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Quanto mais conheรงo os homens, mais estimo os animais. (Alexandre Herculano)
Prefácio Quando Richard Owen, em 1842, deu o nome de “dinossauros” para aquelas criaturas descobertas em diversas partes do mundo, depois de tempos antigos, talvez não imaginasse como elas se tornariam populares no decorrer das décadas, gerando uma intensa literatura e obras cinematográficas, produtos que as crianças amam e desejam. Para ele, bem provável, eram apenas animais, monstros antediluvianos, feras extintas há muito tempo. Ou talvez ele as visse como os chineses as viam: dragões, cujos ossos e dentes encontrados ao acaso eram esmagados e usados para medicamentos diversos. Alheios ao que é questionado e comprovado sobre os dinossauros, o mundo os colocou no lugar antes pertencente aos dragões, ou ao lado deles. E o fascínio alcançou o ápice com Jurassic Park, o filme que revolucionou os efeitos especiais e formou uma geração apaixonada por esses animais e, consequentemente, paleontologia. Passamos a acompanhar mais de perto ou com interesse as descobertas, documentários sobre dinossauros se tornaram abundantes, as crianças se divertiam com os desenhos de Em Busca do Vale Encantado e queriam brinquedos que os representassem. Eu, por exemplo, cresci fascinado por tudo que envolvesse dinossauros. Filmes, séries, desenhos animados, miniaturas, figurinhas, qualquer coisa que apresentasse essas criaturas. Foram eles que me fizeram escritor. Eu queria escrever sobre eles, ler sobre eles, saber sobre eles. Por isso, quando Samuel Cardeal me contou a ideia para este conto que logo vocês lerão, tudo isso veio à mente. Não era o texto de alguém que sabia sobre a diferença de um mosassauro e um crocodiliano ou que é errado chamar um apatossauro de
brontossauro. Era o texto de alguém alheio a esses detalhes que eu aprendi lendo e acabei acumulando no baú do conhecimento. E isso é interessante. Porque fica algo genuíno. Estava mais para uma versão socialista utópica da sociedade, mas com dinossauros. Sem muitos problemas, poderia ser um episódio de A Família Dinossauro, série que fez bastante sucesso e eu adorava. Gosto da escrita do Samuel. Não por ele ser meu amigo, mas porque é algo autêntico, sem apelos, sem disfarces. Ele tem a mão para a crítica e o humor, o deboche sem ser escrachado. E Depois do Fim: o Renascer tem isso, contudo mais equilibrado para a crítica do que para o humor. É um tapa na cara. Bem forte, por sinal. Assim como víamos os dinossauros como enormes lagartos terríveis e monstruosos, de sangue frio e irracionais, sem qualquer sensibilidade, os personagens humanos do conto veem as criaturas que caçam impiedosamente como fonte de alimento. E, assim como os cientistas atualmente começam a aceitar a ideia de dinossauros como répteis com penas, coloridos e de sangue quente, o protagonista irá rever seus preconceitos. Ajudei na edição deste material, aconselhei esticar um pouco e potencializar a crítica social. E tem dinossauros, caramba! E eles... bem... vocês precisam ler! Como eu disse, é um lindo episódio de A Família Dinossauros.
Alec Silva
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I Ano 3572. A expedição militar 836 partiu do continente rumo ao território das criaturas. Meu nome é Rangel Connor, e eu estava eufórico. Era minha primeira missão depois da formatura na escola militar. Meu pai já participou de dezenas de expedições como esta, e minha expectativa era de que meu desempenho naquele dia pudesse encher meu velho de orgulho. O coronel Joseph era um homem exigente e, mesmo eu sendo seu filho, não toleraria nada menos que o melhor desempenho em campo. Nunca vira uma criatura viva. O governo proibiu que fossem filmadas ou fotografadas. O motivo eu nunca soubera, mas todos obedecíamos a qualquer ordem do governo, pois era ele que mantinha-nos todos vivos e seguros. Depois de tudo o que aconteceu com o mundo, as pessoas tinham que agradecer pelo que nosso governo fazia por nós. Quando o mundo acabou, em 2532, um fenômeno que nossos cientistas chamaram de Segundo Big Bang, quase fomos extintos. A raça humana estivera por um fio. Mas houve alguns poucos sobreviventes, os únicos do reino animal. Dizem que nossos antepassados, antes do fim do mundo, se alimentavam de frutas e outros vegetais. Não sei como isso é possível, mas os professores disseram que o planeta mudou, e o ser humano mudou junto. Atualmente, não comíamos vegetais, porque nos faziam mal e podiam até matar. Precisávamos de carne, e é por isso que estávamos ali, adentrando o território hostil: iríamos caçar.
