O Fim do Mundo [Joaquim Manuel de Macedo]

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O FIM DO MUNDO



JOAQUIM MANUEL DE MACEDO

EX! Editora 2016


Joaquim Manuel de Macedo, 1857

Edição, capa e projeto gráfico Samuel Cardeal Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP:

Joaquim Manuel de Macedo, 1820 - 1882 M171f O fim do mundo / Joaquim Manuel de Macedo – Belo Horizonte, EX! Editora/2016 1. Contos brasileiros 2. Joaquim Manuel de Macedo, 1857 3. Folhetim I. Título CDD B869.2 CDU 821.134.3(81)

Esta obra encontra-se em domínio público, de acordo com a lei nº 9.610 - de 19 de fevereiro de 1998, art. 41.


Sumário

Prefácio........................................................................................ 7 Introdução do autor à edição de 1873..................................11 I...................................................................................................17 II.................................................................................................19 III................................................................................................22 IV................................................................................................23 V..................................................................................................25 VI................................................................................................28 VII..............................................................................................32 VIII.............................................................................................33 IX................................................................................................35 X.................................................................................................38 XI................................................................................................39 XII..............................................................................................40 XIII............................................................................................41 XIV.............................................................................................44 XV...............................................................................................46 XVI.............................................................................................47 XVII...........................................................................................50 XVIII.........................................................................................51 XIX.............................................................................................53 7


Apêndices..................................................................................55 Biografia de Joaquim Manuel de Macedo.........................57 Imagens das primeiras publicações....................................61 Poemas sobre o fim do mundo no jornal “A Marmota Fluminense”...........................................................................63 O Cometa ou o fim do mundo. ...............................................64 Ainda o Cometa e o fim do mundo. .......................................66 Viva Santo Antonio!...................................................................68 Feliz lembrança............................................................................70 O Cometa e as saias-balões.......................................................71

Sobre as ilustrações...............................................................73 Primórdios do Fantástico Brasileiro......................................75


Prefácio

No ano de 1556, foi visto da terra o um grande cometa. O imperador Carlos V, que reinava com jugo sobre grande parte da Europa, teria visto a aparição como uma advertência por seu grande poder acumulado e, diante do suposto mau presságio, abdicou de seu trono; no ano seguinte, tornou-se frade, recolhendo-se ao Monastério de Yuste, na província espanhola de Cáceres. Ao cometa, após tal episódio apelidado de Carlos V, também teria sido atribuída a morte do Papa Urbano IV, quando de sua aparição em 1264. Há, ainda, relatos de que o mesmo corpo celeste fora avistado do continente nos anos de 995, 681 e 104. Com sua previsão de uma nova aparição em 1848 frustrada, por volta do ano de 1856, dois astrônomos, o holandês M. Bomme e o inglês John Russel Hind, debruçaramse em cálculos e concluíram que Carlos V voltaria a marcar presença no firmamento terrestre em agosto de 1857. Um jornal parisiense veiculou a informação, acrescentando-se a insinuação de um anônimo astrônomo alemão de que o cometa poderia vir a colidir contra a superfície da Terra. O futuro mostraria que os cálculos de Bomme e Hind estavam equivocados, visto que o cometa nunca apareceu; no entanto, a notícia de uma possível colisão causou enorme alvoroço. Isso ocorreu porque não demorou a que associassem a chegada do cometa com o prognóstico publicado no Almanaque profético do cônego de Liege, Matthieu Laensberg, o qual previa a chegada de um cometa por volta do dia 15 de julho de 1857 No Brasil, alardearam que o cometa chegaria em 13 de junho 1857, data na qual já se comemorava o dia de Santo Antônio. Assim, inspirado a escrever sobre o tema, 9


Joaquim Manuel de Macedo produziu O Fim do Mundo, cuja primeira publicação foi em 13 de agosto de 1857, no Jornal do Commercio. Considerada como uma das primeiras obras brasileiras de Ficção Científica, a obra traz como protagonista o ator Martinho Corrêa Vasques, notável cômico da companhia de João Caetano dos Santos, que, diante da iminente tragédia, elabora um plano para salvar sua vida do inevitável cataclisma. Contudo, o trabalho de Macedo, autor do clássico A Morenina, tende mais para a sátira e a fantasia do que para ficção científica, e tal característica só é desvelada no decorrer da leitura, com destaque para momentos de extrema ludicidade, a começar pelo plano do ator, que consiste em construir uma enorme escada que lhe dê acesso à Lua, onde pretende se abrigar durante a terrível queda do corpo celeste. Ao colocar em prática seu plano, o protagonista chega a empilhar instituições bancárias para chegar ao seu objetivo. Mas o nonsense de certas descrições não é gratuito, e serve à sátira afinada do escritor, que usa o divertimento leve para alfinetar o império e suas instituições durante toda a história, como nota-se no trecho a seguir: “Tomei como base ou primeiro degrau da escada o Banco do Brasil; com a alta de juros, só esse banco valia por mil degraus; em cima do Banco do Brasil coloquei o banco chamado Rural e Hypothecario, e trepei pelas hipotecas como um macaco pelos ramos e raminhos da mais alta arvore”

Macedo, além de se apropriar da cidade do Rio de Janeiro como cenário, trouxe seus amigos como personagens, fazendo de todos eles vítimas da destruição causada pelo cometa, chegando a colocar-se como personagem em uma breve aparição no decorrer do texto. Assim como o Martinho, grande parte das figuras citadas são personagens reais. A presente edição traz o texto integral da noveleta atualizado à luz do novo acordo ortográfico de 1990, acrescido de notas detalhadas e apêndices que auxiliam 10


no entendimento do texto considerando sua época e seu contexto histórico. O Fim do Mundo foi republicado em 1873 no livro Romances da Semana, editado pela Livraria de B. L. Garnier, que reuniu vários trabalhos de Joaquim Manuel de Macedo publicados anteriormente em folhetim. O texto ganhou novamente as páginas de um volume em 2011, integrando o livro Páginas do Futuro: contos brasileiros de ficção científica, pela editora Casa da Palavra, sob a organização de Braulio Tavares, que proveu a atualização ortográfica, mas, fora uma breve apresentação ao texto, não trouxe qualquer informação complementar ou contextualização da época. A presente edição é, portanto, a mais completa do texto de Macedo, visto que ressalta sua importância histórica por meio das informações complementares e permite uma leitura mais adequada de O Fim do Mundo. Aproveite a leitura, mergulhe nessa época e divirta-se. Samuel Cardeal Editor

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Introdução do autor à edição de 1873

Abaixo, a introdução escrita por Joaquim Manuel de Macedo à edição de O Fim do Mundo na coletânea Romances da Semana. Manteve-se a grafia original da época.

O Fim do Mundo em 1856 não é certamente um romance : faltão-lhe todas as condições para merecer esse titulo : foi um simples artigo de occasião que appareceu publicado no folhetim do Jornal do Commercio de 13 de Junho de 1856, que então por ventura chegou a agradar, e agora não terá merecimento algum ; contemplo-o porém n’esta collecção, nem mesmo saberei dizer porque... talvez para avolumar com algumas paginas mais o meu pequeno livro. Como se hão de lembrar muitos ainda, estava annunciado um cometa, para o anno de 18561, e não poucos terroristas, improvisando-se prophetas, determinavão o dia 13 de Junho de 1856, como o prazo fatal de um horroso cataclisma, cujo resultado seria nada menos que o fim do mundo. O famoso conego de Liége celebrisou-se por esse agouro sinistro. Muita gente acreditou nos agoureiros, e no Brazil não faltárão credulos, que virão com indizivel terror aproximarse o dia 13 de Junho. Foi esse o motivo do artigo que então escrevi, e que agora reproduzo n’esta pobre collecção. 1. Embora conste no original como 1856, acredita-se tratar-se de um erro tipográfico, visto que, de acordo com a obra em si e registros históricos, a previsão de surgimento do cometa era para o ano de 1857, mesmo ano em que o texto foi publicado no Jornal do Commercio.

