Cidade com Cérebro - Visitando a Manguetown

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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA JULIO DE MESQUITA FILHO FACULADE DE ARQUITETURA, ARTES E COMUNICAÇAO CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO

CIDADE COM CÉREBRO VISITANDO A MANGUETOWN

BAURU 2015 SAMUEL PESSOA GONÇALVES GARCIA 2


CIDADE COM CÉREBRO VISITANDO A MANGUETOWN

Trabalho de Graduação, apresentado à Universidade Estadual Paulista, como parte das exigências para a obtenção do título de Arquiteto e Urbanista.

Bauru, 17 de Abril de 2015.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Sidney Tamai Orientador

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Prof. Dr. Paulo Masseran Co-Orientador


Agradecimentos Esse trabalho só se fez possível,

vida, todas as amizades foram essenciais,

principalmente, graças à duas pessoas

todas as festas foram essenciais, todas as

que possibilitaram que minha vida fosse

viagens foram mais que essenciais, seja

repleta de liberdade. Ensinaram-me a

num Submundo, seja num Morro, seja

ser livre, a pensar livremente, a agir com

num Brasil adentro, seja num mundo a

liberdade. O fizeram da melhor maneira

fora, são neles que toda aquela liberdade

que pode existir, com muita atenção e uma

se fez presente, praticável e o melhor de

dedicação praticamente impossível de ser

tudo, aprimorável. Não só, essas liberdades

retribuída. Ensinaram-me a partir da arte,

trouxeram os amores, mas graças aos

da sensibilidade com a vida e o com a

amores e à um amável encontro que este

paixão destes combinados, que os limites

trabalho está presente.

são ilimitáveis. Meus pais simplesmente me ensinaram a viver, e a gratidão por isso será

E por fim, e especialmente por esse

eternamente inexplicável.

presente trabalho, de forma mais que especial, um agradecimento à Laura,

Mas esse trabalho também só foi possível

minha irmã, que com toda dedicação o fez

graças a outros dois frutos dessa mesma

apresentável, com a arte que lhe corre nas

dedicação. Pois a prática da liberdade

veias. À minha mãe, por ser a corretora que

foi feita em três, as consequências foram

pacientemente procurou pelas vírgulas de

tidas por três e estar no meio de duas

cada frase. E à Delia, a “suportadora” que

extremidades só me deu mais liberdade.

com todo carinho se fez presente em cada

A gratidão fica também pra minhas duas

momento e palavra.

irmãs que distantes ou não, são as partes essenciais de um tripé moldado por dois

Este trabalho está aí, presente e

excelentes artistas da vida.

presenteado à mim, praticamente só pra mim mesmo é um presente. É fruto das

Inclusive, esse trabalho também só foi possível graças a todos os encontros da 4

experiências, e presente melhor não tem.


“ Que eu me organizando posso desorganizar Que eu desorganizando posso me organizar Que eu me organizando posso desorganizar.� CHICO SCIENCE

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RESUMO

O presente trabalho é um estudo sobre o Movimento Manguebeat ocorrido na primeira metade da década 1990 e a cidade de Recife, assim como, sobre as formas de interações que ocorreram dentro e com o espaço da cidade através dessa manifestação cultural, procurando explanar sua capacidade de modificação desse mesmo espaço e da consciência coletiva urbana. À luz do pesquisador Armando Silva e sua teoria sobre “imaginários urbanos”, apresenta-se os fatos ocorridos desde o surgimento do frevo até a eclosão do Movimento Manguebeat, com um fechamento em alguns fatos atuais.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ANTES, O CENÁRIO. A PRIMEIRA CENA A SEGUNDA CENA TERCEIRA CENA UMA CENA A PARTE QUARTA CENA A ABERTURA ANTES, OS FATOS PELOS FATOS E O IMAGINÁRIO COM ISSO? REVISITANDO A MANGUETOWN SEC XXI - CONEXÃO COM O NOVO E O NOVO RECIFE VELHO O FECHAMENTO BIBLIOGRAFIA

7

7 11 16 19 25 30 35 39 48 56 65 75 85 86


INTRODUÇÃO

8

Nova York, Dubai, Tóquio, Moscou, São

Um forte exemplo são as manifestações

Paulo, Recife. Cada cidade em cada mapa

artísticas e suas visões interpretativas do

possui uma característica única moldada

entorno e do interno. Esse olhar muitas

pela história e pela geografia. Mais do

vezes abstrato, porém baseado em fatos

que um mero senso de lugar derivado

e sentimentos reais, mostram a real

da arquitetura e do planejamento, as

condição de um todo visto por suas partes.

cidades possuem um sentido que permeia

Uma canção, por exemplo, pode trazer

a consciência daqueles que vivem lá até

importantes referências de diversos tempos

que eles se tornem uma peça do tecido

históricos e servir como fonte alternativa

urbano, uma materialização fracionada da

para a compreensão do caráter, da

própria cidade. Essa relação entre o vivente

identidade e da história de um lugar.

e o vivido gera inúmeras manifestações

A cultura é o cultivo. Cultivo de maneiras

abstratas ou materiais que são capazes de

singulares de ser. Não individuais ou

moldar toda uma sociedade e gerar outras

egóicas, nem universais, mas um reflexo

inúmeras identidades que fazem dessa

imediato do próprio ser. É o cultivo de

relação um organismo mutante.

tempo, uma contemporaneidade do futuro

Olhar para esse organismo e estudar suas

e do passado em relação ao presente. O

manifestações, assim como para seus

futuro se torna uma dimensão cultural que

elementos, enquanto uma relação recíproca

vira um princípio de ação sobre o presente,

de agente e produto faz-se um estudo

uma força de escultor, que vai esculpindo

essencial para entender a sociedade urbana,

o presente. É onde começa o desejo, não

seus espaços e suas necessidades.

o desejo que virá a ser, mas que já se

As expressões culturais são capazes de

encontra virtualmente como horizonte; o

explanar de forma sincera e intuitiva como

futuro como horizonte imediato.

essa relação espaço-tempo, ou melhor,

Movimentos e manifestações culturais no

como esse organismo está se comportando.

decorrer da história da humanidade se


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mostraram importantes fontes de estudo e

da região com instrumentos tecnológicos e

entendimento de uma determinada época

usando nas letras elementos do cotidiano de

e seus aspectos sócio-espaciais. No Brasil,

sua época.

A Semana de Arte Moderna em 1922, o

Este trabalho pretende levantar e analisar

Movimento Tropicália na década de 1960, o

os elementos atuantes na relação entre o

Rap e a música Funk oriundos das favelas

ser humano e o espaço da cidade, levando

e bairros pobres dos principais centros

em consideração aspectos históricos,

urbanos, são importantes manifestações que

geográficos, antropológicos e culturais.

retrataram e modificaram todo um contexto

Para tanto, propõe-se pensar o movimento

da sociedade local e consequentemente do

Manguebeat e a cidade de Recife a partir de

país como um todo.

relações mútuas de causa e consequência,

O Movimento Manguebeat e a cidade de

procurando levantar a importância do ser

Recife apresentam de uma forma um tanto

humano e seu imaginário como elemento

esclarecedora essa relação recíproca entre

constituinte do planejamento urbano e,

quem vive e onde é vivido. Sendo a cidade

acima de tudo, como elemento modificante

o ponto de partida e a causa do movimento

do espaço através de suas manifestações

e, ao mesmo tempo, o movimento a

culturais espontâneas. Assim, será

manifestação do espaço da cidade e suas

necessário usar da interdisciplinaridade que

condições históricas, sociais, econômicas e

convém ao estudo sobre o ser humano e

culturais por parte dos que vivem, usufruem

seu comportamento, levando em conta a

e atuam em seu tecido urbano. Em suas

estética do movimento e a relação entre as

músicas bandas como Chico Science e

disciplinas da área denominada Humanas, a

Nação Zumbi e Mundo Livre S/A retratam e

fim de aplicar, por fim, as consequências do

questionam as condições atuais da cidade,

Movimento e suas manifestações no espaço

relembram seu passado e proclamam

da cidade de Recife.

um possível futuro em um processo de

Procura-se entender a consolidação

antropofagia, mesclando ritmos tradicionais

de uma realidade social, que não é


decorrente meramente das engrenagens

atuais, todos os fatos importantes para o

macropolíticas, mas, sobretudo, resultado

entendimento tanto da relação histórica

de uma convergência entre esta, a

entre eles, como das condições específicas

produção simbólica e as experiências

de cada época e o quanto eles atuaram na

cotidianas que reverberam diretamente

cidade do Recife. Segundo, o pesquisador

no que cada sociedade designa como

colombiano Armando Silva, que em seu livro

cultura. Não cabe negar a influência das

“Imaginários, Estranhamentos Urbanos”

politicas macroeconômicas tem na realidade

propõem uma visão e uma metodologia

simbólica e cultural, mas questionar o

de análise da cidade, a partir do que ele

reducionismo do determinismo econômico,

chama “imaginário urbano”, em que, em

proposto pela analise e prática materialista ,

resumo, tenta olhar para as relações

como uma estratégia, dentro do urbanismo

humanas e os fatores que influenciam a

tradicional, insuficiente para emergência

elaboração de uma consciência coletiva, que

de uma realidade onde o ser humano é o

consequentemente, de um modo obviamente

principal elemento.

recíproco, age na cidade, em seu uso e na

Ao propor-se explorar o fenômeno cultural

sua efetivação enquanto espaço, abordando

Manguebeat com vista de compreender

desde a semiótica, antropologia, filosofia,

as relações de representação do espaço

estética, sociologia, arquitetura, urbanismo

urbano da cidade de Recife, a abordagem

e todas as áreas cabíveis ao que no fim é o

teórica estabelece um diálogo entre dois

próprio ser humano.

autores, que foram as principais referências dentro desse estudo. Primeiramente, o jornalista recifense José Teles, o qual em seu livro “Do Frevo ao Manguebeat” levanta desde o surgimento do frevo, 3

passando pelas influentes décadas de 60 e 70, chegando ao Manguebeat e aos dias

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UM ESPETテ,ULO CULTURAL

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ANTES, O CENÁRIO Até meados dos anos 50, o Recife era incontestavelmente a principal cidade do

“O Estado Novo trouxe para

Nordeste, por muitas décadas a terceira

Pernambuco o interventor Agamenon

capital do país, como também o polo cultural

Sérgio de Godoy Magalhães,

mais atuante, depois de São Paulo e Rio de

representante local do varguismo

Janeiro (rivalizando com Salvador, no início

nacional. Ao interventor deve-

dos anos 60). No entanto, as características

se entre outras coisas: plano

das manifestações culturais de Pernambuco

de urbanização, dinamizadores do

como um todo se apresentam, hora

capital imobiliário, da construção

efervescentes, hora estagnadas; bem

civil; plano rodoferroviário que

particulares e com elementos bem

atingiu o sertão do Pajeú e os limites

marcantes. A exemplo do frevo, o maracatu,

com o Ceará e Piauí, facilitando o

caboclinho, o forró, o brega, o coco, entre

escoamento do sisal, do algodão, das

muitos outros.

atividades agropecuárias (carne, leite, queijos), rivalizando o comércio

Nos anos 30, Recife teve uma gestão que

intermunicipal; criação de hospitais

determinou muito do que resultaria em uma

regionais; incentivo à educação e à

euforia econômica nos anos seguintes,

cultura, estabelecendo clínicas de

como afirma o historiador pernambucano

todos os hospitais ligados à Escola

Antônio Alves Sobrinho:

de Medicina, ampliando a escola de Engenharia, criando a Escola Superior de Agricultura, Salão Anual de Pintura, a Orquestra Sinfônica, um Programa Editorial, a Casa do Estudante de Pernambuco.”

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Imagem 1: Arista Militão dos Santos – Carnaval de Olinda


Na década de 1950, o Recife ganhou

Assim, a cidade ganhava, efetivamente,

seu contorno urbano atual, com o

outros contornos, alargava-se, deixando

crescimento populacional ocasionado

o seu centro de ser área residencial

pela migração de pessoas do

importante, para ser invadido pelo

interior nordestino e a extinção dos

comércio e pelo setor de serviços.

mocambos*¹, obrigando a população

Rompia-se com a forma tentacular

pobre a viver nos morros. A cidade

anterior, como assinala Virgínia Pontual:

já buscava mostrar uma perspectiva positiva de si, escondendo as mazelas

“As áreas vazias entre os tentáculos,

sociais. “É interessante assinalar que,

ao norte, foram ocupadas, tornando-

em 1940, a população da cidade era de

se uma mancha contínua e compacta,

348,4 mil pessoas, aumentando para

abrangendo os bairros do Recife,

524,7 mil habitantes em 1950, tendo

Santo Antônio, São José, Boa Vista,

o município do Recife expandido sua

Santo Amaro, Graças, Encruzilhada,

área territorial na década de 50, de 180

Beberibe, Casa Amarela e Poço”. O

km para 209 km”. (URB-Empresa de

mesmo ocorreu, ao sul, “a partir da

Urbanização do Recife- Projeto Recife,

década de 1950, com o espraiamento da

História de Uma Cidade).

mancha urbana em quase toda extensão territorial da cidade, inclusive com

Ainda nos anos 50, com aquela

a formação de novos bairros como

exaltação da figura do interventor se

Imbiribeira, Jordão e Ibura”.

iniciava o confronto entre as oligarquias e movimentos populares que por pouco

Após 64 o processo de decadência já

não se enfrentariam em uma luta aberta

se mostrava com força, contribuindo

durante o primeiro governo de Miguel

para existência de um círculo vicioso:

Arraes (1962-64).

“deixou de receber maiores atenções do Governo Federal porque perdeu a

*¹MOCAMBO é associado ao local destinado aos negros, aos marginalizados socialmente, à sua dimensão ecológica, às atividades agrícolas, à insalubridade e ao atraso cultural, sendo inclusive, 13

comparados às favelas da cidade do Rio de Janeiro.


Imagem 2: Marco Zero Recife

importância e perdeu a importância por falta

restauração arquitetônica do seu conjunto).

de investimentos.” (TELES, José. Do frevo

“Os bairros de Santo Antônio e Boa Vista,

ao manguebeat. São Paulo: Ed. 34, 2000.

que forma o núcleo central, são formados

356 p.). A população do Recife continuava a

por largas avenidas, edifícios de fachadas

crescer no mesmo ritmo da década anterior

pesadas (construídos nos anos de 30, 40,

e as mazelas socioeconômicas dominavam

50 e 60, muitos deles em estilo art déco)”

os debates entre os intelectuais.

(TELES, José; p.15). Nas adjacências os prédios se mostram menores, atingindo

O bairro do Recife antigo, onde a cidade

no máximo quatro andares com uma clara

foi fundada no sec. XVI se mostra ainda

influência portuguesa. Caetano Veloso em

com a imponência da era dos brilhos da

69 comparou: “É como se de repente o

indústria açucareira (principalmente após a

Recife virasse o Rio de Janeiro”.

Imagem 3: Rio Capibaribe – Centro de Recife

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Atualmente e vindo já das décadas

cidade, como nos bairros de Casa Forte,

passadas, Recife, como muitas outras

Torre, Madalena e Ilha do Retiro. Apenas em

cidades do Brasil, encontra-se a mercê

determinadas áreas não há predominância

do investimento imobiliário e suas

de imóveis de até dois pavimentos: em

especulações, onde as regiões nos entornos

Boa Viagem, na margem esquerda do Rio

do rio Capibaribe, principal elemento da

Capibaribe, em parte da margem direita e

cidade, desenha sua paisagem em inúmeras

em parte do Centro Expandido. O grande

ilhas com sua sinuosidade, estas, com muito

problema, em termos do processo de

do mesmo projeto urbanístico de interesses,

verticalização e de adensamento construtivo

que através de aterros ataca suas águas

da cidade, é que vem se realizando de forma

e o mangue (principal ecossistema do seu

indiscriminada em parte do território da

entorno). O escritor Gilberto Freyre constata:

cidade sem, muitas vezes, ocorrer de forma compatível com a paisagem urbana e com a

“Tanto nos subúrbios como no centro, o

capacidade das estruturas urbanas.

Recife é uma cidade recatada. Não se exibe. Não se mostra. Retrai-se. Contrai-se.

A dinâmica de localização das atividades

Esconde-se, até, dos olhos dos admiradores

comerciais, de serviços e industriais,

que se oferece à sua curiosidade.”

conheceu, ao longo do tempo, profundas transformações. Até a década de 70, o

Esconde-se atrás de inúmeras torres de

centro abrigava as principais atividades

concreto. O processo de verticalização

econômicas e institucionais. Com a

intensificou-se em determinadas áreas da

emergência de um dinâmico mercado Imagem 4: Camelôs- Centro de Recife

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imobiliário direcionado às classes médias, os

Recife ferve, fede, se esconde, se insinua,

bairros do Espinheiro, Graças e Boa Viagem

mas procura, se afirma e muitas vezes

tornaram-se áreas privilegiadas para esses

proclama. A imagem de metrópole do

investimentos imobiliários. Tal processo

nordeste, surgida da ilusão de um

significou a migração do terciário “nobre”,

progresso que não veio, mantém a cidade

que se localizava na área central, para

a frente de um espelho, seja narcisismo

esses bairros, particularmente para os seus

ou autocrítica, faz muito que se tentar.

principais eixos viários.

