvez fosse essa a vontade dela. Entre nós as duas. Um trabalho de amor. Doce de tomate. Cortar tomates pouco maduros aos pedaços e pesá-los. Juntar 1 kg de açúcar à mesma quantidade de tomate. Acordei às três da manhã e fui à procura de comprimidos. Voltei a esquecer me de que não tinha mais. Quando o açúcar tiver derretido - para evitar que queime, juntar 2 copos de água se necessário -, mexer com uma colher de pau. Acho que se for ter com o Raphaél ele me arranja outro fornecedor. Depois do que aconteceu, não me atrevo a voltar a pedir aos


alemães, prefiro morrer. Juntar então os tomates e deixar ferver em lume brando, mexendo com frequência. Ir retirando com uma escumadeira a espuma que se forma à superfície. Às vezes a morte parece uma alternativa melhor. Pelo menos não teria de me preocupar em acordar, ha ha. Não paro de pensar nas crianças. Tenho medo que a Belle Yolande tenha apanhado o fungo do mel. Tenho de cortar as raizes infectadas ou passará às outras. Deixar ferver em lume brando durante duas horas, talvez menos. Está pronto quando o doce colar ao prato. Estou tão zangada, comigo mesma, com ele, com eles. Mas sobretudo comigo mesma. Quando aquele idiota do Raphaél me contou, tive de morder os lábios até deitar sangue para não me trair. Acho que ele não reparou. Eu disse que já sabia, que as raparigas estavam sempre a meter-se em sarilhos e que não acontecera nada. Pareceu aliviado e quando se foi embora peguei no machado e fui cortar lenha até quase não me aguentar de pé, desejando o tempo todo que fosse a cara dele. Como podem ver, a narrativa é pouco clara. Só retrospectivamente começa a fazer um pouco de sentido. E, é claro, não revela nada sobre a conversa que teve com o Raphaél. Mas posso imaginar o que aconteceu: a ansiedade dele; o silêncio frio e imperturbável dela; o sentimento de culpa dele. Afinal, era o café dele. Mas a mãe não teria revelado nada. Fingir que sabia foi uma medida de protecção, elevando uma barreira contra uma preocupação indesejada. A Reine sabia tomar conta de si mesma, deve ter-lhe dito. E, aliás, não aconteceu nada. A Reine teria mais cuidado dali em diante. Devíamos estar aliviados por não ter acontecido nada de mais grave. O T disse que a culpa não foi dele, mas o Raphaél disse-me que ele se limitou a olhar, sem fazer nada. Afinal, os alemães eram amigos dele. Talvez tenham pago pela Reine da mesma


maneira que pagaram pelas mulheres que o T trazia. O que acalmou as nossas suspeitas foi ela nunca nos ter mencionado o incidente. Talvez não soubesse como - odiava tudo o que lhe lembrasse as funções corporais -, ou talvez achasse que era melhor esquecer. Mas o álbum revela a sua crescente raiva, a sua violência, os seus sonhos de retaliação. "Queria cortá-lo aos bocadinhos até não sobrar nada", escreve. Quando li pela primeira vez, pensei que se referisse ao Raphaél, mas agora já não tenho tanta certeza. A intensidade do ódio revela algo mais profundo, mais escuro. Uma traição, talvez. Ou um amor não-correspondido. "As mãos dele eram mais macias do que imaginara", escreve abaixo de uma receita de bolo de maçã. "Parece muito jovem e tem os olhos da cor do mar em tempo de tempestade. 234 - 235 Pensava que não ia gostar, que ia odiá-lo, mas há nele algo de muito meigo. Mesmo para um alemão. Pergunto-me se estou louca por acreditar no que ele promete. Sou tão mais velha do que ele. E no entanto não sou assim tão velha. Talvez haja tempo". E não diz mais, talvez envergonhada da sua própria audácia, mas encontro pequenas referências ao longo do álbum, agora que sei onde procurar. Palavras soltas, frases interrompidas por receitas e notas de jardinagem, codificadas até para ela mesma. E o poema. Esta doçura às colheradas tal fruto luminoso


Durante anos achei que se tratava de uma fantasia, como tantas outras que ela descreve. A minha mãe não podia ter tido um amante. Faltava-Lhe a capacidade para a ternura. As defesas dela eram demasiado boas, os impulsos sensuais sublimados em receitas, na criação das perfeitas lentilles cuisinées, do mais ardente crême brulée. Nunca me passou pela cabeça que pudesse haver alguma verdade nisto, na mais improvável das suas fantasias. Recordando a cara dela, o toque amargo na boca, as linhas duras das maçãs do rosto, o cabelo esticado para trás e atado num carrapito, até a história da mulher do papagaio parecia mais provável. E, contudo, acabei por acreditar. Foi talvez o Paul que me levou a pensar nisso. Talvez no dia em que dei por mim a ver-me ao espelho, com um lenço vermelho na cabeça e os brincos - que a Pistache me dera pelos meus anos e que nunca pusera antes - a baloiçarem de modo coquete. Por amor de Deus, tenho sessenta e cinco anos! Já devia ter juízo. E no entanto, há algo na maneira como ele olha para mim que faz com que o meu coração desate a bater desordenadamente como o motor de um tractor. Não é a mesma avassaladora sensação de perdição que o Tomas me provocava. Nem a sensação de alívio temporário com que o Hervé me presenteava. Não, é algo diferente; um sentimento de paz. Como quando uma receita sai perfeita um soufflé perfeito, uma impecável sauce hollandaise. É um sentimento que me diz que qualquer mulher pode ser bonita aos olhos do homem que a ama. Comecei a pôr creme nas mãos e na cara antes de ir para a


cama, e no outro dia encontrei um velho bâton, seco e rachado pelo desuso, e pus um bocadinho nos lábios, mas depois limpei, sentindo-me confusamente culpada. O que é que estou a fazer? E porquê? Aos sessenta e cinco anos, com certeza que já passei da idade de pensar nessas coisas. Mas a severidade da minha voz interior não me convence. Penteio o cabelo com mais cuidado e prendo-o com uma travessa de tartaruga. Não há nada mais tolo do que um velho tolo, disse a mim mesma de modo severo. E a minha mãe era quase trinta anos mais nova do que eu sou agora. Posso agora olhar para a fotografia dela com menos frieza. As emoções confusas que senti durante tantos anos, o rancor e a culpa, diminuíram e posso ver - ver de verdade - a cara dela. Mirabelle Dartigen, as feições rígidas e o cabelo puxado para trás de um modo tão selvagem que dói só de olhar. De que é que tinha medo aquela mulher solitária na fotografia? A mulher do álbum é tão diferente, a mulher melancólica do poema, a rir-se e a enfurecer-se por detrás da máscara, umas vezes sedutora, outras vezes friamente assassina nas coisas que imagina. Posso agora vê-la claramente, trinta e poucos anos, um cabelo branco aqui e ali, os olhos pretos ainda cheios de brilho. Uma vida inteira de trabalho não a curvou ainda e os músculos dos braços são duros e firmes. E os seios estão também firmes por baixo da severa sucessão de aventais cinzentos. Às vezes olha-se nua ao espelho da porta do armário e imagina a sua longa e solitária viuvez, a caminhada para a velhice, a sua juventude a abandoná-la, as linhas descaídas do corpo tombando como pregas nas ancas, as coxas


esqueléticas tornando os joelhos cada vez mais salientes. Resta tão pouco tempo, pensa a mulher. Quase ouço a sua voz elevar-se das páginas do álbum. Tão pouco tempo. E quem podia vir, mesmo que esperasse cem anos? O velho Lecoz, com aquele seu velho olho lúbrico? Ou o Alphonse Fenouil ou o Jean-Pierre Truriand? Sonha secretamente com um estrangeiro de voz doce. Imagina-o, um homem que seria capaz de ver para lá daquilo em que ela se tornou e saber como ela poderia ter sido. É evidente que não tenho maneira de saber o que ela sentia, mas sinto-me mais próxima do que nunca da minha mãe, 236 - 237 quase tão próxima para ouvir a voz que se eleva das frágeis páginas do álbum, uma voz que tenta tão desesperadamente esconder a sua verdadeira natureza, a de uma mulher apaixonada e desesperada por detrás de uma fachada de frieza. Percebem que tudo isto não passa de mera especulação. Ela nunca menciona o nome dele. Não posso sequer provar que tinha um amante, muito menos que era o Tomas Leibniz. Mas algo dentro de mim me diz que, embora pudesse falhar nos pormenores, a essência daquilo seria verdadeira. Podem ter sido tantos homens penso. Mas uma voz secreta lá bem do fundo do meu coração diz-me que só podia ter sido o Tomas. Talvez eu seja mais parecida com ela do que gosto de admitir. Talvez ela soubesse isso, e deixar-me o álbum foi a sua maneira de me fazer compreender. Talvez, ao fim de tanto tempo, uma tentativa de pôr fim à nossa guerra.


238 2. Só voltámos a ver o Tomas quase quinze dias depois do baile no La Mauvaise Réputation. Em parte por causa da mãe ainda meia-louca por causa das insónias e das enxaquecas -, e em parte porque sentimos que algo havia mudado. Todos sentimos isso: o Cassis, escondendo-se atrás dos seus livros de banda desenhada; a Reine imersa naquele seu novo silêncio vazio; até eu. Oh, sentíamos a falta dele. Nós os três. O amor não é uma coisa que se possa desligar como se fecha uma torneira e, cada um à sua maneira, estávamos já a tentar arranjar desculpas para o que ele fizera, para o que ele permitira acontecer. Mas o fantasma do velho Gustave Beauchamp pairava entre nós como a sombra ameaçadora de um monstro marinho. Afectava tudo. Brincávamos com o Paul quase como antes de o Tomas aparecer, mas as nossas brincadeiras eram sem vontade, forçando-nos a fingir exuberância para esquecer que já não tinham vida. Nadávamos no rio, corríamos pelo bosque e subíamos às árvores com mais energia do que antes, mas, no fundo, sabíamos que estávamos à espera, impacientes pela chegada do Tomas. Acho que pensávamos que, mesmo depois de tudo, ele seria capaz de tornar as coisas ainda melhores. Eu pelo menos pensava assim. Ele era sempre tão seguro,


com uma autoconfiança arrogante. Imaginava-o com o cigarro nos lábios e o boné inclinado para trás, o sol a bater-lhe nos olhos e aquele sorriso a iluminar-lhe o rosto. 239 Aquele sorriso que iluminava o mundo. Mas a quinta-feira veio e passou e não o vimos. O Cassis procurou por ele na escola, mas não havia sinais dele nos lugares habituais. O Hauer, o Schwartz e o Heinemann estavam também estranhamente desaparecidos, quase como se evitando o contacto connosco. Outra quinta-feira passou. Fingimos não reparar, nem sequer mencionávamos o nome dele entre nós, embora o pudéssemos ter sussurrado nos nossos sonhos, e continuámos a nossa vida sem ele como se nos fosse indiferente que ele aparecesse ou não. A pesca ao Velho tornou-se quase numa obsessão. Verificava as armadilhas dez ou vinte vezes por dia e estava sempre a pôr outras novas. Roubava comida da cave para preparar engodos mais atraentes para ele. Nadava até à Pedra do Tesouro e sentava-me lá durante horas com a minha cana de pesca, a observar os graciosos arcos da linha ao tocar a superfície e a ouvir os barulhos do rio aos meus pés. O Raphaél veio ver a mãe outra vez. O negócio no café estava a ir mal. Alguém pintara COLABORADOR nas traseiras a tinta encarnada e à noite alguém atirara pedras contra uma das janelas, que estava agora tapada com tábuas de madeira. Ouvi à porta enquanto ele falava com a mãe numa voz baixa e urgente. - Não tive culpa, Mirabelle - disse ele. - Tens de acreditar em mim. A responsabilidade não foi minha.


A mãe limitou-se a dar um estalido com a língua. - Não se pode discutir com os alemães - disse o Raphaél.Temos de os tratar como qualquer outro cliente. Não sou o único. A mãe encolheu os ombros. - Nesta aldeia, talvez sejas disse, indiferente. - Como é que podes dizer uma coisa dessas? Houve um tempo em que também te convinha a ti. A mãe avançou para ele. O Raphaél apressou-se a recuar, fazendo tilintar os pratos. A voz dela era baixa e furiosa. - Cala-te, idiota - sibilou ela. - Isso acabou, ouviste? Acabou. E se eu suspeito sequer de que andaste a contar a alguém... A face do Raphaél estava pálida de medo, mas tentou parecer ameaçador. - Não admito que me chamem idiota - começou numa voz incerta. - Chamo-te idiota a ti e puta à tua mãe se me apetecer - A voz da mãe era dura e afiada. - És um idiota e um cobarde, Raphaél Crespin, e ambos o sabemos perfeitamente. - Estava tão perto dele que quase nem lhe via a cara, embora pudesse ver-lhe ainda as mãos estiradas de ambos os flancos, como se em súplica. - Mas se tu ou alguém fala deste assunto, que Deus te ajude! Se os meus filhos vierem a ouvir alguma coisa por tua causa - até ali da cozinha podia ouvir-lhe a respiração, áspera como folhas mortas -, mato-te! - murmurou, e o Raphaél deve ter acreditado nela, porque estava branco quando saiu para a rua, com as mãos tremendo tanto que teve de as enfiar nos bolsos. - Mato quem quer que se atreva a meter-se com os meus filhos, cabrões! - cuspiu a mãe nas costas dele, e vi-o encolher-se, como se as palavras dela fossem veneno. Mato-os, cabrões! - repetiu, apesar de o Raphaél estar já ao pé do portão, quase a correr, de cabeça baixa como se sob


um forte vento. Eram as palavras que viriam a perseguir-nos. Esteve de mau humor o dia inteiro. Até o Paul sofreu um açoite verbal quando veio perguntar se o Cassis queria ir brincar. A mãe, que tinha estado a ferver silenciosamente desde a visita do Raphaél, lançou-se a ele num ataque de uma tal violência não provocada que ele não conseguiu fazer mais do que olhar para ela, de boca a remoer, a voz fechada num gaguejar agonizante: - Des-des-des-culpe. Des-des-desculpe... - Fala como deve ser, meu cretino! - gritou a mãe na sua voz vítrea, e durante um segundo pensei ver os olhos meigos do Paul iluminarem-se com algo quase selvagem, depois virou-se sem dizer palavra e fugiu desajeitadamente em direcção ao rio, e a voz voltando-lhe então e ululando atrás dele numa série de trinados bizarros e desesperados enquanto corria. - Bons ventos te levem! - gritou a mãe nas costas dele, batendo com a porta. - Não lhe devias ter falado assim - disse-lhe friamente nas costas dela. - O Paul não tem culpa de ser gago. A mãe voltou-se e olhou para mim com olhos que pareciam ágatas. - É claro que tomas o partido dele - constatou em voz neutra. - Se tivesses que escolher entre um nazi e eu, escolhias o nazi. 240 - 241 3. Foi então que começaram a chegar as cartas. Três, escrevinhadas em papel fininho de linhas azuis e enfiadas debaixo da porta. Encontrei-a a apanhar uma do chão e a metê-la dentro do bolso do avental, quase gritando-me para


eu ir para a cozinha: que não estava decente, que pegasse no sabão e esfregasse, esfregasse. Havia na voz dela uma nota que me fez lembrar o saquinho de laranja e tentei manter-me fora do alcance dela, mas lembrei-me da carta e, mais tarde, quando voltei a encontrá-la no álbum, enfiada entre uma receita de houdzn noir e um recorte de revista sobre como tirar nódoas de graxa, reconheci-a logo. "Savemos o que andão a fazer", dizia a carta em letras pequenas irregulares. "Estamus a vijiálos e sabemus o que fazer ós culaboradores". Por baixo, a mãe escreveu: "Aprende a escrever, ha ha!" em grandes letras vermelhas, como se estivesse a fazer um esforço para não parecer preocupada. O que é certo é que nunca nos disse nada destas cartas, se bem que, retrospectivamente, me apercebo de que as suas repentinas mudanças de humor pudessem estar ligadas à chegada secreta dos bilhetes. Uma outra carta sugere que o autor sabia dos nossos encontros com o Tomas: "Vimus os teus filhos cum ele por iso não tentes negálo. Cunhessemos te bem. Pensas que es melhor que os outros mas num pasas duma prustituta nazi e os teus filhos tão a vender coisas aos alemães. O que achas diso". 242 Podia ter sido escrito por qualquer pessoa. Certamente escrita por uma pessoa sem educação, a ortografia é atroz, mas qualquer pessoa na aldeia podia tê-la escrito. A mãe passou a comportar-se de modo cada vez mais imprevisível, fechandose


no celeiro durante a maior parte do dia a observar toda a gente que passava, com uma desconfiança muito próxima da paranóia. A terceira carta é a pior. Acho que não houve mais nenhuma, se bem que seja possível que ela tenha simplesmente resolvido deitá-las fora, mas acho que esta foi a última. "Não meresses viver puta nazi e os teus filhos armados em bons. Aposto que num sabias que eles andavão a vendernos aos alemães. Preguntalhes donde vem aqilo tudo. Esconderão tudo num sítio queles tem no bosque. Deulhes um homem chamado Laibnits acho qué o nome dele. Tu tamem o cunhesses. E nós cunhessemos te a ti. Nessa mesma noite alguém pintou um C escarlate na nossa porta e PUTA NAZI na parede do galinheiro, mas mais ninguém teve tempo de ler porque cobrimos logo tudo com tinta. E Outubro nunca mais chegava ao fim. 243 4. Naquela noite, eu e o Paul voltámos tarde do La Mauvaise Réputation. Parara de chover, mas estava ainda frio - ou as noites estão a tornar-se mais frias ou sou eu que agora sinto mais o frio do que antes -, e eu estava com falta de paciência e de mau humor. Mas quanto mais impaciente ficava, mais o Paul parecia calmo, até que nos limitámos a olhar ameaçadores


um para o outro em silêncio, a nossa respiração saindo em nuvens de vapor enquanto caminhávamos. - Aquela rapariga - disse o Paul por fim. A voz calma e pensativa, quase como se estivesse a falar consigo mesmo. Parecia muito nova, não parecia? Aquele comentário, aparentemente irrelevante, irritoume.Que rapariga, por amor de Deus! - censurei-o. - Pensava que íamos descobrir uma maneira de nos livrarmos do Dessanges e daquela rulote sebosa, e não para teres uma desculpa para andares a olhar para as raparigas! O Paul ignorou o que eu disse. - Estava sentada ao lado dele - disse devagar. - Deves tê-la visto entrar. Vestido vermelho, sapatos de salto alto. Vai muitas vezes à rulote. Por acaso lembrava-me dela. Lembrava-me vagamente de uma boca amuada, manchada de vermelho, sob uma melena preta. Uma das clientes habituais do Luc. - E depois? - É a filha do Louis Ramondin. Foi viver para Angers há uns anos, sabes, com a mãe, a Simone, depois do divórcio. 244 Lembras-te deles com certeza. - E acenou com a cabeça como se eu tivesse respondido com civilidade em vez de um grunhido. A Simone voltou a usar o nome de solteira, Truriand. A rapariga deve ter agora uns catorze, quinze anos. - E depois? - Ainda não conseguia perceber o interesse dele naquela história. Tirei a chave do bolso e enfiei-a na fechadura. O Paul continuou na sua maneira lenta e pensativa. - Não tem


de certeza mais de quinze anos, não - repetiu. - Já percebi - disse, enervada. - Ainda bem que arranjaste algo com que alegrar a tua noite. É pena não lhe teres perguntado também que número calçava, pois então sim, terias mesmo algo com que sonhar. O Paul sorriu-me com o seu sorriso preguiçoso. - Parece que estás com ciúmes. - Ora! - respondi com dignidade. - Só preferia que te fosses babar para cima da alcatifa de outra pessoa, seu velho devasso. - Pois, eu estava aqui a pensar - disse o Paul lentamente. - Ainda bem - disse-Lhe. - Estava aqui a pensar que talvez o Louis, sendo um gendarme e isso tudo, não gostasse da ideia de a filha, que não tem mais de quinze anos, estar envolvida com um homem... um homem casado... como o Dessanges. - Olhou para mim, triunfante e divertido. - Quer dizer, eu sei que os tempos mudaram desde que nós éramos jovens mas, mesmo assim, não me parece que pais e filhas, especialmente sendo polícias... Dei um gritinho: - Paul! - E a fumar aqueles cigarros doces, também - acrescentou no mesmo tom pensativo. - Do tipo que costumavam ter nos clubes de jazz antigamente. Olhei para ele com admiração. - Paul, mas isso é quase inteligente. Encolheu os ombros modestamente. - Andei a fazer perguntas. Sabia que havia de descobrir alguma coisa mais cedo ou mais tarde. - Fez uma pausa. - É por isso que me demorei um bocadinho - acrescentou. - Não tinha a certeza de conseguir convencer o Louis a ir lá ver com os próprios olhos. Abri a boca de espanto. - Foste buscar o Louis? Enquanto eu estava lá fora à espera?