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Fiz representar como protogonista, ou como narrador, n’esse artigo o senhor Martinho Corrêa Vasques, que é um actor muito conhecido e estimado no Rio de Janeiro. Foi uma liberdade que tomei, e de que elle me fez o favor de não se offender. Hoje, relendo essas breves e risonhas paginas que em 1856 escrevi, sinto verdadeira tristeza, porque n’ellas encontro de mistura com innocentes gracejos os nomes de pessoas, algumas das quaes a morte já arrancou do mundo, e entre elles o do meu amigo o commendador Manoel Moreira de Castro, de quem sempre recebi provas de estima e confiança extrema. O que então nos fez rir, fez-me entristecer agora. Não importa : ahi vai.

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I.

Estava reservada ao Martinho a triste obrigação de escrever a lúgubre história do cataclismo por que passou a cidade do Rio de Janeiro, e por que muito provavelmente há de ter passado o mundo inteiro no fatal dia 13 de Junho. Eu sou o novo Noé que sobreviveu ao novo dilúvio!, e sou ao mesmo tempo o Moisés do século das luzes que deve referir o infausto caso do fim do mundo no ano de 1857. Não fui daqueles estouvados2 incrédulos que zombaram da profecia do cônego de Liége3; tive sempre a maior veneração pelos cônegos, e não havia de ser em uma questão de cometa que o Martinho duvidasse da palavra de um cônego. Também não me contei no numero dos terroristas e dos aterrados, que, esperando pelo fim do mundo no dia 13 de Junho, não pensaram em escapar ao dilúvio, e resolveramse a morrer imóveis e caladinhos como carneiros. A ideia de acabar como capão4, peru, ou leitoa em dia de banquete me revoltava deveras. Que!, disse eu a mim mesmo, conversando com os meus botões; que! o Martinho, que tinha direito a considerar-se imortalizado pela fama, há de assim 2. Que ou aquele que é desajuizado; sem juízo, doidivanas, amalucado. (Dicionário Michaelis) 3. Matthieu Laensberg, o Cônego de Liége, foi um astrólogo que viveu na primeira metade do século XVII, e lhe é atribuída a primeira edição do Almanaque de Liége, publicação de 1625 que continha previsões políticas e pessoais, posteriormente proibido por Luís XIII. Fontes especulam que Matthieu Laensberg era provavelmente um pseudônimo utilizado pelos Rosa-cruzes para a publicação do Almanaque. 4. Animal emasculado, especialmente o carneiro, o porco ou o frango. (Dicionário Michaelis)

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sem mais nem menos perder a sua imortalidade, reduzido a torresmo pelo fogo da cauda de um cometa? Dizem que a diligência é mãe da boa ventura: a indústria humana pode vencer quase o impossível: pus-me a refletir, a imaginar, a combinar; gastei nisso mais tempo do que qualquer dos meus colegas em estudar a sua parte num drama novo, e por fim de contas dei um pulo, bati palmas, exclamei como Archimedes. Eureka! Eureka era o meio que eu tinha descoberto para livrarme das rabanadas do cometa e sobreviver ao cataclismo.

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II

O meu primeiro pensamento foi organizar uma companhia que tivesse por fim fazer construir uma estrada de ferro para o mundo da lua; mas abandonei esse projeto porque com a noticia da nova empresa poderia o Banco do Brasil lembrar-se de elevar ainda mais a taxa de juros, e tínhamos o diabo na praça, ainda antes de aparecer o cometa. Meditei depois sobre a construção de uma segunda torre de Babel, pela qual pudesse eu subir aos planetas e esconder-me no seio de Vênus, ou pelo menos em uma das asas do caduceu de Mercúrio: não me faltavam materiais para a obra; porque a torre de Babel é torre de confusão, e eu podia consequentemente arranjar muito bons arquitetos no corpo legislativo; mas tive também de rejeitar esta ideia, considerando que, publicada ela, encontraria eu logo algum outro pretendente competidor, e dava-se então um caso de duplicata, em que não é de regra que o bom direito seja atendido. Tornei a pensar, a refletir, a combinar, e dei enfim o meu salto de alegria, e mesmo de casaca e de gravata ao pescoço (porque isto sucedeu exatamente à hora de ensaio no teatro de S. Pedro de Alcântara, portanto sem estar em menores, ou nuzinho em pelo, como Archimedes), soltei o meu brado entusiástico: Eureka! Guardei muito em segredo o meu projeto, e esperei ansioso pelo dia 13 de Junho, e para que não me faltassem recursos pecuniários para a minha longa viagem, fiz o meu benefício no teatro de S. Pedro na noite de 9 de Junho, isto é, 4 dias antes do cometa. E fiquei esperando. 21




III.

A noite de 12 de Junho foi clara e formosa, como o rosto das amadas de todos os poetas passados, presentes e futuros. Em redor das fogueiras de Santo Antônio, os rapazes namoravam, os velhos falavam em conciliação, as moças tiravam sortes, e as velhas comiam batatas, apesar de serem as batatas a alimentação mais diabólica e ruidosamente indigesta que se conhece. Os sinos deram o sinal da meia-noite. Começava desde esse momento o dia 13 de Junho: era o dia do cometa. Eu estava com todos os órgãos dos meus sentidos, menos o olfato, exclusivamente ocupados a esperar o bicho caudato. Não esperei muito.

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IV.

A peça de artilheria e as bandeirolas do veterano Gabizo5 anunciaram incêndio. Eram cinco minutos depois da meia-noite. O Sr. conselheiro Mello oficiou a toda pressa ao Sr. ministro da guerra, participando-lhe que avistara a pontinha da cauda do cometa. Meia hora depois, o Sr. Dr. Capanema6 foi acordado na Estrela pela campainha do telégrafo elétrico, e recebeu e transmitiu para Petrópolis a tremenda notícia. À uma hora da noite, o Jornal do Commercio publicou e espalhou um suplemento dando conta ao público da funesta aparição. O Sr. José Maria dos Reis fez pregar anúncios nas esquinas das ruas, declarando que alugava telescópios a todos os curiosos. A população começou a sobressaltar-se; as ruas encheram-se de gente, as senhoras, como de costume, principiaram a gritar e a fazer matinada7. O ministério, o conselho de estado, os senadores e deputados reuniram-se, e celebraram sessão secreta no imperial observatório astronômico, cujo diretor pediu que o 5. Provavelmente refere-se ao militar Antônio João Fernandes Pizarro Gabizo. 6. Guilherme Schüch (1824-1908), naturalista, engenheiro e físico brasileiro. Foi responsável pela instalação da primeira linha telegráfica do Brasil. Adotou o sobrenome Capanema ao perceber a dificuldade que as pessoas, em Minas Gerais, onde nasceu, tinha dificuldades de pronuncias seu sobrenome alemão. 7. Barulho de múltiplas vozes; algazarra, vozearia, vozeria. (Dicionário Michaelis)

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dispensassem da presidência da grande assembleia, porque estava todo ocupado em admirar o formoso e imenso dragão aéreo. Estes astrônomos parecem poetas! No meio de toda esta confusão, pus eu os pés na rua, e disse: Martinho!, é chegada a hora da ação; faze o teu dever. E fiz.