E a cultura local, independentemente ou juntamente com o espaço e as

Ao mesmo tempo, esse deslocamento,

consequências urbanas, é um exemplo, se

contribuiu para a expansão, na área central

não claro, no mínimo instigante.

e seu entorno, das atividades comerciais e terciárias direcionadas para os segmentos populares. Onde, em boa parte da área central caminha-se em meio a um mar de gente, “barracas” e vendedores de tudo. O que no sentido social de democratização do espaço mostrou-se de certa forma benéfico, pois em pleno centro da cidade existe uma vida, tumultuada sim, mas tumultuada pela população, que afirma seu direito ao espaço. No entanto, muitos ainda são chamados de “ilegais” e sofrem as consequências dessa lei, mas transgredem e se afirmam dentro de suas possibilidades.

16

Imagem 5: Vendedores da Avenida Conde da Boa Vista – Centro de Recife


A PRIMEIRA CENA

A cena musical de Recife sempre foi intensa.

1919 com aparelhos radiotelegráficos, tendo

Também em um regresso à década de 50,

sido reorganizada em 1923 com a instalação

a cidade possuía importantes emissoras

de aparelhos radiodifusores. O jornalista

de radio como a Rádio Clube e o Sistema

Luiz Maranhão Filho levanta a hipótese de

Jornal do Commércio. “Há inclusive

que a reinauguração da Radio Clube ocorreu

polêmicas quanto ao fato de a Radio Clube

em 17 de outubro de 1922, seis meses antes

ter sido a primeira emissora a funcionar

da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro.”

no país. Alguns estudiosos afirmam que a

(TELES, José; p.20)

primeira do país foi a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, fundada em 20 de Abril de

A Rádio Jornal do Commércio possuía um

1923, e que a Rádio Clube de Pernambuco

sistema de comunicação que incluía dois

teve inauguração em 17 de Outubro do

Jornais diários, varias emissoras pelo interior

mesmo ano. Há controvérsias a este

do estado de Pernambuco e a principal

respeito, uma vez que outros pesquisadores

componente a TV Jornal do Commércio.

consideram que a emissora foi fundada em 17


“O sistema Jornal do Commércio foi um os

por José Menezes e Aldemar Paiva.

mais importantes impérios de comunicação do Brasil e por mais de três décadas,

O “mercado do frevo” na época era

comandado pelo braço de ferro senador

monopolizado pela empresa multinacional

Pessoa de Queiroz, falecido em 1982.”

RCA, nessa premissa que nasceu a

(TELES, José; p.21)

Fábrica de Discos Rozenblit, que possuía estúdio, suas próprias prensas, um parque

Introdução feita para se voltar ao primeiro

gráfico, selos, atendendo a vários estilos

“movimento” originado em Recife, apesar

e, posteriormente, com filiais nos estados

da áurea época aquela dos rádios, da qual

de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande

pouco se tem registro. Os principais nomes

do Sul. A partir daí, por quase trinta anos

que ficaram dessa época são Jackson do

ela foi responsável por registrar inúmeros

Pandeiro e Almira Castilho.

artistas da música brasileira, principalmente,

Na verdade o que se chama “movimento”

e pela primeira vez, ritmos regionais com um

remete ao início da comercialização, de

viés comercial, “como maracatus, cirandas,

forma rentável, atingindo as massas, tanto

pastoris, cocos, sendo que alguns desses

do país mas, principalmente, da própria

gêneros estavam tendendo a extinção e

região de Pernambuco. Isso se deu graças

outros conservados apenas na tradição oral

a um empreendimento que muitos frutos

do povo, que, com certeza, não demoraria

renderam para a cultura popular brasileira: a

a esquecê-lo.” (TELES, José, p.24). Mas

Gravadora Rozenblit.

ainda, foi também onde se gravou ícones de várias épocas, como: “os bossanovistas

Equipada na época com o que melhor podia

Lúcio Alves e Os Cariocas, os jovem-guarda

se encontrar no mercado fonográfico, a

Bobby de Carlo e Martinha, patrocinou a

gravadora, comandada por José Rozenblit,

estréia do LP em solo baiano do tropicalista

foi a primeira a documentar o que já era

de primeira hora Tom Zé, e deu suporte

o combustível que aquecia o carnaval

ao bidu Jorge Ben, desprestigiado pelas

pernambucano, o Frevo. Gravado pela

gravadoras do Sudeste em sua fase Jovem

primeira vez com um selo local em 1953, em

Guarda, e (ainda) o espirituoso Juca

um 78 RPM, com um frevo-de-rua “Come e

Chaves” (TELES, José; p.24).

Dorme” de um lado, de Nelson Ferreira, e no outro um frevo-canção, “Boneca”, assinada 18

No entanto, a grande paixão do empresário,


assim como de muitos conterrâneos, na

modinha ao tropicalismo:

época, e de certa forma ainda hoje, era o

“É verdade que, ao serem lançados em

frevo. “A forma como o frevo era usado pela

Pernambuco esse frevos gravados nas

indústria fonográfica o deixava incomodado,

fábricas estrangeiras com filiais no Rio

ou melhor, ferido no seu orgulho arraigado

de Janeiro - principalmente a RCA-Victor,

de pernambucano, cujas raízes vêm de um

pioneira na tentativa da conquista dos

regionalismo, que teve entre seus principais

mercados regionais usando matéria prima

defensores o teórico e sociólogo Gilberto

local-, o público reagiu desfavoravelmente

Freyre. Um regionalismo que se refletiu no

ante à contrafação rítmica que os cariocas

direcionamento que a gravadora tomou,

lhe davam”

(TELES, José; p.32)

priorizando a música pernambucana”. (TELES, José; p.32) Regionalismo esse

Essa investida mercantilista foge da visão

também, encontrado em muitas das

de tentativa de valorização cultural de uma

manifestações culturais e na vida como

manifestação estritamente vinculada a um

um todo de muitos habitantes desse lugar.

único estado do país. Mostra apenas seu

Como o historiador de música popular José

aspecto colonizador, que claramente tentou

Ramos Tinhorão bem explana em seu livro

lucrar em cima de uma população com um

Pequena história da música popular: da

produto que eles mesmos criaram.

Imagem 6: Xilogravura – J. Borges

19


A SEGUNDA CENA “Pernambuco tem uma dança que nenhuma terra tem - É Frevo, Meu Bem” de Capiba.

O frevo nasceu no final do sec. XIX e a

O termo frevo vem da variação do verbo

nomeação como tal, se efetivou já na

ferver, associado à festa, agitação, reboliço

primeira década do século XX. De uma

nas expressões populares de Pernambuco,

mescla de elementos de maxixe, polca,

e no dia-a-dia, essa mesma expressão

dobrado, modinha, quadrilha.

nas línguas mais soltas da população, virava frever. Assim, era para designar uma

“O Frevo era uma coisa que tinha muita

ação, um momento e aos poucos foi sendo

força, maracatu não muito, porque o

assumida como nome do gênero.

maracatu não era muito divulgado em disco, não se traduzia muito nas composições de

A música, a dança e a produção do frevo

música popular. Mas o frevo não. O frevo

são desde seu nascimento associados,

nos carnavais era muito tocado. (...)”

quase de forma siamesa, ao carnaval.

(entrevista de Gilberto Gil a José Teles) (TELES, José; p.28)

Compositores associados a clubes, a blocos, músicas lançadas como hinos, ensinadas quase que didaticamente meses antes do

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Rocha e Joana Batista, são incansavelmente

pernambucano de Paudalho, Zona da Mata

repetidos nos blocos de rua, subindo e

do estado” (TELES, José; p.37).

descendo as ladeiras de Olinda; ou a canção “Evocação nº1” de Nelson Ferreira,

Mas ele não se resume apenas à música,

fenômeno nacional no ano de 1957.

a dança, ou o passo, é um elemento essencial, senão de mesma importância do

Mas o frevo “também difere de outros

que se toca, um leva outro, o ritmo marca

gêneros por não ter origem folclórica.

o passo e o passo puxa o ritmo. Inclusive,

Nasceu do povão, é certo, mas não

no nascimento do frevo, não se sabe, ou

do reaproveitamento de músicas

melhor, não se separa um do outro.

preexistentes, de domínio público, peças

O passo nasceu a partir de grupos

populares colhidas por compositores

capoeiristas que acompanhavam as bandas

letrados. O frevo é uma música feita por

dos quartéis, que esses grupos rivais entre

indivíduos. Tem sempre autor certo e

si, duelavam enquanto a música era tocada.

sabido, com assinatura em baixo, não raro

A antropóloga Rita de Cássia, em sua

com firma reconhecida” (TELES, José; p. 35).

dissertação de mestrado, intitulada, “Festas, máscaras do tempo e frevo no carnaval do

Inclusive tem pai sabido e confirmado, “o

Recife”, relata:

genitor do frevo foi o regente da banda do 40º Batalhão de Infantaria do Recife, José

“No Recife, particularmente, desde meados

Lourenço da Silva, o Capitão Zuzinha,

do século passado (séc. XIX), as rivalidades Imagem 7: Carnaval de Olinda

Imagem 8: Carnaval de Olinda

21


22

Imagem 9: Carnaval de Olinda


dos partidos de capoeiras costumavam a se

Dessa rivalidade, dessa “brincadeira”, o

manifestar no extremado partidarismo pelas

frevo foi se moldando em quanto um diálogo

bandas de músicas existentes na cidade.

de corpo e música, ritmos e movimentos.

Dessas disputas, tornaram-se célebres

Na época, as armas eram para efeitos reais,

os confrontos entres os capoeiras que

e não raro o confronto acontecia, mas,

apoiavam a banda de música militar do 4º

aos poucos, os elementos foram sendo

Batalhão de Artilharia, o famoso Quarto; e

substituídos e os espetos e chuchos foram

os que eram defensores do Espanha, banda

substituídos pelas sombrinhas. A mesma

de música do corpo da Guarda Nacional,

Rita de Cassia, arremata:

dirigida pelo espanhol Pedro Garrido. Desde então, e até inícios do século XX, quando

“O passo surgiu de um processo de

foram rigorosamente reprimidos pela polícia,

elaboração lento e espontâneo. Os

o gosto dos capoeiras pelas bandas de

populares que acompanhavam os

música – que costumavam seguir à frente,

passeios das agremiações - mas que

abrindo passagem, pulando, saltando,

não pertenciam às mesmas e não

fazendo esgares – e as rivalidades que entre

participavam das ensaiadas manobras -

elas se instalavam tornaram-se parte da

sentiam-se contagiados pelas marchas

história e da cultura da cidade.”

excitantes, executadas pelas orquestras.

O jornalista Paulo Viana, em seu livro

Incorporavam o ritmo vibrante das

“Carnaval de Pernambuco: suas riquezas

músicas, deixam fluir os passos da

folclóricas e ritmos característicos”, também

dança, que sempre individual, a sugerir

conta as peripécias dos passistas:

agressividade e defesa. Os movimentos

“No trajeto, os moleques de bairros, e os

ágeis e definidos dos corpos, por sua vez,

desordeiros da época acompanhavam a

retornavam aos músicos e inspiravam

banda de música da corporação executando

novos acordes, num processo incessante

“passos” de capoeira, armados de

de troca, improvisação e criação coletiva.”

espetos ou chuchos (rudimentares armas pontiagudas) com o objetivo de perfurar o

Graças a Gravadora Rozenblit, o frevo

bombo da banda. Os grupos disputavam

passou a ser consumido em território

entre si o privilégio, aos gritos de ‘Viva

regional, além da força dada aos

Espanha! ’.”.

compositores que conseguiram registrar suas músicas sem intermédio de figurões

23


do sudeste e festivais promovidos

Oliveira. Ou seja, o frevo apesar de ter

periodicamente. A cena assim ganhou

nascido muito a base das improvisações,

força e o frevo também, tendo esse o auge

possui uma estrutura musical complexa,

produtivo e inventivo entre as décadas de 50

e seus compositores necessitam saber

e 60.

de orquestração, ter relativo estudo em música, além do virtuosismo de quem o

Os maiores nomes dessa geração, e na

executa. O que as próximas gerações não

verdade, praticamente a única que se fez

mostraram possuir, ou pelo menos, aplicá-

o que se pode chamar de “bem feito”, foi

los com interesse no frevo. O maestro Duda

Capiba e Nelson Ferreira, que além de

desabafa, em uma entrevista de 1989:

compositores eram intérpretes e regentes.

“Depois que a Rozenblit acabou, a gente

Além deles, compositores como: “Levino

ouve frevo novo quando algum músico de

Ferreira, Zumba, Felinho, Irmãos Valença,

porte, por exemplo, Alceu Valença, grava em

Raul e Edgar Moraes, abrindo leque para

seu disco”.

novos criadores como maestro Duda, Edson Rodrigues, José Menezes ou Clóvis Pereira,

Por inúmeras tentativas, através de festivais

ainda hoje atuantes no Recife.” (TELES,

como o como o Recife Frevoé, que substituiu

José; p.44).

o Recifrevo, que substituiu o Frevança, frevo continuou desinteressante para as novas

No entanto, a Rozenblit ao mesmo que

gerações. Como afirma o produtor Carlos

promoveu o frevo fez desse um filho

Fernando, por trás do Recife Frevoé:

dependente, e “paradoxalmente, a gravadora contribuiu, de forma indireta, para que o frevo afundasse em lenta decadência a partir da sua falência. A Rozenblit esteve em coma durante praticamente toda a década de 70, fechando as portas definitivamente em 1980.” (TELES, José; p.44).

Para completar a estagnação da cena, o frevo “não é planta que se transplante” como afirma o escritor Valdemar de 24

Imagem 10: Dançarina de Frevo


“Não existe mais demanda para o mercado

nostálgica classe média. Com todos os

de frevo no Brasil hoje. Não vamos tapar

elementos propositalmente passadistas, sem

o sol com a peneira. Não existe também

nem ter idéia de quem foram, fazem coro

em sua terra natal. Foi aqui que o frevo

nos nomes lançados na Rozenblit e suas

nasceu a cem anos, foi consumido, mas

músicas, no bairro que deu origem a cidade.

sempre foi uma música temporal, de época. A juventude da década de 50 cantava era Orlando Silva, Cauby Peixoto, o frevo tocava só no carnaval. A Rozenblit gravava as músicas e vendia os discos, o povo aprendia e cantava dentro dos clubes. Hoje em dia não tem mais isto. A juventude não tinha a influência do rock, do reage, do jazz como tem hoje, o pagode, a axé music, o samba tradicional. Isto é o mercado”.

Mas o carnaval continua, e é lá que o frevo “freve”. Blocos como o Bloco da Saudade entre outros, revividos pela classe média da capital, mantém toda a beleza do estilo, saltitando os foliões e impondo todo o frenesi dos acordes das bandas. “Já há alguns anos um dos mais belos e líricos momentos do carnaval do Recife e Olinda é o encontro desses blocos, no começo da noite, no Marco Zero da Cidade, no bairro do Recife Antigo. Com fantasias multicoloridas, seus integrantes, acompanhados por bandas de pau e corda e palhetas, evocam os antigos carnavais, nos evocativos, nostálgicos, frevos-de-bloco”, único estilo de frevo que atrai a bem nascida juventude da sempre 25

Imagem 11: Dançarina de Frevo


TERCEIRA CENA

“O Recife, no entanto, não `frevia`

O tinha como intuito a politização, a

apenas quando nos blocos, orquestras

educação como afirma seu estatuto: “Elevar

e passistas tomavam conta das avenidas

o nível cultural dos instruendos (sic) para

em fevereiro. `Frevia` o ano inteiro,

melhorar sua capacidade aquisitiva de ideias

culturalmente. No primeiro Governo

sociais e políticas... e ampliar a politização

Miguel Arraes (1962-1964), artistas

das massas, despertando-as para a luta

plásticos, intelectuais, atores,

social”. (IDEM). Além da divulgação o grupo

teatrólogos, músicos, estudantes uniram-

realizava pesquisas em torno da cultura

se em torno das propostas do Movimento

popular local, e a disseminava a partir do

de Cultura Popular - MCP - e dos ideais do

Departamento de Formação, criado para

professor Paulo Freire”.