245 O Paul anuiu com a cabeça. - Fingi que me tinham roubado a carteira no bar. Queria que ele visse com os olhos bem abertos. - Outra pausa. - A filha dele estava a beijar o Dessanges, o que também ajudou explicou. - Paul - declarei -, podes babar-te em cima de todas as alcatifas de casa se quiseres. Tens a minha permissão total. - Preferia que me deixasses babar-me em cima de ti - disse o Paul, sorrindo exageradamente matreiro. - Seu velho atrevido. 246 5.

Quando o Luc voltou à rulote na manhã seguinte, encontrou o Louis à espera dele. O gendarme estava fardado, o seu rosto, habitualmente vago e agradável, com uma expressão de indiferença quase militar. Na relva, ao lado da rulote, estava um objecto parecido com um carrinho de bebé. - Anda ver - disse-me o Paul da janela. Deixei o fogão, onde o café começava a ferver. - Observa bem. A janela estava entreaberta e podia sentir o cheiro da névoa fumegante do Loire quando rebolava nos campos. Um cheiro tão nostálgico como folhas a arder. - Hé, lá! - Do sítio onde estávamos, a voz do Luc era perfeitamente nítida, e ele andava com a confiança despreocupada de quem se sabe irresistível. O Louis Ramondin


limitou-se a olhar para ele, impassível. - O que é aquilo que ele tem ali? - perguntei baixinho ao Paul, com um gesto para a máquina na relva. O Paul sorriu. - Vê - aconselhou-me. - Olá, tudo bem? - O Luc levou a mão ao bolso para tirar as chaves. - Deve estar com pressa de tomar o pequeno-almoço, hein? Já está à espera há muito tempo? O Louis continuava a olhar para ele sem dizer nada. - Oiça só - o Luc fez um gesto largo. - Panquecas, salsichas, ovos e bacon à l'anglaise. Le breakfast Dessanges. Mais um bule do meu café mais forte, mais poderoso, o meu café noirissime, porque posso ver que teve uma noite difícil. 247 - Riu-se. - O que é que aconteceu, hein? Rusga ao bazar da igreja? Alguém a molestar uma ovelha local? Ou foi ao contrário? O Louis continuava sem dizer nada. Permanecia completamente imóvel, como um polícia de brinquedo, uma mão apoiada na engenhoca na relva. O Luc encolheu os ombros e abriu a rulote. - Aposto que ficará mais eloquente depois de provar o meu pequeno-almoço Dessanges. Observámos a cena por uns momentos enquanto o Luc abria o toldo e punha cá fora a tenda e os galhardetes que publicitavam os seus menus diários. O Louis permaneceu solidamente ao lado da rulote, parecendo não reparar. De vez em quando, o Luc voltava a dizer qualquer coisa animada ao polícia. Passado um tempo ouvimos a música no rádio. - De que é que ele está à espera? - perguntei impaciente. Por que é que não diz nada? O Paul sorriu. - Dá-lhe tempo - aconselhou. - Os Ramondins nunca foram de compreensão rápida, mas quando desatam... O Louis esperou uns bons dez minutos. O Luc estava ainda


alegre mas um pouco espantado, e praticamente desistira de tentar conversar. Começara a aquecer as placas para as panquecas, o chapéu de papel atirado garbosamente para trás. Então, finalmente, o Louis moveu-se. Não muito; dirigiu-se simplesmente à parte traseira da rulote com o seu carrinho e desapareceu. - Mas afinal que raio de coisa é aquela? - perguntei. - Um macaco hidráulico - respondeu o Paul ainda a sorrir. Usam-nos nas garagens. Olha. E, enquanto olhávamos, a rulote dos petiscos começou a inclinar-se para a frente, muito devagar. Quase imperceptivelmente no início, depois com um súbito solavanco que fez com que o Dessanges saísse da sua cozinha mais depressa que um furão. Parecia zangado, mas também parecia assustado, apanhado de surpresa pela primeira vez desde que chegara; aquele olhar desorientado agradou-me bastante. - Mas que raio é que pensa que está a fazer? - gritou meio-incrédulo para o Ramondin. - O que é isto? Silêncio. Vi a rulote inclinar-se outra vez, só um bocadinho. O Paul e eu esticámos o pescoço para ver o que estava a acontecer. O Luc deu uma breve vista de olhos à rulote para se certificar de que não estava danificada. O toldo pendia retorcido, e a tenda inclinava-se, embriagada, como uma cabana na areia. Vi o olhar calculista regressar-Lhe ao rosto, o olhar directo e cuidadoso de um homem que não só tem ases nas mangas, como acha que é dono do baralho inteiro. - Assustou-me, lá isso assustou-me - disse naquela voz alegre e incansável. - Enganou-me bem enganado. Surpreendeu-me, por assim dizer... Não ouvimos nada da parte do Louis, mas pareceu-me ver a rulote inclinar-se um pouco mais. O Paul achou que da janela do quarto se via a parte de trás do veículo, e por isso mudámo-nos para lá. As vozes deles eram fracas mas


audíveis no ar fresco da manhã. - Vá lá - pediu o Luc, agora claramente nervoso. - Acabou a brincadeira ok? Volte a pôr a rulote como deve ser e faço-lhe o meu pequeno-almoço especial. Oferta da casa. O Louis olhou para ele. - É para já, senhor Dessanges disse em tom agradável, mas a rulote voltou a inclinar-se um pouco mais e o Luc fez um gesto rápido como para a segurar. - Se fosse a si, afastava-me, senhor Dessanges - sugeriu o Louis com suavidade. - Não me parece que esteja muito estável. - A rulote inclinou-se ainda mais. - Mas o que é que julga que está a fazer? - a voz zangada do Luc... O Louis só sorria. - Esteve muito vento ontem à noite observou gentilmente, carregando mais uma vez na manivela do macaco. - Houve uma série de árvores que caíram ao pé do rio. Vi o Luc retesar-se. A raiva tornava-o deselegante, a cabeça em espasmos como a de um galo a preparar-se para a luta. Era mais alto que o Louis, mas bastante menos forte. O Louis, baixo e corpulento, passara a vida a meter-se em brigas. Aliás, foi por isso que se tornou polícia. O Luc deu um passo em frente. - Largue já esse macaco - disse em voz baixa e ameaçadora. O Louis sorriu. - É para já, senhor Dessanges. Como queira. Vimos tudo numa espécie de câmara lenta. A rulote, precariamente equilibrada na parte da frente, descaiu para trás quando o Louis retirou o macaco. Houve um estrondo quando o conteúdo da cozinha - pratos, copos, talheres, panelas foram súbita e violentamente deslocados e arremessados para o outro lado da rulote num salpico de louça partida. 248 - 249


A rulote continuou a mover-se para trás num arco indolente, impulsionada pelo seu próprio movimento e pelo peso da mobília deslocada. Durante um segundo pareceu que ia endireitar-se. Depois tombou, lenta e quase pesadamente para o lado na relva, com um estrondo que fez tremer a casa e as chávenas do aparador da sala, tão violento que pudémos ouvi-lo do nosso quarto. Os dois homens entreolharam-se por momentos, o Louis com uma expressão de simpatia e preocupação, o Luc com um ar de incredulidade e uma fúria crescente. A rulote ficou deitada de lado na relva alta, um tilintar de coisas partidas abrandando suavemente no seu interior. - Oops! - disse o Louis. O Luc atirou-se a ele furioso. Durante um segundo só vimos braços e punhos pelo ar sem conseguirmos distinguir nada. Depois o Luc estava sentado na relva com as mãos na cara, e o Louis ajudava-o a levantar-se, com aquela sua expressão de gentileza. - Então, senhor Dessanges, o que é que lhe aconteceu? Sentiu-se mal, foi? É do choque, é perfeitamente natural. Pronto, acalme-se. Mas o Luc já não conseguia conter a raiva. - Fazes-a-puta-da-ideia do que fizeste, seu atrasado mental? - As palavras não se percebiam com clareza porque o Luc ainda tinha as mãos na cara. Mais tarde o Paul disse-me que vira o Louis dar-lhe uma cotovelada bem apontada ao nariz, mas tudo se passou depressa de mais para mim. O que foi pena. Gostava de ter visto. - O meu advogado vai adorar lidar consigo! Merda! Estou a deitar sangue por todos os lados. - Engraçado como agora


podia ouvir-se a parecença familiar, mais evidente que antes. Qualquer coisa na maneira como acentuava certas sílabas; o guinchinho contrariado de menino de cidade mimado a quem nunca ninguém recusou nada. Era tal e qual a irmã. O Paul e eu descemos ao andar de baixo e saímos para ver o espectáculo de perto - não aguentávamos nem mais um minuto dentro de casa. O Luc já estava de pé, menos atraente agora, com sangue a pingar-lhe do nariz e os olhos lacrimejantes. Notei que tinha caca de cão numa das suas caras botas parisienses. Estendi-lhe um lenço. Ele olhou-me desconfiado e aceitou-o. Começou a limpar o sangue do nariz. Ainda não tinha percebido o que se passara; estava pálido, mas tinha uma expressão teimosa de quem quer continuar a briga, a expressão de quem tem advogados e conselheiros e amigos com conhecimentos, prontos a acudirem-lhe. - Viram o que aconteceu, não viram? - gritou. - Viram o que o estupor me fez, não viram? - Olhou para o lenço ensanguentado com uma certa incredulidade. - Viram os dois que ele me bateu, não viram? - insistiu. - Em plena luz do dia. Podia processá-lo por cada cêntimo de prejuízo. O Paul encolheu os ombros. - Não, não vi bem o que aconteceu - disse lentamente. - Sabe, é que nós, velhotes, já não vemos tão bem como costumávamos. E também ouvimos muito mal. - Mas estavam a ver - insistiu o Luc. - Só podem ter visto. - Apanhou-me com risinhos e os seus olhos semicerraramse.Ah, estou a perceber - disse, desagradável. - Então é assim. Pensaram que podiam pôr aqui o vosso gendarme de estimação a intimidar-me, é isso? - Olhou para o Louis. - Se isto é o melhor que conseguiram arranjar... - e apertou o nariz para tentar parar a hemorragia.


- Não acho que seja necessário estar com acusações - disse o Louis. - Ai não? Esperem até o meu advogado... O Louis interrompeu-o. - É natural que esteja irritado. Não deve ser nada agradável chegar aqui e ver que o vento derrubou o seu café. É perfeitamente compreensível que tenha perdido a cabeça. O Luc olhou para ele, incrédulo. - Sim, foi uma noite terrível - ajudou o Paul. - A primeira tempestade de Outubro. Mas de certeza que o seguro lhe paga os estragos. - Claro, era inevitável - disse eu. - Um veículo desta altura, aqui, na berma da estrada. Até me espanta que não tenha acontecido antes. O Luc acenou a cabeça. - Estou a ver - disse calmamente.Nada mau, Framboise. Nada mau. Estou a ver que trabalhou bem. Mas mesmo sem a rulote, sabe bem que isto não acaba aqui. Não senhora, isto não acaba aqui. - Tentou um sorriso, depois retraiu-se e voltou a levar o lenço ao nariz. - O melhor é dar-lhes o que eles querem - continuou no mesmo tom quase sedutor. - Hé, Mamie. Que é que diz? 250 - 251 Não tenho a certeza do que teria respondido. Sentia-me esquisita ao olhar para ele. Tinha esperado que ele desistisse, mas naquele momento parecia mais determinado do que nunca, o rosto fechado e expectante. Tinha jogado o meu melhor trunfo, o nosso melhor trunfo - meu e do Paul -, e mesmo assim o Luc parecia invencível. Como crianças a tentar parar um rio, tivéramos o nosso momento de triunfo - aquela


cara de desorientação; quase que valera a pena só por isso -, mas no fim, por muito bravo que seja o esforço, o rio ganha sempre. O Louis passara a infância no Loire, como nós, pensei. Ele devia ter adivinhado. A única coisa que tínhamos conseguido foi criar-lhe problemas a ele também. Imaginei um exército de advogados, conselheiros, polícia - os nossos nomes nos jornais, o nosso segredo revelado. Senti-me cansada. Tão cansada. Então vi a cara do Paul. Estava a sorrir, aquele seu sorriso lento e doce que o faria parecer meio-estúpido se não fosse o brilho confiante dos olhos. Puxou o boné para baixo, para a testa, num gesto que era ao mesmo tempo cómico e heróico, parecia o cavaleiro mais velho do mundo a baixar a viseira para o combate final. Senti uma doida e enorme vontade de rir. - Acho que podemos, hum, resolver as coisas - disse. Talvez aqui o nosso Louis se tenha excedido um pouco. Os Ramondins são assim, hum, ofendem-se com facilidade. Estálhes no sangue. - Sorriu apologético, virou-se para o Louis. Lembras-te daquela história com o Guilherm? Ele era o quê? Irmão da tua avó? - O Dessanges ouvia, com uma irritação e um desprezo crescentes. - Do meu avô - corrigiu. O Paul acenou. - Pois é. Sangue quente, os Ramondins. Todos eles. - Estava novamente a deslizar para o dialecto, uma das coisas que a mãe sempre detestou nele, isso e a gaguez, e o sotaque estava agora mais acentuado do que alguma vez eu me lembrava nos velhos tempos. - Lembro-me daquela noite em que lideraram o povo contra a quinta, o velho Guilherm à frente, com a sua perna de pau, e tudo por causa daquela história no La Mauvaise Réputation. Parece que aquele lugar continua com má reputação depois destes anos todos. O Luc encolheu os ombros. - Oiçam, adoraria ficar aqui a


ouvir a selecção de hoje dos Estranhos Contos da Província de Há Muito Tempo, mas o que realmente gostaria... - Foi aquele rapazote que começou tudo - continuou o Paul, inexorável. - Parecido consigo, por acaso. Um homem da cidade, hein, do estrangeiro, que achava que podia fazer o que queria do povo ignorante do Loire. Olhou de relance para mim como se procurasse um barómetro emocional no meu rosto. - Mas teve um final infeliz, não foi? - Muito infeliz - disse eu. - Não podia ter sido pior. O Luc observava-nos a ambos, os olhos atentos. - Ai sim? Acenei afirmativamente. - Ele também gostava de raparigas novas - disse numa voz que até a mim me soou sombria e distante. - Enganava-as, fazia-lhes falsas promessas. Usava-as para obter informação. Hoje em dia seria corrupção. - É claro que, naquele tempo, a maioria das raparigas não tinham pais - disse o Paul com brandura. - Por causa da guerra. Vi uma luzinha de compreensão acender-se nos olhos do Luc. Acenou ligeiramente com a cabeça. - Isto tem a ver com o que aconteceu ontem à noite, não tem? Ignorei a pergunta. - És casado, não és? - perguntei-lhe. O Luc acenou de novo. - Seria uma pena se a tua mulher tivesse de ser envolvida nesta história - continuei. - Corrupção de menores, assunto feio. Não sei como poderíamos evitar o envolvimento dela. - Essa nunca vai pegar - disse logo o Luc. - A rapariga não... - A rapariga é minha filha - disse o Louis simplesmente. Ela dirá e fará o que achar acertado. O Luc assentiu uma vez mais. Sabia manter a calma, lá isso é verdade. - Muito bem - disse por fim, conseguindo até um pequeno sorriso. - Muito bem. Já percebi. - Apesar de tudo, estava descontraído; estava pálido de raiva, não de medo. Olhou de frente para mim, a boca torcida num trejeito sarcástico. - Espero que a vitória tenha valido a pena, Mamie - disse


enfaticamente. - Porque amanhã vai precisar de toda a ajuda que conseguir arranjar. Porque amanhã o seu segredinho vai estar espalhado por todos os jornais e revistas do país. Só preciso de fazer uns telefonemas e vou andando. 252 - 253 Afinal, têm sido uns dias realmente muito aborrecidos, e se aqui o vosso amigo acha que a cabra da filhinha dele contribuiu para alegrar a festa... - Calou-se para se voltar para o Louis com um sorriso maldoso, mas em vez disso abriu a boca de espanto ao ver que o polícia estava a pôr-lhe as algemas, primeiro num pulso e depois no outro. - O que é isto? - perguntou incrédulo e quase a rir. - Mas que merda é esta agora? Quer acrescentar rapto à lista das minhas acusações contra si? Mas o que é isto? O Oeste Selvagem? O Louis olhou para ele, sério. - Tenho o dever de o avisar, senhor Dessanges, que não toleramos comportamentos violentos e abusivos, e que é o meu dever... - O quê? - O Luc estava quase a gritar. - Que comportamento violento? Você é que me agrediu! Não pode... O Louis olhou para ele, repreensivo. - Senhor Dessanges, dado o seu comportamento agitado, sou levado a concluir que se encontra provavelmente sob o efeito do álcool ou qualquer outra substância tóxica, e por isso, para sua própria segurança, é meu dever mantê-lo sob vigilância. - Está-me a prender? - perguntou o Luc, incrédulo. - Quais são as acusações? - Por enquanto nenhumas, senhor Dessanges, a não ser que me obrigue. Mas tenho a certeza de que estas duas testemunhas estarão dispostas a confirmar o seu comportamento violento e abusivo, linguagem ameaçadora e conduta inapropriada -


acenou na minha direcção. - Vou ter de lhe pedir que me acompanhe até à esquadra. - Não há nenhuma porra de esquadra neste sítio de merda! gritou o Luc. - O Louis costuma utilizar a cave da casa dele para deter os casos de intoxicação e conduta violenta - disse o Paul calmamente. - É verdade que há muito tempo que não temos disso. Acho que o último foi quando o Guguste Tinon perdeu a cabeça, há cinco anos atrás. - Mas eu tenho uma cave que está completamente à sua disposição, Louis, se acha que ele corre perigo de desmaiar ou assim a caminho da aldeia - sugeri brandamente. - A porta tem um cadeado forte e não há lá nada com que ele se possa magoar. 254 O Louis pareceu considerar a minha oferta. - Obrigado, veuve Simon - disse por fim. - Acho que é capaz de ser o melhor. Pelo menos até eu decidir o que fazer a seguir. - Olhou para o Dessanges, que estava agora pálido de raiva e não só. - Vocês são doidos, todos - disse baixinho. - Claro que primeiro tenho de o revistar. Não nos podemos arriscar a que pegue fogo à casa ou qualquer coisa do género. Importa-se de esvaziar os bolsos, por favor? O Luc abanou a cabeça. - Não posso acreditar - disse. - Peço desculpa - insistiu o Louis -, mas tenho mesmo de lhe pedir que esvazie os bolsos. - Então peça à vontade! - respondeu o Luc, mal-humorado. Não faço ideia do que esperam conseguir com tudo isto, mas quando o meu advogado souber... - Eu ajudo - sugeriu o Paul. - Afinal, com as mãos algemadas não é fácil chegar aos bolsos. Movia-se com rapidez apesar do ar desajeitado, as mãos de