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V.

Aluguei um telescópio ao Sr. Reis, e observei o cometa; era um bicho enorme, e vinha-se mostrando do lado do norte, e dirigindo-se para o sul. Bem, pensei eu; assim como o capoeira quebra o corpo tratando de livrar-se de uma facada, assim eu escaparei da cauda do cometa, fugindo em direção oposta àquela que ele segue. E tratei logo de realizar o meu projeto.

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VI.

Não havia tempo a perder. Começava-se a perceber o cometa sem o socorro de instrumentos óticos. Por ordem da polícia, que despertara rabugenta, apagaram-se todas as fogueiras, e apesar disso já se sentia calor como no mês de Janeiro. Deitei a correr. Entre as companhias de seguros, não achei uma de seguros aéreos; contentei-me pois com a de seguros marítimos e terrestres, e segurei-me deveras: por este lado estava arranjado. Principiei a minha obra, que devia ser nada menos do que uma escada que me levasse a pequena distancia da lua, contando daí por diante fazer o resto da viagem em uma bem arranjada maquina de balões de crinolina8, que com antecedência preparara. Qualquer outro no meu caso talvez procurasse construir a sua escada de cima do Corcovado, da Gávea, ou do mais elevado ponto da serra dos Órgãos; mas eu, que tinha calculado tudo, comecei a construção da minha de cima de montanhas muito mais importantes e das quais talvez ninguém se lembrasse. Peguei no Monte-pio, e carregando com ele sobre os ombros, encarapitei-o sobre o Monte de Soccorro; já tinha, portanto, duas montanhas uma sobre outra, e daí foi que comecei a arranjar a minha escada. Tomei como base ou primeiro degrau da escada o Banco do Brasil; com a alta de juros, só esse banco valia por 8. Tecido feito de crina.

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mil degraus; em cima do Banco do Brasil coloquei o banco chamado Rural e Hypothecario, e trepei pelas hipotecas como um macaco pelos ramos e raminhos da mais alta arvore; sobre o Banco Rural pus o Banco Mauá, sobre este o Banco Agrícola, sobre o Agrícola o Banco Industrial e Agrícola, sobre o Industrial e Agrícola o Banco do Rio de Janeiro, e em cima de todos eles acomodei a Caixa Hipotecária, que também me prestou um alto e excelente degrau. Banco sobre banco já eu tinha uma escada enorme: é verdade que os três últimos bancos ainda precisavam de alguma obra para entrar em serviço ativo; mas a necessidade era urgente, e eu aceitaria mesmo um banco de pé quebrado. Se não fosse o medo do cometa, creio que teria dado muitas boas risadas com os furores, raivas e desespero do aristocrático Banco do Brasil, ao ver-se por baixo de tanto banquinho democrático; eu o ouvi bradar dez vezes sem tomar folego: Vou levantar os juros! Vou levantar os juros!, mas, sem lhe dar resposta, fui cuidando em salvar-me do cometa. Em um abrir e fechar d’olhos, entrei pelos dormitórios dos profetas, ou acendedores de gás, ajuntei todas as suas escadinhas, e mercê delas fui subindo pelos ares acima. O medo emprestava-me asas, e eu voava como um passarinho: quando cheguei à última escadinha, lembrei-me de olhar para baixo. Olhei, e nada vi… um mundo imenso, mas um mundo com um enorme rabo estava entre mim e a terra. Era o cometa! Esse monstro horrível tem um ponto de contato com os vaga-lumes, que são uns pobres bichinhos da terra; tanto ele como estes trazem fogo na extremidade posterior do corpo; mas os vaga-lumes são suros9, e o cometa desenrola uma cauda tão comprida como o orçamento da despesa geral do império quando lhe adicionam os aditivos.

9. Diz-se de animal que tem o rabo curto ou cortado. (Dicionário Michaelis)

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VII.

Respirei. Compreendi que tinha escapado são e salvo do fatal cometa: o fogo de sua cauda devia estar abrasando a terra, que lhe ficava por baixo; mas a mim que estava de cima, apenas me causava uma sensação de calor um pouco forte. Estive pensando durante alguns minutos no que me cumpria fazer, e vendo que já não corria perigo de morrer queimado, assentei que era conveniente esperar, e não exporme a viajar para Vênus ou Mercúrio nos meus balões de crinolina, que às vezes pregam suas peças a quem os trazem. Enquanto estive pensando, o cometa continuou a sua derrota, e foi-se! Mas eu achava-me tão alto que não pude descobrir a terra, nem mesmo com o auxílio de um binóculo que tinha trazido comigo.

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VIII.

Com a retirada do cometa, o calor cessou e foi substituído por um frio horrível. Constipei-me; comecei a espirrar, e senti a mais dolorosa impressão, vendo que não havia ali uma alma caridosa que me dissesse dominus tecum10!… O isolamento é terrível; aqueles que repetem que antes só do que mal acompanhado nunca se viram como eu isolado e a quatro braças11 da lua. Porque eu olhei para cima e vi quase assentada sobre o meu nariz a lua, que por sinal estava cheia e tinha uma cara de bolacha de marinheiro. O frio redobrava: a neve do Franccioni12 é brasa ardente em comparação da neve que chovia sobre mim ali ao pé da lua. De repente caíram-me as unhas: não me incomodei muito com isso; porque nunca tive ideia de vir a ser tesoureiro; mas aterrei-me pensando que me podia cair também o queixo, e um homem de queixo caído não se pode tolerar, nem mesmo quando é namorado. Puxei o relógio; era meio-dia, exatamente a hora dos ensaios do teatro de S. Pedro de Alcântara. A força do 10. Do latim, O Senhor esteja convosco. Saudação dirigida a quem espirrava, hoje substituída por “saúde“ ou “Deus te ajude”. 11. Braça é uma antiga medida de comprimento, equivalente a 2,20 metros. 12. Confeitaria Franccioni, localizada na Rua do Ouvidor, que, em 1834, trouxe o sorvete para o Brasil. Na confeitaria, em uma sala reservada, D. Pedro II, acompanhando da imperatriz, costumava apreciar o sorvete de pitanga. Como não havia gelo no Brasil, este era importado do lago Potomaque, próximo a Boston.

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hábito destruiu todas as minhas hesitações; não pude resistir, parecia-me que me estavam multando por faltar ao ensaio, e atirei-me pelas escadinhas abaixo. Cometi a incivilidade de não me despedir da lua. Desci como um raio. É de regra que se desce sempre mais depressa do que se sobe; até os ministros de estado conhecem a verdade deste principio de física, eles que de ordinário poucas verdades conhecem.

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IX.

