O maquiador
Samuel Cardeal
O MAQUIADOR
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SAMUEL CARDEAL
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Samuel Cardeal
Depois de acionar por sete vezes a função soneca no despertador, finalmente consegui me levantar, chegaria atrasado ao trabalho mais uma vez, não que isso realmente importasse, já que meu horário de labor era flexível. Desde que cumprisse minhas dezesseis horas diárias, não haveria problema. Vesti o uniforme e apanhei meu café da manhã. Levei uns dois minutos para escolher o sabor, no fim, acabei pegando a refeição com sabor de frango, espremi o tubo flexível e engoli todo o creme. Não sei por que sempre perdia tanto tempo escolhendo os sabores, no final das contas todos eles tinham o mesmo gosto insosso de pomada para assadura. Entrei na cápsula de transporte pneumático, coloquei a máscara de oxigênio e apertei o botão. A viagem pelos tubos, do apartamento até o trabalho, levava exatos dezesseis minutos, tempo esse que eu costumava aproveitar para tirar um breve cochilo. Os cientistas do governo afirmavam que quatro horas de sono eram absolutamente suficientes para que o corpo humano se recuperasse de um dia de trabalho, ficando apto para a próxima jornada. Eu jamais acreditei em quem trabalhasse para o governo. A cápsula saía do meu quarto e me deixava dentro da sala onde eu trabalhava. Nas próximas dezesseis horas seriam apenas os novos mortos e eu, ninguém mais. Talvez esteja difícil
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compreender de que diabos eu estou falando, desculpe-me pela indelicadeza e deixe que eu me apresente: meu nome é Wagner, moro na cidade de Belo Horizonte e sou maquiador de cadáveres, pelo menos essa é a versão oficial. E mais um detalhe, não sei em que época você está lendo este relato, mas eu vivo no ano de 2025. O objetivo final do meu trabalho, na realidade, não se distingue totalmente do que consta nos registros oficiais. Eu me formei no curso técnico em computação gráfica e modelagem tridimensional há cerca de seis anos atrás. Como atualmente, todo o ensino é feito à distância, ninguém sabe minha verdadeira formação. No dia seguinte à chegada do meu diploma pelo correio magnético, dois oficiais da “A União” bateram à minha porta, ofereceram-me um emprego, desde que eu concordasse em jamais fazer perguntas. O salário era atrativo e eu estava desempregado, obviamente aceitei a oferta. Minha função de fato é recriar o morto dentro de um ambiente virtual e dar a ele a melhor aparência possível. As famílias velam o corpo acreditando que seja real, quando o que veem não passa de um holograma projetado com absoluta perfeição. Neste momento você deve estar se perguntando: O que acontece com o verdadeiro corpo? Oficialmente, eu não faço a mínima ideia, não consta no meu contrato e não sou autorizado a
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ter conhecimento a nesse nível de informação. Mas, na verdade, todos os defuntos frescos em estado recuperável se convertem em força de trabalho para A União. Os cientistas do governo chegaram à conclusão que ciborgs são bem mais duráveis e fáceis de fabricar que robôs trabalhadores. Dito isso, apostaria uma grana que você está especialmente curioso para saber como eu sei de tudo isso. Não se preocupe, a resposta é deveras simples, apesar de ninguém; além de mim; ter conhecimento dela. EU SOU UM HACKER! Meu trabalho é inteiramente secreto, e fui escolhido justamente por ser um sujeito solteiro, sem parentes vivos e, notadamente, sem vida social. O que nem mesmo o governo conseguiu descobrir é que eu sempre fui muito mais que isso. Quando eu era uma criança, com apenas sete anos de idade, o Governo Federal, hoje chamado apenas de “A União”, classificou o acesso à internet por civis, sem autorização expressa expedida pela autoridade máxima do país, como crime. Todos os pontos de acesso não pertencentes ao governo foram destruídos. Porém, minha curiosidade nasceu cedo. Aos dez anos eu já era capaz de encontrar furos no sistema e acessar a rede por meio de uma tomada de energia elétrica. Hoje, com vinte e dois anos, eu posso entrar em qualquer computador dentro do país.