caçador furtivo esquadrinhando as roupas do Luc e extraindo-lhes o conteúdo - um isqueiro, papéis para enrolar tabaco, as chaves do carro, a carteira, um pacote de cigarros. O Luc debatia-se em vão, praguejando. Olhou em volta, como se esperasse ver alguém a quem pudesse pedir ajuda, mas a rua estava deserta. - Uma carteira - disse o Louis, examinando os objectos um a um. - Um isqueiro, prateado; um telemóvel. - Abriu o pacote de cigarros e despejou o seu conteúdo na palma da mão. Vi então na mão do Louis qualquer coisa que não reconheci. Um bloco irregular de qualquer coisa acastanhada como um caramelo velho. - O que será isto? - perguntou o Louis com brandura. - Vá-se foder! - gritou o Luc. - Isso não é meu! Meteram isso nas minhas coisas, seu cabrão! - Isto era dirigido ao Paul, que lhe devolveu um olhar de puro espanto e incompreensão. - Isso nunca será aceite como... - Talvez não - disse o Louis com indiferença. - Mas vale a pena tentar, não acha? 255 6. O Louis deixou Dessanges na cave, como prometera. Podia detê-lo durante vinte e quatro horas, disse-nos, antes de ser obrigado a acusá-lo oficialmente. Com um olhar de curiosidade e uma cuidadosa falta de expressão na voz, explicou-nos que tínhamos esse tempo para concluir o nosso assunto. Bom rapaz, o Louis Ramondin, apesar de lento. Demasiado parecido com o tio-avô Guillerm, no entanto, e acho que foi isso que ao


princípio me impediu de ver nele a essência da sua bondade. Só esperava que ele não se arrependesse do que estava a fazer por nós. Ao princípio o Dessanges gritou e revirou-se na cave. Exigia o seu advogado, o telefone, a irmã Laure, os cigarros. Dizia que lhe doía o nariz, que estava partido, que o mais provável era naquele preciso momento haver estilhaços de osso a dirigirem-se para o cérebro. Deu pontapés na porta, implorou, ameaçou e blasfemou. Ignorámo-lo, e passado um tempo o barulho parou. Ao meio-dia e meia levei-lhe café e um prato com pão e charcuterie; estava amuado mas calmo e tinha de novo nos olhos aquele brilho calculador. - Está simplesmente a adiar o inevitável, Mamie - disse-me enquanto lhe cortava umas fatias de pão. - Só tem vinte e quatro horas porque, já sabe, assim que eu fizer o meu telefonema... - Queres comer ou não? - interrompi-o bruscamente. - Porque não te fazia mal nenhum passar fome durante um tempo, e assim eu não tinha de voltar a ouvir a tua voz desagradável. Está bem? Deitou-me um olhar mal-encarado mas não disse mais nada. - Perfeito - disse eu. 256 7. Durante o resto da tarde o Paul e eu fingimos trabalhar. Era domingo e o restaurante estava fechado, mas ainda havia trabalho a fazer no pomar e no quintal. Cavei, podei e apanhei ervas daninhas até os meus rins não poderem mais e o suor


me desenhar círculos nas axilas. O Paul observava-me de dentro de casa, sem saber que também eu o observava a ele. Aquelas vinte e quatro horas picavam-me e faziam-me comichão como urtigas. Sabia que devia fazer alguma coisa, mas estava para além da minha capacidade decidir o que podia fazer em vinte e quatro horas. Um Dessanges estava fora de acção pelo menos temporariamente -, mas os outros estavam ainda livres e cheios de malícia como sempre. E havia pouco tempo. Fui várias vezes à cabina telefónica em frente aos correios, inventando coisas para fazer na aldeia só para estar mais perto do telefone, e uma vez cheguei mesmo a marcar o número, mas desliguei antes de alguém atender porque me dei conta de que não fazia a menor ideia do que dizer. Para onde olhasse, parecia que só via à minha frente a mesma terrível verdade, o mesmo terrível conjunto de alternativas. O Velho, com aquela boca aberta brilhando dos anzóis, os olhos vítreos de raiva, eu a puxar contra aquela horrível pressão, a lutar como um vairão no fim de uma linha, como se o lúcio fosse uma parte indesejada de mim e fosse eu própria que me debatia tentando fugir, como se fosse uma parte sombria do meu coração contorcendo-se e revirando-se na linha como se fosse uma terrível pescaria secreta... 257 Tinha duas hipóteses. Podia imaginar que tinha mais - que Laure Dessanges podia prometer desistir de tudo em troca da liberdade do irmão -, mas a parte profunda e prática da minha ment sabia que isso não ia resultar. Tínhamos ganho uma única


coisa até então - tempo - e sentia agora o nosso prémio a escapar-me por entre os dedos segundo a segundo. Se não conseguisse decidir como usar o tempo que me restava, a predição do Luc - "Amanhã o seu segredinho vai estar espalhado por todos os jornais e revistas do país" - tornar-se-ia realidade e perderia tudo: o restaurante, a quinta, o meu lugar em Les Laveuses... A única alternativa era uti lizar a verdade como arma. Mas apesar de assim poder talvez reaver o meu restaurante e a minha casa, era impossível prever o efeito que isso teria sobre a Pistache, a Noisette ou o Paul. Rangi os dentes, frustrada. Nunca ninguém devia ter de fazer uma tal escolha, lamuriei-me. Ninguém. Comecei a cavar com tanta força e tão cegamente no canteiro das chalotas que a enxada apanhou tudo, ervas daninhas e bolbos quase bons para apanhar. Limpei o suor da cara e reparei que estava a chorar. Não devia nunca ser exigido a ninguém que escolhesse entre uma vida e uma mentira. E contudo ela escolhera, Mirabelle Dartigen, a mulher da fotografia com as suas falsas pérolas e sorriso tímido, a mulher das maçãs do rosto salientes e cabelo puxado para trás. Desistira de tudo, tudo - a quinta, o pomar, o pequeno ninho que construíra para si mesma, o seu desgosto, a verdade -, enterrara tudo sem sequer olhar para trás e seguiu em frente. Falta uma coisa só no álbum dela, tão cuidadosamente cotejada e referenciada, uma coisa que ela não poderia ter escrito porque nunca poderia ter sabido. Falta um único facto para completar a nossa história. Um facto. Se não fosse pelo Paul e pelas minhas filhas, pensei, contaria tudo. Nem que fosse só por despeito, para roubar à Laure o seu triunfo. Mas ali estava o Paul, tão calado e pouco exigente, tão humilde no seu silêncio que conseguia quebrar as


minhas defesas antes mesmo de eu dar por isso. O Paul, sempre objecto de gozo com a sua gaguez e o seu puído fato-macaco azul; o Paul, com as suas mãos de caçador furtivo e o seu sorriso fácil. 258 Quem diria que seria o Paul, depois de tantos anos? Quem diria que, depois de tantos anos, eu voltaria a encontrar o caminho para casa? Quase telefonei várias vezes. Encontrei o número numa das minhas revistas antigas. Afinal, há anos que Mirabelle Dartigen estava morta. Não havia necessidade de a içar do fundo do estranho poço do meu coração como o Velho numa linha de pesca. Uma segunda mentira não iria mudar nada, pensei. E revelar a verdade agora também não ia adiantar nada. Mas Mirabelle Dartigen é uma mulher teimosa, mesmo depois de morta. Posso senti-la e ouvi-la ainda agora, como fios a abanarem num dia ventoso - aquele som confuso e estridente é tudo o que me lembro dela. Não interessa nunca ter sabido como realmente a amava. O amor dela, esse segredo frio como o gelo, arrasta-me com ele para a escuridão. E mesmo assim. Não estaria certo. Ouço a voz do Paul dentro de mim, implacável como o rio. Não estaria certo viver uma mentira. Desejei não ter de escolher. 259 8.


O sol estava quase a pôr-se quando ele veio ter comigo. Tinha estado a trabalhar no quintal tanto tempo que todos os meus ossos me doíam. Tinha a garganta seca e cheia de anzóis. Sentia-me zonza. Ainda assim, virei-Lhe as costas e ele deixou-se ficar ali atrás de mim sem dizer nada, sem precisar de dizer nada, à espera, a fazer tempo. - O que é que queres? - censurei-lhe por fim. - Pára de olhar para mim, por amor de Deus, e faz qualquer coisa de útil. O Paul continuou sem dizer nada. Sentia a nuca a arder. Por fim virei-me, atirei a enxada para longe e desatei a gritar com a voz da minha mãe. - Meu cretino! Por que é que não te afastas de mim? Velho idiota! - Queria magoá-lo, acho. Teria sido mais fácil se conseguisse magoá-lo, se conseguisse que ele se afastasse de mim furioso ou com dor, mas ele enfrentou-me - engraçado, e eu que sempre pensara que era melhor que ninguém nesse jogo - com uma paciência infinita, sem se mexer, sem falar, à espera que eu acabasse o que tinha a dizer para poder falar então. Desviei o olhar com ferocidade, com medo das palavras dele e da sua terrível paciência. Até que o Paul quebrou por fim o silêncio: - Fiz jantar para o nosso convidado - disse por fim. Talvez queiras também. Abanei a cabeça. - A única coisa que quero é que me deixem em paz - respondi. 260 Ouvi o Paul suspirar atrás de mim. - Ela era exactamente assim. A Mirabelle Dartigen. Nunca aceitava a ajuda de ninguém. Não, nem dela própria. - O tom dele era calmo e pensativo. - És muito parecida com ela, sabes. Demasiado parecida com ela para o teu bem, ou para o bem dos outros.


Mordi a língua para não lhe dar uma resposta bruta e não olhei para ele. - Foi a teimosia dela que afastou as pessoas - continuou o Paul. - Nunca soube que a poderiam ter ajudado se ela tivesse dito alguma coisa. Mas ela nunca disse nada, pois não? Nunca disse nada a ninguém. - Acho que não podia. Há coisas que não se consegue dizer. Simplesmente... não se consegue. - Olha para mim - pediu o Paul. À última luz do sol poente, a cara dele parecia rosada e jovem apesar das rugas e do bigode manchado de nicotina. Por trás dele o céu estava vermelho-vivo, com nuvens. - Chega uma altura em que alguém tem de dizer alguma coisa. Não ando a ler o diário da tua mãe este tempo todo para nada e, penses tu o que pensares, não sou tão estúpido assim. - Desculpa. Não era isso que eu queria dizer. O Paul abanou a cabeça, minimizando aquilo. - Eu sei. E sei que não sou inteligente como tu ou como o Cassis, mas parece-me que são sempre os mais espertos que se perdem mais depressa. - Sorriu e bateu com o dedo na cabeça. - Pensam demasiado aqui - disse com gentileza. - Demasiado. Olhei para ele. - Não é a verdade que magoa, sabes - continuou. - Se ela tivesse percebido isso, talvez nada disto tivesse acontecido. Se ela tivesse pedido ajuda em vez de continuar sozinha à maneira dela como sempre fez... - Não - respondi com convicção. - Não percebes. Ela nunca soube a verdade. Ou, se soube, escondeu-a, até de si mesmo, Por nós. Por mim. - Sentia-me a sufocar agora, sentia subir em mim o sabor amargo e conhecido que me fazia cãibras no estômago. - Não lhe cabia a ela contar a verdade. Cabia-nos a nós. a mim. - Engoli com dificuldade. - Só podia ter sido eu - disse com esforço. 261


- Só eu sabia a verdade toda. Só eu podia ter tido coragem... Parei para olhar para ele outra vez - aquele seu sorriso doce, os ombros descaídos, como os de uma mula que durante muito tempo carregou enormes fardos com paciência e paz de espírito - oh Como eu o invejava. Como o queria. - Tu tens coragem - disse o Paul por fim. - Sempre tiveste. Olhámos um para o outro. Silêncio entre nós. - Está bem - concedi. - Solta-o. - Tens a certeza? As drogas que o Louis encontrou no bolso dele... Dei uma gargalhada que me pareceu estranhamente descontraída na minha boca seca. - Sabemos ambos perfeitamente que não havia drogas nenhumas. Uma invenção inocente, é tudo, que tu lhe puseste nos bolsos quando o revistaste. - Ri-me de novo ao ver o ar de surpresa dele. - Dedos de caçador furtivo, Paul, mãos de caçador furtivo. Pensas que és o único que desconfia de tudo? O Paul acenou com a cabeça. - E o que é que vais fazer?perguntou. - Assim que ele contar à Laure e ao Yannick... Abanei a cabeça. - Deixá-lo dizer. - Sentia-me leve por dentro, mais leve do que nunca, leve como uma pena. Senti uma enorme vontade de rir, o riso de uma louca prestes a deitar ao vento tudo o que possui. Pus a mão no bolso do avental e tirei de lá o pedaço de papel com o número de telefone. Depois, pensando melhor, fui buscar a minha agenda. Depois de procurar durante uns momentos, encontrei a página que queria. - Acho que agora já sei o que fazer - disse-lhe. 262


9. Lafoutis de maçã e alperces secos. Bater os ovos e a farinha com o açúcar e a manteiga derretida até obter uma consistência espessa e cremosa. Juntar o leite a pouco e pouco, sem deixar de bater. A consistência final deve ser de uma massa fina. Untar generosamente um prato com manteiga e juntar a fruta cortada à massa. Juntar canela e outras especiarias e levar ao forno a uma temperatura média. Quando o bolo começar a crescer, polvilhar com açúcar mascavado e pôr manteiga. Está pronto quando a parte de cima estiver estaladiça e firme ao toque. Fora uma colheita pobre. A seca, seguida pelas chuvas calamitosas, foram as causas óbvias. E, contudo, o festival das colheitas no fim de Outubro era algo que todos esperávamos ansiosamente, até a Reine, até a mãe, que fazia os seus bolos especiais e deixava no parapeito das janelas taças cheias de fruta, amassando pão em formas extravagantes e com uma intricada beleza - uma espiga de milho, um peixe, um cesto de maçãs - para vender no mercado de Angers. A escola da aldeia fechara no ano anterior quando o professor se mudara para Paris, mas a catequese continuava. Nesse dia, todos os alunos da catequese se reuniam à volta da fonte - pagãmente decorada com flores, fruta e coroas de milho, abóboras e cabaças ocas pintadas às cores e transformadas em lanternas -, vestidos com as suas melhores roupas, com velas nas mãos e a cantar. A celebração continuava


na igreja, onde o altar estava coberto com verde e dourado, 263 e os hinos, que ressoavam pela praça onde ficávamos a ouvi-los, tentados pelo engodo de coisas proibidas, tratavam da ceifa dos eleitos e da queima do restolho. Esperávamos até a missa acabar e juntávamo-nos aos outros nas celebrações enquanto o curé ficava na igreja para ouvir as confissões e as fogueiras ardiam num fumo doce nos cantos dos campos agora vazios. Era então que começava a feira. A feira das colheitas, com lutas e corridas e todo o tipo de competições - dança, corrida à maçã, quem comia mais panquecas, corridas em sacos - e eram distribuídos pãezinhos quentes de gengibre e cidra aos vencedores e aos perdedores. Ao pé da fonte vendiam-se cestos de fruta e produtos caseiros enquanto a Rainha da Colheita se sentava no seu trono amarelo, inundando os passantes com flores. Naquele ano a festa apanhou-nos despercebidos. Normalmente esperávamos a feira ansiosamente, mais do que o Natal, porque naquele tempo havia poucos presentes e Dezembro não é boa altura para celebrar. Mas Outubro, fugaz e exalando vigor com a sua luz de um vermelho-dourado e as suas neves prematuras e folhas brilhantes, é diferente, um tempo mágico, um último desafio jovial face ao frio que se aproxima. Nos outros anos, por aquela altura tínhamos já o monte de lenha e folhas secas preparado e resguardado, os colares de pêros preparados e sacos cheios de nozes, as nossas melhores roupas passadas a ferro e os sapatos engraxados para a dança. Talvez tivesse havido uma celebração especial no Posto de Vigia, com grinaldas na Pedra do Tesouro e corolas escarlates deitadas ao


rio; teríamos cortado pêras e maçãs e posto as fatias a secar no forno; haveria por toda a casa decorações feitas com folhas de milho entrançadas em diversas formas e em bonecos para dar sorte; teríamos já planeadas várias partidas a pregar e barrigas rugindo numa expectativa esfomeada. Mas naquele ano houve pouco disso. A amargura causada por aquela noite no La Mauvaise Réputation iniciara a nossa descida e depois disso tinham sido as cartas, os boatos, os escritos no galinheiro, os cochichos pelas nossas costas e os silêncios bem-educados nas nossas caras. Todos assumiram que não podia haver fumo sem fogo. As acusações - PUTA NAZI, pintado a vermelho na parede do galinheiro vezes sem conta, apesar das nossas tentativas de apagarmos logo aquilo -, juntamente com a recusa da mãe em admitir ou negar a verdade dos boatos e com as histórias das suas visitas ao La Rép, exageradas e avidamente passadas de boca em boca, foram suficientes para afiar ainda mais as suspeitas. Nesse ano, o tempo das colheitas foi uma altura difícil para a família Dartigen. Os outros construíram as suas fogueiras e debulharam o milho. As crianças andavam por todo o lado a verificar que nem um grão era desperdiçado. Nós apanhámos as nossas últimas maçãs - as que não tinham apodrecido por causa das vespas, claro - e guardámo-las em tabuleiros na cave, separadas umas das outras para evitar que o apodrecimento se espalhasse. Foi também na cave que guardámos os legumes, em caixotes e debaixo de uma cobertura de terra seca solta. A mãe até preparou algum do seu pão especial, apesar de haver pouco mercado em Les Laveuses para os produtos dela, e vendeu-o, imperturbável, em


Angers. Lembro-me de que levámos um carrinho cheio de pães e bolos para vender no mercado de Angers, de como o sol brilhava sobre as côdeas lustrosas - bolotas, ouriços-cacheiros, pequenas caretas sob a forma de máscaras - como sobre uma superfície de carvalho polido. Algumas das crianças da aldeia recusavam-se a falar-nos. Um dia, a caminho da escola, alguém que estava atrás de uma tamargueira junto do rio atirou bocados de terra à Reine e ao Cassis. Com o aproximar da data da feira, as raparigas começavam a elogiarem-se, a pentear o cabelo com um cuidado especial e a lavar a cara com flocos de aveia porque no dia do festival uma delas seria escolhida Rainha da Colheita e usaria a coroa de trigo e levaria o jarro de vinho. A mim, isso era-me completamente indiferente. Com o meu cabelo curto e escorrido e a minha cara de sapo, nunca seria eleita. Além do mais, sem o Tomas, nada tinha interesse algum. Passava os dias a pensar se alguma vez voltaria a vê-lo. Sentava-me junto do Loire com as minhas armadilhas e a cana de pesca e ficava ali a observar. Não podia deixar de acreditar que, se conseguisse apanhar o lúcio, o Tomas voltaria. 264 - 265 10. O Dia da Colheita amanheceu límpido e frio, com o brilho cinza tão peculiar de Outubro. A mãe ficara acordada toda a noite, mais por teimosia do que por amor à tradição, a preparar pão de gengibre e panquecas de trigo-sarraceno e doce


de amoras silvestres que pôs dentro de cestos e nos deu para levar para a feira. Eu não planeava ir. Portanto, ordenhei a cabra e acabei as minhas poucas tarefas de domingo e dirigime para o rio. Tinha posto uma armadilha particularmente engenhosa ao pé da margem, uma série de caixas e bidões atados com arame e cheio de engodo de restos de peixe, e estava ansiosa por a testar. O vento cheirava a relva acabada de cortar e às primeiras fogueiras do Outono, um aroma forte, velho como o tempo, e lembrava épocas mais felizes. Também me senti velha ao atravessar os campos de milho em direcção ao Loire. Senti-me como se tivesse já vivido muitos e muitos anos. O Paul estava à minha espera junto das Pedras Direitas. Não pareceu surpreendido por me ver, desviando brevemente os olhos da rolha que flutuava na ponta da linha de pesca que tinha na mão para poder olhar para mim. - Não vais à f-feira? - perguntou. Abanei a cabeça. Apercebi-me de que não o via desde o dia em que a mãe o correra lá de casa, e senti-me subitamente culpada por me ter esquecido completamente do meu velho amigo. Deve ter sido por isso que me sentei ao lado dele. Não foi de certeza por querer companhia; necessitava de estar sozinha mais do que nunca. 266 - Eu t-também n-não. - Parecia taciturno, algo parecido com mau humor visível na cara franzida, na expressão quase adulta de concentração. - Todos aqueles idiotas a emb-bebedarem-se e


a d-dançarem. Para quê? - Não sei - respondi, hipnotizada pelos remoinhos castanhos do rio. - Vou ver as minhas armadilhas e depois acho que vou ao grande banco de areia. O Cassis diz que ali às vezes há lúcios. Paul olhou para mim, cínico. - Nunca o ap-panharás - disse bruscamente. - Porquê? Encolheu os ombros. - P-porque não. Pescámos juntos durante um bocado, enquanto o sol nos aquecia as costas devagar e as folhas das árvores caíam uma a uma, amarela-vermelha-preta, na superfície sedosa do rio. Ouvimos os sinos da igreja a repicarem docemente ao longe do outro lado dos campos, a assinalar o fim da missa. A feira começaria daí a dez minutos. - Os outros vão? - O Paul retirou uma minhoca do seu cantinho aquecido na bochecha esquerda e espetou-a com destreza no anzol. Encolhi os ombros. - Não me interessa - respondi. No silêncio que se seguiu, ouvi o estômago de Paul roncar ruidosamente. - Tens fome? - Ná. Foi então que ouvi o som tão familiar e esperado vindo da estrada de Angers. Quase imperceptível de início, mas tornando-se cada vez mais alto, como o zumbir de uma vespa sonolenta. Mais alto que o latejar do sangue nas têmporas depois de uma longa corrida através dos campos. O som de uma mota. Uma súbita explosão de pânico. O Paul não o podia ver. Se fosse o Tomas, tinha de estar sozinha e o meu coração dizia-me, com fortes e dolorosas batidas de alegria, que era o Tomas. O Tomas. - Se calhar podíamos ir só dar uma vista de olhos - disse, fingindo indiferença.