“interpretar, desenvolver e sistematizar a

(TELES, José; p.77).

cultura popular”. Seus principais integrantes eram a grande parte da intelectualidade de esquerda do estado como: Ariano Suassuna,

26


Hermilo Borba Filho, o educador Paulo

a movimentos da vanguarda erudita, este

Freire, os artistas Francisco Brennand e

grupo tinha por objetivo criar uma música

Abelardo da Hora, Aloísio Falcão e o futuro

“universal”.

prefeito de Olinda Germano Coelho. Foi nessa época que, mesmo na No entanto, veio o Golpe de 64, e como

conservadora Recife, que os costumes

todo movimento de esquerda este também

foram virados de cabeça para baixo,

foi perseguido e dissolvido, mas antes teve

todos os questionamentos vieram à tona,

influência nacional, gerando seguidores

e a cultura como um todo foi a principal

como o CPC da UNE, que seguiu seus

ferramenta de contestação. A grande

moldes. Mesmo assim, os esquerdistas

Rozenblit, no seu regionalismo, “ignorou

dissipados formaram outros grupos ainda

que Pernambuco, mesmo com todo apego

na mesma época, como o TPN – Teatro

às tradições, sempre teve vocação para a

Popular do Nordeste – com Suassuna à

vanguarda. Foi assim que o Modernismo

frente.

de 22 teve sua contraparte no Manifesto Regionalista de 1926, encabeçado por

A década de 60 foi marcada mundialmente

Gilberto Freyre. E o tropicalismo dos

pela forte presença da atuação jovem no universo cultural que expandiu suas influências aos meios políticos e sociais. No Brasil, é nesse período que grandes mudanças nas estruturas sociais e políticas germinaram; uma década de efervescência cultural em todo país. Armados com uma proposta de ruptura com os padrões estabelecidos e trazendo ao cenário cultural brasileiro uma grande mistura de ideias, estilos, tendências e linguagens, com elementos da cultura jovem mundial como o rock, os sons eletrônicos da guitarra elétrica e o colorido da psicodelia hippie misturados

27

Imagem 12: Uma luz no fim do Túnel - Centro de Recife


período outros perpetuando sua carreira até os dias de hoje como: Geraldo Azevedo, baianos ecoou quase que simultaneamente

Zélia Barbosa, Marcelo Melo, Toinho Alves,

no Recife, com manifestos (endossados

ambos violonistas, Naná Vasconcelos,

inclusive por Caetano Veloso e Gilberto Gil),

Teca Calazans (grande responsável

festas, happenings e tudo a que se tinha

pela preservação e exaltação da ciranda

direito.” (TELES, José; p.79).

durante a década de 70, entre é claro, os

Mas em como todo momento histórico de

universitários e a classe média) Carlos

efervescência surgiu os opostos que se

Fernando e Sebastião Vila Nova.

rivalizavam, a MPB – como ficou conhecida

28

a música popular urbana universitária – e

No entanto, como quase tudo, e isso

o Iê-Iê-Iê com a idolatria apenas pelo que

independente da época, no nordeste como

vinha das capitais mundiais do rock, como

um todo, não conseguiu “segurar a onda”

Liverpool; nessa época renderam boas

dessa efervescência, por falta de suporte

brigas musicais, no sentido criativo. Os da

técnico, ou melhor, estrutura midiática e

MPB recifense voltaram seus olhos para

produção fonográfica. Tudo sempre se

música populares como maracatu, ciranda

voltava para o eixo Rio-São Paulo, onde

e bandas de pífano. Nessa época o Jornal

toda estrutura econômica se encontrava e

do Commercio, era o principal incentivador

ainda se encontra. Tanto que, “a maioria dos

dessa turma, com os artigos assinados

artistas dessa fase extremamente rica da

por Jomard Muniz de Britto. “Assim nesses

música pernambucana trocou os palcos por

meados dos anos 60, quando a demanda

ofícios mais seguros, grande parte acabou

pela cultura nordestina tornou-se nacional,

ensinando em faculdades, batendo cartões

a partir dos filmes de Glauber Rocha, das

em empregos públicos. Os que insistiram na

canções de Sérgio Ricardo, Geraldo Vandré

música tiveram que migrar para continuar

e Edu Lobo, a música nordestina passou a

na profissão.” (TELES, José; p.84). Como

ser exportada a partir do eixo Rio-São Paulo

mostra também o jornalista Celso Marconi,

pelas grandes gravadoras.” (TELES, José;

em uma publicação no Jornal do Commercio

p.72). Além deles outros nomes apareceram

em 1968, a respeito da ida de Geraldo

e tomaram força, uns apenas por certo

Azevedo para o Sudeste a convite de Eliana


Pitman:

expressar de maneira livre e experimental como muitos queriam. Com alguns deles

“Para se ver como é frágil o movimento

sendo presos e muitas vezes, por isso,

de música popular no Recife, basta se

desestimulados.

constatar a estagnação atual em que estamos, simplesmente porque alguns

No entanto, a procura por respostas,

elementos (bons) viajaram para o Rio.

modificações, atuação social e política

Bastou Geraldo Azevedo deixasse esta

se mostram como principal propulsora

Capital para tudo voltar á estaca zero,

dessa geração, não só a respeito dos

e isto porque ele era realmente o único

problemas urbanos, que já eram enormes

violonista realmente bom (realmente

com o crescimento desordenado, o inchaço

excelente) do Recife, que se dispunha

populacional (quando na década de 60

a trabalhar como profissional, mesmo

chegava a 797. 234 habitantes (IBGE),

que não tivesse remuneração para

sendo que na década anterior estava com

isso.”(TELES, José; p.88)

um pouco mais do que 500.000 habitantes), mas a juventude começava a ter acesso ao

Claro, que em plena ditadura militar, tudo

que acontecia fora do país e as influências

ficava muito mais difícil, para que mesmo

se expandiam, uma visão de mundo era

os menos engajados, conseguissem se

a principal inquietação. “O lirismo e a

Imagem 13: Bairro de Classe Média - Bairro de Boa Viagem Recife

29


ingenuidade dos clássicos dos anos 30 e

bom gosto, qualquer coisa que fugisse

40, que conviviam tanto no frevo quanto na

dessa vertente passou a ser ignorado, e

marchinha carioca, começaram a dar vez

se ignorado pelo mercado, ignorado pelo

às crônicas do dia-a-dia. Das mudanças

público, pois esse não chegava nem a ter

nos costumes da sociedade (‘Menina de

conhecimento da existência do que estava

Hoje’, de Manuel Gilberto) à ida a Lua (‘A

fora da TV ou dos Jornais, nos quais já havia

Lua Disse’, de Evaldo França), até quase

imposição de programação em todo país

reportagens sonoras, como a implosão

pelas grandes e ricas emissoras do sudeste,

fracassada de uma ponte no bairro da

matando ou deixando em segundo plano as

Madalena por um expert japonês, que virou

programações regionais.

motivo de chacota na cidade (‘E a Ponte Não Caiu’)”. (TELES, José; p.100)

“Isso tudo colaborou para que a classe média, do país inteiro, tivesse seu gosto

30

Como era um estilo de música feita por e

padronizado e passasse a considerar

para a classe média intelectualizada, e com

“atrasada” a música que sempre consumira

a ajuda da TV, que passou a ser a grande

sem questionamentos estéticos”. (TELES,

vitrine da época, principalmente através

José; p.102). E se o gosto era um, o

dos festivais promovidos pelos grandes

comportamento, os interesses também, ou

canais, a MPB passou a ser sinônimo de

seja, uma massificação.


UMA CENA A PARTE

“Qualquer movimento cultural feito no

de uma palavra que já se vinha usando

Nordeste estava condenado a permanecer

há algum tempo, mais como apelido que

atrasado dez anos em relação à Guanabara

propriamente como nome.” (Marcus Vinicius

ou São Paulo e um século em relação a

de Andrade, em artigo para Revista de

Londres, coo afirmava gozativamente um

Cultura (nº9, de 1972))

dos manifestos divulgados. Esse talvez-

31

tropicalismo nordestino foi, em realidade, o

O tropicalismo no Recife foi a rebeldia e o

primeiro movimento cultural acontecido sem

questionamento em relação a praticamente

que houvesse lapso de tempo em relação ao

todos os valores dominantes da sociedade

Sul. Na realidade as propostas tropicalistas

na época. Feitos por intelectuais, mas

(aproximadas em alguns pontos e diversas

intelectuais que sabiam onde a ferida se

em outros) ocorreram simultaneamente

encontrava aberta e faziam questão de

(tanto faz no sul como no norte). O porquê

cutucá-la. Foi assim nos três manifestos

do rótulo, como já foi explicado, deveu-se a

publicados no final da década de 60. “No

uma aceitação sem maiores consequências

dia 10 durante a um debate na Faculdade


de Filosofia da UFPB, em João Pessoa, intelectuais e músicos lançavam o manifesto O Que É o Nosso Tropicalismo ou Vamos Desmascarar o Nosso Subdesenvolvimento. Da mesa participaram os signatários do manifesto, Jomard Muniz de Britto, Will Leal, Carlos Aranha, Martinho Moreira Fraga, Raul Córdula, Marcus Vinicius (compositor e produtor, autor de Dedalus e O trem dos Condenados, dois discos antológicos e hoje pouco lembrados), com o som nas caixas ficando por conta do grupo Os Quatro Loucos, cujo guitarrista era um cara sisudo, alto e magro: o hoje famoso Zé Ramalho.” Foi esse mesmo grupo que um mês antes lançou “o 1º Primeiro Manifesto Nordestino, em Olinda, na galeria A Varanda, durante a exposição individual do natalense Marcos Silva” (TELES, José; p.112). Este ainda seria levado para o bairro da Encruzilhada, zona norte, para ser debatido. Tal era o teor do texto, que merece ser exposto na íntegra:

Porque somos e não somos tropicalistas

1 . Constatamos (sem novidade) o marasmo cultural da província. (Por que insistimos em viver há dez anos da Guanabara e há um século de Londres? Por fidelidade regionalista? Por defesa e amor às nossas tradições?)

2 . Recusamos o “comprometimento” com nossos “antigos professores”. (Porque eles continuam mais “antigos” do que nunca: do alto de sua benevolência, de sua vaidade, de sua irritação, de seu histrionismo, de sua menopausa intelectual).

3 . Lamentamos que os da “nova e novíssima geração” (a maioria pelo menos) continuem a se valer da tutela sincretista, lusotropical, sociodélica, joaocabralina, t-p-n-ística, etc. e tal.

4 . Comprovamos (sem ressentimento) a decadência da esquerda festiva. (A exemplo do faz escuro, mas eu canto, das manhãs de liberdade, do Vietnam por ti e por mim, e outros “protestos” puramente retórico-panfletários).

5 . Afirmamos: “Dessacralizando e corrompendo a esquerda festiva, o tropicalismo investe e arrebenta, explode e explora os seus adeptos tanto quanto os seus atacantes”. (Qua, qua, qua, para os que “não nos entendem”…) 32


6 . Somos (sem subserviência) por Glauber Rocha, José Celso Martinez Corrêa, Nelson Motta, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Hélio Oiticica, Adão Pinheiro, José Cláudio, os poetas de vanguarda. Tudo que for legitimamente NOVO.

7 . Reconhecemos a transitoriedade (o trânsito e o transe) do tropicalismo, junto ao perigo de comercialização, de mistificação, de idolatria. Assim como dizemos “abaixo a festiva”, acrescentamos: “abaixo o fanatismo tropicalista!” (Por isso, quem tentar nos apelidar, sorrindo, de “tropicalistas” – ou não tem imaginação, ou é dogmático, ou quer bancar o engraçadinho, ou é burro me

8 . A vanguarda contra a retaguarda! A loucura contra a burrice! O impacto contra a mediocridade! O sexo contra os dogmas! A realidade contra os suplementos! A radicalidade contra o comodismo!

9 . “Tropicalistas de todo mundo, uni-vos” – Jomard Muniz de Britto, professor e ensaísta; Aristides Guimarães, compositor de música popular; e Celso Marconi, repórter e crítico de cinema. Imagem 14: Tela de Hélio Oiticica de 1965

33


A caretice de Recife foi posta a prova

Marconi; da Paraíba, Marcus Vinicius (este

e aquela juventude soube usar das

pernambucano, mas radicado em João

ferramentas que possuíam para chocar,

Pessoa), Carlos Aranha e Raul Córdula; do

pois era isso o que queriam nada mais que

Rio Grande do Norte, Dailor Varela, Alexis

apontar um holofote para uma situação

Gurgel, Falves da Silva, Anchieta Fernandes

que não cabia mais em seu tempo. “Os

e Moacyr Cirne; da Bahia, Caetano Veloso e

tropicalistas do Recife cutucavam a

Gilberto Gil.

onça castanha com a vara curta, tanto que produziram outro manifesto ainda

O Inventário do Feudalismo Cultural

mais contundente e de maior amplitude,

Nordestino foi um manifesto mais crítico,

intitulado Inventário do Feudalismo Cultural

mais direto, mais contundente, que definia o

Nordestino” (TELES, José; p.112). E aqui

tropicalismo como `posição de radicalidade

cabe, também, a transcrição dos fatos

crítica e criadora diante da realidade

contados pelo próprio José Teles, que ele

brasileira de hoje` e a tropicanalha a `atitude

mesmo já os apresenta transcrevendo

conservadora e purista em face dessa

partes do Inventário:

mesma realidade`. O inventário fazia logo em seguida diversas indagações sobre

“Como assinala Marcus Vinicius em seu

problemas práticos da cultura nordestina:

artigo para a Revista de Cultura e Vozes, o

foram postos em xeque as academias

manifesto foi assinado por:

de Letras, os conselhos universitários, os festivais de música, a debilidade dos

‘Uma espécie de frente ampla de

suplementos literários, o impressionismo dos

artistas nordestinos, radicados ou não

críticos, a censura e ainda uma porção de

no Nordeste. Assinaram-no artistas dos

outros aspectos importantes. ’

estados envolvidos com o tropicalismo na

34

região: de Pernambuco, Jomard Muniz

O Inventário não apenas mexia na ferida

de Britto, Aristides Guimarães e Celso

da tradição, ele enfiava o dedo nela, sem

Imagem 15: Rua 13 de Maio – Olinda


dó nem piedade, questionando entidades

de Marcus Vinicius:

intocáveis como os Conselhos de Culturas e Academias. Alguns trechos eram claramente

“Depois do Inventário, os tropicalistas

dirigidos aos baluartes da cultura oficial,

passaram a ser olhados com mais

sobretudo a pernambucana, a exemplo

simpatia, principalmente pelo público de

deste:

universitários e estudantes. Porém foi a

‘O que se pode esperar de certos grupos

partir do Inventário que os folquilóricos

teatrais que se afirmam ‘propriedade

adeptos da nordestimbecilidade

privada’, casa de fulano ou de beltrano?

radicalizaram suas posições em

Por que jovens artistas ainda persistem

salvaguarda das tais tradições deles”

numa política de completa subserviência

(TELES, José; p.114 e p.115)

aos industriais-artistas e aos intelectuais

35

conselheiros e aos intelectuais

Isso para elucidar a capacidade e a

comprometidos com o poder constituído?

necessidade da cultura como um todo

Seriam os teatros ‘casas de fulanos e

tem de se atualizar e o faz de maneiras

beltranos’?’

diversas. Aqui foram radicais e ofensivos,

Uma referencia ao TPN de Ariano Suassuna

atacando sem medo o que os incomodava.

e Hermilo Borba Filho? Ao industrial-artista

Os manifestos, assim como festivais,

Francisco Brennand?

shows, intervenções e apresentações

Como se não fosse o bastante, o manifesto

de todo tipo foram fundamentais para a

terminava com libelo a favor do ‘liberou

cultura como um todo, ampliaram a estima

geral’:

dos artistas nordestinos, por exemplo; e,

‘c) Por qualquer movimento de vanguarda

consequentemente, a médio e longo prazo

cultural (pois não queremos impor

moldaram uma parte da sociedade e sua

unicamente a nossa posição), que se

visão de mundo. Não só os tropicalistas,

caracterize pelo rompimento com todos os

mas também os “tropicanalhas”, que através

padrões: morais, sociais, literários, sexuais,

da negação daquilo (ação incontrolável,

etc. e tal’

em uma filosófica causa e consequência)

Mais uma vez, citemos o esclarecedor artigo

reafirmaram suas ações e seus valores.

Imagem 16 : Vista de Recife a partir de Olinda


QUARTA CENA

36

Os anos 70 começaram à luz de toda

Denominados como desbundados, os

efervescência da década anterior, não

artistas do Recife dessa época não

somente pelo cenário nacional, mas toda a

chegaram a dialogar ou promover um

influência vinda principalmente da Europa

movimento específico, mesmo por que

e dos EUA. O festival de Woodstock havia

a palavra de ordem era exatamente o

acontecido no final dos anos 60, mas

oposto, desordem. “Os 70 foram anos de

sua onda, mais uma tsunami na verdade,

fechamento político total e de desbunde da

demorou um pouco a chegar ao território

juventude nas principais capitais do país.

brasileiro, veio em forma de filme, homônimo

E os desbundados botaram pra jambrar

ao festival, e fez com que toda a juventude

(estragar, arruinar, esculhambrar, bagunçar)

já “abalada” pelos anos anteriores sentisse

Pernambuco, num movimento anárquico,

seu impacto. E com isso a “contracultura

sem manifestos, utópico, sem lenço nem

entraria no vácuo deixado pela revoada para

documento. Esse pessoal, ao contrário

o exterior de artistas da geração surgida nos

da geração que o precedeu (muitos, por

festivais” (TELES, José; p.127)

sinal, fizeram parte dela), deixou discos


gravados, era contra o sistema, mas não

experimentais e inventivas para música do

tentava derrubá-lo. Assim conviveram

Recife, que, no entanto, e por razões óbvias,

pacificamente com os armoriais (seguidores

têm-se pouco registro. Theodore Roszak,

de Suassuna), não polemizaram jornais,

em seu livro A contracultura, mostra como

cada qual na sua, conforme a filosofia zen,

a transição de valores através da cultura se

da geração woodstock. A turma só queria

efetiva:

mesmo é tirar um som: Marconi Notaro,

“O fato é que foram os jovens, à sua

Flaviola, Lula Côrtes, os Phetus, Robertinho

maneira amadorística e até grotesca,

do Recife, Zé Ramalho da Paraíba, e uma

deram efeito prático às teorias rebeldes

das mais injustiçadas bandas da história

dos adultos. Arrancaram-nas de livros e

do rock brasileiro, o Tamarineira Village, ou

revistas escritos por uma geração mais

Ave Sangria, que abrigou em suas hostes

velha de rebeldes e as transformaram

dos mais talentosos guitarristas que já

num estilo de vida. Transformaram as

passaram por um grupo pop nacional: Ivson

hipóteses de adultos descontentes em

Wanderley, o Ivinho.” (TELES, José; p.133)

experiências, embora relutando em admitir que, às vezes, uma experiência redunda em

Em um momento histórico, onde a ditadura

fracasso.”

militar havia limitado alguns anos antes todo

Zé Ramalho também resume bem o que foi

direito de expressão com o Ato Institucional

esses tempos, em entrevista a José Teles:

nº 5, que perdurou difíceis 10 anos, ou seja, colocou toda uma geração sob forte

“No final dos 60 eu descobri os festivais de

cabresto; os desbundados mostraram que

rock, as drogas, a maconha, os cogumelos.

a rebeldia sem foco era o único caminho,

Fui hippie, andei de mochila nas costas,

e não por acaso foi umas das épocas mais

O contato com LSD me ajudou a abrir a

Imagem 17: Público Assistindo ao desfile de carnaval em Olinda

37

Imagem 18: Banda Ave Sangria


Imagem 20: Ladeira da Misericórdia – Olinda

Imagem 19: Ladeira da Misericórdia – Olinda

38


cabeça, penetrar nos livros, nas obras

firmar-se com a Orquestra Armorial, dirigida

de arte, ver as coisas com mais clareza.”

pelo maestro Cussy de Almeida, e o

(TELES, José; p.146)

Quinteto Armorial.” E não só, outro grupo fora dos desbundados tomou proporções

E foi exatamente por essa visão despojada

nacionais, o Quinteto Violado, que pelo seu

e sem preocupar com as consequências

sucesso, as gravadoras tentaram reproduzir

que álbuns antológicos surgiram em meio a

grupos semelhantes, sem grandes

tanta “viagem”, com pouco ou nenhum apelo

resultados. “Enquanto o Armorial levava o

comercial, quase todos acabaram virando

popular para um patamar erudito, o Quinteto

itens de colecionador. E essa visão de

Violado traduzia o popular numa linguagem

tempos obscuros, vistos em cores através de

pop, urbana”. (TELES, José; p.163)

psicoativos, era refletida na cidade, onde os encontros, conversas e produções se davam

No entanto, o desbunde recifense não

em lugares com nomes sugestivamente

duraria muito, se unir todos os fatores da

também transgressores, como Beco do

época, isso é plenamente compreensível.