Cheguei a terra às duas horas menos um quarto, e quase que me esbarrei no chão, porque encontrei todos os bancos rotos; apenas se conservara inteiro o Branco do Brasil: é que os monumentos levantados pela sabedoria atravessam os séculos e resistem aos mais formidáveis cataclismos. Fiquei, portanto, sabendo que o mais seguro degrau de escada por onde se pode subir é o Banco do Brasil. Olhei para todos os lados, e vi a cidade do Rio de Janeiro reduzida a um ermo. Todas as suas casas estavam intactas, e apenas haviam perdido as vidraças, que o calor excessivo tinha derretido; não havia mudança alguma, nem se ouvia ruído algum, mas não se sentia vida. O cometa era sem dúvida partidista exclusivo do progresso material, porque destruiu todos os homens e todos os animais, respeitando, porém, e deixando ileso tudo quanto era puramente material, tudo quanto tinha existência sem ter vida. O cometa era materialista vermelho. Aqui e ali eu encontrava homens e mulheres estendidos nas calçadas, de cócoras ou em pé nas esquinas, ou sentados às portas das casas; mas todos petrificados. Tive medo dessa horrível solidão; gritei, e ninguém me respondeu; um suor frio correu-me de todo o corpo. Desatei a correr de olhos fechados até o teatro de S. Pedro de Alcântara. O teatro estava aberto. Entrei: no saguão avistei o bilheteiro sentado na sua casinhola privilegiada, tendo as mãos cheias de bilhetes de plateia. Tinha morrido como um herói no seu posto de honra. 37


Três cambistas estendidos na porta do botequim deixavam ver cada um a seu lado uma garrafa vazia: novos heróis que haviam passado à eternidade com intrepidez britânica. Entrei na plateia, e vi no tablado a companhia petrificada ao ensaiar a cena do combate das Minas de Polônia13. Tive dó de ver o Manoel Soares, morto e reduzido a estátua, representando em minha falta o papel que eu fazia: coitado!, morreu em meu lugar! Deus lhe fale n’alma. O ponto estava com o dedo indicador apontando na peça a nota vai-se e com efeito foi-se! É o que se chama morrer a propósito.

13. Melodrama de autoria do dramaturgo francês René-Charles Guilbert de Pixérécourt, apresentado no Teatro São Pedro de Ancântara, em 1857.

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X.

Saí desconsolado e aflito do teatro; mas, apesar da minha aflição, senti que tinha uma fome de todos os diabos. Entrei na Fama do café com leite14: o Braguinha morrera com a pena na mão improvisando versos à gloria do seu botequim: é uma alma que foi parar ao Parnaso15, e a esta hora está se banhando na Hypocrene16 para se vingar dos ardores por que passou; os fregueses do Braguinha achavam-se em redor das mesas, e um dos caixeiros expirara deitando manteiga derretida em um pão Napoleão: comi-lhe o pão, que achei um pouco duro, bebi café com leite que ainda fervia, e não tendo a quem pagar o almoço, e não querendo ficar em divida, rezei um padre-nosso pelo amo e caixeiro já defuntos, e saí precipitadamente.

14. Conhecido popularmente como O Café do Braguinha, de propriedade do português José de Souza e Silva Braga, situado na Praça da Constituição, atualmente Praça Tiradentes, era um dos pontos mais bem frequentados do Rio de Janeiro. 15. Montes Parnaso: montanha de calcário situado no centro da Grécia. Segundo a mitologia grega, era uma das residências do deus Apolo e de suas nove musas. 16. Nascente de água doce localizada na encosta leste do Monte Hélicon, na Grécia. De acordo com a mitologia, a fonte fora consagrada a Apolo e às musas, e teria brotado de uma fenda na pedra feita por uma patada de Pégaso. A fonte é citada por Camões em Os Lusíadas.

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XI.

Doeu-me o coração ao entrar na Petalógica17, que, como se via, tinha acabado em sessão magna. O Paula Brito estava encostado a uma mesa, com os olhos fitos em um número da Marmota18, em que zombara do cometa19; o bacharel Gonçalves morrera com um enorme abano na mão; o meu colega José Romualdo jogando estoicamente uma partida de xadrez com o barão de Tautphœus20, que se achava a ponto de dar xeque-mate no adversário; e o Viegas dando conta das últimas notícias do cometa. Chorei pelos meus consócios, e fugi.

17. Sociedade Petalógica, criada por Francisco de Paula Brito (jornalista, escritor, poeta, dramaturgo, tradutor e letrista carioca, escrevia sob o nome de Paula Brito), com a ideia de promover encontros para o estudo da mentira (peta), reunindo representantes do movimento romântico dos anos de 1840 a 1860, como Gonçalves Dias, Machado de Assis, Laurindo Rabelo e o próprio Joaquim Manuel de Macedo. 18. A Marmota Fluminense, jornal seguido pela revista A Marmota na Corte e o jornal A Marmota, todos editados por Paula Brito. O primeiro trabalho literário de Machado de Assis a ser publicado, o poema "Ella", foi publicado na Marmota Fluminense em 12 de janeiro de 1855. 19. Ver apêndice 3 20. José Hermann de Tautphoeus, fundador do Colégio dos Meninos, na cidade de Petrópolis, o qual dirigiu até 1854. Tem um capítulo dedicado a ele por Joaquim Nabuco na obra Minha Formação. Toutphoeus lecionou no Colégio Pedro II, onde Joaquim Manuel de Macedo também deu aulas.

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XII.

Achei-me, sem saber como, no paço21 da câmara municipal; os heroicos vereadores morreram em sessão aberta, e em discussão calorosa, e exatamente no momento em que o Sr. Lobo pronunciava um discurso ad hoc22. Vi um papel nas mãos do presidente da câmara e tive a curiosidade de o ler: era um ofício em que os fiscais declaravam que desde as dez horas do dia tinha secado toda a lama que havia nas ruas da cidade, e pediam por isso aumento de ordenado. Felizmente não houve tempo de despachar a petição.

21. Edifício usado por conselho ou câmara municipal para suas reuniões. 22. Do latim, "para esta finalidade".

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XIII.

O cometa encontrara na câmara vitalícia os anciãos da pátria na mesma posição em que os gauleses acharam os senadores romanos. Um veterano liberal tinha o braço estendido para um conservador vermelho, e lhe oferecia a mão em sinal de paz e conciliação; o conservador, depois de algumas cerimonias que ainda se lhe notavam na expressão fisionômica, estendera também o seu braço… os dedos daquelas duas mãos patrióticas estavam quase a tocar-se, quando o rabo do cometa passou entre eles, e ficaram ambos os anciãos petrificados e com a conciliação no ar, entre o polegar de um e o indicador do outro, como se fora uma pitada de tabaco mútua! Sobre a perna de um outro senador encontrei um bilhetinho, convidando-o para uma reunião conservadora, com a declaração de que haveria nela sorvetes por causa do calor.

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XIV.

Fatigou-me esse passeio lúgubre em que andava, e tive vontade de colher algumas notícias a respeito do cometa e dos seus estragos. Dirigi-me ao Jornal do Commercio. Penetrei na sala da redação, e a primeira figura que se apresentou a meus olhos foi a do Dr. Macedo23 morto, conservando, porém, derramada no semblante a satisfação que sentira ao ver que estava livre de escrever a Semana do domingo, que era o dia seguinte. O Emilio Adet24 passara desta para melhor vida no meio dos seus trabalhos, e achava-se estendido entre nuvens de folhas de papel, que continham uns três ou quatro discursos de deputados: o Emilio Adet teve um passamento parlamentar; morreu coberto de bravos, apoiados e applausos. O Castro estava sentado na sua mesa, e ainda conservava a pena entre os dedos; os vidros dos seus óculos haviam-se derretido com o excesso do calor; mas seus olhos estavam fitos na folha de papel em que escrevia. Eram as notícias ou era o boletim do cometa que ele preparava para o Supplemento do Jornal. Foi com lágrimas nos olhos que li o que se segue: seis horas da manhã.