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A jornada laboral a qual sou submetido a cumprir foi calculada
por
especialistas,
as
dezesseis
horas
seriam,
supostamente, o tempo ideal para “maquiar” doze corpos. No entanto, sou capaz de concluir todo o trabalho de um dia com aproximadamente duas horas. O que eu faço nas quatorze horas restantes? Eu navego! E quando se invade sistemas secretos de um governo totalitário, você descobre muita coisa a qual não deveria nem sonhar em saber. Se eu tenho medo de ser apanhado? Mas que tipo de pergunta é esta? É claro que eu não tenho medo. Como meu trabalho é totalmente secreto, não há câmeras a me vigiar. Minha sala é um espaço de seis metros quadrados, sem janelas nem portas. Há apenas a passagem para o tubo de transporte e dois compartimentos, uma para a entrada dos cadáveres e outro para saída. Pelo primeiro eu recebo um corpo e um cartão de memória criptografado, faço meu trabalho, salvo no cartão e devolvo o pacote pelo segundo compartimento. Mensalmente meu salário é creditado em uma conta eletrônica. A moeda atual é a “samba”, hoje um samba equivale a mais ou menos sete dólares. O dinheiro físico foi extinto em 2015, e todas as transações passaram a ser feitas em terminais especiais, instalados no interior dos prédios oficiais.
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Nos dias de hoje, não há muito com o que gastar, a não ser que você tenha muito para gastar. A maioria das pessoas ganha menos que o suficiente para se sustentar, então não pensam em consumo. O que recebo, no entanto, é mais que suficiente para o meu sustento, mas não sou do tipo consumista, todo o excedente eu guardo, estou economizando para comprar um dormitório no nível treze. Com o crescimento industrial no Brasil, as cidades foram divididas em níveis. Aqui, em Belo Horizonte, são treze. O nível um é o mais baixo, afixado por sobre o solo, os seguintes são empilhados uns sobre os outros, como cidades construídas sobre cidades. O treze é o único de onde se pode ver a luz do sol, e apenas os mais abastados tem condições de morar lá. Eu não vejo a luz do sol desde que eu tinha quinze anos. Não posso dizer que meus dias de trabalhos eram penosos e cansativos, mas, vez ou outra, o sono me acometia de forma agressiva, e quando chegava ao último morto, já não me importava em que tipo de pessoa eu estava a reconstruir. Neste dia, minha lista foi bem diversificada. Comecei o dia com uma jovem asiática, seguida de uma coroa de cabelos loiros, três crianças, um hermafrodita de madeixas rubras, duas morenas, uma idosa albina e três homens negros de meia idade. Quando o último cadáver do
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dia me foi entregue, eu dividia meu tempo entre pequenos cochilos e bocejos que arrancavam lágrimas de meus olhos. A esteira saiu pelo compartimento e deslizou suavemente até ficar de frente para mim. O lençol cobria o defunto até a cabeça, estranhei, já que normalmente o rosto já chegava descoberto, mas não fazia diferença, de qualquer maneira eu teria que remover o lençol e contemplar o corpo nu do morto, ainda que a visão não fosse das mais agradáveis. Depois de algum tempo vendo corpos desnudos todos os dias, a nudez passa a ser uma coisa natural, até mesmo banal, e isso fez a pornografia da internet perder totalmente a graça. Faltavam sessenta e oito minutos para o fim da minha jornada, decidi matar o tempo com um velho jogo de pinball no computador. Em menos de vinte minutos fiz o máximo de pontos que o programa comportava e me entediei. Levantei da cadeira e caminhei letárgico até a esteira. Cocei os olhos que insistiam em se fechar. Bocejei mais uma vez e o líquido lacrimal escorreu nas bochechas, enxuguei o rosto e assim que minha visão voltou a ter foco arranquei o lençol com um só puxão. Quando os restos mortais se revelaram, meu queixo foi parar no chão. Senti o corpo tremer, o sangue gelou, minha pele empalideceu, e por alguns segundos meu coração parou. Eu desmaiei.
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Quando eu despertei, antes mesmo de abrir os olhos completamente, senti uma dor excruciante em minha cabeça, me esforcei para manter as pálpebras erguidas, levantei ainda zonzo e com a visão turva. Fitei o corpo sem vida sobre a esteira metálica e o espanto se repetiu. Ao contrário do que pensei, o que havia visto não era uma ilusão, uma falsa impressão ou um delírio febril. Era real. Busquei a cadeira com as mãos sem desgrudar os olhos do defunto estendido ao meu lado. Sentei-me e segurei o metal gélido da maca. Aproximei meu rosto do morto para ter certeza do que eu via. Não arrisquei tocá-lo, mas estava certo de que aquilo era o que eu imaginava. Minha vida jamais seria a mesma, disso eu tinha certeza. Os “maquiadores” eram escolhidos de forma que um morto jamais fosse “maquiado” por algum conhecido, para isso devassavam a vida de cada um de nós antes de nos contratar, mas eu conhecia bem aquele rosto pálido e gélido que estava à minha frente. Pois aquele rosto... ...era idêntico ao meu.
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