Barato, em Olinda.

Drogas, ditadura e o principal fator, a falta de estrutura e atenção do mercado que sempre

“Mas nem tudo era desbunde no Recife de

reinou no nordeste como um todo. Os que

1973. O Movimento Armorial conseguira

despontavam iam para o “Sul-Maravilha”, apelido dado para o sudeste, os que resolviam ficar acabavam, como aconteceu com muitos dessa época, pelos becos, entre baratos e baratas.

“Mas antes de deixar o Recife entregue a uma aridez de criatividade que perdurou até a década de 90, os desbundados comandados por Lula Côrtes e Zé Ramalho fariam o disco que seria a contraparte pernambucana do manifesto sonoro do tropicalismo: Paêbiru: o Caminho da Montanha do Sol.” (TELES, José; p.177)

39

Imagem21: Largo da Sé – Olinda


A ABERTURA

A década de 80 foi tempos de abertura política, o fim do AI5 e uma transição

“Esse pessoal tinha tanta informação de

para a Nova República. No entanto essa

rock quanto de MPB e criou uma música

geração sentiu todas as consequências das

híbrida, que acabou deslocada quando

limitações impostas na década anterior e

as gravadoras trocaram a MPB de Chico

muitos a chamam de “década perdida”. No

Buarque e companhia pelo rock nacional

Recife não foi diferente, a aridez cultural

dos anos 80.”

reinou de tal forma que só a partir dos anos

40

90 começou a se perceber uma renovação

Quem não entrou para onda do rock, tentou

da cena. No Brasil como um todo imperava

seguir alguma outra referência da década

o rock nacional, bandas seguindo um pop-

anterior, mas não conseguiram encontrar

rock sem muito apelo artístico e sustentadas

nenhum rumo propriamente dito. “Não

pelo comercialismo das grandes gravadoras.

que não tenham deixado de surgir novos

Lenine, surgido nessa geração, em

artistas. Faltava-lhes, porém, um norte. Ou

entrevista a Teles, constata:

melhor, guiavam-se quase que unicamente


por um ponto cardeal: Alceu Valença, que

bairro em especial foi onde surgiu uma

passou a ser o ‘espelho cristalino’ em que a

dessas sementes, não a que floresceria o

maioria desses cantores ou compositores se

Manguebeat, mas uma cena que correu

miravam”. (TELES, José; p. 226).

paralelamente a ele. “Em Casa Amarela, num dos mais mal afamados e populosos

E o rock também não encontrava muito

morros do Recife, uns garotos formavam

espaço da estrita visão pernambucana e

uma banda, Egoesmo, semente inicial de um

nenhuma banda engrenava no gosto do

dos mais inusitados fenômenos musicais do

público. Mesmo a banda Mundo Livre S/A,

país: a cena musical do Alto Zé do Pinho”

nascida em 84, demorou a ser reconhecida.

(TELES, José; p.232)

O roqueiro paulista Ibañez, batalhador dessa cena no Recife, em uma matéria do Jornal

O Alto José do Pinho (Antigo Alto da

do Commercio em 19 de maio de 1989

Munguba) foi formado por trabalhadores

explica:

da antiga Fábrica da Macaxeira, na década de 1940. Contam os moradores,

“Pernambuco não é definitivamente o habitat

que o nome do bairro foi dado graças a

do rock. Isso devido a fatores culturais e

um cobrador de aluguéis, de nome José,

sociais. Com isso não quero dizer que não

que carregava um violão feito da madeira

seja um berçário de roqueiros da mais alta

pinho. Em 1988, através do decreto

qualidade, tanto da primeira geração, como

14.552, passou à condição de bairro. “A

outros grupos novos. Mas o que acontece é

rua principal do Alto em nada difere dos

que este é um estado em que o feudalismo

bairros distantes de subúrbios do Recife. É

da cana-de-açúcar, a hierarquia, a

calçada de paralelepípedo, tem um pequeno

religiosidade, deixaram o Pernambuco burro

comércio, casas de alvenaria, uma pracinha

e moralista, e como o rock é contra tudo isto

arborizada, lembra uma cidade interiorana.

(TELES, José; p.229)

Como sempre, é da crise que se nasce a mudança e foi ali que se começou a germinar sementes que gerariam a próxima grande cena nacional. E um 41

Imagem 22: Alto Zé do Pinho – Recife

não podia receber apoio desta província.”

33


No entanto, por trás da avenida principal,

Beco da Fome, uma travessa no centro do

as ruas passam a ser vielas tortuosas. As

Recife, que liga a Rua Sete de Setembro,

casinhas de alvenaria dão vez a mocambos,

onde, nos anos de chumbo, baixavam

muitos perigosamente erigidos em espaços

poetas, jornalistas, intelectuais em geral,

provocados pela erosão de barreiras.”

ao redor da livraria Livro Sete (que chegou

(TELES, José; p.248). Inicialmente com

a ser considerada a maior do país) à

características rurais, foi formando uma

Rua do Hospício (nome mais apropriado,

cultura popular, com maracatus, reisados,

impossível). O beco era frequentado na

blocos carnavalescos, de artes cênicas,

década anterior por gente de esquerda que

grupos musicais e outras expressões

lá matava sua fome (tanto biológica quanto

populares, com a explosão do rock e

intelectual); daí o nome do beco. Nos anos

suas vertentes, diga-se, mais pesadas,

80, este perdeu o charme. A falta de higiene

como o hardcore, tomou proporções de

dos botecos acabou afastando os antigos

reconhecimento na região, lançando bandas

frequentadores.” (TELES, José; p.236). Mas

importantes para a cena, como Devotos do

acabou atraindo os “loucos” roqueiros, que

Ódio , atuante até hoje.

lá se reuniam como ponto inicial de sagas na escuridão, a procura de tudo e nada. Como

Essa geração, já no final dos anos 80,

os frequentadores definem no n3º do fanzine

“cresceu curtindo Black Sabbath, Iron

Militant´s from Metal (com grafia original):

Maiden, Queen, bandas de speed, death, trash, e mais variações do metal pesado que

”O BECO...

houvesse. Foi ela a primeira a se organizar,

A fome ataca como em nenhum lugar.

na base do ‘do it yourself’, ou usando

Todas as suas fomes serão saciadas.

uma velha expressão: ‘não tem tu, vai tu

Fome de diversão, amizade, compreensão,

mesmo’.” (TELES, José; p.236)

informação, ideias, troca de discos, zines e um monte de outras coisitas mais, além

42

No entanto, não era no morro onde ocorriam

é claro da fome propriamente dita. Desde

os encontros periódicos dessa turma e

as habituais caninhas, até hamburgers do

seguindo a reflexão dos tempos para os

tamanho e do gosto que você quiser.

espaços da cidade: “se os desbundados

Se você (em especial banger) está em

dos 70 tiveram seu Beco do Barato, os

casa só coçando o saco, sem ter com

niilistas dos 80 montaram seu bunker no

quem conversar, compareça no Beco. Nos


Imagem 23: ilustração de Fernando Mosca Imagem 24: Beco da Fome – Centro de Recife

43


reunimos toda sexta-feira em frente

fluindo, estavam Fred 04, Mabuse, Renato L,

ao cinema Veneza, depois seguimos para

Xico Sá e Helder, que com planos sem volta,

matar a dita fome. É lá que nos sentimos a

tentavam articular o que salvaria o Recife

vontade e fazemos nossos canal com gente

das artérias enfartadas, do marasmo em

como a gente, ficamos sabendo de shows,

que sua cultura estava afundada em meio

etc., etc., etc. A partir das 19:30 hs.” (TELES,

a um lamaçal sem fim. E Alceu Valença, o

José; p.238)

espelho, já convocava, em uma entrevista publicada no Suplemento Cultural do Diário

Obviamente toda essa transgressão de inicio

Oficial de Pernambuco de 1992:

não era bem vista na capital, sendo muitas das bandas alvo de preconceito e “batidas” policiais em vários de seus shows. Mas aos poucos começaram a chamar atenção da mídia e a imagem do Alto passou a ser, ao invés de antro de bandidos, antro do rock do nordeste. “O movimento dos roqueiros do Alto não apenas encheu de autoestima os seus moradores (Cannibal, membro da Devotos, diz que as pessoas mais velhas

vergonha de dizer onde moram), como também foi responsável por uma mudança de mentalidade na comunidade. É comum ver nas esquinas garotos tirando um som.” (TELES, José; p.254)

Enquanto isso, não muito longe do Beco e muito menos longe da fome por renovação, no Graças, bairro próximo ao centro, predominantemente de classe média, entre uma cerveja antes do almoço e ideias 44

Imagem 25: Abelardo da Hora – Ilustração Meninos do Recife

agradecem a eles por não terem mais


“Pernambuco está velho. O novo é Jomard

cagando total. Eu e Jomard terminamos

Muniz de Britto, Alceu Valença, Flaviola e

sendo mais novos do que tudo o que está

Ave Sangria. Por que falo esses nomes?

sendo proposto. A gente sempre pensa

Eu estou louco que apareça o novo, mas

numa coisa mais louca do que somos nós,

não está aparecendo. O que acontece

mas não aparece. Por que não aparece?

em Pernambuco é que nós somos

Não sei. Pernambuco é o estado careta, que

extremamente conservadores. A gente quer

não consegue ser contemporânea, mas eu

o forró, mas quer o forró seja exatamente do

amo Pernambuco, eu acho até legal ele ser

mesmo jeito. Nós amamos Luiz Gonzaga, e

assim.” (TELES, José; p.254 e p.255)

nós não temos uma noção de que Gonzaga morreu, porra, que Alceu e Jomard vão

O amor, está entre o ódio e a paixão, entre

morrer. O problema é que Pernambuco

bofetadas e assopros, e é exatamente

não quer a nova ordem, Pernambuco está

por esse amor que os conterrâneos de

morrendo de mofo. E nós, os grandes

Alceu, seguindo seu conselho consciente

loucos, com tantos anos e cabelos brancos,

ou inconscientemente, se lançam na

estamos atrasados.

empreitada de salvação de sua cheia de

Pernambuco tem que abrir o olho.

altos e baixos culturais, amada terra.

A questão de ser velho ou antigo eu estou

45

Imagem 26: Abelardo da Hora – Ilustração Meninos do Recife


O MANGUEBEAT

46


Imagem 27: lustração Manguetown – Leo Elessar

Imagem 28: Ilustração produzida para o Ocupe Estelita – Vitor Teixeira

47

Mangue - O conceito

Manguetown - A cidade

Estuário. Parte terminal de um rio ou lagoa.

A planície costeira onde a cidade do Recife

Porção de rio com água salobra. Em suas

foi fundada, é cortada por seis rios. Após

margens se encontram os manguezais,

a expulsão dos holandeses, no século

comunidades de plantas tropicais ou

XVII, a (ex) cidade “maurícia” passou a

subtropicais inundadas pelos movimentos

crescer desordenadamente às custas do

dos mares. Pela troca de matéria orgânica

aterramento indiscriminado e da destruição

entre a água doce e a água salgada, os

dos seus manguezais.

mangues estão entre os ecossistemas mais

Em contrapartida, o desvario irresistível

produtivos do mundo.

de uma cínica noção de “progresso”, que

Estima-se que duas mil espécies de

elevou a cidade ao posto de “metrópole”

microrganismos e animais vertebrados

do Nordeste, não tardou a revelar sua

e invertebrados estejam associados à

fragilidade.

vegetação do mangue. Os estuários

Bastaram pequenas mudanças nos “ventos”

fornecem áreas de desova e criação para

da história para que os primeiros sinais de

dois terços da produção anual de pescados

esclerose econômica se manifestassem

do mundo inteiro. Pelo menos oitenta

no início dos anos 60. Nos últimos trinta

espécies comercialmente importantes

anos a síndrome da estagnação, aliada à

dependem dos alagadiços costeiros.

permanência do mito da “metrópole”, só tem

Não é por acaso que os mangues são

levado ao agravamento acelerado do quadro

considerados um elo básico da cadeia

de miséria e caos urbano. O Recife detém

alimentar marinha. Apesar das muriçocas,

hoje o maior índice de desemprego do país.

mosquitos e mutucas, inimigos das donas-

Mais da metade dos seus habitantes moram

de-casa, para os cientistas os mangues

em favelas e alagados. Segundo um instituto

são tidos como os símbolos de fertilidade,

de estudos populacionais de Washington, é

diversidade e riqueza.

hoje a quarta pior cidade do mundo para se viver.


Mangue - A cena Emergência! Um choque rápido, ou o Recife

Hip Hop, midiotia, artismo, música de rua,

morre de infarto! Não é preciso ser médico

John Coltrane, acaso, sexo não-virtual,

pra saber que a maneira mais simples de

conflitos étnicos e todos os avanços da

parar o coração de um sujeito é obstruir as

química aplicada no terreno da alteração

suas veias. O modo mais rápido também,

e expansão da consciência. (Manifesto

de enfartar e esvaziar a alma de uma cidade

“Caranguejos com Cérebro”, escrito por Fred

como o Recife é matar os seus rios e aterrar

04, em 1992)

os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco da energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife. Em meados de 91 começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de ideias pop. O objetivo é engendrar um “circuito energético”, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo, uma antena parabólica enfiada na lama.

Os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em: quadrinhos, tv interativa, anti-psiquiatra, Bezerra da Silva,

48

Imagem 29: Ilustração Maracatu


ANTES, OS FATOS PELOS FATOS

O Movimento Manguebeat nasceu de

próximo ao mar, morava Lúcio Maia, que

dentro da lama, pulou do fundo do poço,

provavelmente, se o manguebeat não

como muitos acreditavam que era onde

vingasse, talvez tivesse trocado a guitarra

a cidade do Recife se encontrava e não

pelo diploma de engenheiro químico, que

por acaso englobou de tudo e todos que

chegou a cursar na UFPE.

passassem por perto. O movimento “foi

49

revolucionário nem tanto por sua música,

No Recife estava a faceta intelectual (não

mas por quebrar um paradigma: em suas

por acaso, eram todos brancos e da classe

hostes encontravam-se sem ranço, nem

média, portanto, com mais facilidade de

paternalismo, todos os estratos sociais. De

acesso aos produtos culturais) do mangue:

Chão de Estrela, Peixinhos, vieram músicos

“Fred 04 e seus irmãos, que curtiam punk/

negros, cuja perspectiva de escapar do

rock, liam livros cabeça; Mabuse, que

gueto era praticamente nula. De Rio Doce

desde adolescente andava metido com os

(Olinda), classe média baixa, saíram os

computadores; Renato Lins, jornalista como

mulatos Chico Science e Jorge du Peixe.