“O cometa vem-se aproximando com rapidez incrível; o calor aumenta a cada minuto; os sorvetes e as ventarolas estão por um preço fabuloso.” 23. Alcunha pela qual era conhecido Joaquim Manuel de Macedo. 24. Carlos Emílio Adet (1818 - 1867), professor e redator-gerente do Jornal do Commércio.

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oito horas.

“Reuniram-se as câmaras extraordinariamente; mas permitiu-se a todos os representantes e espectadores das galerias estar em mangas de camisa.” nove horas.

“A polícia mandou espalhar pelas ruas da cidade todos os foles que encontrou nas ferrarias e casas de fundição: os pedestres e acendedores de gás ocupam-se em tocar foles. No tesouro público deu-se ordem para que os empregados entrassem de chapéu na cabeça e casaca abotoada: é uma medida que está em harmonia com a anterior que tinha banido os chapéus.” dez horas.

“Há febre na praça: as ações de todas as companhias sobem espantosamente; há uma alta geral; querem todos morrer, provando que são homens de ações.” onze horas.

“O cometa está quase não quase sobre nós; na rua do Rosário vendem-se todos os queijos assados; das bicas das esquinas e de todos os chafarizes, a água corre fervendo. — Conciliaram-se definitivamente os partidos políticos. — As pessoas magras ainda se movem e falam: o nosso amigo Pitada queixa-se muito do calor, mas ainda se supõe com forças para resistir. Aquelas que pelo contrário são gordas, já estão prostradas e quase moribundas; o Sr. Camara, que chegara anteontem de Petrópolis, acaba de morrer.” meio-dia.

“Hoc opus hic labor est25, chegou a hora suprema.” 25. Do latim, "Aqui é que está o trabalho e a dificuldade". É o início de um verso do poema épico Eneida, de Virgílio, em que é explicado a Eneias a dificuldade que há em voltar do Inferno.

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XV.

Tudo, portanto, estava acabado! Eu era o único vivente que se achava na cidade muito leal e heroica; oh! tive vontade de chorar desesperado, como Mário26 nas ruinas de Cartago27! Via-me prodigiosamente rico: tinha palácios, pertenciam-me o tesouro público, os cofres de todos os usurários, possuía riquezas incalculáveis: era porém uma espécie de Adão sem Eva, e ainda em cima um Adão, que, em vez de habitar no Paraíso, devia morar em um cemitério descomunal! Arrependi-me de haver fugido do cometa: mil vezes antes morrer assado do que sobreviver a um tal cataclismo para ficar em isolamento e na mais completa impossibilidade de ser o tronco de uma nova geração! Ah Martinho! Martinho! Como poderás tu viver sem aquele amado e respeitável público que te aplaudia no teatro, que te encorajava com seus bravos e suas palmas, como?…

26. Caio Mário (157 a.C. - 86 a.C.), conhecido como o terceiro fundador de Roma. 27. Originalmente uma colônia fenícia no norte da África. Na antiguidade, disputou com Roma o controle do mar Mediterrâneo, sendo destruída após as três Guerras Púnicas

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XVI.

Fazendo estas aflitivas reflexões, cheguei à rua do Conde, e por curiosidade entrei na casa da polícia. Triste espetáculo! O chefe de polícia morrera no ato de pagar o subsidio mensal devido a uns dois publicistas28 independentes, que estavam em pé também petrificados, com os braços estendidos e as mãos abertas para receber os cum quibus29. Se houvesse ainda alguém que pudesse olhar para aquelas duas nobres figuras, e reparasse em seus lábios entreabertos, adivinharia logo, como eu adivinhei, que os ilustrados publicistas tinham sido torrificados no momento em que diziam: Venha a nós!

28. Jornalista, pessoa que escreve para o público em geral. 29. Do latim, “com o quê”. O mesmo que dinheiro.

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XVII.

Deixei a polícia, e para distrair-me quis tomar o fresco no campo da Aclamação30. O espírito de classe obrigou-me a penetrar no barracão do Provisório31. Subi ao salão; e que cena havia de se oferecer a meus olhos?… Ah!… Todas as coristas da companhia lírica tinham morrido no meio do um ensaio! Desgraçadas!… Haviam feito pausa final… eterna. Aquelas flores viçosas e belas! Aquele formoso grupo de encantadoras fadas!… Aquelas ninfas, ou divindades de beleza arrebatadora e de voz de rouxinol, coitadinhas! Estavam todas prostradas e sem vida; mas nem uma só delas se esquecera de morrer em posição grave e composta. E diante delas em pé, como em êxtase, porém morto e bem morto, destacava-se a figura do meu amigo Dionysio, de batuta na mão e com o mais terno e suave dos olhares cravado no grupo encantador! Ah Dionysio! Foste mais feliz do que eu! Morreste abrasado por dois fogos: fogo do cometa e fogo de amor! Sempre é uma consolação morrer assim. Requiescat in pace32.

30. Atual Campo de Santana, no centro do Rio de Janeiro. 31. Templo construído de madeira e sarrafos, a mando de D. Pedro II, à frente da Casa da Moeda, para comemoração, em 10 de julho de 1870, do fim da Guerra do Paraguai. 32. Do latim, “descanse em paz”.

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XVIII.

Quando eu acabava de proferir estas palavras em louvor e honra de meu amigo Dionysio, de súbito e inesperadamente, escuto uma voz murmurar: — Quem fala aí em amor?… Dei um salto: era uma voz humana, o mais apreciável dos tesouros para mim; e mais ainda, era uma voz feminina, era a Eva que eu, pobre Adão, ardentemente desejava para bem da humanidade, que não se devia extinguir. Oh! Não se pode fazer ideia da minha surpresa, da minha alegria, do meu arrebatamento! Procurei a boca por onde havia passado aquela voz, e vi inclinada sobre uma cadeira em um canto do salão, mas quase moribunda, uma jovem corista, e que corista!… A senhora X.P.T.O33., um demoninho tentador que se apaixonara por mim em 1846 em certa noite em que me ouviu cantar a aria do boleeiro. Corri a ela, abracei-a, suspirei, chorei, e até canteilhe um pedaço da aria predileta. — Ainda vive alguém?…— perguntou-me com voz sumida a divindade. — Eu só, eu só — respondi-lhe ansioso: — eu só, que serei o teu Adão, porque tu vais ser a minha Eva. A corista deu um muxoxo, fez um momo34, e fechou os olhos. — Vive! Vive!… É necessário que vivas!… 33. Abreviatura da palavra grega "Χριστός" ("Christós" = Cristo), que significa Ungido, Messias. Termo utilizado com o significado de "sofisticado". Forma de indicar um nome genérico. No Brasil, o uso como nome genérico de pessoa físico foi gradualmente abandonado. 34. Espetáculo teatral em que os atores se manifestam apenas por meio de gestos e expressões corporais ou fisionômicas, ou essas expressões.

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— Para quê? — tornou-me ela. — Para não se acabar o mundo, minha filha; para arranjarmos um artigo aditivo à humanidade, que está em risco de se extinguir de todo. Olha, minha corista, o destino do globo terráqueo está nas nossas mãos. — Ora!… Nem ao menos eu acharia com quem cantar um coro… — Cantaremos um dueto, menina! — Não… não… de que me serviria viver?… Que poderia eu ser ainda?… — Minha mulher, pequena! — Tua mulher? Ora essa! Se eu fosse agora tua mulher… como tu és o único homem no mundo, nem ao menos eu poderia pregar-te um mono35! E inclinando a cabeça… exalou um suspiro, que me pareceu o último.