O Paul fez um som de descomprometimento. 267 - Vai lá haver pão de gengibre - disse-lhe com manha. - E batata assada e milho-doce tostado e tartes e salsichas nas brasas da fogueira. Ouvi o estômago dele roncar mais alto. - Podíamos tentar chegar à comida sem que nos vissem sugeri. Silêncio. - O Cassis e a Reine vão lá estar. Pelo menos assim esperava. Contava com a presença deles para me poder escapar rapidamente e ir ter com o Tomas. Pensar na proximidade dele, a insuportável e quente alegria que me avassalava só de pensar em vê-lo, era como pedras queimando-me os pés. - E ela, v-vai lá estar? - perguntou baixinho, num tom de ódio que em circunstâncias diferentes me teria surpreendido. Não imaginava o Paul capaz de guardar rancor. Fez uma careta de esforço. - A tua m-m-m... A tua m-m-m... Abanei a cabeça e interrompi-o, mais abruptamente do que queria: - Acho que não. Bolas, Paul, pões-me louca quando fazes isso! O Paul encolheu os ombros, indiferente. Ouvia agora mais claramente o som da mota, já não podia estar longe. Cerrei os punhos com tanta força que as unhas se me enfiaram nas palmas das mãos. - Quer dizer - disse num tom mais meigo -, não tem importância, a sério. Ela não percebe, é só isso. - Mas v-vai lá estar? - insistiu o Paul. Abanei a cabeça e menti. - Não. Ela disse que ia ficar a limpar a casota da cabra esta manhã.


O Paul acenou com a cabeça. - Está bem - disse baixinho. 268 11. O Tomas esperaria no Posto de Vigia mais ou menos uma hora. Não estava frio; esconderia a mota nos arbustos e fumaria um cigarro. Se não visse ninguém por perto, talvez até se arriscasse a dar um mergulho no rio. Se ao fim desse tempo não tivéssemos aparecido, escrevinharia um bilhete, deixando-o talvez juntamente com um pacote de revistas ou doces cuidadosamente embrulhados em folhas de jornal, no Posto de Vigia, no galho em forquilha sob a plataforma. Sabia porque ele já o fizera antes. Tinha tempo para ir até à aldeia com o Paul e depois voltar para trás quando ninguém estivesse a olhar. Não ia dizer ao Cassis nem à Reinette que ele voltara. Senti uma onda de uma alegria ciosa só de pensar nisso, imaginando o sorriso de boas-vindas, um sorriso só para mim. Com essa ideia na cabeça, quase puxei o Paul até à aldeia, a minha mão quente segurando a dele, sentindo o suor a colarme o cabelo à cara. A praça à volta da fonte estava já semicheia. Havia mais gente a sair da igreja - crianças com velas na mão, raparigas com coroas de folhas outonais, uma mão-cheia de rapazes acabados de sair do confessionário e o Guilherm Ramondin entre eles, a comer as raparigas com os olhos antes de ceifar uma nova colheita de pensamentos pecaminosos. Mais, se possível; afinal, aquela era a altura certa e havia poucas outras coisas que merecessem a pena. Vi o Cassis e a Reinette ligeiramente


afastados do resto da multidão. A Reine tinha um vestido de flanela vermelha e um colar de amoras e o Cassis estava a comer um doce açucarado. 269 Ninguém lhes falava e o círculo de vazio que se criara à volta deles era quase palpável. A Reinette deu uma gargalhada alta e aguda como o grito de uma gaivota. A mãe estava a pouca distância deles, a observar, na mão um cesto com bolos e fruta. Tinha um aspecto quase desleixado e o vestido preto e o lenço da cabeça contrastava com as flores e as bandeiras. Senti o Paul encolher-se ao meu lado. Um grupo de pessoas começou a cantar ao lado da fonte. O Raphaèl estava lá, acho, e a Colette Gaudin, o tio do Paul, o Philippe Hourias com um ridículo lenço amarelo ao pescoço, e a Agnès Petit no seu fato domingueiro e uma coroa de amoras. Lembro-me da voz dela elevando-se acima das outras - uma voz pouco treinada mas doce e clara - e senti um arrepio subir-me pelas costas até à nuca, como se o fantasma em que ela em breve se transformaria tivesse prematuramente passado por cima da minha cova. Ainda me lembro da música: A la claire fontaine j'allais me promener J'ai trouvé leau si belle que je my suis baignée Il y a longtemps que je t'aime Jamais je ne toublierai. O Tomas, se era ele na mota, estaria já no Posto de Vigia. Mas o Paul não dava qualquer sinal de querer misturar-se com o


resto das pessoas, não tirava os olhos da minha mãe e não parava de morder o lábio nervosamente. - Tinhas dito que ela não v-vinha. - Era o que eu pensava - respondi. Ficámos ali a observar as pessoas que saíam da igreja para a praça e se punham a comer e a beber. Em cima da borda da fonte havia jarros de vinho e cidra e muitas das mulheres, como a minha mãe, tinham trazido pão e pães de leite para distribuir à saída da igreja. Contudo, notei que a mãe se mantinha à distância dos outros e que poucos iam ter com ela para provar o que ela preparara com tanto cuidado. Mas a cara dela permanecia imperturbável, quase indiferente. Só as mãos a traíam, as suas pequenas mãos brancas segurando nervosamente a pega do cesto. Os lábios eram um risco branco no rosto pálido. O meu nervosismo aumentava. O Paul não dava sinal de querer sair dali da minha beira. 270 Uma mulher - a Francine Crespin, acho eu, a irmã do Raphaèl estendeu-Lhe um cesto de maçãs com um sorriso que desapareceu assim que me viu. Eram poucas as pessoas que não tinham lido o que escreveram no galinheiro. O padre saiu da igreja segurando o crucifixo bem alto como um troféu. Os olhos do Père Froment, normalmente fracos e sem expressão, estavam hoje brilhantes de orgulho por ver unida a sua gente. Atrás dele, dois rapazes do coro transportavam a Virgem no seu estrado amarelo e dourado, decorado com fruta e folhas outonais. Os alunos da catequese voltaram-se para a pequena procissão e, elevando as velas, entoaram um hino ao


Outono. As meninas treinavam os seus melhores sorrisos. Vi que a Reinette também parecia interessada. A seguir vinha o trono da Rainha. Era de palha, o encosto e os braços feitos de folhas de milho e o assento de folhas outonais, mas por uns segundos, sob os raios do sol de Outubro, parecia de ouro. Havia talvez uma dúzia de raparigas com a idade certa ao pé da fonte. Lembro-me de todas: a Jeannette Crespin com o vestido da comunhão demasiado apertado, a ruiva Francine Hourias e as suas inúmeras sardas, a Michèle Petit de tranças apertadas e óculos. Nenhuma delas chegava aos calcanhares da Reinette. E sabiam-no. Via-se na maneira como olhavam para ela, ligeiramente afastada no seu vestido vermelho, cabelo solto e amoras entrelaçadas nos caracóis: com inveja e desconfiança. Mas também com satisfação: naquele ano ninguém votaria na Reine Dartigen para Rainha. Não com os boatos que andavam de boca em boca sobre nós, como folhas mortas levadas pelo vento. O padre começou a falar. A minha impaciência crescia a cada segundo. O Tomas estava à minha espera. Se queria chegar a tempo de o ver, tinha de me ir embora naquele instante. O Paul estava a olhar para a fonte com aquele olhar de intensidade semiestúpida. - Tem sido um ano de muitas provas. - A voz monótona do curé chegava-me de longe como o balir de ovelhas. - Mas a vossa fé e e energia permitiu-nos ultrapassá-las. Sentia uma crescente impaciência à minha volta também as pessoas tinham já ouvido um longo sermão e estava na hora de coroar a Rainha e começar a festa. Vi uma criança pegar num bolo do cesto da mãe e comê-lo rápida e gulosamente.


271 - Chegou a altura de celebrar. Exactamente. Ouviu-se um murmúrio de aprovação e impaciência que não passou despercebido ao padre, que continuou: - Só lhes peço que em tudo mostrem moderação - baliu. - Que se lembrem do que é que se está a celebrar e dAquele sem o qual nem esta celebração nem nenhuma colheita existiria. - Despache lá isso, Père! - gritou uma voz forte e alegre do lado da igreja. - O Père Froment pareceu ofendido e resignado ao mesmo tempo. - Calma, mon fils, calma - pediu. - Como estava a dizer, chegou a altura de começar a festa de Nosso Senhor nomeando a Rainha, uma menina entre os treze e os dezassete anos que reinará durante as nossas celebrações e usará a coroa de trigo. Levantaram-se uma dúzia de vozes, gritando nomes, alguns dos quais incompreensíveis. O Raphaél gritou "Agnès Petit!" e a Agnès, que não tinha menos de trinta anos, corou envergonhada e feliz, e durante uns momentos pareceu quase bonita. - Murielle Dupré! - Colette Gaudin! Mulheres beijaram os maridos e gritavam com falsa indignação face ao elogio. - Michèle Petit! - gritou a mãe da Michèle, leal como um cão. - Georgette Lemaitre! - Era o Henri, propondo a avó que tinha mais de noventa anos e que desatou a rir com a piada. Vários rapazes gritaram o nome da Jeanette Crespin, que corou tapando a cara com as mãos. E então o Paul, que estivera


calado ao meu lado até ali, deu um passo em frente. - Reine-Claude Dartigen! - gritou bem alto sem gaguejar, numa voz segura e quase adulta, nada como a dele, lenta e hesitante. - Reine-Claude Dartigen! - gritou de novo, fazendo com que várias pessoas se voltassem e começassem a murmurar. Reine-Claude Dartigen! - voltou a gritar. Atravessou então a praça em direcção a uma Reinette perplexa e estendeu-lhe um colar de pêros ceifinhos. - Toma, é para ti - disse-Lhe docemente, sem gaguejar, e pôs-lhe o colar ao pescoço. O pequeno fruto amarelo e vermelho briLhava ao sol de Outubro. - Reine-Claude Dartigen - repetiu. Depois pegou na mão dela e levou-a até aos degraus que davam para o trono de palha. 272 - 273 O Père Froment, com um sorriso de inquietude nos lábios, não disse nada, e deixou que o Paul pusesse a coroa de trigo na cabeça da Reine. - Muito bem - disse o padre, baixinho. - Muito bem. Depois, numa voz mais alta, acrescentou: - Declaro Reine-Claude Dartigen a Rainha da Colheita deste ano! Pode ter sido por não poderem esperar mais para beber o vinho e a cidra ainda à espera ao pé da fonte. Pode ter sido o efeito da surpresa ao ouvir o pobre do Paul a falar sem gaguejar pela primeira vez na vida. Ou pode ter sido a imagem da Reine sentada no trono, lábios da cor de cerejas e o sol a bater-lhe no cabelo criando um halo luminoso em roda da cabeça. A maioria das pessoas bateu palmas. Alguns até deram vivas e gritaram o nome dela - todos eles homens, notei, inclusive o Raphaèl e o Julien Lanicen, que tinham estado no


La Mauvaise Réputation naquela noite. Mas algumas mulheres não aplaudiram. Poucas, mas foram suficientes. A mãe da Michèle, por exemplo, e as coscuvilheiras Marthe Gaudin e Isabelle Ramondin. Mas eram poucas e as outras, apesar de pouco à vontade, juntaram as suas vozes à maioria. Algumas até bateram palmas quando a Reine atirou flores e fruta aos meninos da catequese. Quando me preparava para me afastar, vi de relance a cara da mãe que, de lenço quase caído, corria em direcção à Reine e a expressão dela paralisou-me: tinha as faces rosadas e os olhos quase tão brilhantes como naquela fotografia esquecida do casamento e olhava para a Reine com ternura. Acho que fui a única a notar. Toda a gente estava a olhar para a minha irmã. Até o Paul estava a olhar para ela outra vez com aquela expressão estúpida na cara. Algo dentro de mim se torceu. Os meus olhos ficaram húmidos tão de repente que cheguei a pensar que um insecto qualquer uma vespa talvez - me picara uma das pálpebras... Deixei cair o bolo que estava a comer e virei costas para me ir embora. Ninguém notou. O Tomas estava à minha espera. E de repente era muito importante acreditar que ele estava realmente à minha espera. O Tomas, que me amava. Única e somente o Tomas, para sempre. Olhei para trás durante um segundo, para fixar aquela cena na minha memória. A minha irmã, a Rainha da Colheita, a mais bonita rainha alguma vez coroada, um feixe de espigas numa mão e na outra um fruto brilhante - uma maçã, talvez, ou uma romã - ali posto pelo Père Froment, os olhos de ambos a encontrarem-se, o padre com o seu sorriso meigo de carneiro mal morto e a mãe de sorriso de repente apagado numa expressão de susto, um gesto de recuo


e a voz dela a chegar até mim, através do bruá da multidão: - O que é isso? Meu Deus, o que é isso? Quem te deu isso? Desatei a correr enquanto as atenções estavam concentradas noutro sítio. Quase a rir, com os olhos a arder da picada da vespa invisível, corri o mais depressa que pude em direcção ao rio. De vez em quando tinha de parar para tentar controlar os espasmos que me sacudiam o corpo, espasmos de riso incontrolável que contudo enviavam rios de lágrimas aos meus olhos. Aquela laranja! Guardada com amor e carinho especialmente para aquela ocasião, cuidadosamente embrulhada em papel para a Rainha da Colheita, posta na mão dela quando a mãe... quando a mãe... O riso era como ácido dentro de mim mas a dor era deliciosa, obrigando-me a rolar pelo chão, picando-me o estômago como anzóis. O olhar da minha mãe causava-me gargalhadas histéricas, aquele olhar de orgulho a transformar-se em medo não, em terror - por causa de uma minúscula laranja. Entre soluços, corria desalmadamente, calculando que precisaria de pelo menos dez minutos para chegar ao Posto de Vigia e, somando a isso, os minutos que devia ter passado ao pé da fonte - vinte no mínimo -, morrendo de medo que o Tomas se tivesse já ido embora. Desta vez ia-lhe pedir, prometi a mim mesma. Ia-Lhe pedir que me levasse com ele desta vez, para onde quer que ele fosse, para a Alemanha, ou ficar ali mesmo, ou para passar a vida a fugir. O que ele quisesse, desde que eu e ele... eu e ele. Rezei ao Velho enquanto corria, arranhando as pernas nas silvas, sem notar. Por favor, Tomas. Por favor. Só tu. Para sempre. Não encontrei ninguém enquanto corria como uma louca pelo bosque. Estavam todos na feira. Quando cheguei às Pedras


Direitas, pus-me a gritar por ele, a gritar o nome dele bem alto. A minha voz ressoava por todo o lado no sedoso silêncio que rodeava o rio. Será que ele se tinha ido embora? - Tomas! Tomas! - Estava rouca de tanto rir, rouca de tanto medo. - Tomas! Tomas! 274 Ele foi tão rápido que quase não o vi. Saiu de trás de um arbusto, agarrou o meu pulso com uma mão e com a outra tapou-me a boca. Ao princípio nem o reconheci, tanto mudara a expressão dele - tão mais escura agora -, e debati-me violentamente, tentando morder-lhe os dedos e guinchando como um passarinho. - Chiu, Backfisch, calma. O que é que estás a tentar fazer? - Reconheci a voz dele e acalmei-me. - Tomas. Tomas. - As minhas narinas encheram-se do aroma a tabaco e ao suor da roupa dele e não conseguia parar de dizer o nome dele... Agarrei o casaco dele, comprimindo-o contra a minha cara como nunca teria ousado fazer dois meses antes e beijei o interior com uma paixão desesperada. - Eu sabia que voltarias. Eu sabia. O Tomas olhou para mim em silêncio. - Estás sozinha? - Os olhos dele pareciam mais pequenos, preocupados. Acenei com a cabeça. - Muito bem. Agora ouve. Falava muito devagar, pronunciando cada palavra com cuidado. Ao canto da boca dele não havia nenhum cigarro, e nos olhos nenhum brilho. Parecia ter emagrecido nas últimas semanas, a cara parecia mais angular, a boca menos generosa. - Quero que me ouças com cuidado. Acenei com a cabeça sem dizer palavra. Tudo o que tu


queiras, Tomas. Os meus olhos estavam quentes e brilhantes. Só tu, Tomas. Só tu. Queria contar-lhe sobre a mãe, sobre a Reine e a laranja, mas sabia que era o momento errado. - Vão vir uns homens à aldeia - começou. - Uniformes pretos. Sabes o que é que isso significa, não sabes? Acenei com a cabeça. - A polícia alemã. As SS. - Exacto. - O tom dele era preciso e incisivo, tão diferente do tom arrastado e preguiçoso que lhe conhecia. - Vão fazer perguntas. Olhei para ele sem perceber. - Perguntas sobre mim. - Porquê? - Isso não interessa. - A mão dele continuava apertar-me o pulso com força. - Podem vir fazer-te perguntas a ti. Perguntas sobre o que temos feito. - Sobre as revistas e isso? 275 - Pois. E sobre o velhote do café. O que morreu afogado. Uma expressão sinistra e de abatimento apareceu-Lhe nos olhos. Pegou na minha cara, virou-a para si e aproximou-se, e pud sentir de novo o cheiro a tabaco das roupas e do hálito dele. - Ouve, Backfisch. É muito importante que ouças com atenção. Não lhes podes dizer nada. Nunca me viste. Não estavas no La Rép naquela noite. Nem sequer sabes como me chamo. Percebes? Acenei com a cabeça. - Não te esqueças - insistiu. - Não sabes de nada. Nunca falaste comigo. E diz aos outros. Acenei de novo e ele pareceu descontrair-se um pouco. - E outra coisa - disse num tom menos duro, mais meigo. Senti-me mole por dentro, como um caramelo, e olhei para ele


ansiosa. - Não posso voltar - disse o Tomas docemente. - Pelo menos durante um tempo. É demasiado perigoso. Da última vez quase me apanharam. Durante uns instantes não disse nada. Depois, timidamente, sugeri: - Podíamos encontrar-nos no cinema. Como dantes. Ou no bosque. O Tomas abanou a cabeça, impaciente. - Não estás a ouvir? Não nos podemos encontrar, ponto final. Em lado nenhum. Senti arrepios de frio por todo o corpo e a cabeça a andar à roda. - Durante quanto tempo? - consegui murmurar. - Muito tempo. - A sua impaciência era audível. - Talvez para sempre. Encolhi-me e comecei a tremer. Os arrepios transformaramse numa sensação quente e irritante como se estivesse a rebolar em cima de urtigas. O Tomas pegou na minha cara com as mãos. - Ouve, Framboise - disse devagar. - Desculpa. Eu sei que tu... - interrompeu-se de repente. - Eu sei que não é fácil. E sorriu, um sorriso feroz mas também de arrependimento, como um animal selvagem a fingir amizade. - Trouxe-te coisas continuou. - Revistas, café. - Outra vez aquele sorriso forçado. - Pastilha elástica, chocolate, livros. Olhei para ele em silêncio. O meu coração parecia ter-se transformado num bocado de barro frio. 276

- Mas esconde tudo, está bem? E não contes a ninguém. A ninguém. Virou-se em direcção ao arbusto de onde surgira e retirou de lá um pacote atado com um cordel.