Fred. Fazia parte do grupo, o jornalista Xico

Não fosse a música, ambos acabariam em

Sá, que durante algum tempo foi um dos

algum empreguinho burocrático na Emprel

poetas mais conhecidos do Recife.” (TELES,

ou na Vasp. Ainda em Rio Doce, mas já

José; p.274)


abraçaram a nossa causa. A gente ganhou

Assim foi como se formou o grupo, que tinha

amigos. Os produtores de vídeo, o pessoal

como principais representantes as bandas

da fotografia, das artes plásticas, do

Chico Science e Nação Zumbi (CZN) e

teatro foram aceitando a ideia, trabalhando

Mundo Livre S/A, mas não se limitava nem

conosco, isto permitiu que o movimento

um pouco a elas. Como o próprio Chico

estourasse fora da cidade. ”

Science descreve em uma entrevista à Folha de São Paulo, concedida a Adriana Ferreira,

Todo mundo tinha voz e vez no movimento,

em 1996:

se as duas principais bandas, o eram por assédio midiático, ao mesmo tempo elas

50

“O mangue foi um modo de escapar de todo

abriam caminho e deixavam com que todos

o marasmo existente em Recife. Foi um

passassem e mostrassem a nova cara que

jeito de dar uma partida para uma coisa

Recife estava tomando. A exemplo da banda

nova, uma nova atitude e fundar com os

Lamento Negro, da qual Chico fez parte

amigos um tipo de movimento por meio

antes de formar a Nação Zumbi, foi de lá que

da diversão... As pessoas que moram em

tirou seu aprendizado no que tange ritmos

Recife estavam sentido uma necessidade

e percussão. “O Lamento Negro surgiu no

muito grande de renovar a cultura da

Chão de Estrelas e ensaiava no Centro

cidade. Quando surgiu o manguebeat elas

Daruê Malungo, um dos vários núcleos de

Imagem 30: Carnaval Olinda


resistência da cultura negra existentes no

como folclore, como uma manifestação já

Recife e em Olinda. Como tal, a música que

passada, mas que não é bem dessa maneira

faziam seus integrantes tinha um caráter

que você tem que ver. Existem ritmos ali que

não apenas lúdico, mas também didático, e

pode aprender a tocar porque é da sua terra,

religioso.” (TELES, José; p. 266 e p.267). E

é do Brasil, é uma coisa que você entende –

foi dessa mesma banda que saíram vários

é a tua língua.

percussionistas do movimento como um todo.

Nesse tempo a gente consumia a música estrangeira também, nos bailes da

Além da Lamento Negro que trouxe a

periferia...Acontece que os maracatus estão

influência dos tambores da cultura negra,

esquecidos, a ciranda quase ninguém mais

a cultura local, vinda da própria criação

vê, a embolada, os caras ficam nas praças,

dos membros, seja de seus bairros, seja

mas é pra pegar uma grana. O coco ainda

dos programas de TV ou discos de bandas

tem também, mas está desaparecendo.

internacionais, encontra presente nessa

Então o que a gente pretende é mostrar

nova música que estava sendo evocada.

uma coisa nova a partir disto. Se a gente for

Chico Science mesmo explica como foi que

tocar maracatu do jeito que ele é, a galera

se deu sua criação cultural, por assim dizer,

vai pegar no nosso pé. Então a ideia básica

em uma entrevista a Luís Claudio Garrido,

do manguebeat é colocar uma parabólica

do jornal A Tarde, de Salvador:

na lama e entrar em contato com todos os

“Quando eu era bem mais novo, lá pelos

elementos que você tem para fazer uma

doze anos, dançava ciranda. Ciranda veio

música universal. Isso faz com que as

do interior, da Zona da Mata para o litoral.

pessoas futuramente olhem para o ritmo

Meus pais tinha uma ciranda... então eu

como ele era antes.” (TELES, José; p.277)

já dancei ciranda na praia, no bairro, e vi

51

os maracatus também. Assisti na minha

Enquanto isso Fred 04 e a Mundo Livre

infância aos maracatus fazendo o acorda-

S/A seguindo os mesmos princípios

povo, acontece na época do São João,

procuravam os ritmos por outros meios.

sempre lá pra meia noite. As pessoas saem

Em uma síntese mais tecnológica e ligada

cantando: ‘Acorda povo/ Acorda Povo/ Que

ao punk-rock, vertente a qual seguiram um

o galo cantou/ São João já acordou’. Então

uma primeira formação, unindo o samba

eu vi todas essas coisas que nos ensinaram

soul de Jorge Ben, fizeram uma música


incabível em qualquer definição. Assim “o

Mas não era só o local, como já dito, que

grupo já começou liquidificando influências,

influenciou as cabeças pensantes do

acrescentando uma guitarra psicodélica

manguebeat. “Por volta de 1985, os ventos

baiana ao punk rock” (TELES, José; p. 272)

da abertura (política) sopravam forte. Lá fora

e não só, acrescenta-se a essa miscelânea

as pequenas gravadoras independentes

o cavaquinho e uma percussão frenética,

começavam a mexer com a indústria

comandada por certo tempo por Otto (artista

fonográfica. O ‘rock de arena’ dava lugar a

que veio a despontar anos mais tarde em

bandas autorais, intimistas: Smiths, Cure,

carreira solo). O próprio 04 mostra as

Nick Cave & The Bad Seeds. A calmaria

intenções do movimento:

depois do vômito punk. Um pouco mais tarde, no final da década, “o Brasil entrava

“Vimos que ali havia elementos para

de cabeça na pós-modernidade, embora de

criarmos uma cena particular. Então

forma atabalhoada, como de resto tudo o

bolamos gírias, visual, manifesto. Quase

mais em sua história.” (TELES, José; p.281).

todas as músicas que fizemos continham palavras extraídas dos manifestos.” (TELES, José; p.274)

Graças a essa investida do manguebeat adentro da cultura local, ou na arte da “poeira” (termo local para povão), alguns

nacional e até mesmo internacional, como o rabequeiro Maciel Salu, que chegou a dividir palco com o violino de Jean-Luc Ponty, ou a Dona Selma do Coco, que ganhou fama após se apresentar no festival Abril Pro Rock em 1997; os dois foram, o que se pode chamar de gurus da moçada, que ia frequentemente visitá-los para “consultas” artísticas ou apenas “jogar conversa fora”.

52

Imagem 31: Vista Interna Beco da Fome – Centro de Recife

artistas despontaram na cena local,


precisava da atenção do “Sul-Maravilha” para ser lançada à estratosfera com Toda essa pós-modernidade chegou em

passagem só de ida. E graças ao futuro

forma de discos, filmes, livros, e mais o que

produtor da banda Chico Science e Nação

pudesse trazer informações de fora. Isso foi

Zumbi, a atenção veio e com força, isso

pretexto para pipocar lojas de discos e como

graças a um festival organizado por ele

todo movimento tem o ponto de encontro,

que reuniu todas as bandas emergentes

o dos primórdios do manguebeat se dava

da região. “A primeira edição do Abril Pro

em frente à livraria Livro Sete, na rua Sete

Rock aconteceu num só dia, 25 de abril de

de Setembro, aquela perto do Beco da

1993. Começou às 17 horas de uma tarde

Fome, onde os metaleiros ainda se juntavam

demasiadamente calorenta para um mês

para matar a apetite. “O encontro desse

chuvoso. Foram escaladas 12 bandas,

pessoal em frente à livraria é emblemático.

todas do Grande Recife, e o Maracatu

Ali era o território dos poetas, romancistas,

Nação Pernambuco. Apesar de CNZ e

jornalistas, que se reuniam no final da tarde,

Mundo Livre S/A já serem as bandas mais

para discutir política, poesia, autores, a

conhecidas a ordem de apresentação foi por

situação política da nação (a livraria era

sorteio. Assim a plateia era ainda minúscula

também uma espécie de foco de resistência

quando Chico Science e Nação Zumbi

velado).

fizeram sua primeira aparição naquela que acabou se tornando uma das mais

É de lá que sai, desde meados dos anos

importantes feiras da música brasileira dos

70, o bloco irreverente Nóis Sofre Mais Nóis

anos 90. Praticamente todos os artistas que

Goza, que sempre tem como tema algum

interessam surgidos na década passaram

fato político em voga, satirizando-o. Era

pelo Abril Pro Rock.” (TELES, José; p.285).

nesta rua que se realizavam comícios anti-

E foi ele o responsável pela consolidação da

ditadura, lançavam-se manifestos e faziam-

cena manguebeat.

se noites de autógrafos badaladas.” (TELES, José; p. 282)

A largada estava dada e toda mídia de grande porte, críticos, vindos de São

53

Teoricamente, ou melhor, a nova cena

Paulo, Rio de Janeiro e de onde mais

recifense estava formada, mas como tudo

chamassem a atenção, não só cobriram o

o que acontece no Brasil, infelizmente, ela

evento como bajularam os “mangueboys”,


e viram ali a cena que poderia dar novos

assinassem com gravadoras e engrenassem

ares para a música do Brasil como um

no dito mercado. “Os mangueboys

todo. A partir daí o voo foi alto. Assinaram

haviam desentupido as veias enfartadas

com gravadoras, lançaram seus primeiros

da cidade, quer dizer, quase todas. Uma

discos e começaram turnês pelo Brasil, e

continuava precisando de um cateter:

posteriormente fora dele também, no caso

as FMs, reduto quase intransponível de

da CZN, onde, obviamente, foram grande

um conservadorismo que nem sequer

sucesso de crítica e público, tanto na Europa

era embasado por alguma ideologia

quanto nos EUA.

– é mercantilismo quadrado pura e simplesmente. As FMs continuavam

“O manguebeat estreava assim em disco

ignorando solenemente a nova música

com o pé direito. Da lama ao caos e Samba

local, beirando a paroxismo da estupidez.”

Esquema Noise entraram em todas as listas

(IDEM). Fred 04, também lamentava, em

de melhores do ano. Com esses CDs e o

uma entrevista ao jornal Papagaio Press, em

reconhecimento do festival Abril Pro Rock, a

outubro de 95:

cena estava consolidada.” (TELES, José; p. 301). E isso fez com que outras bandas Imagem 32: Estatua Caranguejo – Rua da Aurora – Centro de Recife

“O movimento colocou a cidade em evidência. Hoje em dia as bandas daqui têm mais espaços para se apresentar. O mangue motivou o público, só as rádios não mudaram...Nenhuma rádio assumiu a cena. Não existe música sem rádio.”

Em 96 as duas bandas ainda lançaram dois discos de mesmo peso em qualidade, a CNZ com o Afrociberdelia e a Mundo Live S/A com Guentando a Ôia. E com rádio ou sem rádio é fato que “em 1995, o manguebeat não apenas era tido com um dos mais originais movimentos musicais surgido nas últimas décadas, como foi

54


responsável por uma revolução na sua terra de origem. Pela primeira vez desde a década de 60, os pernambucanos mostraram uma autoestima comparável à dos baianos. O Recife entrou em estado de ebulição cultural. Paralelamente à música, ressurgiu o interesse em cineastas e na literatura locais. Até algo que nunca havia sido forte da cidade, a moda, revelou estilistas que começaram a ser conhecidos nacionalmente, a exemplo de Eduardo Ferreira.” (TELES, José; 304)

E não foi só no meio artístico que a influência do movimento se deu, a cidade como um todo sentiu seu impacto. No Grande Recife proliferaram restaurantes servindo caranguejos, o consolidado carnaval ganhou o Bloco da Lama em sua referência, onde os foliões saem todos cobertos de lama por Olinda. O bar Soparia, de Roger Renô, no bairro do Pina, foi o antro dos mangueboys, onde aconteceu os primeiros shows do movimento e por onde passou todas as bandas do Recife e região no anos posteriores, e “viu surgir a sua volta uma porção de barzinhos com o mesmo espírito, que fizeram do pequeno trecho da avenida Herculano Bandeira, onde se localizavam, um verdadeiro carnaval fora de época com uma trilha das mais estranhas:

Imagem 33: Estatua em homenagem a Chico Science – Rua da Moeda – Centro de Recife

55


Jorge Cabeleira poderia estar mandando

uma campanha contra acidentes de trânsito,

ver seu som forró-core no Garagem

última publicidade feita pelo líder da Nação

Mecânica, enquanto o Cavalo do Cão

Zumbi. O superstar do metal pesadíssimo,

atacava o hardrock nordestinado, ou a Delta

Max Cavalera (da banda Sepultura, o que

do Capibaribe puxava o seu caboclinho

convenceu a banda a voltar ativa depois da

arretado, na Soparia. Mais à distancia, numa

tragédia), cantou com a banda os principais

rua tranquila, mangueboys queimavam o

sucessos dos seus dois discos. Ali Chico

maior produto agrícola do estado, numa

Science começava a virar mito.” (TELES,

naice. Metros adiante, os dreadlocks curtiam

José; p. 326)

os mestres do reggae Peter Tosh e Bob Marley, (na mesma sintonia agrícola).”

No entanto, ao final da década de 90,

(TELES, José; p. 315). E ainda Chico

como tudo tem altos e baixos, a cena já

Science ganhou estátua na Rua da Moeda,

não era tão forte, pois os artistas se

no centro histórico de Recife, e o símbolo do

acomodaram de certa forma, esperando

movimento, o caranguejo, ganhou outra na

aquele apoio midiático ou esperavam pelos

famosa Rua da Aurora, também no centro.

festivais e shows promovidos por órgãos públicos. E não só, os espaços como

56

Chico Science faleceu em 2 fevereiro de

aquele da Avenida Herculano, vítimas da

1997, vítima de um acidente automobilístico

velha falta de planejamento ou mesmo o

enquanto dirigia rumo a Olinda. Esse ano

planejamento sem foco da especulação

era quando estava planejada a maior turnê

higienizadora, “que, sem atentar para o

internacional do grupo, e ainda estava

perfil dos frequentadores do pedaço,

programada a participação da banda em

enfeitaram o trecho da avenida onde

mais uma edição do festival Abri Pro Rock. E

ficavam os bares udigrudis dos roqueiros,

a CNZ foi convencida por amigos a participar

como se aquilo fosse local de retretas

mesmo sem o líder. “Foi um festival ao

(isto é, apresentação de bandinhas de

mesmo tempo apoteótico e triste. A sombra

música). Colocaram abrigos de ônibus em

de Chico Science pairava sobre o pavilhão

tons rosados, banquinhos de jarros com

do Centro de Convenções, onde, na parte

plantas exóticas ornamentais. Em suma

superior, acontecera o velório. Seria cômico

foram organizar o bacanal, e conseguiram

se não fosse trágico: uma caricatura de

pôr fim a um dos pontos alternativos mais

Science era visível num enorme cartaz

badalados do país.” (TELES, José; p. 322)

encomendado pelo DETRAN. Tratava-se de


E O IMAGINÁRIO COM ISSO?

Uma cidade à parte do tecido urbano, mas

espacial com essa outra urbe, intensificada

não à parte de modo a não pertencer a ele,

pela significação e pelo tempo que marca

mas à parte de como convencionalmente se

seus entornos e, simultaneamente, se

pensa esse tecido, mais ainda, um tecido

abre ao fenômeno dos subúrbios e da

de partes, mas vivido por um todo, que se

metropolização, que justamente, começou

conecta, se interage, se faz vivo, formando

a ser denominado ‘urbanismo sem

uma rede cognitiva, de sensações, que são

cidade’.” (SILVA, Armando; Imaginários:

capazes de materializar comportamentos, e

estranhamentos urbanos; p.19 e p.20)

com eles interagir no espaço e com o que ele representa, ou ainda, fazer dele uma representação do cognitivo, modificá-lo de acordo com os fluxos que ligam essa rede.