35. Pregar um mono = enganar, lograr. (Diccionario da lingua portugueza: Volume 2 ,1789)

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XIX.

Abracei-me desesperadamente com a corista: chamei-a pelo seu nome, ajuntando a este todos os epítetos ternos, amorosos e poéticos, de que se usa nas comédias; beijei-a dez, cem, mil vezes, beijei-a tanto, e tanto, que por fim de contas a corista abre de novo os olhos, sorri… suspira… solta uma risadinha magana36, e… levantando-se de repente, escapa dos meus braços, e deita a correr pelo salão afora. Estava visto que eu devia correr atrás dela: reúno todas as minhas forças, dou um arranco, e… Acho-me no chão gemendo com uma horrível dor nas costelas. Reconheci que acabava de sair do domínio de um sonho tão longo como penoso, que me fizera cair da cama abaixo no momento em que ia correr atrás da corista. E apesar da dor que sinto nas costelas, dou graças a Deus; porque hoje é o dia 13 de Junho, e não há de acabar-se o mundo. o martinho.

36. Diz-se da mulher jovial e alegre.

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ApĂŞndices



Apêndice 1 Biografia de Joaquim Manuel de Macedo

Caricatura de Joaquim Manuel de Macedo sendo consolado pelo mascote da revista Semana Illustrada, feita pelo artista alemão radicado no Brasil Henrique Fleiuss (1824-1882).

Nascido em 24 de junho de 1820, na cidade de Itaboraí, Rio de Janeiro, Joaquim Manuel de Macedo, filho de Severino de Macedo Carvalho e Benigna Catarina da Conceição, pouco se sabe de sua infância e adolescência, embora seja conhecido que sua origem é humilde, passada em uma pequena vila que o autor descreve carinhosamente em seu romance O Rio do Quarto, publicado em 1869. Em 1844, formou-se em medicina pela Faculdade do Rio de Janeiro. No mesmo ano, publicou seu primeiro romance, A Moreninha, o que o afastou do exercício da medicina após um curto período no qual chegou a clinicar. Seu trabalho de estreia obteve grande sucesso, e é considerado 59


como a primeira obra do romantismo brasileiro. A Moreninha é um romance que gera repercussão até os dias atuais, tendo sido adaptado para a televisão em 1975, onde Nívea Maria interpretava a personagem principal. Além de atuar como jornalista e professor de Geografia e História do Brasil no Colégio Pedro II, fundou, em 1849, em parceria com Gonçalves Dias e Manuel de Araújo PortoAlegre, a revista Guanabara, na qual publicou boa parte de seu poema-romance A Nebulosa. Em 1845, filiou-se do Instituto Histórico e Geográfica, onde exerceu os cargos de primeiro-secretário, orador oficial e presidente interino. Criando forte ligação com Dom Pedro II, foi preceptor e professor dos filhos da Princesa Isabel e tinha relação estreita com a Família Imperial. Atuante na política como militante no Partido Liberal, foi deputado provincial e deputado geral. Com uma carreira literária prolífica, publicou dezoito romances, além de peças de teatro, poesias, crônicas, e obras técnicas. Macedo morreu em 11 de abril de 1882, no Rio de Janeiro, aos 61 anos, depois de anos padecendo de problemas mentais. É o patrono da cadeira 20 da Academia Brasileira de Letras, por escolha do fundador Salvador de Mendonça.

Obras Romance A Moreninha (1844) O Moço Loiro (1845) Os Dois Amores (1848) Rosa (1849) Vicentina (1853) O Forasteiro (1856) Os Romances da Semana - contos (1861)

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O Culto do Dever(1865) Memórias do Sobrinho de meu Tio (1868) A Luneta Mágica (1869) O Rio do Quarto(1869) Nina (1869) As Vítimas Algozes (1869) A Namoradeira (1870) Mulheres de Mantilha (1871) Um Noivo e Duas Noivas (1971) Os Quatro Pontos Cardeais e A Misteriosa (1872) A Baronesa do Amor (1876). Teatro O Cego (1849) Cobé (1852) O Fantasma Branco (1856) O Primo da Califórnia (1858) A Carteira do meu Tio (1855) O Sacrifício de Isaac e Amor e Pátria (1859) Luxo e Vaidade (1860) O Novo Otelo (1860) A Torre em Concurso (1861) Lusbela (1862) Romance de uma Velha (1870) Remissão dos Pecados (1870) Cincinato Quebra-Louça (1871) Vingança por Vingança (1877) A Moreninha (1877) Antonica da Silva (1880). Biografia Ano Biográfico Brasileiro (1876). Mulheres Célebres (1878) Poesia A Nebulosa, Poema-Romance (1857). Crônicas Um Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro (1862) Memórias da Rua do Ouvidor (1878) Labirinto (2004 – compilação de crônicas publicadas no Jornal do Commercio entre abril e dezembro de 1860).

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Apêndice 2 Imagens das primeiras publicações Abaixo, imagens da primeira publicação, em folhetim, no Jornal do Comércio em 13 de junho de 1857, e da publicação no livro Romances da Semana, de 1873.

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Apêndice 3 Poemas sobre o fim do mundo no jornal “A Marmota Fluminense”

No capítulo XI de “O Fim do Mundo”, o autor faz uma referência a “O Paula Brito”, que é, na verdade Francisco de Paula Brito (1809-1861), editor do jornal A Marmota Fluminense. O jornal, no decorrer do ano de 1857, deu grande evidência à iminência do cometa e o suposto fim do mundo que ele traria. A edição na qual Paula Brito zombara do cometa realmente existiu, embora não tenha sido possível precisar ao certo a qual das edições d’A Marmota Joaquim Manuel de Macedo se refere no texto, posto que vários poemas satíricos foram publicados, tanto de autoria de Paula Brito como de outros escritores, como A. J. de Carvalho Lima e Belmiro, além de alguns não assinados, a qual supomos serem de autoria do editor. Abaixo, a transcrição, preservando a grafia original da época, de cinco desses poemas; três cuja autoria não é mencionada na publicação, um de autoria de A. J. de Carvalho Lima e o último assinado por Belmiro. Destaque para Viva Santo Antônio, que, na verdade, é uma oração ao Santo para que livrasse seus fiéis do cataclisma vindouro.

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O Cometa ou o fim do mundo.

Se o cataclisma vier, Que ao menos seja de fogo, Porque a pobre humanidade Abrasada acaba logo. Porém d’agua!.. que desgraça!.. A gente toda a nadar, Uns mergulhados no fundo, Outros por cima a boiar!

Edição 844, 05 de maio de 1857 Oh que cometa, meu Deus, De Julho a 13 virá!.. De sua boca e seu rabo Que vivente escapará!..

Deste flagelo motora, Maldita tu sejas, Lua: Por fim és mulher… e basta; D’esse mal a culpa é tua.

Castigo de Deos!.. o povo Brada… é a arte do demonio, Por tirar-se o Dia Santo, O Dia de — Santo Antonio!

Quem te manda não fugir Do cometa que ahi vem? Todo cometa tem cauda, E tu tens cauda também.

Festejemos, dizem todos, Bem a vesp’ra d’esse Dia, Que não teremos a crise Funesta, que se annuncia.

Que de abraços apertados… Que de gemidos e dores… Que de vinganças tomadas… Que de protestos de amores!..

« Santo Antônio de Lisboa « Espelho de Portugal, « Ajudai-nos a vencer « Esta batalha real. »

Por prevenção, n’esse dia Quem seu bemzinho tiver Vá ter com ele, segure-o, Quando não, hade o perder.