- Abre-o - pediu. Limitei-me a olhar para ele, sem me mexer, como se todo o meu corpo estivesse dormente. - Vá, pega - insistiu impaciente e com forçada leveza na voz. - É para ti. - Não quero. - Ah, Backfisch, vá lá. - Aproximou-se e tentou pôr o braço à volta dos meus ombros mas empurrei-o. - Já te disse que não quero! - Mais uma vez a voz da mãe, aguda e afiada, e naquele momento odiei-o por isso. - Não quero, não quero!. O Tomas sorriu sem saber o que fazer. - Vá lá - repetiu. Não sejas assim. Só quero... - Podíamos fugir - interrompi-o. - Conheço imensos lugares no bosque onde nos podíamos esconder e nunca ninguém nos encontraria. Podíamos comer coelhos e coisas assim, cogumelos, amoras. - Sentia a cara a arder e a garganta seca e áspera. Estaríamos a salvo - insisti. - Ninguém descobriria. Mas vi na cara dele que não servia de nada. - Não posso - disse ele peremptório. Senti os olhos encherem-se de lágrimas. - Não podes f-ficar pelo menos um bocadinho? - Parecia o Paul, humilde e estúpida, mas era mais forte do que eu. Queria estar calada, deixar que se afastasse ao som do meu silêncio frio e orgulhoso, mas não conseguia; as palavras saíam-me da boca, descontroladas. - Por favor. Podias f-fumar um cigarro, ou dar um mergulho, ou p-podíamos ir à pesca. O Tomas abanou a cabeça. Senti que dentro de mim algo se desmoronava lenta e inevitavelmente. Ouvi à distância o som de metal a chocar com metal. - Só uns minutos. Por favor. - Odiava o som da minha voz, aquela estúpida voz suplicante. - Quero mostrar-te as minhas armadilhas novas. A que fiz para o lúcio. O silêncio dele condenava-me, paciente e grave.


277 Senti o nosso tempo escapar-me, inexoravelmente. Voltei a ouvir o som de metal a chocar com metal, o som de um cão que leva uma lata atada à cauda. E, de repente, reconheci o som. Fui invadida por uma onda de alegria. - Por favor! É importante! - A minha voz era agora aguda e infantil mas com uma ponta de esperança; estava quase a chorar, tinha os olhos quentes e um nó na garganta. - Senão, conto tudo. Conto tudo a toda a gente, tudo... O Tomas acenou com a cabeça uma vez. - Cinco minutos. Nem mais um segundo. Está bem? As lágrimas pararam. - Está bem. 278

12. Cinco minutos. Sabia o que tinha a fazer. Era a nossa última oportunidade - a minha última oportunidade -, mas o meu coração batia como um tambor e enchia-me a cabeça com uma música selvagem. Ele dera-me cinco minutos. Estava extática enquanto o levava pela mão até ao grande banco de areia onde tinha posto a minha última armadilha. A prece que me preenchera o pensamento enquanto corria da aldeia transformara-se num imperativo ensurdecedor - só tu, Tomas, só tu, só tu, oh Tomas, por favor, oh por favor por favor por favor -, e o meu coração batia com tanta força que os meus ouvidos estavam prestes a rebentar.


- Aonde vamos? - perguntou ele num tom calmo, divertido, quase desinteressado. - Quero mostrar-te uma coisa - respondi quase sem fôlego, puxando a mão dele com mais força. - É importante. Anda! Podia ouvir ao longe o som das latas que atara à armadilha. Tinha apanhado algo, pensei com um arrepio de excitação. Algo grande. As latas tilintavam furiosamente dentro de água, chocando contra o bidão que funcionava como bóia. Por baixo, as duas caixas atadas com arame abanavam e agitavam a superfície do rio. Tinha de ser. Tinha de ser. Fui buscar a vara de madeira que usava para manobrar as armadilhas e puxá-las para fora de água. Estava a tremer de tal maneira que à primeira tentativa quase a deixei cair dentro de água. Com o gancho da ponta da vara desprendi as caixas do bidão, que empurrei para o lado. As caixas não paravam quietas. 279 - É muito pesado! - gritei. O Tomas estava a observar-me, espantado. - Mas que raio é isso? - perguntou. - Oh, por favor. Por favor. Continuava a puxar as caixas, tentando arrastá-las pela margem acima. Via agora água a sair pelas frinchas laterais. Lá dentro, algo enorme e violento sacudia-se sem parar. Ouvi o riso do Tomas ao meu lado. - Ah, Backfisch! exclamou. - Parece que o apanhaste. O velho lúcio. Lieber Gott, deve ser gigante. Quase não o ouvi. O ar arranhava-me a garganta como uma lixa. Sentia os meus pés descalços a escorregar na lama, a escorregar em direcção à água. Aquilo estava a puxar-me a pouco e pouco. - Não o vou perder! - gritei sem fôlego. - Nem pensar! Nem pensar! Recuei um passo, puxando sempre, depois outro.


Sentia a lama amarelada e escorregadia a ameaçar atirar-me ao chão. A vara magoava-me os ombros e estava a perder o equilíbrio. E, subjacente a tudo, aquela sensação maravilhosa de que ele estava a observar-me e que se conseguisse puxar o Velho para fora de água teria o meu desejo... o meu desejo... Mais um passo, outro. Enterrei os pés no lodo e empurrei com força, subindo mais um pouco. Mais um passo. O peso ia diminuindo à medida que a água ia saindo de dentro das caixas. Sentia a raiva do peixe lá dentro, atirando-se desesperadamente contra as paredes interiores. Mais um passo. Depois, nada. Puxei com toda a força mas as caixas não se moviam. Dando gritos de frustração, puxei com toda a força que tinha, tentando subir mais um pouco pela margem, mas as caixas estavam presas. Talvez numa raiz, ou num tronco solto que se prendera no arame. - Está preso! - gritei desesperada. - A porcaria da armadilha está presa! O Tomas olhou para mim divertido. - É só um peixe - disse, não sem uma certa impaciência. - Por favor, Tomas - pedi-lhe. - Se largo a vara ele escapa. Por favor, vê se consegues soltar as caixas. O Tomas encolheu os ombros e despiu o casaco e a camisa, que deixou cuidadosamente em cima de um arbusto. 280 - Não vou sujar o meu uniforme com lama - comentou. Segurei na vara, quase já sem força, os braços a tremer, enquanto o Tomas investigava a obstrução. - São uma data de raízes - gritou-me. - Uma tampa das caixas


deve ter-se soltado e ficou presa. Estão mesmo presas. - Chegas lá? - perguntei., O Tomas encolheu os ombros. Posso tentar. - Vi-o despir as calças e pô-las ao pé do resto da roupa, descalçar as botas e entrar na água com um arrepio, praguejando divertido. - Devo estar louco - gritou. - A água está gelada. - Tinha água quase pelos ombros. Lembro-me de que a corrente estava suficientemente forte para criar montículos de espuma transparente à volta do corpo dele. - Chegas lá? - gritei outra vez. Tinha os braços dormentes e doía-me a cabeça. Sentia ainda o lúcio a lutar pela vida, meio-submerso. - Estou a ver o problema - ouvi o Tomas dizer. - É mesmo aqui, acho eu. - Ouvi o barulho do corpo dele a mergulhar dentro de água e a voltar logo ao de cima, rápido como uma lontra. - Um pouco mais abaixo. Segurei na vara com força. A minha cabeça parecia estar a arder e só tinha vontade de gritar, tal era a frustração que sentia. Passaram cinco, dez segundos; estava quase a desmaiar, comecei a ver pontinhos negros e vermelhos a dançarem em frente dos meus olhos e, na minha cabeça, a mesma prece: "por favor por favor juro que te soltarei juro mas por favor por favor Tomas só tu Tomas só para sempre para sempre". Então, de repente, a caixa soltou-se. Escorreguei margem acima, quase largando a vara com a surpresa, e a armadilha saltou para fora de água, atrás de mim. Com a visão desfocada e um sabor a metal na boca, levantei-me e puxei-a para a segurança da margem, enfiando farpas da madeira partida das caixas debaixo das unhas e nas palmas já cheias de bolhas. Puxei o arame, arranhando-me aInda mais, certa de que o lúcio conseguira escapar. Do interior da caixa, ouvi então um som molhado - slap-slap-slap. Um som parecido ao de uma toalha


húmida a bater furiosamente contra o lado do lavatório: "Olha para isto, Boise, que desgraça! Anda cá, deixa-me ver isso!" lembrei-me de repente da mãe e de como costumava esfregar-nos quando não queríamos lavar-nos, quase até sangrarmos. 281 Slap-slap-slap. O som tornava-se cada vez mais fraco, menos persistente, mas eu sabia que um peixe podia viver mais de cinco minutos fora de água, chegando até a torcer-se de um lado para o outro durante meia hora. Através das frinchas, consegui distinguir no escuro interior da caixa uma enorme forma preta e oleosa, e de vez em quando o brilho de um olho enorme e arregalado, reflectindo um raio de sol. Senti uma alegria indescritível. - Velho - murmurei, quase sem voz. - Velho. Tenho um desejo. Tenho um desejo. Faz com que ele fique. Faz com que o Tomas fique - disse rapidamente, de modo a que ele não me ouvisse, e quando vi que ele ainda não tinha saído de dentro de água, repeti-o para o caso de o Velho não ter ouvido. - Faz com que o Tomas não se vá embora. Faz com que fique para sempre. Dentro da caixa, o lúcio não descansava. Conseguia agora distinguir a forma da boca, um crescente virado para baixo, amargo e picado do aço de prévias tentativas de captura. O tamanho dela fez-me medo, senti um orgulho enorme na minha vitória e um alívio avassalador. Tinha acabado. O pesadelo que começara com a Jeannette e a cobra-d'água, as laranjas e a crescente loucura da mãe, tudo terminava ali, na margem do rio. Aquela rapariga descalça, de cabelo curto e despenteado coberto de lama e cara radiante, aquela caixa, aquele peixe, aquele homem com cara de miúdo, sem uniforme e com o cabelo encharcado. Olhei em volta, impaciente. - Tomas! Anda ver!


Silêncio. Só se ouvia os sons do rio, da água a embater contra a margem. Levantei-me. - Tomas! Mas não havia sinal do Tomas em lado nenhum. Onde ele mergulhara via-se apenas a corrente sedosa e interrompida do Loire da cor do café au lait e algumas bolhinhas de ar. - Tomas! Talvez devesse ter sentido pânico. Se tivesse reagido naquele momento, talvez ainda o conseguisse apanhar, evitando o inevitável. Isso é o que penso agora. Mas na altura, ainda tonta com a minha vitória, as pernas a tremer do esforço e de cansaço, só conseguia pensar nas centenas de vezes que ele eo Cassis tinham jogado àquele jogo, quantas vezes tinham mergulhado e fingido que se afogavam, ficando um tempo impossível debaixo de água para depois emergirem, de olhos vermelhos e a rir, enquanto a Reinette gritava e gritava. O Velho continuava a debater-se na caixa. Avancei mais uns passos em direcção à água. - Tomas? Silêncio. Deixei-me ficar ali parada durante uma eternidade.Tomas? - murmurei. Aos meus pés, o Loire continuava a sua viagem inexorável. O slap-slap do Velho estava a diminuir. Ao longo da margem, as raízes compridas e amarelas tocavam a água como dedos de bruxa. E então percebi. O meu desejo fora concedido. Quando o Cassis e a Reinette me encontraram duas horas depois, estava deitada na margem do rio, de olhos secos, uma mão nas botas do Tomas e a outra em cima da caixa onde os restos mortais de um peixe enorme começavam já a cheirar mal. 282 - 283


13. Éramos ainda umas crianças. Não sabíamos o que fazer. Tínha mos medo. O Cassis talvez mais do que a Reine, e eu porque ele era mais velho e compreendia melhor o que aconteceria se nos relacionassem com a morte do Tomas. Foi o Cassis que tirou o Tomas de dentro de água, que lhe libertou o tornozelo da raiz que o agarrara. Foi também o Cassis que apanhou a roupa dele e a embrulhou, atando o todo com o cinto. Não parava de chorar, mas nesse dia havia algo nele que nunca tínhamos visto antes, uma severidade que desconhecíamos. Pensei depois que, nesse dia, usara talvez toda a coragem que tinha. Talvez por isso se tivesse mais tarde refugiado no doce esquecimento da bebida. A Reine não fez nada. Sentou-se na margem do rio a chorar até ter a cara inchada, quase feia. Foi só quando o Cassis a abanou para Lhe dizer que tinha de prometer - promete! - que ela reagiu, acenando ligeiramente com a cabeça e repetindo entre soluços: "Tomas! Oh Tomas!" Acho que foi por causa do comportamento dele naquele dia que nunca consegui odiar o Cassis, mesmo depois. Afinal, ele ajudara-me, apoiara-me, e isso foi mais do que alguém jamais fez por mim. Até hoje, claro. - Tens de perceber isto. - A voz dele, uma voz de rapaz afectada pelo medo, soava ainda como um eco da do Tomas. Se eles descobrem que o conhecíamos, vão pensar que fomos nós que o matámos. Fuzilam-nos. 284


A Reine olhou para ele com uns olhos enormes, cheios de terror e desgosto. Eu olhei para o rio, sentindo-me estranhamente indiferente a tudo. A mim ninguém me fuzilaria. Eu apanhara o Velho. O Cassis bateu-me no braço com força. Parecia doente mas tinha um ar decidido. - Boise, estás a ouvir? Acenei com a cabeça. - Temos de arranjar as coisas de modo a que pareça que alguém, a Resistência por exemplo, o matou. Se acharem que ele se afogou - fez uma pausa e olhou para o rio, supersticioso -, se descobrirem que ele vinha nadar connosco, podem ir fazer perguntas ao Hauer e aos outros e... Não era preciso dizer mais. Olhámo-nos em silêncio. - Temos de fazer com que pareça... sabes... - olhou para mim - uma execução. Acenei com a cabeça. - Eu trato disso - respondi. Demorámos algum tempo a perceber como disparar a pistola, que tínhamos primeiro de puxar a patilha de segurança. A arma era pesada e tinha um cheiro oleoso. Chegou então a altura de decidirmos onde disparar. "No coração", disse eu; "na cabeça", disse o Cassis. Um único tiro, na têmpora, para parecer que tinha sido a Resistência. Atámos-lhe as mãos atrás das costas para parecer mais autêntico. Abafámos o barulho da arma com o casaco dele mas, mesmo assim, o som do tiro, seco mas com uma ressonância estranha, pareceu encher o mundo inteiro. A minha tristeza era profunda, tão profunda que não sentia nada, nada, só uma incrível dormência. Sentia-me como o rio; liso e sedoso à superfície e gelado no fundo. Arrastámos o Tomas até à beira da água e atirámo-lo para dentro do rio. Sem


a roupa e as chapas de identidade, seria quase impossível identificá-lo. O mais provável, pensámos, era que a corrente o arrastasse até Angers. - E a roupa? - O Cassis tinha uma sombra azulada à volta da boca, mas a voz era ainda forte. - Não podemos atirá-la ao rio. Alguém podia encontrá-la e descobrir tudo. - Podíamos queimá-la - sugeri. O Cassis abanou a cabeça. - Não, demasiado fumo. Além disso, não podemos queimar a arma nem o cinto nem as chapas. Encolhi os ombros desinteressadamente. Imaginei o Tomas a rebolar dentro de água, devagarinho, como uma criança cansada, 285 a rebolar, a rebolar... Então, tive uma ideia. - O buraco do Morlock. O Cassis acenou com a cabeça. - Está bem. 286 14. O poço está como estava dantes, tirando a tampa de cimento que puseram para evitar acidentes. É claro que agora temos água corrente. No tempo da minha mãe, a única água potável era a água do poço. Depois, havia também o depósito para onde ia a água da chuva que utilizávamos para a rega. O poço era uma gigante construção cilíndrica de tijolo, com um muro de metro e meio de altura acima do nível do chão e uma bomba manual. Tinha uma tampa de madeira fechada com um cadeado para evitar acidentes e a contaminação da água. Às vezes, quando o tempo estava muito seco, a água ficava


amarelada e salobra, mas durante a maior parte do ano era doce. Depois de termos lido A Máquina do Tempo, o Cassis e eu atravessáramos uma fase em que fingíamos ser Morlocks e Eloi e brincávamos à volta do poço que, em toda a sua solidez sombria, nos fazia lembrar os buracos onde as criaturas tinham desaparecido. Esperámos quase até ao anoitecer antes de voltar para casa. Levávamos as roupas do Tomas enroladas e escondemo-las num arbusto de alfazema ao fundo do quintal, onde as deixámos até escurecer. Trazíamos também o pacote de revistas ainda fechado - nem sequer o Cassis estava interessado em abri-lo depois do que acontecera. Um de nós teria de inventar uma desculpa e sair, disse o Cassis - o que queria dizer, claro, que eu teria de o fazer -, recuperar as roupas e o pacote e atirar tudo para dentro do poço. A chave do cadeado estava pendurada atrás da porta das traseiras, juntamente com o resto das chaves 287 da casa - tinha uma etiqueta que dizia poço, a obsessão da mãe pela ordem estava presente em tudo -, e não era difícil tirá-la e voltar a arrumá-la sem a mãe notar. Depois, continuou o Cassis naquela voz rouca tão pouco característica dele, o resto era connosco. Nunca tínhamos visto nem nunca tínhamos ouvido falar de ninguém chamado Tomas Leibniz. Nunca tínhamos falado com nenhuns soldados alemães. O Hauer e os outros não abririam a boca. A única coisa que tínhamos a fazer