“Tudo isso significa que está ocorrendo uma espécie de “desmaterialização” dos referenciais da urbe, que acompanha as novas percepções cidadãs, de tal modo que uma cidade do tempo vai se sobrepondo à cidade do espaço, impregnando, assim, as representações cidadãs da subjetividade contemporânea. Dessa forma, a cidade física deve compartilhar seu território 57

Imagem 34: Rua do Riachuelo – Centro do Recife


Para Armando Silva, “a cidade imaginada,

às ações”. (SILVA, p.28).

como paradigma cognitivo, aparece quando é possível fazer distinção entre cidade e

No entanto o espaço público aqui difere

urbano” (SILVA, p.19), ou ainda, “quando ser

daquele espaço físico que muitas vezes

urbano excede a visão da cidade e, portanto,

passam despercebidos, ou são uma

a nova urbanidade passa a ser tanto uma

paisagem que não tem nenhum intuito

condição da civilização contemporânea

se não enfeitar; “a tarefa de defender o

quanto uma referência, com respeito a viver

público e construí-lo recai especialmente

numa urbe, onde se concretizam as várias

sobre aqueles que podem distanciar-se de

maneiras de ser cidadão.”(SILVA, p.19).

interesses particulares para interessar-se

Para isso define-se o “urbanismo cidadão”

pelo coletivo. Por isso que “a ideia de que o

: “Fato social que não se define num lugar

âmbito público tende hoje à autoconstrução,

nem numa cidade nem nos subúrbios,

destaca seu alto poder imaginário, ainda

mas que é carregado por seus diversos

que antes disso essa condição fosse

habitantes, em suas próprias representações

reconhecida por sua própria natureza física:

e na mesma medida de sua própria

o espaço público de um parque, das ruas

urbanização” (SILVA, p.20) sendo assim, a

e das calçadas de uma cidade ou seus

“cidade imaginada corresponde, no sentido

serviços mais necessários, hoje devemos

estrito, a um novo urbanismo cidadão

ganhá-lo, construí-lo e mantê-lo, ou perdê-

contemporâneo”. (SILVA,p.20).

lo.” (SILVA, p.24 e p.25). Sendo assim, as

Portanto, o foco passa para o ser humano, mas não como apenas um elemento, mas para suas relações de tempo-espaço, para sua coletividade, na qual está intrínseca sua individualidade. Assim os “imaginários, como espaço público, se apoiam pois, na construção de símbolos compartilhados por meio de um domínio social comum e, por isso, são uma força reguladora da vida coletiva, ao representar uma adesão a um sistema de valores, que, por suas vez leva 58

Imagem 35: Avenida Conde da Boa Vista – Centro de Recife Imagem 36: Cinema São Luiz inaugurado em 1952 – Centro de Recife


“cidades imaginadas não são entendidas

(SILVA, p.27). Assim, nota-se um novo

como globais, mas antes, como

fenômeno no entendimento da cidade,

expressividades grupais, com seus

“que é a não correspondência entre cidade

modos singulares de ser e, deste modo,

e urbanismo, pois o urbanismo excede

no convívio com seu sentido de estar em

o arcabouço citadino, os imaginários

público.” Ou seja, os imaginários urbanos

aparecem como uma estratégia (mais

aparecem como fatos públicos que

de natureza temporal, precisamente,

urbanizam.” (SILVA, p.27)

que espacial) para explicar processos urbanizadores que não são somente

59

Contudo o urbano não se restringe às

manifestações de uma cidade, mas também

fronteiras físicas da cidade, se seguir-se a

de um mundo que se urbaniza.” (SILVA,

ideia das relações do imaginário, porém, “em

p.29). Por isso que o espaço público como

todos os casos, o público se sobrepõem ao

entendido antes, como parques, praças,

global e se erige como um instrumento de

se restringem a espaço urbano, e o dito

reflexão e de maior competência política:

“público” indica aquele lugar que pertence a

muitas aldeias globais, em vez de um

uma luta social, a um interesse dos objetivos

mundo global, pois não se manifesta a

democráticos. Logo, “o espaço público vai se

homogeneização de uma cultura mundial,

convertendo no lugar onde se manifestam

mas sim uma ‘mundialização pluralista’.”

as lutas pelas identidades urbanas, não

Imagem 37: Centro Histórico de Recife


mais através da arquitetura, mas desde

componente imaginário.” (SILVA, p. 35). São

as culturas e a anarquia dos imaginários

comparáveis aos mitos, da forma que estes

que as atravessam” (SILVA, p.31). Os

também são manifestações “inconscientes”,

imaginários então corresponderiam a uma

ou seja, onde a emoção substitui a lógica

maneira subjetiva, grupal e projetual de

(Bruhl apud Páramo, 1990, p.810). Trata-

identificar culturas, “para tal, o território,

se de uma “mitologia dos comportamentos

nesta configuração, não será tanto um

expressivos”; e nesse caso “a questão

espaço físico quanto um lugar de relações,

é aprender a classificá-los, ver como se

de interações e intercâmbios, que produzem

comportam uns com os outros e averiguar

contextos em várias escalas, desde as mais

por que vivem assim” (Páramo, 1990,p.123).

próximas até as mais globais.” (SILVA, p.29) Portanto, a percepção imaginária proposta O imaginário se manifesta ou se origina

por Silva “corresponde a um nível profundo

através de símbolos, “são assim:

de elaboração cidadã, diferente daquela

verdades sociais não científicas; daí sua

do cinema, que por sua vez, não tem de

proximidade com a dimensão estética

coincidir com o dado empírico. Quer dizer

de cada coletividade. E na percepção da

que quando se fala da percepção imaginária,

cidade há um processo de seleção de

não se faz afirmando que seja verdadeira,

reconhecimento, que vai construindo esse

comprovável, nem considerando que seja

objeto simbólico chamado urbe; e em

uma mensagem prevista pelo enunciador.

todo símbolo ou simbolismo subsiste um

60

Imagem 38: Ponte Duarte Coelho – Centro de Recife


Entretanto, na medida em que sua percepção,

se uma rua com maior convivência social,

diga-se de novo, inconsciente, é afetada pelos

conversas, cafés, vitrines e etc. Essa visão

cruzamentos fantasiosos de sua construção

resume o fato da percepção profunda, não se

social e é incorporada pelos cidadãos da

vê o que está diante de si, mas sim o que se

urbe.” Apenas para efeito prático, é quando

imagina de modo grupal e tal fato é imposto

por exemplo uma rua é tida como pertencente

como percepção. (SILVA, p. 37)

às mulheres, no caso, não significa que há maior número de mulheres por lá, mas se

Dentro de sua metodologia Armando Silva

um grupo da cidade a vê assim, ela assume

ainda separa o imaginário em três inscrições

certas características que traduzem a “natureza

que são:

feminina”, de uma maneira genérica, têm-

Imagem 39: Avenida Rio Branco – Centro de Recife

61


Inscrição psíquica: “Na qual os

novas verdades sociais.” (SILVA, p.37 e p.

sentimentos dominam a percepção, tais como

38) Nesse caso ele também explicita que não

estados de medo, temor, ódio, ressentimento,

há diferença entre a razão e a emoção, são

afeto, vergonha, confiança, ilusão ou

“condições interativas” e que se avançam “no

solidariedade: um estudo urbano embasado na

sentido da compreensão das emoções na

perspectiva dos imaginários tem como objetivo

elaboração da própria racionalidade”, ou ainda

revelar situações e momentos nos quais a

que “que se raciocina a partir das emoções

coletividade vive ou se expressa em algum

presentes no ambiente que dá forma aos

limite da realidade prevista. Alguma coisa é

pensamentos” (SILVA, p.39)

alterada e temos a impressão de que emergem Imagem 41: Ponte Buarque de Macedo – Centro de Recife

Imagem 40: Marco Zero – Centro de Recife

62

Inscrição Social: Se refere a

organização e dureza, mas sem que sejam,

uma condição afetiva e cognitiva dentro

também, elas mesmas.” (SILVA, p.39). Aqui

de uma comunidade social, onde se

cabe a relação dita no inicio do capítulo com

diferencia o real da realidade, sendo que

o sistema de rede, onde “os imaginários se

a segunda é construída .Sendo assim “os

relacionam com visões grupais, e provêm

imaginários sociais seriam pressupostos

de muitas experiências de mediação: as

das representações coletivas, sem serem,

mitologias, a literatura, a arte, as ciências,

eles mesmos, essas representações. Eles

as tecnologias ou a mídia, todas elas fontes

agem como uma matriz prévia delas, como

entrelaçadas pela História e pelas histórias

seu ‘cimento invisível’, dando-lhes força,

locais de cada comunidade ou grupo que as formam.” (SILVA, p.40)


Inscrição Tecnológica: “Fornece

e que cada uma, por sua vez, permite deduzir

uma técnica para materializar a expressão

o mundo desde sua própria condição inerente,

grupal. Trata-se do imaginário associado às

que lança uma estruturação potencial e não

técnicas que vão ser como instrumento para

outra.” (SILVA, p.41). A exemplo da fotografia,

representá-las, como meio materializador e

o cinema ou a internet, que surgidas em épocas

criador de tipos de visão, o que exige entender

diferentes, fizeram da percepção coletiva novas

que cada época constrói suas percepções,

formas de comportamentos, visão e valores a

dimensionadas com as tecnologias dominantes

respeito do mundo como um todo.

Imagem 42: Centro de Recife

63

Imagem 43: Centro de Recife

Em complemento, pode-se “dizer que a

o prazer cidadãos se encarnam; as cidades

percepção urbana, como presença interativa

ou lugares onde tenham sido gerados ou

de vários grupos, é também a percepção

produzidos, atuando como arquivadores

de cada sujeito, de acordo com as cargas

de lembranças, esquecimentos, medos

sociais que recebe cada representação;

e emoções sociais. E, por último, a

e é possível afirmar que urbanizar é

construção de modos de ser urbano nas

também uma maneira de sobrecarregar de

culturas contemporâneas projetadas para

significados os objetos da vida cotidiana”

o futuro, com os diversos sentimentos que

(SILVA, p.51)

acarretam, como é próprio a toda produção

Esse sobrecarregar está associado a

imaginária.” (SILVA, p.105). Os arquivos,

outro elemento presente na metodologia

também são divididos em três categorias,

proposta, que Silva chama de Arquivos

que, assim como as inscrições, permitem o

Urbanos, que “são criações imaginárias, ou

entendimento da atuação do imaginário em

os próprios objetos, nos quais os desejos e

diferentes escalas. São eles:


Arquivos Vicinais: “Todo material que expressa manifestações cidadãs para um grupo de associados. Que pertence por igual a alguns conhecidos e que diz respeito à comunicação existente entre eles. Ou que tendem a circular publicamente, em especial, dentro dos microterritórios urbanos.” (SILVA, p.127 e p.128)

Imagem 44: Café centro histórico de Olinda

Arquivos Públicos: São “aqueles produzidos pela comunidade, e onde se origina o popular, visto aqui como algo que Imagem 45: Dançarino de Frevo em Olinda

Arquivos Privados: São “aquelas

pertence a todos, por que é feito por todos ou, ao menos, por uma maioria significativa, segundo algum ponto de vista cidadão relevante”. (SILVA, p.128)

manifestações cidadãs do privatus, que não pertencem ao Estado nem, por conseguinte, à esfera pública, mas que mediante alguns meios audiovisuais (fotos, gravações, cinema, internet) ou sociais (dar status a alguns grupos ou buscar fins publicitários), obtêm maior circulação, deixando ver em público o que nasce com intenção privada 64

ou particular” (SILVA, p. 127) p.127 e p.128) Imagem 46: Passista Carnaval de Olinda


Outra definição trazida por Armando Silva,

(SILVA, p.109).

que é cabível neste trabalho, é a de Sítio, o qual ele associa ao “não-lugar”, sendo este

Por fim, o urbanismo cidadão se mostra

“um novo conceito temporal, de um sítio

uma ferramenta para se estudar as

(do latim situs, lugar ou espaço que ‘pode

manifestações humanas e “os diversos

ser ocupado’), que se permite, justamente

modos como se urbanizam, de modo

‘situar-se’, isto é, colocar-se em um sítio

independente do espaço físico onde moram,

ou lugar, mas também em uma situação,

como consequência de saberes, ciência,

as vivências urbanas cidadãs, ou seja,

tecnologia, mídias ou modos de artes e

enquanto os lugares correspondem a uma

literatura; enfim trata-se da construção de

visão arquitetônica e, até certo ponto,

visões de mundo a partir de todas as fontes

imóvel, de referência topográfica, o sítio

que afetam os seres humanos, para exercer-

corresponde aos habitantes desses espaços

se a vida nos cenários possíveis de uma

e, portanto, toma para si a mobilidade e

época.” (SILVA, p.163)

o deslocamento de suas localizações.”

Imagem 47: Edifício Pernambuco – Av. Guararapes – Centro de Recife

65

Imagem 48: Edifício Pernambuco – Av. Guararapes – Centro de Recife


REVISitANDO A MANGUETOWN

O Movimento Manguebeat além de ter

manguebeat que começou na música

recolocado o Estado de Pernambuco

e depois passou a influenciar outros

novamente como grande referência na

setores da cultura, teve projeção inédita”

produção cultural, significantes mudanças

(FONSECA, N.A; O Manguebeat como

ocorreram na dinâmica urbana da cidade do

Política de Representação. 2005. p.1)

Recife, assim como em suas representações simbólicas, determinantes na construção

Nesse aspecto as três inscrições propostas

de uma identidade regional. (PICCHI,

por Armando Silva se mostram cabíveis

Bruno). Não obstante, o movimento se

e mostra-se o imaginário criado pelo

insere em acontecimentos que podem ser

movimento na comunidade de Recife:

observados em uma escala global, onde as ideias defendidas, como pluralidade,

A inscrição psíquica se dá ao fato da ideia

desconstrução, a procura por identidade

de estagnação social e cultural da cidade,

cultural são consequências de uma

ou mesmo pela relação complementar

globalização provida pelos novos meios

entre o afeto à cultura local, associada ao

tecnológicos que começaram a tomar força

medo destas perderem seu valor, com a

no início da década de 90 no país.

confiança e o sentimento de capacidade de mudança adquirida por uma parcela de

66

“(...) Articulando centro e periferia

membros desta comunidade cultural do

e relacionando de uma nova forma

Recife. Demonstráveis já em passagens do

cultural popular e cultura pop, o conceito

manifesto, escrito por Fred 04:


“Nos últimos trinta anos a síndrome

“O que fazer para não afundar na

da estagnação, aliada à permanência do

depressão crônica que paralisa os

mito da “metrópole”, só tem levado ao

cidadãos? Como devolver o ânimo,

agravamento acelerado do quadro de

deslobotomizar e recarregar as baterias

miséria e caos urbano.”.

da cidade? Simples! Basta injetar um pouco da energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.”

Ou: “(...) é hoje a quarta pior cidade do mundo para se viver.”

Ou também:

Ou ainda:

“Em meados de 91 começou a ser gerado

“Emergência! Um choque rápido, ou o Recife

e articulado em vários pontos da cidade um

morre de infarto!”

núcleo de pesquisa e produção de ideias

Essa mesma frase se aplica como

pop. O objetivo é engendrar um “circuito

chamamento para a inscrição social, quando

energético”, capaz de conectar as boas

se há uma tentativa de construção de uma

vibrações dos mangues com a rede mundial

nova realidade, procurando meios de dar

de circulação de conceitos pop.”

suporte e força, ou seja, a matriz para a

O conectar aqui também traz a inscrição

formulação que culminará no movimento,

tecnológica, concretizando na ideia de Silva

ou na mudança propriamente dita. Ainda no

o imaginário promovido pelo movimento.

manifesto se ilustra:

Os meios por onde a efetivação dos sentimentos psíquicos e sociais podem ser

Imagem 49: Mar de antenas no Brasil dos anos 90 - “a cidade não pára, a cidade só cresce”.

67


concretizados, e também por onde as visões

de sincretismo de ritmos e a interação deles

serão formadas:

com as diversas culturas do globo. O tambor

“Os mangueboys e manguegirls são

tribal se junta à guitarra e aos amplificadores

indivíduos interessados em: quadrinhos, tv

norte-americanos. A releitura de ritmos

interativa, anti-psiquiatra, Bezerra da Silva,

regionais, conceitos e ideias pop não se

Hip Hop, midiotia, artismo, música de rua,

manifesta de forma passiva. A tentativa de

John Coltrane, acaso, sexo não-virtual,

universalizar esses elementos nacionais,

conflitos étnicos e todos os avanços da

com o intuito de mostrar e criar uma nova

química aplicada no terreno da alteração e

cena para o mundo, conectando o Brasil

expansão da consciência.”

com o cenário pop mundial, estabelece um diálogo com as manifestações artísticas que

Sendo aqui a música e suas letras, e a

trouxeram à tona um Brasil cosmopolita como

associação de instrumentos locais, como

o Movimentos Antropofágico e a Tropicália”

a alfaia, com instrumentos recentes, como

(MORAIS DE SOUZA, C; “Da Lama ao

a guitarra, o baixo e o uso do computador

Caos”: Diversidade, diferença, identidade

na música também parte da inscrição

cultural na cena Mangue do Recife. 2001.

tecnológica.

p.3)

O movimento se associa a dois símbolos,

Essa relação com os movimentos anteriores,

que trazem a relação do novo com o local, a

tratados na primeira parte deste estudo,

inter-relação de captar o que resta na lama,

mostra a evolução histórica do imaginário

propondo a imagem do caranguejo, com a

presente na cidade do Recife, na qual,

assimilação de informações exteriores da

os elementos são trazidos e associados

antena parabólica, que associados produzem

de diferentes formas, compatíveis com o

além da estética geral do movimento, o

momento em que se encontram e com as

imagético gerador de um senso comum para

técnicas disponíveis em cada um deles,

os que o aderiram.

resgatando a já citada frase de Silva, “todos eles fontes entrelaçadas pela História e pelas

“Da fusão de ritmos regionais (maracatu,

histórias locais de cada comunidade ou grupo

samba, coco, ciranda) com o pop (funk, rock,

que as formam.”.

soul, black, hip hop, punk), desenvolve-se essa síntese musical que expõem um tipo 68


69 Imagem 50: Estatua Caranguejo – Rua da Aurora – Centro de Recife


mostra que a construção de uma identidade

“Tanto há necessidade da criação do

regional vai resultar em um regionalismo

consenso por parte de uma elite,

específico produzido pela organização

como há a aceitação de um sentimento

de poder e pelas particularidades da

de pertença por uma determinada

coletividade regional. Desta forma fusiona-se

comunidade, assim como também elite e

a representação que cria a noção de região

comunidade reproduzem-se através de

a um interesse que se generaliza nesta

relações econômicas” (CASTRO, I. E; O mito

respectiva abrangência cultural. (PICCHI,

da necessidade: discurso e prática do

Bruno)

regionalismo nordestino. 1992. p.29)

Assim, estão estritamente ligados:

Tal relação, se aplicada à visão de Armando

identidade, regionalismo e uma forma

Silva, trata-se de um “urbanismo cidadão,

hegemônica de dominação social. É

que vai emergindo na mesma medida em

importante ressaltar que essa “forma

que surgem certas condições na história da

hegemônica de dominação social” não

cidade, como corresponde à possibilidade

significa, necessariamente, uma dominação

de separar o urbano da cidade e entender

de esferas políticas e econômicas. Porém,

que se urbaniza independentemente de viver

no caso da região do Nordeste, este

em uma entorno citadino: trata-se agora de

sentimento de pertença é constituído sob

uma definição estética cultural do urbano

esse respaldo, sendo a elite dominante

que recai não na cidade, mas sobre os

que define tanto o caráter regional como a

cidadãos.” (SILVA, p. 109). Chico Science

projeção de sua imagem. (PICCHI, Bruno),

explicita tanto o imaginário da cidade como a

como também mostrado ao longo da

relação de classes na música,

primeira parte do trabalho.