Ajudai-nos em socego A viver, Santo querido, Para que o mundo se acabe Só Quando Deos for servido. Oh meu Deos!.. que mortandade! Oh meu Deos!.. que confusão!.. Uns por baixo, outros por cima… Triste peccado de Adão!

Que é que sabe depois, Não tendo o seo bem à mão, Onde é que o hade encontrar Dos mortos na confusão?! Eu creio que homens casados Bem poucos hão de encontrar Que queiram suas mulheres N’esse dia acompanhar

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Os laços indissoluveis Quanta gente hade querer, Sem peccado, sem divorcio, E sem processo romper?

Parece incrivel, leitores, Que gente haja neste mundo, Que, por causa do cometa Já sinta medo profundo!

Qu’espetaculo!.. Que cousas Pasmados temos de ver!.. A lua a soltar esguichos… A terra em chamas a arder!.. Castigo de Deos!… castigo, Todo o povo hade bradar, Pelos oito Dias Santos Que o Papa mandou tirar.

Em Deos confiemos todos, E n’Elle tenhamos fé, Porque só Elle é que sabe O fim do mundo qual é.

Os governantes quiseram Salvar assim o paiz; Porém não vemos que a Patria Tenha sido mais feliz.

Porém, leitores, fazendo Destas cousas um brinquedo: Vós não sabeis como ha gente, Que anda tremendo de medo! Ha velhos, que apenas leram As noticias dos jornaes, Da sala para a cosinha Andam com dores fataes…

Por magistrados ficaram Nossas tradicções calcadas: O povo tem suas festas, E eles… com festas dobradas!

Ha moços que, não querendo Perder as suas amadas, Para que ellas lhes não fujam, Trazem-n’as sempre abraçadas.

E não se quer que o cometa, Que ás vezes com tudo sisma, Se zangue, e tudo confunda No choque de um cataclisma?

E aquelles que do supplicio Vivem sempre nos abrolhos, Fazem como as tartarugas, Chocam os ovos co’os olhos!

Resemos a Santo Antonio, Agarrados com seu manto, Que não teremos cometa, N’esse Dia, se for Santo.

Um faz pouco, e passa a vida Por delicias bafejada; Outro muito e, triste sempre. Abra a mão… não acha nada!

Oh que dia de Juizo Para o Rio de Janeiro!.. Tudo hade ficar barato… Que bello!.. Quanto dinheiro!..

Tem-se feito juramentos, Mil promessas se tem feito; Tem-se armado mil consorcios. Mil outros se tem desfeito.

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Sugeitos ha que p’ra terem Lá certos prós e precalços, Querem reaes consequencias Tirar de principios falsos

Ir ao imperio celeste Como um balão a gyrar, Ou como, cortando os ares, Um passarinho a voar!..

Parece até que invertida Está mesmo a natureza: Da virtude zomba o vicio, Da força zomba a fraqueza!

Oh que cousas que hão de haver Por esse mundo ás escuras!.. Umas hão de ficar verdes E outras cahir de maduras!..

Porém, por mais preparada Que a gente esteja, la vem O momento em que se teme Do que p’ra fazer Deos tem.

Para que não nos obriguem, Se em obras de Deus ha erro, A trabalhar dia e noite Fazendo cartas de enterro;

Para nós, ja do cometa Foi a noticia funesta… Aberta temos a chaga, Que sem cessar nos molesta!..

Ou p’ra não vermos dos mortos A terrivel relação, Depois que todos morrerem Do orbe na confusão:

Já bem pouco nos importa, Que o mundo se faça em pó… As desgraças se succedem. «Um revez nunca vem só.»

Estamos muito disposto, Se o tal cometa ahi vem, Uma vez que tudo morra, Com tudo a morrer tambem”

O fim do mundo!.. Quem sabe Se chegarmos até lá, Partindo deste principio O tal fim, que fim será!

E taes cousas já vai elle Fazendo em sua derrota, Que antes d’o mundo ter fim, Hade ter fim a — Marmota.

Para morrer há se apronta Muita gente, e um temerario Faz em grandiloquo estylo O discurso funerario… Morrer… que cousa terrivel!.. Sem dar um ai, nem um grito Ir a gente aos trambolhões Ver as cebolas do Egypto!..

Ainda o Cometa e o fim do mundo.

Edição 854, 09 de junho de 1857 Nos politicos arroubos De certos annos passados Fez um Brasilio escriptor Estes versos memorados:

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« O mundo hade ver um dia, « Neste céo sereno e sul, « Curvar-se a Ursa do Norte « Ante o Cruzeiro do Sul.

Aquelles mais egoistas Que a tudo declaram guerra, Cahirão como o maná Nos dominios da Inglaterra

Quanto á mim, vejo chegada, Leitores, a occasião D’o Brasil fazer a Russia Dar com as ventas no chão!..

Tudo quanto for patusco, Que passe a vida feliz, Nos ares em contradansa Hade cahir em Paris!

No tremendo cataclysma Do — Dia de Santo Antonio, Segundo o que, qual propheta, Disse d’europa um demonio;

Portugual ficará cheio, De vasio, como está, Da sua gente e de tudo Quanto d’elle anda por cá.

Temos de ver… porém creio Que se do cometa o rabo Tocar-nos, hade o Cruzeiro Fazer na Ursa o diabo!

As aguas dos nossos montes, De verde sempre cobertos, Com elles tornarão ferteis D’Arabia os tristes desertos!

Temos de ver que essa luta Será tão grande, e tão forte, Que hade o Cruzeiro do Sul Fisgar a Ursa do Norte!

Hade a publica instrução Da nossa patria divina, O que não faz entre nós, Fazer no Imperio da China!

O elevado cabeço Da serra do Grão-Mogol Hade cahir inteirinho Na invicta Sebastopol37!..

Hade cahir no Mar Negro Nossa farinha de páo Fazendo-se em tal mistura De preto e branco um mingáo, 37. Cidade fundada pelos russos, em 1783, ocupada pela França e pela Grã-Bretanha após a derrota do Império Russo na Guerra da Crimeia, no que foi chamado de o Cerco de Sebastopol, de 1854 a 1855. Em março de 2014, a Federação Russa reconheceu a cidade ao anexar a região Crimeia, que havia sido transferida para a Ucrânia em 1954, como território Russo.

Mingáo que, póde bem ser, Se o mundo se refizer, Que todo dessa mistura Tenhamos inda de o ver! Se não houver do que existe A completa mortandade, Hade a metade do globo Cobrir a outra metade!..

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Mas para que a professia Não veja, e tal confusão Aquelle q’inda acredita No Rei D. Sebastião; Toda a gente fica livre De taes artes do demonio Na noite do dia doze. Festejando a Santo Antonio. E quem gostar das asneiras Deste artigo de chacota, Deve mandar um presente Ao — Redator da Marmota. Para taes mimos guardar Na presente occasião, Tem elle a casa vasia, Pois fez de tudo leilão. Este convite elle faz Aos leitores e leitores: Com mais prazer recebendo O que vier das Senhoras; Na Marmota elle dirá Aquillo que justo é, Se do diluvio escapar Em nova Arca de Noé. Mas em quanto não se acaba O mundo, o que elle deseja E’ este o meio que tem De conhecer quem é bom, De saber quem lhe quer bem; Ha um proverbio que diz (Verdade filha dos ceos!): « Quem nunca dá, não quer bem; « Quem dá parece com Deos. »

Viva Santo Antonio!