era passarmos por estúpidos e não dizer absolutamente nada. 288 15. Foi mais fácil do que pensávamos. A mãe estava a ter um dos piores ataques de sempre e estava demasiado preocupada com o seu próprio sofrimento para notar as nossas caras pálidas e sujas de lama. Assim que entrámos, pegou imediatamente na Reine e empurrou-a para a casa de banho, dizendo que ainda sentia o cheiro a laranja na pele dela, e pôs-se a esfregar-lhe as mãos com cânfora e pedra-pomes até a Reine começar a gritar e a pedir-lhe que parasse. Reapareceram vinte minutos depois, a Reine com o cabelo embrulhado numa toalha e a cheirar fortemente a cânfora e a mãe com uma severa expressão de raiva suprimida. Não havia jantar para nós. - Façam vocês qualquer coisa se quiserem - disse-nos. Andam por aí como ciganos. A pavonearem-se na praça daquela maneira... - Calou-se e, com um gemido quase inaudível, levou a mão à fonte no velho gesto de alarme. Fez-se silêncio. Durante uns minutos olhou para nós como se fôssemos estranhos, e depois foi sentar-se na cadeira de baloiço ao pé da lareira, onde se pôs furiosamente a tricotar, batendo as agulhas uma contra a outra violentamente. - Laranjas - disse baixinho. - Por que razão haviam de querer trazer laranjas para dentro de casa? Odeiam-me assim tanto? Mas era difícil perceber a quem se dirigia, e nenhum de nós se atreveu a responder-lhe. De qualquer maneira, não faço


ideia do que teríamos dito. 289 Às dez horas foi para a cama. Já era tarde para nós, mas a mãe, que naquelas alturas perdia a noção do tempo, não disse nada. Permanecemos na cozinha durante algum tempo, a ouvi-la preparar-se para ir para a cama. O Cassis desceu até à cave para ir buscar comida e voltou com uma fatia de rillettes embrulhada em papel e ainda meio pão. Comemos, apesar de nenhum de nós ter muita fome. Acho que estávamos a tentar evitar ter de falar. O acto, o terrível acto de que fôramos cúmplices, pairava ainda sobre as nossas cabeças. O corpo dele, a pele, aquela pele nórdica, quase azulada, contrastando com o colorido das folhas secas, a cara tombada, a maneira sonolenta e quase real como rolou para dentro de água. Aquele buraco minúsculo estranho que a bala tivesse feito um furo tão pequeno - e as folhas com que cobrimos o sangue. Uma onda negra de fúria invadiu-me. "Enganaste-me", pensei. "Fizeste batota. Enganaste-me". Foi o Cassis quem quebrou o silêncio. - Devias ir... devias ir agora. Olhei-o cheia de ódio. - Devias ir agora - insistiu. - Antes que se faça tarde. A Reine olhou-nos, triste e suplicante. - Está bem. Eu vou - disse eu em tom neutro. Depois, voltei mais uma vez ao rio. Não sei o que esperava encontrar - o fantasma do Tomas Leibniz, talvez, encostado à árvore do Posto de Vigia, a fumar um cigarro -, mas estava tudo normal, nem sequer estava tudo silencioso como seria de esperar depois de um acontecimento tão horrível. Ouviam-se os barulhos nocturnos dos sapos e da água a embater contra a


margem. À luz acinzentada do luar via os olhos do lúcio morto fixos em mim, aqueles olhos esbugalhados e aquela boca semiaberta. Não me conseguia desfazer da ideia de que o Velho não estava morto, de que me podia ouvir. - Odeio-te - gritei. Os olhos fixaram-me com desdém. Tinha a boca cravada de anzóis de pescarias falhadas, alguns já cicatrizados, já parte daquela boca enorme. Pareciam estranhas presas. - Eu ia soltar-te - disse-lhe. - Sabes bem que é verdade. 290 Deitei-me na relva ao lado dele, quase cara a cara. O cheiro a peixe em estado de decomposição misturava-se ao cheiro da terra e das folhas secas. - Enganaste-me. Os olhos do velho lúcio pareciam quase conscientes. Quase triunfantes., Não sei quanto tempo fiquei ali naquela noite. Acho que até dormi um bocadinho, porque quando acordei a lua estava já mais adiantada no seu percurso, projectando o seu crescente na superfície leitosa do rio. Estava muito frio. Esfreguei as mãos e os pés, sentei-me e peguei com cuidado no peixe morto. Era pesado, estava sujo de lama e os flancos estavam também cravados de restos de anzóis, formando quase uma carapaça. Levei-o em silêncio até às Pedras Direitas onde pregara os corpos das cobras-d'água. Pendurei o peixe num dos pregos, pelo lábio inferior. A carne era dura e elástica; pensei que não ia conseguir furá-la mas consegui com um esforço. O Velho ficou ali, pendurado pela boca, rodeado de peles de cobra que ondulavam ao sabor do vento. - Pelo menos apanhei-te a ti - disse baixinho. Pelo menos apanhei-te a ti.


291 16. Quase acabei por não fazer a primeira chamada. A mulher que respondeu tinha ficado a trabalhar até tarde passava já das cinco - e esquecera-se de ligar o atendedor. Tinha uma voz jovem e de quem está farto de tudo, e senti um aperto no coração ao ouvi-la. Deitei a mensagem cá para fora, fazendo-a passar pelos meus lábios frios e dormentes. Teria preferido uma mulher mais velha que ainda se lembrasse da guerra ou que talvez se lembrasse ainda do nome da minha mãe. Pensei que ela me fosse dizer que tudo aquilo pertencia ao passado e que já ninguém se interessava por uma história tão velha antes de me desligar o telefone na cara. Até a ouvi dizer isso na minha cabeça, e levei a mão ao telefone para cortar a ligação. - Minha senhora! Minha senhora! - ouvi-a dizer com urgência. - Está ainda aí? - Sim - respondi com esforço. - Disse Mirabelle Dartigen? - Sim. Sou a filha dela. Framboise. - Espere. Por favor, espere um momento. - Estava quase sem fôlego e todos os sinais de aborrecimento tinham desaparecido da sua voz profissional. - Por favor, não desligue! 292 17. Esperava um artigo, talvez com uma ou duas fotografias.


Em vez disso, vieram falar-me de direitos de autor para fazer um filme, para escrever um livro. Mas como podia eu escrever um livro, perguntei-lhes espantada. Sei ler, claro, mas escrever um livro? Com a minha idade? Não faz mal, disseram-me. Podemos utilizar um escritor-sombra. Um escritor-sombra. A palavra dá-me arrepios. Primeiro pensei que estava a fazer isto tudo para me vingar da Laure e do Yannick. Para lhes roubar o seu pequeno momento de glória. Mas agora já não é tempo de vinganças. Além do mais, agora toda aquela história me parece lamentável. O Yannick escreveu-me várias cartas, cada vez mais urgentes. Está em Paris. A Laure pediu o divórcio e não tentou ainda entrar em contacto comigo. Tenho pena deles. Não têm filhos, coitados. E não fazem ideia da enorme diferença que isso faz. A minha segunda chamada foi para a Pistache. Atendeu quase imediatamente, como se estivesse à espera do telefonema. A voz dela pareceu-me calma mas remota. Podia também ouvir do outro lado o cão a ladrar e a Prune e a Ricot a jogarem a qualquer coisa barulhenta. - É claro que vou para aí - disse simplesmente. - O Jean-Marc pode tomar conta das miúdas durante uns dias. Minha querida Pistache, tão paciente e compreensiva. Como é que ela pode saber o que é ter dentro de si um lugar frio e duro? Ela nunca foi assim. Pode amar-me, pode até, quem sabe, perdoar-me. Mas nunca, nunca poderá compreender-me. 293 Talvez seja melhor assim. A última chamada era internacional. Deixei uma mensagem, lutando contra o sotaque desconhecido, as palavras estranhas.


A minha voz soava velha e cansada e tive de repetir a mensagem várias vezes por causa do distante barulho de pratos, conversas e música. Só espero que tenha sido o suficiente. 294 18. O que aconteceu depois é do conhecimento geral. Encontraram o Tomas quase imediatamente, passadas nem vinte e quatro horas e ainda longe de Angers. Em vez de deslizar para longe com a corrente, tinha sido arrastado até a um banco de areia a mais ou menos um quilómetro da aldeia, e foi encontrado pelo mesmo grupo de alemães que tinham encontrado a mota dele escondida nos arbustos no caminho que vinha das Pedras Direitas. O Paul contou-nos o que se dizia na aldeia: que um grupo da Resistência matara um soldado alemão que os tinha apanhado na rua depois do recolher obrigatório; que um atirador furtivo comunista o abatera para lhe roubar os papéis; que fora executado pelos próprios alemães quando descobriram que andava a vender produtos do exército no mercado negro. De repente, a aldeia encheu-se de alemães, uniformes pretos e cinzentos a revistarem as casas uma a uma. Prestaram pouca atenção à nossa quinta. Afinal não vivia lá nenhum homem, só três miúdos com a mãe doente. Fui eu quem lhes abriu a porta e lhes mostrou a casa, mas eles pareciam mais interessados no que sabíamos sobre o Raphaél Crespin do que em qualquer outra coisa. Mais tarde o Paul contou-nos que o Raphaêl desaparecera naquele dia ou talvez durante a


noite. Que desaparecera sem deixar rastro, levando papéis e todo o dinheiro que tinha, e que os alemães tinham encontrado na cave do La Mauvaise Réputation uma quantidade de armas e explosivos mais que suficientes para atirar Les Laveuses pelos ares duas vezes. 295 Os alemães vieram a nossa casa duas vezes, revistaram-na da cave ao sótão e depois perderam o interesse. Notei, sem grande surpresa, que o oficial das SS que veio a nossa casa era o mesmo homem jovial e de faces rosadas que elogiara os nossos morangos uns meses antes. Ainda tinha as faces rosadas apesar da natureza da investigação, fazendo-me festas na cabeça enquanto seguia os soldados pela casa, certificando-se de que deixavam tudo arrumado. Na porta da igreja apareceu um cartaz em alemão e francês, encorajando quem sabia de alguma coisa a fornecer informações. A mãe ficou todo o dia no quarto com uma das suas enxaquecas, a dormir durante o dia e a falar sozinha à noite. Nós dormimos mal, visitados por pesadelos. Quando aconteceu, foi com uma sensação de anticlímax. Estava tudo acabado antes mesmo de sabermos, por volta das seis da manhã contra a parede da igreja de São Benedito, ao pé da fonte onde, apenas dois dias antes, a Reinette se sentara com a sua coroa de trigo atirando flores. O Paul veio contar-nos. O rosto estava pálido e manchado, uma veia saliente na testa enquanto nos contava com uma


voz que era um longo gaguejo. Ouvimo-lo num silêncio horrorizado, paralisados, perguntando, talvez, como era possível que as coisas tivessem chegado àquele ponto, como é que uma semente tão pequenina como a nossa podia ter desabrochado numa flor tão sangrenta. Os nomes deles caíram-me nos ouvidos como pedras em águas profundas. Dez nomes, dez nomes que nunca esqueceria durante o resto da minha vida: Martin Dupré, Jean-Marie Dupré, Colette Gaudin, Philippe Hourias, Henri Lemaitre, Julien Lanicen, Arthur Lecoz, Agnès Petit, François Ramondin, Auguste Truriand. Ecoando-me na memória como o refrão de uma canção que sabemos que não irá deixar-nos em paz, surpreendendo-me durante o sono, martelando-me os sonhos, ritmando os movimentos da minha vida com uma precisão incansável. Dez nomes. Um por cada uma das dez pessoas que tinham estado no La Mauvaise Réputation naquela noite. Percebemos mais tarde que o factor decisivo fora o desaparecimento do Raphaél. O armazenamento de armas na cave sugeria que o dono do café estava ligado à Resistência. Ninguém sabia realmente. Talvez o café não passasse de uma fachada para actividades de resistência cuidadosamente organizadas, ou talvez a morte do Tomas tivesse sido um simples caso de retaliação pelo que acontecera ao velho Gustave umas semanas antes, mas, fosse o que fosse, Les Laveuses pagou um preço bem alto pela sua pequena rebelião. Como as vespas no fim do Verão, os alemães sentiam o fim aproximar-se e responderam com selvajaria instintiva. Martin Dupré, Jean-Marie Dupré, Colette Gaudin, Philippe Hourias, Henri Lemaitre, Julien Lanicen, Arthur Lecoz, Agnès Petit, François Ramondin, Auguste Truriand. Perguntava-me muitas vezes se teriam caído em silêncio, como figuras num


sonho, ou se tinham chorado, suplicando e agarrando-se uns aos outros numa última tentativa de escapar. Perguntava-me se os soldados tinham depois inspeccionado os corpos, um contraindo-se ainda, os olhos esbugalhados, mas finalmente silenciado pela coronha de uma espingarda, um soldado levantando uma saia ensanguentada, revelando e expondo uma coxa macia. O Paul disse que não demorara mais de um segundo. Ninguém fora autorizado a assistir e tinham posto soldados armados ao pé das janelas fechadas. Posso ainda imaginar as pessoas, encolhidas atrás das persianas, a espreitar avidamente pelos buracos e frinchas, bocas abertas, em choque. E depois os murmúrios, os comentários em voz baixa, palavras cuspidas como se ajudassem a compreender. - Vêm aí! Olha os irmãos Dupré. E a Colette, a Colette Gaudin. O Philippe Hourias. O Henri Lemaitre, porquê ele? Não faz mal a uma mosca, está bêbedo durante a maior parte do dia. E o Julien Lanicen, o velhote. O Arthur Lecoz. E a Agnès, a Agnès Petit. E o François Ramondin. E o Auguste Truriand. Da igreja, onde já começara a primeira missa da manhã, vem o som de vozes a cantar. Um hino de Outono de colheitas. Do lado de fora das portas fechadas, dois soldados de ar aborrecido, azedo. O Père Froment choraminga as palavras e a congregação repete-as baixinho. Apenas uma dúzia de pessoas hoje, os rostos severos e acusadores porque consta que o padre fez um acordo com os alemães para garantir a cooperação. O órgão toca o mais alto que pode, mas mesmo assim os tiros são audíveis lá


fora contra a parede, a percussão abafada das balas a embaterem nas velhas pedras, algo que ficará agarrado à carne de cada um dos membros da congregação como um anzol velho, meio-cicatrizado mas nunca arrancado. 296 - 297 Nas traseiras da igreja alguém começa a cantar La Marseillaise, mas as palavras saem ébrias e demasiado altas na súbita calmaria e o cantor cala-se, envergonhado. Ainda vejo tudo nos meus sonhos, mais claramente que na memória. Vejo as caras deles. Ouço as suas vozes. Vejo a transição repentina e chocante de vivos para mortos. Mas o meu desgosto está demasiado fundo para o conseguir alcançar e é com um sentimento de surpresa, quase de indiferença, que por vezes acordo com a cara coberta de lágrimas. O Tomas morreu. Nada mais tem qualquer significado. Acho que estávamos em estado de choque. Não discutimos o acontecido e fomos cada um para seu lado, a Reinette para o quarto, onde permaneceria deitada em cima da cama durante horas a olhar para as revistas de cinema; o Cassis refugiou-se nos livros, parecendo-me agora cada vez mais velho, como se algo nele se tivesse desintegrado; eu fui para o bosque e para junto do rio. Durante os dias que se seguiram, prestámos pouca atenção à mãe apesar de o seu achaque continuar, mais duradouro que o pior naquele Verão. Mas naquela altura já nos esquecêramos de ter medo dela. Até a Reinette deixou de se encolher perante os ataques de fúria dela. Afinal, tínhamos matado alguém. Depois disso, íamos ter medo de quê? O meu ódio, como a minha raiva, ainda não tinha alvo


preciso; o Velho estava pregado à pedra e portanto não podia culpá-lo pela morte do Tomas - mas sentia-o mover-se, a observar, como a objectiva de uma minúscula máquina fotográfica, vendo tudo e registando tudo. Vinda do quarto depois de outra noite de insónia, a mãe, pálida e cansada e desesperada. Ao vê-la, sinto o meu ódio a concentrar-se num único e magnífico diamante negro de compreensão perfeita. "Tu, foste tu, foste tu". Olhou para mim como se tivesse ouvido. - Boise? - a voz tremendo, vulnerável. Virei-lhe as costas, sentindo o ódio no meu coração como um cubo de gelo. Ouvi-a inspirar repentinamente atrás de mim, como se alguém lhe tivesse pregado um susto. 298 19. Depois foi a água. Nessa semana, a água do poço, que normalmente era doce e límpida, começou a correr acastanhada como turfa, e tinha um gosto esquisito, amargo e meio-queimado, como se folhas mortas tivessem sido varridas para dentro do cilindro. Durante um ou dois dias fizemos de conta, mas aquilo só parecia piorar. Até a mãe, cujo achaque estava finalmente a passar, notou. - Deve ter sido alguma coisa que entrou para o poço sugeriu. Olhámos para ela com as nossas habituais expressões em branco. - Vou ter de ir ver o que é - decidiu. Esperámos o resultado da descoberta com um estoicismo aparente. - Ela não pode provar nada - disse o Cassis, desesperado. Ela não pode saber.


A Reine choramingou. - Mas vai descobrir, vais ver. Vai descobrir tudo e vai saber. O Cassis mordeu o punho, furioso, como para se impedir a si mesmo de gritar. - Por que é que não nos disseste que havia café no pacote? - resmungou. - Não sabias pensar? Encolhi os ombros. Ao contrário dos meus irmãos, permaneci serena. 299 Nunca se descobriu o que quer que fosse. A mãe voltou do poço com um balde cheio de folhas e declarou a água limpa. - Deve ser sedimento devido às cheias do rio - disse num tom quase alegre. - Quando o nível da água baixar, a água fica limpa outra vez. Vão ver. Trancou outra vez a tampa de madeira do poço e passou a andar com a chave presa ao cinto. Não tivemos oportunidade de lá voltar. - O pacote deve-se ter afundado - decidiu o Cassis. - Era pesado, não era? Nunca o encontrará, a não ser que o poço seque. - Todos sabíamos que isso era muito pouco provável. E quando chegasse o Verão, o pacote e o seu conteúdo estariam já desfeitos no fundo do poço. - Estamos a salvo - disse o Cassis. 300 20. Receita para crème de framboise liquer. Reconheci-as imediatamente. Por um momento pensei que fosse um molho de folhas secas e puxei-o com uma vara para


limpar a água. Lavar as framboesas e retirar os pelinhos. Pô-las de molho em água morna durante meia hora. Depois percebi que era um embrulho de roupa preso com um cinto. Nem precisei de revistar os bolsos para saber imediatamente. Escorrer a água e pôr os frutos num frasco de modo a cobrir o fundo. Tapar com uma camada alta de açúcar. Repetir as camadas até o frasco estar meio-cheio. De início não conseguia pensar. Disse às crianças que limpara o poço e fui-me deitar. Tranquei o poço. Não conseguia pensar direito. Cobrir a fruta e o açúcar com conhaque, tendo o cuidado de não perturbar as camadas, e encher o frasco até acima. Tapar e deixar durante pelo menos dezoito meses. A escrita é pequenina mas bem desenhada, daquela maneira hieroglífica que usa sempre que quer que as suas palavras permaneçam secretas. Quase posso ouvir a voz dela, a entoação ligeiramente nasal, a evidência da terrível conclusão. Devo ter sido eu. Sonhei tantas vezes com violência que desta vez devo ter mesmo chegado a vias de facto. 301 A roupa dele no poço, as chapas de identidade no bolso. Deve ter voltado e eu matei-o; devo ter-lhe dado um tiro, despindo-o e atirando o corpo ao rio. Quase consigo lembrarme, mas não totalmente, como num sonho. Tantas coisas me parecem um sonho ultimamente. Não posso dizer que esteja arrependida. Depois do que ele me fez, do que ele fez, do que deixou que fizessem à Reine, a mim, aos meus filhos, a mim. Aqui, as palavras tornam-se ilegíveis, como se o terror se tivesse apoderado da caneta e a tivesse feito patinar pela


página num rabisco desesperado, mas depois recupera o controlo. Tenho de pensar nos meus filhos. Já não estão em segurança. Ele usava-os o tempo todo. Todo o tempo em que eu pensava que era a mim que queria, mas era as crianÇas que ele estava a usar. Agradando-me para poder usá-las mais ainda. Aquelas cartas. Palavras maldosas, mas foi do que precisei para abrir os olhos. O que estavam eles a fazer no La Rép? Que mais teria planeado para eles? Talvez tenha sido bom o que aconteceu à Reine. Pelo menos estragou-lhe o arranjinho a ele. As coisas descontrolaram-se. Morreu uma pessoa. Isso não fazia parte dos planos dele. E os outros alemães também nunca fizeram parte dos planos dele. Também os usava. Para levarem com as culpas, se fosse preciso. E agora os meus filhos. Mais rabiscos descontrolados: Quem me dera conseguir lembrar-me. O que será que ele me ofereceu desta vez pelo meu silêncio? Mais comprimidos? Será que ele acreditava mesmo que eu pudesse dormir descansada sabendo o que pagara por eles? Ou será que sorriu e me tocou na cara daquela maneira especial, como se nada tivesse mudado entre nós? Foi por isso que o fiz? As palavras estão legíveis mas tremidas, controladas com uma enorme força de vontade.