70

Imagem 51: Ponte Princesa Isabel – Centro de Recife


Imagem 52: Vista da Rua da Aurora e do Rio Capibaribe – Centro de Recife

A Cidade: Prostituída

71

O sol nasce e ilumina

Por aqueles que a usaram

As pedras evoluídas

Em busca de uma saída

Que cresceram com a força

Ilusora de pessoas

De pedreiros suicidas

De outros lugares,

Cavaleiros circulam

A cidade e sua fama

Vigiando as pessoas

Vai além dos mares

Não importa se são ruins

E no meio da esperteza

Nem importa se são boas

Internacional

E a cidade se apresenta

A cidade até que não está tão mal

Centro das ambições

E a situação sempre mais ou menos

Para mendigos ou ricos

Sempre uns com mais e outros com

E outras armações

menos

Coletivos, automóveis,

Eu vou fazer uma embolada,

Motos e metrôs

Um samba, um maracatu

Trabalhadores, patrões,

Tudo bem envenenado

Policiais, camelôs

Bom pra mim e bom pra tu

A cidade não pára

Pra gente sair da lama e enfrentar os

A cidade só cresce

urubus

O de cima sobe

Num dia de sol, recife acordou

E o de baixo desce

Com a mesma fedentina do dia anterior.

A cidade se encontra

(Chico Science, A Cidade, 1994)


O Manguebeat se mostrou transgressor,

composta por Fred 04:

como também já dito, pela relação estabelecida entre diferentes classes, onde mostrou capacidade, ou melhor, tentativa

“Olha, olha, olha

de dar espaço às vozes antes caladas e

Olha, meu olhar mais fundo

possuidoras de símbolos culturalmente

Entra, entra, entra

expressivos. No entanto, a elite, no caso,

Senta, bem vinda ao novo mundo

principalmente a intelectual, se apropria

Minhas pernas são bastantes fortes

destes símbolos, reelaborando-os

Como de todo trabalhador

ideologicamente na identidade regional,

Os meu braços são de aço

conferindo visibilidade e valor simbólico

Como os de todo operário

aos traços singulares da sociedade local.

Mas como já dizia um velho casca

(CASTRO, 2004). Não se fala aqui da

A merda dos trabalhadores é sua alma

negatividade de tal ação, mas sim, do

inútil

fato da relação de classes dentro da

Eu tenho uma alma que é feita de sonhos

procura de uma identidade cultural, ou

Mas como já dizia um velho casca

seja, a criação de uma identidade calcada

A alma de um trabalhador

em representações simbólicas próprias

É como um carro velho só dá trabalho

aparece como alternativa à necessidade

Tira, tira, tira

de um fortalecimento das regiões e suas

Deixa, não apaga o meu fogo

localidades diante do globalismo.

Suba, suba, suba

Tal apropriação aparece principalmente nas

Gira, gira linda

músicas produzidas dentro do movimento

É a bola do jogo

onde, através dos ritmos reconfigurados de

A bola do jogo

antigas manifestações e as letras expondo

Sou um trabalhador sou sim,

condições tanto locais e próprias da cidade,

Eu tenho uma alma que deseja e sonha

como sentimentos de pertencimento ao um

Deseja e sonha”

mundo interconectado, que propõem uma

(Fred Zero Quatro, A bola do Jogo, 1994)

nova identidade regional. Essa procura do novo olhando para dentro, usando de uma apropriação da visão de uma classe, fica evidente na letra da música, A Bola do Jogo, 72


A música como linguagem, a qual foi

se mostra presente em todas as “cenas”

a principal entre as usadas dentro do

apresentadas no decorrer do trabalho,

movimento, se enquadra, na metodologia

através do sítio as ideias fluíram, e por

do imaginário, em Arquivos Privados, pois

causa da aglomeração dos ideais viu-se

nascem do íntimo dos compositores, que

a sua disseminação para além do próprio

na intenção de se mostrar, dar voz ou

lugar. Foi o caso do Beco do Barato, nos

disseminar as ideias propostas dentro do

anos 70, o Beco da Fome, no movimento

movimento manguebeat, vão à público por

heavymetal, ou a região da Rua Sete

meio das gravações, shows ou qualquer

de Setembro, no início do movimento

outro meio disponível. A intenção é privada,

manguebeat, onde já era consolidado como

a composição se faz no particular, mas é

um lugar transgressor desde a ditadura,

entregue a público por intenções cidadãs.

como já dito: “O encontro desse pessoal em

Outras manifestações criadoras de um

frente à livraria (Livro Sete) é emblemático.”

senso de pertencimento foram os shows,

(TELES, p. 282). Ou nas palavras de

no início eram produzidos em pequenos

Armando Silva:

bares ou casas noturnas, criando nestes e em seus frequentadores uma identidade

“Ao privilegiar o sitio sobre o lugar nos é

dentro da estética do movimento, depois

permitido situar uma antropologia do gozo

passando para os promovidos por festivais

cidadão em que, para sua compreensão,

e órgãos públicos, aumentando a escala de

devemos examinar as interações humanas

atuação ou de conexão do mesmo. Aqui há

e, portanto, as relações psicológicas,

o enquadramento nos Arquivos Vicinais de

sociais ou, inclusive, de contato com a

Armando Silva, pois se fazem através da

paisagem, ou ainda, a captação de memórias

associação de grupos, uma manifestação

grupais, que também podem fazer parte do

cidadã que circula publicamente, mas

estabelecimento desse renomado sentido

em determinadas escalas da cidade, nas

de sítio cidadão.” (SILVA, p. 109).

quais os desejos e o prazer cidadãos se encarnam. (SILVA, p.105) A elaboração desse imaginário, agregando

73

O sítio, na definição de Silva, como lugar

certos valores à cultura local e trazendo a

de atuação cidadã, onde o que faz dele

noção de pertencimento no mundo como

um lugar com potências modificadoras,

parte atuante de uma cena pop, teve


consequências no espaço e na configuração

Sua ida para a Rua da Moeda, onde abriu

urbana de Recife. Como já dito, foi

o famoso Pina de Copacabana, mudou a

efervescente a Avenida Herculano Bandeira,

paisagem local” (LEITE, R. P. Contra-usos

onde não só a turma do manguebeat

e espaço público: notas sobre a construção

se encontrava, mas várias outras tribos

social dos lugares na Manguetown. 2002.

fazem dali seu lugar, mas isso devido à

p.11)

explosão que o movimento mangue trouxe a vida cultural de Recife. Causou também,

Com tal valorização, o sempre oportunista

uma revolução estética e de valorização

poder público, voltou seus olhos para o

no centro antigo, conhecido como Bairro

centro, que estava ampliando os números de

Recife. Segundo LEITE (2002), “foi no velho

bares e comércio. Roger mesmo relata em

bairro portuário, com sua má fama de local

entrevista:

abandonado, perigoso, boêmio e marginal, que se iniciou uma das ricas inovações

“(...) Coincidiu que, minha vinda para

musicais, culturais e comportamentais do

cá coincidiu também com a história do

Pernambuco”. O local que marcou o início

investimento que a prefeitura fez, que

da revalorização do Bairro foi na Rua da

não é nada boba, depois que Chico (Science)

Moeda, ou conhecido como o Polo da

morreu, se passou a olhar para esse lado

Moeda, onde hoje se encontra uma estátua

comercial e o lado positivo da história, o

de bronze de Chico Science, assim como

lado lucrativo da história do Manguebeat”

outras 11 estátuas de outras personalidades

(LEITE, 2002)

do Estado. Um dos grandes responsáveis por desencadear a urbanização “a la

A condição de movimento gerou uma força

manguebeat”, foi o agitador cultural Roger

mediática em torno de Pernambuco como

Renô:

um todo, que fez com que a relação entre elite e comunidades gerasse consequências

74

“Roger criou no Bairro do Pina (na praia de

concretas tanto no espaço urbano de

Boa Viagem) uma soparia que foi o “mais

Recife como na autoestima social e cultural

mangue dos polos recifenses” (TELES,

da região. No entanto, em um sistema

200). A soparia virou ponto de encontro dos

mercadológico onde tudo possui um

mangueboys e parada obrigatória para o

valor comercial e mesmo as mudanças

circuito alternativo da noite de Recife. (...)

de valores cabem em um preço, fez-se


com que muito disso convergisse para

e do regionalismo de Pernambuco,

muitas consequências superficiais, com

estão presentes na formação cultural e,

simples intenção lucrativa, como ilustrado

consequentemente, social dos cidadãos

na reurbanização da Avenida Herculano

pernambucanos. Mostram-se e fazem parte

Bandeira, onde uma simples decoração

do espaço urbano da cidade do Recife,

feita ao desleixo expulsou e matou uma

através do aqui se definiu como imaginário

ocupação alternativa de múltiplas faces e

urbano. E por fim, e por isso mesmo,

por isso mesmo, rica. Não só no caso do

estão arquivados no que Silva chama de

Movimento Manguebeat, o frevo, também

Arquivo Público, fazem parte do popular,

hoje se encontra muita mais em condição

pertencem a todos, pois fazem parte de uma

de “souvenir” para turista e restringido à

perspectiva cidadã muito mais que relevante,

mercadologia do carnaval, do que aquela

e no caso não apenas para região de

manifestação cultural de outrora. Mas o

Pernambuco, ou do Nordeste, mas do país

que não se pode negar, que ambos, o

como um todo, pois é onde, principalmente,

manguebeat, como exposto, conseguiu

que se inserem.

tal status; fazem parte do imaginário

75

Imagem 53: Cartaz de Rico Lins


SEC XXI - CONEXÃO COM O NOVO E O NOVO RECIFE VELHO

Ao final da década de 90 a cena cultural do

cultural. Isso ainda se encontra em processo

Recife havia estagnado de certa forma, pela

e evolução, mas inúmeras portas foram

acomodação que o assédio ao manguebeat

abertas.

proporcionou. No entanto, esse mesmo assédio, gerou, como mostrado, uma

“O que me chamou a atenção (...) foi o fato

autoestima na região, e essa semente

de que a quase totalidade dos grupos ter

encontraria seu fertilizante na evolução da

uma sonoridade que os afastava da primeira

comunicação midiática proporcionada pela

e segunda geração do manguebeat. (...) a

internet. Pela primeira vez a divulgação

nova geração querendo caminhar com as

independente estava em condições de se

próprias pernas. De fato, a bem resolvida

autopromover sem o intermédio de alguma

fusão feita por Chico Science & Nação

organização institucional. Esse espaço

Zumbi de ritmos regionais como o que se

gerado, abriu inúmeras possiblidades, e

fazia de contemporâneo no mundo afora

fez com que, não só no Recife, mas no

acabou sendo diluída.” (TELES, p. 337)

mundo inteiro ocorresse uma revolução em

76

todos os aspectos, pois as consequências,

A conexão gerada pela internet, trocadilho

obviamente não foram apenas no âmbito

à parte, fez com que a integração artística


Imagem 54: Carnaval de Olinda

ocorresse de uma forma mais facilitada,

espaço, são promovidos e integram uma

“nos anos 2000, esta ‘identidade cultural

cena mais que eclética de uma rede cultural

renovada’ já ia além do pop/rock, das

interligada.

fusões da tradição com a modernidade, e passou a abranger muito mais que a

Por isso aqui se reafirma que a cultura é

música” (TELES, p. 343). Todos os gêneros

o cultivo. Cultivo de maneiras singulares

sofreram uma “atualização” e isso fez com

de ser. Não individuais ou egóicas, nem

que a cidade virasse um enorme caldeirão

universais, mas um reflexo imediato do

de cultura. “As grandes festas sazonais,

próprio ser. É o cultivo de tempo, uma

o carnaval e o São João, receberam um

contemporaneidade do futuro e do passado

novo formato, a tradição permaneceu, mas

em relação ao presente. O futuro se torna

a ênfase foi em shows de artistas locais e

uma dimensão cultural que vira um princípio

nacionais (até internacionais), em palcos

de ação sobre o presente, uma força de

abertos ao público, patrocinados pelo

escultor, que vai esculpindo o presente.

governo do estado ou a prefeitura.” (TELES,

É onde começa o desejo, não o desejo

p.344). Mesmo o frevo, passou a ser mais

que virá a ser, mas que já se encontra

executado e renovado com bandas como a

virtualmente como horizonte; o futuro como

Spokfrevo Orquestra, Orquestra Popular da

horizonte imediato. O manguebeat foi

Bomba do Hemetério, mas ainda continua

esse cultivo, e fez a cena do Recife poder

limitado ao carnaval. O forro-pé-de-serra, a

enxergar tal horizonte, e o ciclo continua;

77 MPB, mesmo o jazz e blues acharam seu

como o Chico Science já previa:


78

Imagem 55: Dançarinos de Frevo – Olinda


Imagem 56: Bloco Galo Da Madrugada, um dos maiores do mundo – Carnaval de Recife.

“A música (e não só) é uma coisa que se

a vida particular e coletiva, aumentou-se a

recicla. Você pega o velho e faz o novo.

discussão em torno do que a cidade tem, o

Pega o novo e faz o velho. É um pouco

que precisa ter, como e o que se fazer para

como a teoria do caos” (Jornal de Brasília,

melhorá-la. Passou-se a perceber que a

entrevista a Paulo Paniago, 1994)

cidade, em seu caos:

Mas a cultura não se restringe à arte ou às

“(...) só era possível compreender

manifestações artísticas, como mostrado ela

fragmentos de ordem justapostos

cria imaginários que criam consequências

casualmente sobre o território. Alguns

nas relações sociais e essas, por sua vez,

desses fragmentos foram construídos

trazem consequências para o espaço

pelos arquitetos, outros eram obras dos

urbano, o principal habitat dos seres

especuladores, outros ainda era intervenção

humanos.

proveniente de escalas regionais, nacionais, multinacionais.” (CARERI, Francesco;

79

Com o fluxo de informações da nova

Transurbancia + Walkscapes Ten Years

geração e a consciência sobre as influências

Later; tradução de Frederico Bonaldo, p.

que as condições das cidades trazem para

236)


Este corpo de lama que tu vê, é apenas a

mangues distantes.

imagem que sou.

Essa rua de longe que tu vê, é apenas a

Este corpo de lama que tu vê, é apenas a

imagem que sou.

imagem que é tu.

Esse mangues de longe que tu vê, é

Que o sol não segue os pensamentos,

apenas a imagem que é tu.

mas a chuva mude os sentimentos.

Se o asfalto é meu amigo...

Se o asfalto é meu amigo eu caminho,

(Deixar que os fatos sejam fatos

como aquele grupo de caranguejos,

naturalmente, sem que sejam forjados

ouvindo a música dos trovões.

para acontecer.

Essa chuva de longe que tu vê, é apenas

Deixar que os olhos vejam pequenos

a imagem que sou.

detalhes lentamente.

Esse sol bem longe que tu vê, é apenas a

Deixar que as coisas que lhe circundam

imagem que é tu.

estejam sempre inertes, como móveis

Fiquei apenas pensando, que seu rosto

inofensivos, pra lhe servir quando for

parece com minhas ideias.

preciso, e nunca lhe causar danos morais,

Fiquei lembrando que há muitas garotas

físicos ou psicológicos.

em ruas distantes.

(Chico Science e Jorge du Peixe, Corpo de Lama,

Há muitos meninos correndo em

1996)

O movimento manguebeat trouxe a tona

compõem sempre um pano de fundo da

em seus arquivos urbanos uma visão da

cidade, no entanto, são dali que se percebe

cidade do Recife, que estava escondida,

as maiores potencialidades de uma cidade.

por trás das grandes torres de concreto, em baixo das pontes que cortam seus rios e

“Os vazios são parte fundamental do sistema

para a população que estava afundada na

urbano e são espaços que habitam a cidade

lama ou foram empurradas para dentro dos

de modo nômade, deslocam-se sempre que

aterros, que contornam shoppings, vias e

o poder tenta impor uma nova ordem. São

moradias de luxo forçadamente encrustados

realidades crescidas fora e contra aquele

nas bonitas paisagens em torno das frentes

projeto moderno que ainda é incapaz de

d’agua do Recife.

reconhecer o seus valores e, por isso, de associar-se a eles” (CARERI, Francesco,

Esses vazios urbanos ou a “não cidade”, 80

p.237)


Projeto esse que procura sempre aquele

“espaço-tempo urbano tem diversas

embelezamento sanitarista, em cima de

velocidades: desde o estancamento dos

áreas cuja especulação diz ter grandes

centros à transformação contínua das

valores para a cidade.

margens. No centro o tempo parou, as transformações congelaram-se, e quando

No Recife atualmente corre em processo

ocorrem são de tal modo evidentes

de aprovação o chamado Novo Recife,

que não escondem imprevisto algum:

que consiste em “requalificar” uma área

desenvolvem-se sob estrita vigilância, sob

de 101,7 mil metros quadrados aonde irá

o vigilante controle da cidade.” (CARERI,

se sobrepor a porções de frente d’agua,

Francesco, p.238)

a edifícios e áreas de importância social, ignorando assim a população de seu entorno

Não se pode afirmar aqui que o movimento

e também os interesses da cidade como um

manguebeat tem influência direta na

todo, ou melhor , àqueles que procuram a

percepção e nas lutas pela cidade que

humanização da cidade como melhoramento

ocorrem hoje em dia no Recife, mas

da qualidade de vida. A área se encontra no

sem dúvida, através dele, a imagem

centro-sul de Recife, um dos lotes engloba

antes escondida da cidade foi exposta

bens tombados como patrimônio cultural

massivamente, e ainda, muitos da geração

nacional e linhas ferroviárias do século XIX.

mangue hoje se mostram envolvidos nas

A urbanista Ermínia Maricato alerta:

questões da cidade; e as novas gerações, também, não menos. Não obstante,

“A especulação faz com se julgue um

o momento histórico já citado, é mais

espaço que é muitas vezes interessante,

relevante e através do fluxo de informações

um espaço degradado, como o centro das

se faz a principal engrenagem de uma

cidades.”

mudança de valores. Pois a geração atual começa a cobrar da distância entre discurso

Sem entrar em detalhes, o projeto é a causa

e prática, e se mostra contra o urbanismo

de mobilizações sociais e a articulação de

do espetáculo, onde pouco é vivido e muito

parte da população, pois como afirma Careri:

é apenas apreciado. Assim, mesmo que de forma pulverizada há o início de formação

81


Imagem 57, 58, 59, 60: Vistas do Centro de Recife.