Edição 845, 08 de maio de 1857 Quem festejar — Santo Antonio, Com respeito o mais profundo, Verá que de Junho a treze Não hade acabar-se o mundo. Não hade haver cataclysma Do tal cometa barbudo, Q’hade entre a Lua e a Terra Passar, inda que rabudo. Santo Antonio, que dos mares Fez o peixinhos sahir Para de Deos a palavra Ouvirem, vindo o ouvir; Santo Antonio, que seu Pai Da forca livrou, não hade, No seu Dia, dos christãos Permittir a mortandade. E’ tal a fé que nós temos Deste Santo na victoria, Que aqui, do seu responsório Damos a JACULATORIA. Quaris Miracula Santo Antonio milagroso, « Que do mundo desterrais « A morte d’alma, e do corpo: « Bemdito sempre sejais. Gloria Patri et Filho, etc. « Oh Santo bem poderoso, « Que o espirito alumiais « Ao que jaz cégo no erro; « Bemdito sempre sejais. Gloria Patri, etc.

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« Oh Santo bem portentoso « Que benigno dissipais « As c’lamidades da terra: « Bemdito sempre sejais. Gloria Patri, etc. « Oh Santo benignissimo, « Que dos loucos apartais « O demonio tentador: « Bemdito sempre sejais Gloria Patri, etc. « Oh Santo portentosissimo, « Que muitas vezes curais « Aquelles que em vós confiam: « Bemdito sempre sejais. Gloria Patri, etc. « Oh Santo prodigioso, « Que tão benigno sarais « As perigosas molestias: « Bemdito sempre sejais. Gloria Patri, etc. « Oh Santo em tudo famoso, « Que tantas vezes salvais « Os naufragantes perdidos: « Bemdito sempre sejais. Gloria Patri, etc. « Oh Santo em tudo bemdito, « Que muitas vezes livrais « Das prisões os desgraçados: « Bemdito sempre sejais. Gloria Patri, etc.

« Oh Santo miraculoso, « Que, quando quereis, curais « Os membros dilacerados: « Bemdito sempre sejais. Gloria Patri, etc. « Oh Santo poderosissimo, « Vós sois o que deparais « C’os objectos perdidos: « Bemdito sempre sejais. Gloria Patri, etc. « Oh Santo em tudo benigno, « Vós sois o que consoloais « Quem no p’rigo a vós recorre; « Bemdito sempre sejais. Gloria Patri, etc. « Oh Santo Compadecido, « Que as donzellas amparais « Dado o que ellas vos supplicam, « Bemdito sempre sejais. Gloria Patri, etc. « Oh Santo sempre adorado, « Dai-me vossa protecção: « Alcançai-me emfim a posse « Da celeste salvação Amem.

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Feliz lembrança

Mas eu cá da minha parte Farei muito por ficar, Por A. J. de Carvalho Lima Edição 850, 26 de maio de 1857 Meu engenho e a minha arte Heide fazer trabalhar: Inda que venha o cometa Eis-me aqui qual o proscripto Proclamando na trombeta Em cima do seu rochedo — Do anjo exterminador, — Se olho p’ra o infinito Com menos força que manha, De certo que tenho medo; Rir-me-hei da sua sanha, Se ouço sons de trombeta Zombarei do seu furor. Digo logo: — é o cometa E fico meditabundo; Tirai meu Deos da caxolla Eis-me mettido em apuros, Deste povo a fatal scisma; Fazendo immensos futuros Todo o mundo perde a bola Scismando no fim do mundo! A pensar no cataclysma; Eu tambem — por mais peccados; A’s vezes inda deitado — Em meu pobre canapé, Se fosse de bons bocados Acordo sobresaltado O diluvio universal, E sem saber pelo que; Estaria satisfeito, Atiro-me logo ao chão, Por me parecer qu’ao peito E faço minha oração Não me haviam fazer mal. Ao padre Santo Antoninho, E peço, por caridade, Esperemos pois o dia, Se o fim do mundo é verdade Para podermos falar, Me mate devagarzinho Ou saltarmos d’alegria Ou sem remedio chorar. Quem havia de dizer Eu por mim… lembrei-me agora Que n’um dia de fogueira, Que quando chegar a hora No Brasil vinha metter D’ir de cabeça p’ra o fundo A tremenda focinheira Seguro-me logo ao rabo Esse cometa terrivel; Do cometa, ou do diabo, Parece mesmo impossivel E fico cá n’este mundo. Assim acabar-se o mundo, E estando nós socegados Sermos todos codilhados, Irmos de rojo p’ra o fundo!

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O Cometa e as saias-balões Por Belmiro Edição 852, 02 de junho de 1857 Attenção, oh! Leitor que eu vou fallar! E já que o mundo está para acabar, Já que em fim não é nenhuma peta A apparição terrivel do cometa; Um conselho gratuido quero dar-vos Que muito e muito pode aproveitar-vos. Tende coragem, não desanimeis; Exultai com a noticia e não choreis, Que em meio da geral conflagração, Quem das damas tiver a protecção, Subirá muito á gosto para o ar E andará lá por cima a viajar! Ouvi-me, que dizer vou o que é bom: Empenhai-vos co’as moças do bom-tom. Rogai, sollicitai com eloquencia, Não poupeis Senhoria ou Excellencia, E admirai das modas o progresso, Que eu já agora de louvar não césso. A mais sublime idéa, a invenção De mudar uma saia em um balão, Faz que ao diluvio possa-se escapar E no Reino da lua ir se habitar, Onde haverão magnificas funcções As ver-se a afluencia dos balões! Feliz agora o homem que é casado Por ser pela mulher arrebatado Na critica e espantosa occasião, Pois que ambos envolvidos n’um balão Novos mundos irão buscar contentes Encontrando por lá muitos parentes.

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Solteiros, preveni vossas amantes, Porque são priciosos os instantes; Casai-vos antesdo tremendo dia, Que tereis de um balão a regalia, Que eu, como solteiro acautelado, Pretendo já amanhã estar casado. E como de hymeneo38 quem busca o porto Casando, para o mundo ficar morto; Caso-me, morto fico, e desta sorte Se o cometa vier não sinto a morte; Mas creio que hão de haver poucos casados, Que morram co’as mulheres abraçados!..

38. Hymeneo (ou Himeneu): Deus grego do casamento.

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Sobre as ilustrações

Os desenhos que ilustram esta edição são de autoria de Honoré-Victorien Daumier (1808 - 1879), caricaturista, chargista, pintor e ilustrador francês. Em sua época, recebeu a alcunha de “Michelangelo da Caricatura”. Com uma visão crítica e irônica, Daumier chegou a ficar preso por seis meses após a publicação da caricatura Gargântua, na qual ridicularizava o rei Luís Filipe. As ilustrações contidas na presente edição foram feitas para diversos números do jornal satírico Le Chaviari, grande parte delas datadas o ano de 1857, época em que os parisienses aguardavam apreensivos a passagem do cometa Carlos V. Há registros de mais de quatro mil litografias de Honoré Daumier, técnica na qual foi um dos mais especializados.

Honoré Daumier (1850)

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Primórdios do Fantástico Brasileiro

Primórdios do Fantástico Brasileiro é um projeto da EX! Editora que visa resgatar obras já em domínio público, especialmente de cunho fantástico. Muitas delas caíram no esquecimento, a despeito de sua qualidade literária e valor histórico inestimável. Saiba mais acessando: https://exeditora.blogspot.com/

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