Há sempre um preço. Mas os meus filhos não. Leva outra pessoa. Qualquer pessoa. Leva a aldeia inteira, se quiseres. É isso que penso quando vejo as suas caras nos meus sonhos, que o fiz pelos meus filhos. Devia mandá-los para casa da Juliette durante um tempo. Acabar o que tenho a fazer aqui e ir buscá-los quando acabar a guerra. Lá estarão a salvo. A salvo de mim. Mandá-los para longe, os meus queridos Reine, Cassis e Boise. Sobretudo a minha pequenina Boise. Que mais posso fazer? E quando chegará isto ao fim? Aqui, pára; uma receita de guisado de coelho escrita a vermelho separa este texto do último parágrafo, que está escrito numa cor e num estilo diferente do resto, como se tivesse sido muito bem pensado. Já está tudo combinado. Vou mandá-los para casa da Juliette. Ali estarão em segurança. Inventarei qualquer coisa para satisfazer os coscuvilheiros. Não posso abandonar a quinta agora; as árvores requerem cuidados durante o Inverno. A Belle Yolande ainda tem traços de bicho; terei de resolver esse problema. Além do mais, estarão mais seguros sem mim. Agora tenho a certeza disso. Não consigo sequer imaginar o que deve ter sentido. Medo, arrependimento, desespero e terror, ao aperceber-se de que estava finalmente a enlouquecer, de que os ataques tinham aberto a porta dos pesadelos entre o mundo dos seus sonhos eo mundo real, ameaçando tudo o que Lhe era querido. Mas a tenacidade dela foi mais forte. Herdei dela essa teimosia, o


instinto de se agarrar ao que era dela, mesmo que isso a matasse. Não, nunca me apercebi daquilo por que ela estava a passar. Tinha os meus próprios pesadelos. Mas, mesmo assim, começara a ouvir os boatos na aldeia, boatos que cresciam cada vez mais ameaçadores e que a mãe, como sempre, se recusava a negar ou nem sequer reparando nisso. Os escritos no galinheiro tinham iniciado uma onda de má vontade e suspeita que, depois das execuções ao pé da igreja, começava a correr mais livremente. As pessoas sofrem de maneiras diferentes, algumas em silêncio, algumas com raiva, outras com rancor. É muito raro o desgosto despertar nas pessoas o que elas têm de melhor, digam os historiadores locais o que quiserem, e Les Laveuses não escapou à regra. 302 - 303 O Chrétien e a Murielle Dupré, depois de um breve período em que o choque da perda de ambos os filhos os manteve em silêncio, viraram-se um contra o outro, ela megera e maliciosa, ele grosseiro, desafiando-se com o olhar na igreja - ela com um olho negro -, um sentimento próximo do ódio. O velho Gaudin fechou-se sobre si mesmo como uma tartaruga pronta para hibernar. A Isabelle Ramondin, que sempre fora má-língua, tornou-se cínica e falsa, olhando para todos do alto dos seus olhos azuis-escuros, o queixo a tremer, choroso. Acho que foi ela quem começou tudo. Ela ou o Claude Petit que, quando a irmã era viva, estava sempre a dizer mal dela, mas que agora era a perfeita imagem da dor fraternal, ou o Martin Truriand, herdeiro do negócio do pai agora que o irmão morrera. Parece que a morte traz sempre à tona o pior, e em Les Laveuses foi a hipocrisia, a inveja, a falsa piedade e a


ganância. No espaço de três dias parecia que todos se olhavam com ódio, desconfiados uns dos outros. Juntavam-se em grupos de dois ou três para cochicharem e calavam-se quando alguém se aproximava. Num momento desatavam num choro sem razão, no outro partiam os dentes aos amigos, e passado um tempo comecei a perceber que os sussurros aumentavam sempre que nós estávamos por perto, quando íamos aos correios ou à quinta dos Hourias comprar leite. Era sempre o mesmo: olhares de lado e murmúrios pelas costas. Uma vez atiraram uma pedra à mãe, outra atiraram terra contra a nossa porta depois da hora do recolher obrigatório. As mulheres viravam-nos as costas sem nos cumprimentarem. E apareceram mais escritos, desta vez nas paredes da casa. "PUTA NAZI", dizia um deles. Outro, numa parede do abrigo das cabras, dizia: "OS NOSSOS IRMÃOS E IRMÃS MORRERAM POR TUA CAUSA". Mas a mãe encarava tudo aquilo com um desdém indiferente. Quando deixou de haver leite na quinta dos Hourias, passou a comprá-lo em Crécy e começou a ir pôr as cartas no correio em Angers. Ninguém lhe falava, mas quando a Francine Crespin lhe cuspiu para os pés num domingo de manhã à saída da igreja, a mãe cuspiu também, em cheio na cara da Francine, com uma velocidade e pontaria notáveis. Quanto a nós, éramos ignorados. O Paul ainda falava connosco de vez em quando, mas não se estivesse alguém a ver. Os adultos pareciam reparar em nós, mas às vezes alguém


meio-doido como a Denise Lelac dava-nos uma maçã ou uma fatia de bolo para enfiarmos nos bolsos, murmurando na sua voz velha e irregular: "Tomem. Tomem, por amor de Deus. É uma pena que crianças como vocês sejam apanhadas numa história destas", antes de se afastar à pressa, as saias pretas arrastando pelo solo amarelado e poeirento e o cesto das compras bem seguro nas mãos ossudas. Na segunda-feira seguinte já a aldeia toda repetia que a Mirabelle Dartigen tinha sido a puta dos alemães e que fora por isso que a família dela tinha sido poupada. Na terça-feira alguém se lembrou que o meu pai um dia exprimira simpatia pelos alemães. Na quarta-feira à noite um grupo de bêbedos o La Mauvaise Réputation estava fechado há já algum tempo e as pessoas tornam-se amargas e violentas quando bebem sozinhas veio até à nossa casa para atirar pedras e gritar insultos. Ficámos no nosso quarto com a luz apagada, a tremer de medo, até que a mãe saiu para a rua e acabou com aquilo. Nessa noite dispersaram em silêncio. Na noite seguinte foram-se embora ruidosamente. E depois chegou sexta-feira. Ouvimo-los chegar pouco depois do jantar. O dia estivera cinzento e nublado, como se um cobertor velho tivesse caído do céu, e as pessoas sentiam-se irritadiças e excitadas. À noite, o tempo não melhorou; uma névoa esbranquiçada e húmida cobria tudo, fazendo com que a nossa quinta parecesse uma ilha, entrando por baixo das portas e pelas frinchas das janelas. Comêramos em silêncio, como se tornara habitual, e com pouco apetite, apesar de a mãe ter feito um esforço para preparar o


que nós mais gostávamos. Pão de sementes de girassol amassado naquele dia, manteiga de Crécy, rillettes, fatias de andouillette do porco morto no ano anterior, pedaços de boudin fritos e panquecas de trigo-sarraceno, estaladiças e aromáticas como as folhas outonais. A mãe, tentando mostrar-se alegre, serviu-nos cidra de uns bolées de barro, mas ela própria não bebeu. Lembro-me que sorriu constante e dolorosamente durante a refeição inteira, por vezes dando uma gargalhada um pouco falsa apesar de ninguém ter dito nada engraçado. - Tenho estado a pensar. - A voz alegre e um pouco metálica. - A pensar que talvez nos fizesse bem mudar de ares. Olhámos para ela, indiferentes. O cheiro a cidra e a gordura era sufocante. 304 - 305 - Estava a pensar em ir visitar a Tante Juliette em Pierre-Buffière - continuou. - Vocês haviam de gostar. Fica nas montanhas, no Limousin. Há lá cabras e marmotas e... - Aqui também há cabras - disse eu, a voz monótona. A mãe deu uma daquelas gargalhadas vazias e infelizes. Devia ter adivinhado que ias ter alguma coisa contra - disse. Olhei-a nos olhos. - Queres que a gente fuja. Por um momento fingiu não perceber. - Eu sei que parece ser longe - disse com aquela alegria forçada -, mas não é, e a Tante Juliette ficaria contente de vos ver, de nos ver a todos. - Queres que a gente fuja por causa do que as pessoas andam a dizer - disse eu. - Que és uma puta nazi. A mãe corou. - Não devias prestar atenção a coscuvilhices - respondeu bruscamente. - Não é bom para ninguém.


- Oh, então não é verdade? - perguntei, simplesmente para a embaraçar. Sabia que não e não podia sequer imaginar que o fosse. Já tinha visto prostitutas antes. Eram cor-de-rosa e redondinhas, doces e bonitas, com olhos grandes e vazios e bocas pintadas como as actrizes de cinema da Reinette. As prostitutas riam e davam gritinhos e usavam sapatos de salto alto e tinham bolsas de pele. A mãe era velha, feia e amarga. Até quando se ria era feia. - Claro que não! - Desviou o olhar. - Então por que é que vamos fugir? - insisti. Silêncio. E no súbito silêncio ouvimo-lo, o primeiro murmúrio áspero de vozes lá fora, e depois o estrépito de metal e o barulho de passos decididos mesmo antes de a primeira pedra bater contra as portadas. O som de Les Laveuses em todo o seu desprezo mesquinho e fúria vingativa, pessoas já não-pessoas - não eram os Gaudins, os Lecozes, os Truriands, os Duprés ou os Ramondins - mas membros de um exército. Espreitámos pela janela e vimos que se tinham reunido ao pé do portão, vinte, trinta, talvez mais, na sua maioria homens, mas também algumas mulheres. Alguns com tochas ou candeeiros, como uma procissão do fim das colheitas tardia, outros com os bolsos cheios de pedras. Enquanto espreitávamos e a luz da cozinha se espalhava pelo pátio, houve alguém que se virou para a janela e atirou outra pedra, que rachou o velho caixilho de madeira e espalhou vidros pelo compartimento. Foi o Guilherm Ramondin, o homem da perna de pau. Mal podia distinguir a cara dele na luz bruxuleante das tochas, mas, mesmo através do vidro, era possível sentir o peso do seu ódio. - Cabra! - A voz dele estava quase irreconhecível, deformada por algo mais que álcool. - Sai cá para fora, minha cabra, antes qu'a gente vá aí dentro buscar-te! - Uma espécie de rugido acompanhou as suas palavras, pontuado por batidas


de pés, vivas e uma saraivada de gravilha e torrões de terra que bateu nas nossas portadas semifechadas. A mãe entreabriu uma janela partida e gritou lá para fora. Vai para casa, Guilherm, meu idiota, antes que caias para o lado e alguém tenha de te levar ao colo para casa. - Risos e gracejos na multidão. O Guilherm agitou a muleta em que se apoiava. - Para cabra alemã, tem um paleio muito corajoso! - gritou ele. A voz soava áspera e ébria, apesar de as palavras mal se distinguirem. - Quem é que lhes contou do Raphaèl, hã? Quem é que lhe contou o que se passava no La Rép? Foste tu, Mirabelle? Disseste às SS que eles tinham matado o teu amante? A mãe cuspiu-lhes da janela. - Paleio corajoso? - A voz dela era aguda, estridente. - E logo tu a falar de coragem, Guilherm Ramondin! Tu bem podes falar de coragem, aí bêbedo à porta da casa de uma mulher honesta, a assustar os meus filhos! Tu, que conseguiste ser enviado para casa ao fim de uma semana na Frente enquanto o meu marido era morto! Ao ouvir aquilo, o Guilherm deu um rugido de fúria. Atrás dele, a multidão juntou-se-lhe, rouca. Outra saraivada de pedras e terra espalhou-se pelo chão da cozinha. - Sua cabra! - Agora entravam pelo portão, empurrando-o e fazendo-o saltar com facilidade dos gonzos apodrecidos. O nosso velho cão ladrou uma vez, duas, e depois calou-se com um súbito latido de dor. - Não penses que nós não sabemos tudo! Não penses que o Raphaêl não nos contou! - A voz triunfante e cheia de ódio ouvia-se acima do resto. Na escuridão avermelhada sob a janela vi os olhos dele, reflectindo a luz vermelha do fogo como um jogo de vidros partidos. - Sabemos que fazias negócios com eles, Mirabelle! Sabemos que o Leibniz era teu amante! - Da janela, a mãe atirou um jarro cheio de água aos que estavam mais próximos.


306 - 307 - Para vos arrefecer os ânimos! - gritou furiosa. - Acham que as pessoas só pensam nessas coisas? Acham que toda a gente tem o mesmo nível que vocês? Mas o Guilherm já tinha avançado para o portão e dava pancadas na porta, intrépido. - Sai daí, minha puta! Sabemos o que tens andado a fazer! - A porta estava já a tremer sob a violência das pancadas. A mãe virou-se para nós, o rosto ardendo de raiva. - Peguem nas vossas coisas. Vão buscar a caixa do dinheiro que está debaixo do lava-louças. Tragam os nossos documentos. - Porquê? Mas... - Façam o que eu vos digo! Desaparecemos dali. Primeiro pensei que o estrondo que se seguiu - um barulho tremendo que fez estremecer as tábuas apodrecidas do chãofosse o som da porta a vir abaixo. Mas quando voltámos à cozinha vimos que a mãe tinha empurrado o aparador até à porta, partindo muitos dos seus preciosos pratos pelo caminho, usando-o para barricar a entrada. Também a mesa tinha sido arrastada para junto da porta de maneira a que ninguém pudesse entrar mesmo se o aparador cedesse. E segurava a espingarda do pai na mão. - Cassis, vai ver a porta das traseiras. Acho que eles ainda não se lembraram disso, mas nunca se sabe. Reine, fica aqui comigo. Boise... - Por um momento olhou para mim de um modo estranho, os olhos pretos e brilhantes, imperscrutáveis, mas não conseguiu acabar a frase porque naquele instante a metade


superior da porta partiu, expondo uma fatia de céu escuro. Alguns deles devem ter subido aos ombros dos outros, porque umas caras coradas pelo fogo e pela raiva espreitaram pelo buraco da porta. Uma delas era do Guilherm Ramondin. O sorriso dele era feroz. - Não penses que te podes esconder na tua casinha - gritou. - Vamos aí buscar-te, cabra. Vamos aí buscar-te para pagares pelo... pelo que fizeste ao... Até naquelas circunstâncias, com a casa a desmoronar-se à sua volta, a mãe conseguiu dar uma gargalhada azeda. - Ao teu pai? - disse numa voz aguda e desdenhosa. - O teu pai, o mártir? O François? O herói? Não me faças rir! - Ergueu a espingarda para ele a ver. - O teu pai não passava de um bêbedo patético que mijava nas calças. O teu pai... - O meu pai era da Resistência! - A voz do Guilherm era estridente de raiva. - Senão, por que é que ele ia ao café do Raphaêl? Por que outra razão haviam os alemães de o matar? A mãe riu-se outra vez. - Ai era da Resistência - disse. Então, o velho Lecoz também fazia parte da Resistência? E a coitada da Agnès? E a Colette? - Pela primeira vez naquela noite, a coragem do Guilherm vacilou. A mãe deu um passo em direcção à porta partida, a espingarda apontada. - E digo-te mais, Ramondin, o teu pai fazia tanto parte da Resistência como eu sou a Joana D'Arc. Era um velho triste e idiota, mais nada, um velho de picha mole que falava de mais! Estava no sítio errado à hora errada, mais nada, tal como vocês, seus idiotas! Agora vão para casa, todos. - Deu um tiro para o ar. - Todos! - gritou. Mas o Guilherm era teimoso. Encolheu-se quando os estilhaços da madeira pulverizada Lhe rasparam a cara, mas não desceu de onde estava. - Alguém matou aquele boche - disse numa voz mais sóbria. Alguém o executou. Se não foi a Resistência, quem foi? E


depois, alguém foi contar às SS. Alguém da aldeia. Só podias ter sido tu, Mirabelle. Quem mais? A mãe começou a rir. À luz do fogo, via-lhe a cara, corada de raiva e quase bonita. À volta dela, a cozinha em ruínas. O riso dela era assustador. - Queres saber, Guilherm? - Havia na voz dela uma nova entoação, uma nota quase de alegria. - Só vais para casa quando souberes, não é assim? - Voltou a disparar um tiro para o ar e bocados do tecto caíram ao chão como penas ensanguentadas à luz do fogo. - Queres mesmo saber? Pois, então que se foda! Vi-o encolher-se ao ouvir aquela palavra mais do que quando a mãe disparara para o ar. Os homens dizerem asneiras, não fazia mal, mas as mulheres fazerem-no - pelo menos as mulheres decentes -, era impensável. Percebi que a mãe se condenara com as suas próprias palavras, mas ela não parecia ter terminado. - Eu conto-te a verdade, queres, Ramondin? - disse. A sua voz falhava de riso, talvez com histeria, mas naquele momento eu tinha a certeza de que ela estava a divertir-se. - Eu conto-te exactamente o que aconteceu. Eu não precisei de denunciar ninguém aos alemães, Ramondin. E sabes porquê? 308 - 309 Porque fui eu que matei o Tomas Leibniz! Matei-o! Não acreditas? Matei-o! - Conseguia ouvi-la a carregar no gatilho apesar de a espingarda estar vazia. A sombra que ela projectava no chão da cozinha era vermelha e preta como a de um gigante. E não parava de gritar. - Sentes-te melhor, Ramondin? Matei-o! Dormia com ele, é verdade, e não me arrependo. Matei-o e voltaria a matá-lo se fosse preciso. Voltaria a matá-lo mil vezes. Que me dizes agora? Que caralho me dizes agora?


Estava ainda a gritar quando a primeira tocha caiu no chão da cozinha. Aquela apagou-se, apesar de a Reinette ter começado a chorar mal viu as chamas, mas a segunda pegou fogo às cortinas e a terceira o que restava do aparador. A cara do Guilherm já desaparecera do buraco da porta, mas ainda se ouvia lá fora, a dar ordens. Outro archote, um feixe de palha como os utilizados para fazer o trono da Rainha da Colheita, entrou pelo buraco da porta e foi aterrar, esfumaçante, no meio da cozinha. A mãe continuava a gritar, completamente fora de controlo. Matei-o, seus cobardes! Matei-o e ainda bem! E mato-vos a vocês, um a um, e quem se atrever a meter-se comigo ou com os meus filhos! - O Cassis tentou pegar-lhe no braço, mas ela empurrou-o contra a parede. - A porta das traseiras! - gritei-Lhe. - Temos de sair pela porta das traseiras. - E se eles estão lá à nossa espera? - choramingou a Reinette. - Paciência! - gritei impaciente. Lá de fora chegavam burburinhos e apupos, como uma feira subitamente selvagem. Peguei na mãe por um braço e o Cassis pegou no outro. Juntos, arrastámo-la desvairada e a rir até à porta das traseiras. Claro que estavam à nossa espera. Tinham as caras vermelhas, iluminadas pelo fogo. O Guilherm barrou-nos o caminho, com o Lecoz do talho e o Jean-Marc Hourias, talvez um pouco envergonhado mas a rir-se na mesma. Estavam bêbedos, quem sabe, ou talvez ainda sóbrios de mais, preparando-se para o acto de matar como crianças, desafiando-se uns aos outros. Já tinham pegado fogo ao galinheiro e à barraca da cabra e o cheiro a penas queimadas misturava-se com o ar húmido e frio da noite. - Não vão a lado nenhum - disse o Guilherm com azedume.