82


de uma consciência citadina capaz de gerar

foi a horizontalidade. Os protagonistas

mudanças concretas nesse habitat próprio

tradicionais de protestos (partidos,

dos seres humanos.

juventudes de partidos, sindicatos), dessa vez, não encabeçavam a luta. A luta era

O principal movimento ilustrador desse

de todos e todas, sem qualquer “cabeça”

momento em Recife, não por ser mais

individualizada. A representatividade já

que outros, mas pela dimensão midiática

dava mostras de que não mais agradava.

que tomou na cidade e no país, chama-

Outros sujeitos reivindicavam as ruas

se Movimento Ocupe Estelita (MOE). Que

também, muitas vezes, sem nem estarem

exatamente contra o dito projeto Novo

organizados em grupo algum. Esse

Recife, se mobilizaram em torno do Cais

“espontaneísmo” fez muitas pessoas

José Estelita, um dos importantes elementos

experimentarem pela primeira vez a rua, o

da orla do centro de Recife, para que fosse

ato de protestar contra sua insatisfação –

impedido sua demolição. A advogada e

independente de qual fosse. Mas foi também

militante do movimento Luísa Duque Belfort

isso que trouxe uma certa confusão e falta

em um depoimento feito para esse trabalho,

de norte para as manifestações. Um protesto

sobre aspectos gerais do MOE, ilustra a

de várias pautas, na verdade, não tem pauta

visão desse imaginário que está sendo

nenhuma.

agregado às novas gerações, que procuram na cidade os reflexos das mudanças de

Apesar disso, as manifestações

valores que estão ocorrendo através da

deixaram algumas sementes, no sentido de

informatização dos que nela vivem:

que a rua é de todos. Percebeu-se também que a horizontalidade das manifestações se

83

“O Movimento Ocupe Estelita está dentro

direcionou para um espontaneísmo - porque

de um contexto de movimentações

não existia um mínimo de organização.

urbanas no Brasil, que teve como ponto

Dessa constatação e do ânimo em continuar

alto as manifestações de junho de 2013.

atuando naquele palco recém-descoberto,

As “jornadas de junho”, que, a princípio,

que era a rua, começaram a surgir inúmeros

foram impulsadas pela questão do aumento

movimentos e coletivos horizontais e auto-

das passagens, tomaram contornos de

organizados. Importante citar que os novos

um movimento mais abrangente; em

sujeitos que foram às ruas e que quiseram

pautas, em sujeitos. O elemento novo

permanecer nelas eram, em sua maior parte,


da classe média universitária.

luta pela democratização da cidade.

O fato de o movimento ser composto

O MOE surgiu e foi impulsionado

por esse contexto. A ocupação do cais

por pessoas e não por organizações

José Estelita foi realizada de forma

deu a cara da ocupação. Verticalizações

espontânea, mobilizada pelas redes sociais.

e personalismos foram desde o início

Várias pessoas que nem se conheciam,

atacados. Quem decidia os rumos da

pertencentes à classe média, em sua

coletividade era a própria coletividade.

maioria universitária, se deslocaram para

Como vivemos numa sociedade em que a

o terreno do Estelita. Barracas de camping

própria estrutura do poder é vertical – basta

foram armadas e as estruturas foram

olhar o Estado –, tivemos alguns problemas

montadas. Cerca de cinquenta pessoas

com muitas pessoas e grupos que não

passaram a, praticamente, viver juntas

conseguiam entender a nossa forma de

durante quase um mês.

organização. Organização, sim, porque lutamos para que nossa horizontalidade não

Participei da ocupação de forma

redundasse em mero espontaneísmo. As

igualmente espontânea. Já vinha

pessoas tinham funções e eram cobradas

acompanhando as discussões sobre

pela coletividade. Reivindicar-se um

o grande projeto das empreiteiras e

movimento horizontal também demandou

compartilhava da indignação dos demais.

adotar outros princípios, sem os quais

Mas o que me fez, de fato, passar a viver

não haveria que se falar em igualdade e

com pessoas desconhecidas no meio do

horizontalidade. O combate às opressões

mato urbano, em um lugar beirando à

se colocava como um de nossos princípios

insalubridade não foi apenas a indignação.

basilares, consistindo no combate ao

Participei porque vi naquela movimentação

machismo, ao racismo, ao classismo, à

algo inédito no Recife e no Brasil, algo que

homofobia e etc. Sendo notadamente

poderia abrir precedentes para muitas outras

anticapitalista, o movimento se aproximava

ações na cidade e no país. Também por ter

ao libertarianismo. Qualquer tentativa de

uma formação militante de outros espaços

ingerência de grupos verticalizados, ligados

de esquerda e horizontais, vi no Estelita

ao Estado ou não, era bastante rechaçada.

a projeção de muitas outras lutas de que participo e que se interseccionalizam com a 84

A ocupação era um microcosmo da


sociedade e, assim sendo, vivemos ali

faz aflorar. A tal espontaneidade citada no

problemas sociais que atingem a sociedade

depoimento mostra a dinamização trazida

no plano macro. Lidamos com homofobia,

pela internet, que ao mesmo tempo em

com racismo, com preconceito de classe,

que dissemina informação choca com o

com o machismo, com a questão das

excesso da mesma. E ainda no caso dessas

drogas, com o debate da segurança pública,

espontaneidades, o que mais se pode ter

opressão estatal, etc. Vivemos em um

como relevante, não é o que se faz, mas

laboratório social, no qual o grande desafio

como se faz. Pois como Luísa mesmo

era aplicar nossa hipótese: a de que era

explicitou, o MOE já faz parte da História,

possível viver em um modelo de sociedade

e a consciência é uma ação retardada, se

horizontal, igualitário e auto-organizado.

olha para trás para projetar para o futuro. Pois, todo o ideal deve girar em torno de

Apesar de a ocupação ter chegado ao

o que se quer ser na cidade que se quer

fim, o Movimento Ocupe Estelita não acabou

ter. Para isso, necessita-se procurar uma

e nem vai. Porque, é, antes de tudo, uma

narrativa comum entre os cidadãos e a partir

ideia. Permanecerá para sempre cravado

dos pontos em comum olhar para aquele

na atmosfera da cidade e, com certeza, será

horizonte próximo imediato. Pois como

(e já está sendo) objeto de estudo, a ser

define Armando Silva, o imaginário é:

imortalizado em livros. O MOE já faz parte

“Processo psíquico perceptivo quando

da história do Recife e do Brasil. (Luísa

o entendemos motivado pelo desejo e

Duque Belfort, 30 de março de 2015)

o que atendemos socialmente não é sua representação nem sua descarga

Essa ideia criada pelo MOE, e não só por

satisfatória, mas uma forma comunitária de

ele, pelos movimentos de julho de 2013,

aprender o mundo pelo que gera visões ou

e outros ocorridos ao redor do mundo,

ações coletivas.” (SILVA, p.199)

mostram a ânsia que a falta de diálogo da cidade com as necessidades humanas

85

Imagem 61 e 62: Imagens da Audiência Publica sobre o Projeto Novo Recife – e o abaixo assinado pedindo a anulação da mesma


O FECHAMENTO O que se pretendeu nesse trabalho foi a

E mais uma vez as palavras de Armando

partir de uma nova visão e metodologia olhar

Silva são conclusivas:

para cidade sobre um ponto de vista dos que

“Um novo urbanismo cidadão deverá ir

nela vivem, através de suas manifestações

exigindo que novos fenômenos sociais

e relações. Olhar, na verdade, diretamente

se materializem em outras construções e

para o ser humano como elemento e para o

outras materializações de seus entornos.

fato verbal de ser humano.

Esse é o valor do estudo dos imaginários

Olhar para a cidade como uma rede

urbanos como representação do futuro. Essa

interativa entre espaços, sítios, desejos,

é, talvez, a dimensão política desejada de

ações e imaginação, ver que ela como

um projeto pensado, em rigor, como fato

organismo se faz de partes e as partes,

estético.” (SILVA, p. 165)

como em todo organismo, é essencial para

Ou em outras palavras, mais propícias, de

o funcionamento do todo. No entanto, seu

Fred 04:

sistema central não são as vias, os prédios, as praças, os parques, os museus, as

“Interatividade é assim mesmo,

instituições e sim o ser que vive nela, por

A vida é pra compartilhar e gozar”

isso se deve a partir desse ser e para esse

(Fred Zero Quatro, Velho James Browse Já

ser pensar, planejar e executar a cidade.

Dizia, 2007)

86 Imagem 63: Valley of the Reclining Woman por Carl Warner


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São Paulo, 2014. – 248p.:il.

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Paulista – Júlio de Mesquita Filho, Campus

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87

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[Documentário Completo]

de São Paulo. Trabalho de Conclusão de

https://www.youtube.com/watch?v=E-H_

Curso, Curso de Geografia, Universidade

sDlXWWw

Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho,

- Mosaicos - A arte de Chico Science

Campus Rio Claro, 2013.

[Documentário Completo]

-HARVEY, David. Condição Pós-Moderna:

https://www.youtube.com/

uma pesquisa sobre as origens da mudança

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cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1989.

- Ermínia Maricato - Episódio 8 - Série Tão

-TELES, José. Do frevo ao manguebeat.

Longe, Tão Perto

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https://www.youtube.com/

-KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo

watch?v=iWmMUOKmbkg

ampliado. In: Gavea. Rio de Janeiro.

- Antonio Risério: Viver a cidade, transformar

-MANO, Rubens. Sobre a condição do

a vida urbana


https://www.youtube.com/

-Imagem 9: Carnaval de Olinda

watch?v=laapNw6VJkg

©Samuel Garcia

- Ação Cultural como Produção de

-Imagem 10: Dançarina de Frevo

Subjetividade

http://espaco-nascente.blogspot.com.

https://www.youtube.com/

br/2013/02/folia.html

watch?v=O1oPkCL9piI

-Imagem 11: Dançarina de Frevo ©Samuel Garcia

88

Créditos das Fotos

-Imagem 12: Uma luz no fim do Túnel -

-Imagem 1: Arista Militão dos Santos –

Centro de Recife

Carnaval de Olinda

©Samuel Garcia

https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/736x

-Imagem 13: Bairro de Classe Média - Bairro

/36/87/49/368749f1fdc4fdc05c8d2ceefc66e

de Boa Viagem Recife

af3.jpg

http://pt.wikipedia.org/wiki/

-Imagem 2: Marco Zero Recife

Ficheiro:Panoramic_view_of_Recife_2.jpg

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Ground_

-Imagem 14: Tela de Hélio Oiticica de 1965

Zero_-_Recife_-_Pernambuco_-_Brazil.jpg

http://3.bp.blogspot.com/_

-Imagem 3: Rio Capibaribe – Centro de

wizaDqqPVOM/S8rKVb15PWI/

Recife

AAAAAAAAATA/LxkS6wrbOds/s1600/

©Samuel Garcia

seja+marginal+seja+her%C3%B3i.jpg

-Imagem 4: Camelôs- Centro de Recife

-Imagem 15: Rua 13 de Maio – Olinda

©Samuel Garcia

©Samuel Garcia

-Imagem 5: Vendedores da Avenida Conde

-Imagem 16 : Vista de Recife a partir de

da Boa Vista – Centro de Recife

Olinda

©Samuel Garcia

©Samuel Garcia

-Imagem 6: Xilogravura – J. Borges

-Imagem 17: Público Assistindo ao desfile de

http://natrilhadoschacais.blogspot.com.

carnaval em Olinda

br/2011/11/meus-pesares-para-mim-

©Samuel Garcia

xilogravurei-de.html

-Imagem 18: Banda Ave Sangria

-Imagem 7: Carnaval de Olinda

http://www.ideafixa.com/wp-content/

©Samuel Garcia

uploads/2014/08/AVESANGRIA_imagem-

-Imagem 8: Carnaval de Olinda

principal.jpg

©Samuel Garcia

-Imagem 19: Ladeira da Misericórdia –


89

Olinda

http://vitortegom.tumblr.com/

©Samuel Garcia

-Imagem 29: Ilustração Maracatu

-Imagem 20: Ladeira da Misericórdia –

https://br.pinterest.com/

Olinda

pin/443393525787555039/

©Samuel Garcia

-Imagem 30: Carnaval Olinda

-Imagem21: Largo da Sé – Olinda

©Samuel Garcia

©Samuel Garcia

-Imagem 31: Vista Interna Beco da Fome –

-Imagem 22: Alto Zé do Pinho – Recife

Centro de Recife

http://movimentosjuvenisbrasileirosparte7.

©Samuel Garcia

blogspot.com.br/2011/02/bairro-alto-jose-do-

-Imagem 32: Estatua Caranguejo – Rua da

pinho-recife-pe-18.html

Aurora – Centro de Recife

-Imagem 23: ilustração de Fernando Mosca

©Samuel Garcia

http://www.oruminante.com.br/wp-content/

-Imagem 33: Estatua em homenagem a

uploads/2011/10/fome.jpg

Chico Science – Rua da Moeda – Centro de

-Imagem 24: Beco da Fome – Centro de

Recife

Recife

©Samuel Garcia

©Samuel Garcia

-Imagem 34: Rua do Riachuelo – Centro do

-Imagem 25: Abelardo da Hora – Ilustração

Recife

Meninos do Recife

©Samuel Garcia

http://maristelafarias6.blogspot.com.

-Imagem 35: Avenida Conde da Boa Vista –

br/2015/03/abelardo-da-hora.html

Centro de Recife

-Imagem 26: Abelardo da Hora – Ilustração

©Samuel Garcia

Meninos do Recife

-Imagem 36: Cinema São Luiz inaugurado

http://adelantesp.tumblr.com/

em 1952 – Centro de Recife

post/111401498516/abelardo-da-hora-

©Samuel Garcia

colecao-meninos-do-recife-1962

-Imagem 37: Centro Histórico de Recife

-Imagem 27: lustração Manguetown – Leo

©Samuel Garcia

Elessar

-Imagem 38: Ponte Duarte Coelho – Centro

http://leoelessar.deviantart.com/art/

de Recife

Manguetown-48916617

©Samuel Garcia

-Imagem 28: Ilustração produzida para o

-Imagem 39: Avenida Rio Branco – Centro

Ocupe Estelita – Vitor Teixeira

de Recife


90

©Samuel Garcia

de Recife

-Imagem 40: Marco Zero – Centro de Recife

©Samuel Garcia

©Samuel Garcia

-Imagem 52: Vista da Rua da Aurora e do

-Imagem 41: Ponte Buarque de Macedo –

Rio Capibaribe – Centro de Recife

Centro de Recife

©Samuel Garcia

©Samuel Garcia

-Imagem 53: Cartaz de Rico Lins

-Imagem 42: Centro de Recife

http://revistasim.ne10.uol.com.br/2015/01/

©Samuel Garcia

marginais-herois-coloca-o-cartaz-centro-da-

-Imagem 43: Centro de Recife

discussao/

©Samuel Garcia

-Imagem 54: Carnaval de Olinda

-Imagem 44: Café centro histórico de Olinda

©Samuel Garcia

©Samuel Garcia

-Imagem 55: Dançarinos de Frevo – Olinda

-Imagem 45: Dançarino de Frevo em Olinda

©Samuel Garcia

©Samuel Garcia

-Imagem 56: Bloco Galo Da Madrugada,

-Imagem 46: Passista Carnaval de Olinda

um dos maiores do mundo – Carnaval de

©Samuel Garcia

Recife.

-Imagem 47: Edifício Pernambuco – Av.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Galo_

Guararapes – Centro de Recife

da_Madrugada,_Carnival_2014_-_Recife,_

©Samuel Garcia

Pernambuco,_Brazil.jpg

-Imagem 48: Edifício Pernambuco – Av.

-Imagem 57, 58, 59, 60: Vistas do Centro de

Guararapes – Centro de Recife

Recife.

©Samuel Garcia

©Samuel Garcia.

-Imagem 49: Mar de antenas no Brasil dos

-Imagem 61 e 62: Imagens da Audiência

anos 90 - “a cidade não pára, a cidade só

Publica sobre o Projeto Novo Recife – e

cresce”.

o abaixo assinado pedindo a anulação da

http://canalviva.globo.com/especial-blog/

mesma

na-trilha-das-novelas/post/neoliberalismo-

©Samuel Garcia

parabolicas-e-tropicalidades.html

-Imagem 63: Valley of the Reclining Woman

-Imagem 50: Estatua Caranguejo – Rua da

por Carl Warner

Aurora – Centro de Recife

http://www.carlwarner.com/image/

©Samuel Garcia

otherscapes/valley-of-the-reclining-

-Imagem 51: Ponte Princesa Isabel – Centro

woman_1/#&panel1-1


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