No início da nova era, as feras ainda não existiam. Levara séculos até que os microorganismos dessem origem a uma nova espécie. Enquanto isso não acontecia, os humanos foram obrigados a aderir ao canibalismo. Éramos a única carne no planeta, e a carne era o único alimento que nos fazia bem. Meu pai costumava dizer que foi um período de seleção natural. Só os fortes sobreviveram, e os fracos alimentaram os fortes. Por isso atualmente nossa espécie era tão soberana. Há mais de 100 anos não precisávamos comer nossos semelhantes, pois tínhamos as criaturas. O pouco conhecimento científico que sobrou do mundo antes do fim mostrou que existiram antes, quando nem mesmo existiam seres humanos; eram chamadas de dinossauros. No novo mundo, as chamávamos apenas de feras. Eram irracionais e violentas, por isso vivíamos bem longe delas. Mas sua carne era saborosa e, afinal, a única de que dispúnhamos. A caçada de hoje deveria prover a alimentação de todos por um bom tempo. E eu não queria saber de voltar para casa sem uma grande fera para o almoço. Os civis jamais teriam essa oportunidade, mas agora eu era um soldado, e minha missão, matar algumas bestas. Desde que meu pai entrara no exército, não houvera notícias de feridos durante as expedições. Ainda assim, a adrenalina subia por minha garganta e já podia sentir o gosto do sangue dos animais que iria abater. Fui o melhor da minha turma em tiro à distância, por isso conseguira uma boa colocação na nave. Minha cabine era uma das primeiras da linha de frente, e tinha ao meu dispor duas metralhadoras de última geração com munição quase ilimitada. Nossos veículos avançavam por terra. Sua superfície e paredes transparentes garantiam uma boa visibilidade para nós, os artilheiros. No entanto, o aspecto físico da nave poderia enganar olhos mais inexperientes, pois, apesar da transparência, o material que nos protegia do ambiente exterior no território das feras era o mais resistente do planeta. Estávamos viajando há aproximadamente sete horas, e agora já podíamos visualizar os limites da floresta. Nossa civilização
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estava implantada em locais distantes das selvas, visando proteger os cidadãos, por isso as viagens eram sempre longas. O comandante ordenou ao piloto que mudasse para o modo silencioso. Ficamos mais lentos, porém isso nos garantia maior discrição. Os desgraçados só nos notariam quando já estivessem recebendo os projéteis em suas carcaças. A ordem era atirar para matar, mas minimizando ao máximo as regiões com mais carne. A intenção sempre foi aproveitar tudo o que podíamos dos animais. Chegamos ao limiar que dividia o deserto e a selva; entramos no território das feras silenciosamente. Ao nosso redor, vislumbramos uma vegetação abundante, com predominância das folhas azuis e cinzas. Algumas árvores surgiam tão altas quanto a vista alcançava, com folhas tão largas que serviriam de cama para três ou quatro soldados grandes. Uma imensa variedade de frutos se precipitava dos galhos mais baixos, em formatos cilíndricos e esféricos, com uma variação de cores inacreditável. Depois de avançarmos alguns quilômetros, consegui avistar os primeiros espécimes. Mastigavam alguma coisa, não identifiquei o quê. Provavelmente os mais fortes se alimentando dos mais fracos. Mas isso não tinha a menor importância; bastava que fossem grandes e com bastante carne. — Artilheiros, temos contato visual — avisou o comandante. — Destravar armas! — destravamos nossas metralhadoras, perfazendo uma sinfonia de cliques metálicos. — Estão liberados para atirar, senhores. Apenas lembrem-se de que vamos comer essas bestas, então não os desfaçam em pedaços. Todos riram, fazendo um burburinho no ambiente. Estava com minhas armas destravadas e prontas para a caçada. Meus dedos colados ao gatilho suavam; ansiedade aos píncaros, não via a hora de abater minhas primeiras vítimas. Logo nos primeiros disparos, dois deles foram derrubados, alertando os demais, que voltaram suas atenções à nossa nave. Eu ainda não disparara, pois não tinha nenhum monstro na mira. Apesar da munição não ser problema, fomos orientados a não atirar a esmo, pois ao acertar o que não víamos, havia grande chance de estragar uma boa peça de carne, além de assustar as feras e fazê-las correr.