Atrás de nós, a casa suspirava e gemia à medida que o fogo a devorava. A mãe virou a espingarda ao contrário e, com um gesto quase demasiado rápido para ser visto, esmurrou o peito do Guilherm com a coronha. Ele caiu. Por um segundo houve um vazio onde ele tinha estado, e eu saltei através dele, debatendo-me contra uma massa de cotovelos e pernas, paus e forquilhas. Alguém me agarrou pelo cabelo, mas eu era escorregadia como uma enguia esgravatando por entre a multidão. Senti-me presa, sufocada numa súbita onda de corpos. Consegui esgadanhar o meu caminho até ter ar e espaço, mal sentindo as pancadas que caíam sobre mim. Corri pelo campo até à escuridão, escondendo-me atrás de um arbusto de framboesas. Algures ao longe pareceu-me ouvir a voz da mãe, um grito enraivecido para lá do medo. Parecia um animal a defender as crias. O cheiro a queimado estava a aumentar. Parte da frente da casa caiu com um estrondo e uma suave vaga de calor chegou até mim. Alguém, acho que foi a Reine, deu um grito fraco. A multidão era uma coisa sem forma, toda ódio. A sua sombra chegava até ao arbusto de framboesas e mais além. De onde estava, vi parte do telhado da casa cair numa chuva de fagulhas como fogo de artifício. Uma chaminé de ar quente elevou-se vermelha no escuro da noite, levando consigo até ao céu pedaços de madeira e outros destroços da casa num enorme géiser de chamas. Uma figura destacou-se da multidão e correu pelo campo em frente à casa. Reconheci o Cassis. Correu em direcção ao


milheiral e provavelmente até ao Posto de Vigia. Uma ou duas pessoas começaram a segui-lo, mas a maior parte ficou onde estava, como que hipnotizada pelo fogo. Além do mais, era a mãe que eles queriam. Podia ouvir a voz dela por sobre o barulho do incêndio e dos gritos da multidão. Estava a chamar por nós. - Cassis! Reine-Claude! Boise! Levantei-me por trás do arbusto, pronta a correr se alguém se aproximasse. Pondo-me em bicos de pés, consegui vê-la momentaneamente. Parecia uma criatura de um conto de pescadores, presa por todos os lados mas debatendo-se furiosamente, o rosto vermelho e preto de fogo, de fumo e de sangue, um monstro das profundezas. Podia ver outras caras, também: a Francine Crespin, a carinha de santa distorcida numa careta de ódio; o velho Guilherm Ramondin que não parecia deste mundo. Agora também havia medo no ódio deles, uma espécie de medo supersticioso que só podia ser apagado com morte e destruição. 310 - 311 Tinham demorado bastante tempo a atingir aquele ponto mas o tempo da matança tinha chegado. Vi a Reinette sair do meio da multidão e fugir também em direcção ao milheiral. Ninguém tentou impedi-la. E nessa altura, a maioria, cega pela sede de sangue, teria sido incapaz de a reconhecer. A mãe caiu. A mão que vi emergir do meio dos corpos curvados sobre ela pode ter sido imaginação minha. Era como qualquer coisa saída de uma das histórias dos livros do Cassis como A Praga dos Zombis ou O Vale dos Canibais. A única coisa que faltava era o bater dos tambores da selva. Mas o pior do horror era que eu conhecia aquelas caras, graças a Deus vistas só muito brevemente à luz do fogo. Aquele era o pai do Paul.


Aquela era a Jeanette Crespin, que quase fora eleita Rainha da Colheita, que tinha apenas dezasseis anos e a cara coberta de sangue. Até o tímido Père Froment lá estava, embora fosse impossível dizer se tentava acalmar os ânimos ou se contribuía para o caos. Vi punhos e paus abaterem-se sobre a cabeça e costas da mãe, encolhida no chão como um punho fechado, como uma mulher que segura um bebé ao colo, ainda a gritar palavras de desafio, agora menos claras, abafadas pelo calor dos corpos e do ódio. Então ouviu-se o tiro. Todos o ouvimos, apesar do barulho; o tiro de uma arma de calibre pesado, talvez uma carabina ou uma daquelas pistolas antigas ainda guardadas nos sótãos das quintas ou debaixo das tábuas do chão nas aldeias de toda a França. Foi um tiro para o ar, apesar de o Guilherm Ramondin o ter sentido raspar-lhe a cara e de ter imediatamente despejado a bexiga, em pânico. Toda a gente olhou em redor, a tentar descobrir de onde viera. Ninguém sabia. A minha mãe começou a arrastar-se de debaixo das mãos agora subitamente quietas. Estava coberta de sangue; na cabeça viam-se partes mais lisas onde o cabelo tinha sido arrancado e, enterrado numa das mãos, um pau afiado, os dedos irremediavelmente deslocados. O som do fogo - bíblico, apocalíptico - era agora o único som que se ouvia. As pessoas estavam à espera, lembrandose talvez do som da brigada de execução frente à igreja de Saint-Jerôme, agora tremendo ante as próprias intenções sangrentas. Ouviu-se uma voz - vinda do milheiral talvez, ou da casa em chamas, ou até mesmo do céu - uma voz de homem,


forte e autoritária, que era impossível ignorar ou desobedecer. - Deixem-nos! A mãe continuava a arrastar-se. Pouco à vontade, a multidão afastou-se para a deixar passar, como trigo inclinando-se com a força do vento. - Deixem-nos! Voltem para vossas casas! A voz não Lhes era desconhecida, disseram depois. Havia qualquer coisa, uma entoação, que reconheceram mas não conseguiram identificar. Alguém gritou com histeria: - É o Philippe Hourias! - Mas o Philippe estava morto. Um arrepio percorreu toda a gente. A mãe conseguiu chegar ao campo, cambaleante e desafiadora. Alguém avançou para a impedir, depois pensou melhor. O Père Froment baliu algo fraco e bem-intencionado. Um par de gritos zangados soaram e morreram no silêncio supersticioso. Cuidadosa e insolente, sem tirar os olhos daquele bando selvagem, comecei a avançar em direcção à minha mãe. Sentia a cara a arder do calor, os meus olhos cheios do reflexo da luz do fogo. Peguei-lhe na mão que não estava magoada. O largo e escuro milheiral dos Hourias estendia-se à nossa frente. Mergulhámos nele sem uma palavra. Ninguém nos seguiu. 312 - 313 21. Fui para casa da Tante Juliette com a Reinette e o Cassis. A mãe ficou connosco durante uma semana e depois foi-se embora, talvez por sentimentos de culpa ou por medo, mas a razão dada foi a sua saúde. Vimo-la poucas vezes depois disso. Soubemos que tinha mudado de nome, que estava de novo a


usar o nome de solteira, e que se tinha mudado para a Bretanha natal. Depois pouco mais soubemos. Soube que tinha aberto uma padaria e que ganhava a vida vendendo as suas velhas especialidades. Cozinhar sempre foi o seu primeiro amor. Nós ficámos com a Tante Juliette até podermos sair de casa. A Reine para tentar o cinema, como há tanto tempo ansiava; o Cassis escapando-se para Paris e eu para um casamento seguro. Ouvimos dizer que a quinta em Les Laveuses só tinha sido parcialmente devorada pelo fogo, que os anexos estavam praticamente intactos e que, do edifício principal, só a parte da frente tinha sido totalmente destruída. Podíamos ter regressado, mas a história do massacre de Les Laveuses já se tinha espalhado. A confissão da mãe em frente daquelas três dúzias de testemunhas; tanto as palavras dela - Dormia com ele, matei-o e não me arrependo - como os sentimentos que expressara em relação aos seus conterrâneos tinham bastado para a condenar. Foi erigido um monumento aos dez mártires do Grande Massacre e, mais tarde, quando as coisas desse género se tornaram em curiosidades para serem contempladas por lazer, quando a dor da perda e o terror diminuíram um pouco, tornou-se claro que a hostilidade em relação a Mirabelle Dartigen e aos seus filhos não diminuiria. Tive de encarar a verdade: nunca voltaria a Les Laveuses. Nunca mais. E durante muito tempo nem me apercebi realmente de quanto o desejava. 314 22.


O café está ainda ao lume, a ferver. O seu aroma é amargamente nostálgico, um cheiro negro a folhas queimadas, com uma ponta de fumo no vapor. Bebo-o muito doce, como uma vítima de choque. Acho que agora posso começar a perceber como a mãe deve ter-se sentido, a liberdade de deitar tudo borda fora. Já se foram todos embora. A rapariga com o pequeno gravador e a montanha de cassetes, o fotógrafo. Até a Pistache já foi para casa, por insistência minha, e contudo posso ainda sentir os braços dela à minha volta, o último toque dos seus lábios na minha face. A minha filha boa, durante tanto tempo descuidada em favor da minha má. Mas as pessoas mudam. Finalmente sinto que posso falar convosco, minha querida Noisette rebelde, minha doce Pistache. Agora posso abraçálas sem sentir que me estou a afogar em lodo. O Velho está finalmente morto; a sua maldição acabou. Nenhum desastre sobreviverá se me atrever a amar-vos. A Noisette atendeu o meu telefonema ontem à noite, já tarde. Tinha a voz tensa e cautelosa, como a minha; imaginei-a inclinada sobre a superfície polida do bar, como eu, o rosto anguloso e desconfiado. Há pouco calor nas palavras dela, vindas da lonjura fria e através de tantos anos desperdiçados, mas de vez em quando, quando fala da filha, consigo ouvir algo na voz dela. Algo como o início da ternura. E isso enche-me de felicidade. Vou contar-lhe quando chegar o momento, acho eu; atraindo-a até a mim a pouco e pouco. Com ela posso dar-me ao luxo de ser paciente; afinal, conheço a técnica. De certo modo, ela precisa desta história mais do que ninguém - com certeza mais


do que o público a farejar velhos escândalos -, mais ainda que a Pistache. A Pistache não guarda rancor. 315 Aceita as pessoas como são, honestamente e com bondade. Mas a Noisette precisa desta história, e a filha dela, a Pêche, também, para o fantasma do Velho não voltar a assombrarnos nunca mais. A Noisette tem os seus próprios demónios. Só espero já não ser um deles. Agora que todos se foram embora, a casa parece estranhamente vazia e desabitada. Uma corrente de ar sopra folhas mortas sobre os azulejos. E contudo não me sinto completamente só. Absurdo imaginar fantasmas nesta casa. Vivi aqui tanto tempo e nunca senti um arrepio de presença, mas hoje sinto... alguém, mesmo atrás das sombras, uma presença silenciosa, discreta e quase humilde, à espera... A minha voz saiu mais ríspida do que eu pretendia. - Eu perguntei quem está aí. Está aí alguém? - Soou metálica contra as paredes nuas, contra o chão de tijoleira. Ele avançou para a luz, subitamente eu estava quase a rir, à beira das lágrimas pela sua presença. - Cheira a café bom - disse à sua maneira calma. - Meu Deus, Paul! Como é que consegues andar assim tão silencioso? Deu uma risadinha. - Pensei... pensei que tu... - Tu pensas de mais - disse o Paul simplesmente, avançando em direcção ao fogão. A luz fraca do candeeiro fazia a cara dele parecer amarela-dourada, e o bigode comprido dava-lhe um aspecto um


pouco lúgubre que contrastava com o brilho dos olhos. Tentei imaginar quanto da minha história ele teria ouvido. Esquecera-me dele, ali sentado no escuro. - E também falas muito - disse com ternura, servindo-se de café. - Pensava que nunca mais te ias calar. - Fez um sorriso rápido e malandro. - Precisava que percebessem - comecei, nervosa. - E a Pistache... - As pessoas são mais compreensivas do que tu pensas. Avançou na minha direcção e pôs-me a mão no rosto. Cheirava a tabaco e a café. - Por que é que te escondeste durante tanto tempo? Para quê? - Havia... coisas que não podia contar a ninguém - vacilei. - Nem a ti. A ninguém. Coisas que eu achava que iam destruir tudo à minha volta. Não percebes, nunca fizeste nada... O Paul riu-se, um som doce e descomplicado. - Oh, Framboise, é isso que tu pensas? Que eu não sei o que é guardar um segredo? - Pegou na minha mão suja e pô-la entra as suas. Achas que eu sou demasiado estúpido até para ter um segredo? - Não foi isso que pensei... - comecei. Mas tinha sido. Meu Deus, tinha sido isso mesmo. - Tu achas que podes carregar o mundo às costas - disse o Paul. - Então ouve. - Estava outra vez a descair no dialecto e nalgumas palavras podia ouvir traços da gaguez da sua infância. Esta combinação fê-lo soar muito jovem. - Aquelas cartas anónimas. Lembras-te das cartas, Boise? Aquelas com aqueles erros todos? E os escritos na porta do galinheiro? Acenei que sim. - Lembras-te de como ela c-costumava esconder as cartas quando tu entravas? Lembras-te de como sabias que ela tinha recebido uma pela maneira como começava a andar de um lado para o outro com um ar assustado e zangado e o-odiosa porque se sentia assustada e zangada? E lembras-te de como a odiavas,


especialmente nesses dias, tanto que a podias ter matado com as tuas próprias mãos? Anuí. - Era eu - disse o Paul simplesmente. - Era eu que as escrevia, todas. Aposto que nem sabias que eu sabia escrever. E que porcaria me saíram para a trabalheira que me deram. Para me vingar. Por ela me ter chamado cretino à frente de ti, do Cassis e da Reine-C-C-C... - fez uma careta de frustração, corando furiosamente. - À frente da Reine-Claude - terminou devagar. - Estou a ver. Claro. Como todos os mistérios, era claro como água quando se sabia a resposta. Lembrava-me perfeitamente da cara dele quando a Reinette estava connosco, de como corava e gaguejava e se calava, apesar de a voz dele ser quase normal quando a sós comigo. 316 - 317 Lembrava-me do olhar de puro ódio que deitara à minha mãe naquele dia - Fala como deve ser, meu cretino! - e do grito de dor e raiva com que se afastara em direcção ao bosque. Lembrava-me da maneira como às vezes olhava para os livros do Cassis, com um olhar de feroz concentração - todos sabíamos que não conseguia ler uma palavra. Lembrava-me do estranho olhar de aprovação nos olhos dele quando distribuí os quartos da laranja e às vezes de um sentimento estranho de estar a ser observada quando estava no rio - até naquele dia, naquele último dia com o Tomas: até nesse dia, meu Deus, até nesse dia. - Nunca quis que as coisas fossem tão longe. Queria que ela


se arrependesse, mas nunca quis que as outras coisas acontecessem. Mas descontrolaram-se. Como acontece às vezes. Como quando um peixe é demasiado grande para a cana e foge com a linha. Mas tentei compensar-vos pelas coisas más que fiz, no fim tentei. Olhei para ele. - Meu Deus, Paul! - Demasiado espantada até para estar zangada, se é que ainda havia em mim algum espaço livre para a raiva. - Eras tu, não eras? Eras tu com a espingarda naquela noite na quinta? Eras tu, escondido no milheiral? O Paul acenou. Não conseguia tirar os olhos dele, vendo-o, talvez, pela primeira vez. - Já sabias? Este tempo todo e tu já sabias de tudo? Encolheu os ombros. - Vocês pensavam todos que eu era mole disse sem amargura. - Pensavam que podia estar a acontecer tudo debaixo do meu nariz e que eu nem reparava. - Sorriu o seu sorriso lento e triste. - Mas agora acho que já está, não? Entre nós os dois. Acabou, não acabou? Tentei pensar com clareza, mas os factos recusavam-se a encaixar. Durante todos aqueles anos pensara que fora o Guilherm Ramondin quem começara tudo, quem os incitara na noite do fogo. Ou talvez o Raphaél, ou algum membro de uma das famílias. E agora descobrir que fora o Paul, o meu querido e doce amigo Paul, que nem sequer tinha doze anos e que era limpo como o céu de Verão. Começara tudo e terminara tudo, também, com a dura e inevitável sequência das estações. Quando finalmente consegui falar, foi para perguntar algo completamente diferente, algo que nos surpreendeu aos dois. - Amava-la assim tanto? - A minha irmã Reinette, com as suas maçãs do rosto bem definidas e os seus caracóis brilhantes. A minha irmã Rainha da Colheita, com bâton nos lábios e uma


coroa de amoras, um feixe de trigo numa mão e um cesto de fruta pelo braço. É assim que me lembrei dela, sempre. Aquela imagem clara e perfeita na minha mente. Senti uma inesperada picada de ciúmes junto ao coração. - Talvez como tu o amavas a ele - respondeu o Paul calmamente. - Como tu amavas o Tomas Leibniz. Que tolos éramos quando crianças. Tolos magoados, mas sempre com esperança. Passei a vida a sonhar com o Tomas, durante os meus anos de casada na Bretanha, durante a minha viuvez, sonhando com um homem como o Tomas, com o mesmo riso despreocupado, os mesmos olhos inteligentes e da cor do rio, o Tomas do meu desejo - "tu, Tomas. Só tu, para sempre" - a maldição do Velho cumprida de forma terrível. - Demorei um tempo, sabes - disse o Paul -, mas passou. Deixei-me ir. É como nadar contra a corrente. Uma pessoa fica exausta. Passado um tempo, sejas quem fores, tens de deixar de lutar e o rio traz-te a casa. - A casa. - A minha voz soava-me estranha. As mãos dele sobre as minhas, quentes e ásperas como pele por curtir. Imaginei-nos aos dois, ali àquela luz fraca como Hansel e Gretel, velhos e de cabelos brancos, finalmente a fechar a porta da casa da bruxa. Deixa de lutar e o rio traz-te a casa. Parecia tão fácil. - Esperámos muito tempo, Boise. Virei a cara. - Demasiado, talvez. - Não acho. Respirei fundo. Era agora. Era agora que tinha de explicar que tudo acabara, que a mentira entre nós era velha de mais para apagar, grande de mais para superar, que nós éramos demasiado velhos, por amor de Deus, que aquilo era ridículo, impossível, e que além disso, além disso... Então beijou-me, nos lábios, não um beijo de velhote tímido mas qualquer coisa completamente diferente que me fez


sentir-me abanada, indignada e estranhamente esperançada. Tinha os olhos a brilhar quando tirou devagar qualquer coisa do bolso, uma coisa que brilhava, vermelho e amarelo, à luz do candeeiro... Um colar de maçãs silvestres. 318 - 319 Olhei-o nos olhos enquanto me pendurava docemente o colar ao pescoço. O colar de fruta brilhante e redonda descia até aos meus seios. - A Rainha da Colheita - murmurou o Paul. - Framboise Dartigen. Só tu. Sentia o aroma da fruta, bom e picante, contra a minha pele morna. - Estou demasiado velha - disse a tremer. - É demasiado tarde. Beijou-me outra vez, primeiro na fonte, depois ao canto da boca. Voltou então a pôr a mão no bolso e tirou uma trança de palha dourada que me colocou na cabeça, como uma coroa. - Nunca é demasiado tarde para voltar a casa - disse, e puxou-me para si, meigo, insistente. - Basta que deixes de resistir. Resistir é como nadar contra a corrente, é cansativo e inútil. Virei a cara para a curva do ombro dele, como para uma almofada. À volta do meu pescoço, o colar de maçãs silvestres emanava um forte aroma a seiva, como os Outubros da nossa infância. Brindámos ao nosso regresso a casa com café, croissants e doce de tomate feito segundo a receita da minha mãe.

Data da Digitalização Amadora, Outubro de 2002



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.