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Comecei a ficar nervoso, ainda não tivera a chance de abater nenhum deles. Isso deveria ser uma carnificina, e até agora minha contagem estava zerada. Pude ver um à minha frente; disparei duas vezes, acertando o ombro da fera, mas não é suficiente: a bala ricocheteou em sua carapaça espessa e se desviou. Tentei novamente, acertei o braço. Não era o ideal, pois a carne do braço é a mais macia e saborosa, contudo já era alguma coisa. Acertar aquele disparo, ainda que não tenha abatido definitivamente o animal, me deixou animado. Esperei até ter uma boa oportunidade de finalizar a fera ferida. Preparei-me para disparar novamente, mas um vulto cobriu minha visão e interrompeu meu intento. Olhei para cima e vislumbrei um enorme animal montado sobre a nave. Até então, não vira nenhuma criatura tão grande. Sua couraça escamosa de um amarelo berrante e aparentemente muito grossa. Todos voltaram suas armas para o monstro e começam a disparar. Fiz o mesmo e tentei mirar nos olhos, mas o animal estava ensandecido, não me permitia uma mira precisa. Pressionei o gatilho e vi uma rajada arrancar pedaços de escamas amarelas próximo às narinas. Diversos disparos o atingiam em outras partes do corpo, destroçando a pele dura e alcançando a carne. Dos ferimentos, verteu um fluido esbranquiçado e levemente fluorescente. Percebi que a besta ficava fraca depois de tantos disparos. Aproveitei sua letargia e fiz a mira certeira. Pressionei o gatilho uma única vez. Em cheio! Acertei o olho direito da fera, ela tentou erguer o braço minúsculo para alcançar o globo estraçalhado, mas, a despeito do corpanzil assustador, seus membros superiores eram pequeninos e curtos, como os de um bebê. Enquanto o animal se contorcia de dor, disparei mais uma vez, acertando o outro olho e deixando-o completamente cego. Parei de atirar; os disparos de meus colegas seriam suficientes para fazer o animal perder totalmente as forças e tombar ao chão, já sem vida. Uma pena ter levado tantos tiros, pois agora sua carne tornara-se praticamente inservível. Suspirei aliviado por termos derrotado o monstro; no entanto, o estrago já estava feito. Notei que o teto da nave se trincara, e agora
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uma porção de feras avançavam em nossa direção. Em poucos segundos, a escuridão tomou conta da nave, toda a sua superfície coberta por uma multidão de animais selvagens. As feras formavam um grupo bastante heterogêneo, variando em tamanho, cor e corpo. Alguns bem pequenos, caminhando sobre apenas duas patas; outros, muito grandes, avançando sobre quatro patas grossas e curtas. Quase todos brilhavam, com suas couraças escamosas ganhando cores azuis, verdes, amarelas e vermelhas. Todos nós voltamos a atirar, mas agora em desvantagem. Muitas feras caíam ao primeiro disparo, contudo nossa fraqueza se encontrava na quantidade. Eles eram numerosos e, por mais que matássemos vários a cada minuto, mais e mais surgiam. Senti minha arma travar. Meu Deus! Ainda têm centenas deles sobre nós. Tentei enxergar as pontas das minhas metralhadoras entre a multidão de feras, o suor salgado invadindo meus olhos e embaçando a visão. Compreendi que as armas estavam cobertas de cadáveres dos animais. Um gosto amargo se precipitou em minha garganta. Era o medo. Eu sabia que minha primeira missão seria emocionante, mas isso não era apenas emocionante, era desesperador! A superfície da nave possuia um sem-número de rachaduras e não sei até quando iria aguentar. Continuei tentando disparar, mas as armas simplesmente não respondiam. Não havia para onde correr, e temi que aquele fosse o meu fim. Minha primeira missão seria também a última. Não tínhamos chance contra eles. Decidi que iria viver, não importava como. Sabia que a nave tinha um porão, um compartimento onde guardávamos as munições extras e os mantimentos. Claro que não caberiam todos lá, mas alguém precisava se salvar, e não me importava que esse alguém fosse eu. Desabotoei o cinto de segurança, ouvindo o meu coração martelar tão forte que chegava a me doer as costelas, e levantei para correr; porém, no primeiro passo, escutei o estrondo. Olhei para trás e toda a superfície transparente da nave se despedaçava em milhares de fragmentos, caindo como chuva sobre nossas cabeças.
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Agora, os monstros estavam dentro da nave; ouvia seus urros e grunhidos. Testemunhei com horror uma pequena fera saltar sobre o comandante. Ele sacou o revolver e tentou disparar, mas seus movimentos cessaram quando a bocarra da besta envolveu sua cabeça e a separou do corpo. Vi o monstro cuspir o crânio sem vida e uma ânsia de vômito me dominou quase por completo. Por todo o lado, vislumbrava meus colegas sendo dilacerados com mordidas e patadas. Membros arrancados, órgãos esmagados pelas patas dos maiores. O chão da nave se transformou em um mar de sangue, onde vísceras flutuavam perdidas. Voltei a correr, estava quase chegando à porta do porão. Estão todos condenados, e a única coisa que podia fazer era me salvar. Minha mão alcançou a maçaneta e então me lembrei de que era preciso digitar a senha no painel para poder entrar. Comecei a digitar os primeiros números, mas não pude concluir o procedimento. Minhas costas arderam; virei-me para ver um animal semelhante ao primeiro, porém um pouco menor, a nos atacar. Fitou-me com um olhar furioso, vi as garras de suas patas traseiras ensanguentadas; parte daquele fluido advinha do meu corpo. Faltavam apenas dois números da combinação para abertura da porta; virei-me para digitá-los, mas não cheguei a tocar o painel. Uma dor lancinante imobilizou meus movimentos. Senti minha carne ser rompida em todo o ventre e nas costas. Minha visão embaçou e perdi as forças. Acho que vou desmaiar. Estava balançando e tudo parecia torto, meio que de cabeça para baixo. Enfim, perdi a consciência.
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Calei-me por um momento. Mirei aqueles dois olhos vermelhos e brilhantes e refleti sobre tudo o que acabara de ouvir. Sem que eu percebesse, meus olhos verteram gotas espessas e salgadas, que rolaram pelo meu rosto e secaram sem tocar o chão. — Qual era o nome dele? — O quê? — perguntou o dinossauro. — Seu pai, qual era o nome do seu pai? — Augusto. E era um dinossauro de honra, diferente dos humanos que não sabem o significado dessa palavra. Sequei minhas lágrimas com as costas da mão, que estava esfolada e suja. Depois de uma fungada e um suspiro, tentei dizer alguma coisa que traduzisse o sentimento controverso que tomava minha mente e fazia doer meu peito. — Sinto muito, dinossauro. — Fernando. — Sinto muito, Fernando. Pelo seu pai. Por favor, me perdoe. Eu jamais imaginei que vocês fossem como nós. Fernando rosnou sonoramente, bufando pelo nariz e batendo as patas no chão, fazendo o solo estremecer até dentro da caverna. — Não somos como vocês! E o que fizeram não tem perdão! — O que vai fazer comigo? Vai me matar? Ele fechou a cara e se virou de costas, começando a caminhar na direção contrária à minha. — Você não vale o esforço… humano. Sem conseguir mais falar nada e voltando a perceber as dores das minhas feridas, perdi a consciência mirando a silhueta de Fernando, que se perdia em meio à mata multicolorida.
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