O milagre da fonte da Gomeira

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O Milagre da Fonte da Gomeira Samuel Viana


Conteúdo 1 I. Os Francas, mareantes de Tavila

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2 II. Um dia na Alfândega

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3 III. Um dia nas Terras da Ordem

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4 IV. Um visitante não esperado

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5 V. Um segredo descoberto

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6 VI. José Perez, moçárabe de Granada

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7 VII. Ordem no regadio

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8 VIII. Vamos fazer uma fonte ?

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9 IX. Salvo da morte por um triz

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10 X. Uma terra caída na desgraça ?

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11 XI. E a Senhora não voltou

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12 XII. A visita do físico

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13 XIII. Um assassinato inconsumado

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14 XIV. Dilúvio no Vale do Almargem

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15 XV. (Re)nascimento e regresso

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16 XVI. O novo ribeiro

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17 XVII. Uma noite dos infernos

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18 XVIII. Reencontros na Terra da Ordem

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Mapa

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I. Os Francas, mareantes de Tavila Conta-se que um senhor cavaleiro da ordem de sua majestade, de origem genovesa ou francesa, de nome Lopo Afonso da Franca, viera há muitos, muitos anos, só Deus nosso senhor sabe, viver para Tavila para servir de imediato a bordo das naus do Almirante-Mor Manuel Pessanha, ou Emanuelle Pessagno, de origem genovesa, a quem fora dada a honradez de ser o comandante da Frota de Galés de Sua Majestade o Rei D.Dinis, casado com a Santa Rainha que fez um dia fazer passar pães em forma de rosas nas suas saias para distribuir pelos necessitados sem chamar a atenção do rei esposo. Mas não é dessa rainha que falaremos aqui. Este Lopo Afonso era um homem bravo, corajoso, temerário, amante da refrega e do combate, e viera viver para o Algarve conjuntamente com a sua senhora, Violante Valdez, estabelecendo residência nas Terras da Ordem, atribuído pelo pai de D.Dinis, Afonso III, à ordem de Santiago de Espada, cujos monges guerreiros, conta a tradição, conquistaram Tavila sob o comando do grande Paio Peres Correia, seu grão-mestre, mas que após a conquista do Algarve acabaram por se avassalar com o Rei de Castela e por lá se fixaram, não tendo nenhum membro da Ordem vindo tomar posse das referidas propriedades, que ficaram abandonadas desde a fuga dos mouros. Então Lopo Afonso da Franca pensou em gizar um acordo com o pároco da Igreja de Santa Maria em Tavila - a que recebeu o túmulo dos sete cavaleiros de Santiago mortos covardemente pela mourama de que pagaria as despesas que fossem necessárias para preservar a igreja e o túmulo, para além de ofertar todos os anos uma décima parte dos proveitos das terras da Ordem a todos os fregueses da dita paróquia, e de dar trabalho e sustento a todos os fregueses se para isso desejassem. Diz-se que Violante Valdez da Franca ofereceu trabalho a todos quantos se apresentaram para trabalhar na terra e que dela precisavam. Era uma propriedade vasta, com sede no alto de um monte que dominava a oeste todo o vale da Ribeira que agora chamamos de Almargem. Ao monte tinha sido dado pelos mouros o nome de Benamur , de Bin-Ah-mur (o ``filho do devoto'' em árabe), e compreendia outra parte, situada para sul do que restava da antiga estrada romana, o lugar da Gomeira, que se estendia até ao mar. Essa velha estrada romana era a que ligava de oeste a leste a antiga Ossonoba (agora Faro) a Baesuris (Castro Marim), atravessando o Rio Gilão através da chamada ponte romana. Para leste a propriedade ia por terrenos selvagens onde havia muita caça até ao ribeiro de Afonso Martins, que chamam agora de Lacém, onde tinha início o Termo do outro castelo, Cacela. (Antigamente dava-se o nome de termo de uma vila ou cidade com castelo ao que nós hoje chamamos concelho.). Coelhos, lebres, perdizes, javalis, raposas e o grande gato de barbilhos era habitual verem-se nas matas não desbravadas das Terras da Ordem. Eram terrenos de caça onde por vezes a família gostava de praticar as artes de caça. Apesar de em ambas as propriedades serem vastas e os campos povoados por alfarrobeiras, figueiras, amendoeiras e oliveiras, estes estavam a precisar de ser desbravados e limpos, porque muitos anos passaram desde que alguém deles tirasse deles sustento. E, além disso, as terras não eram ricas em água para poderem ser irrigadas o suficiente para o trigo poder levantar haste e dar espiga. Lopo Afonso passava a maior parte do tempo no mar com o almirante Pessanha, nas lutas contra as galés mouras que ameaçavam os cristãos mais lá para das bandas das Colunas de Hércules, e quando 2


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lhes permitiam sossego, em tempos de paz demandaram o mar desconhecido, para muitas léguas além de costas conhecidas, por mar aberto na busca das chamadas Ilhas Afortunadas, e que agora chamamos de Canárias. Mas as batalhas que os ocupavam com a mourama e às vezes também contra a armada castelhana nunca lhes permitiram concluir tais aventuras. Sendo Lopo Afonso um guerreiro constantemente ocupado em batalhas e aventuras em Alto mar, quando tinha tempo ancorava em Tavila e procurava sossego junto do leito de Violante, que tratava sozinha do sustento das propriedades da Ordem. Regressado à quinta, era vê-lo insultar e maltratar todos os camponeses e lavradores, por vezes na frente da esposa, para humilhá-la. —Rodeias-te de gente imbecil e tonta que não sabe sequer como manejar um arado e cultivar cereal de onde possamos fazer pão. —Onde tens andado, meu marido, e o que tens feito ? Apenas vens para junto de mim parar buscares paz junto do meu leito. Trouxeste ao menos riquezas dos longínquos mares ou dos saques que nos ajudem a melhorar as nossas sortes ? E agradecei a Deus os representantes da Ordem de Santiago não terem ainda regressado para vir reclamar estas Terras - redarguiu Violante. Ao ouvir estas altivas palavras, Lopo Afonso não teve qualquer receio em esbofetear a pobre esposa, porque ele considerava atrevimento para uma mulher levantar a voz para um cavaleiro da casa de sua majestade, ao serviço de Nosso Senhor ao manter seguras as costas portuguesas. Mas apesar da sua impulsividade, Lopo era um homem temente a Deus que se encomendava sempre à Virgem sempre que tinha de viajar por esses mares longínquos e desconhecidos. E assim visitava sempre a Igreja de Santa Maria para rezar na capela diante do altar da Virgem antes de subir a bordo, acompanhando misser Pessanha nas suas viagens. Apesar de os Franca terem a sua própria santa padroeira, Nossa Senhora A Franca, cuja imagem era guardada a sete chaves num altar dentro do seu próprio solar no Benamur. A Ordem de Santiago regressou efectivamente para verificar as suas terras, quando D.Afonso IV, que sucedeu a D.Dinis, nomeou um grão-mestre da Ordem de Santiago só para Portugal, que não prestasse obediência à Ordem de Santiago castelhana. E assim de vez em quando os visitadores da ordem visitavam Tavila, e achando em bom estado as terras concedidas no Foral antigo, acabaram por avalizar o acordo que Lopo da Franca fizera com o pároco de Santa Maria. As condições em que Violante matinha a fazenda não eram famosas, os mouros que antes tinham erguido a quinta tinham deixado uma nora e curtas valas de irrigação que, aproveitando o facto da nora estar situada num lugar elevado, fazia a água descer lentamente, por efeito da gravidade, por valas de irrigação para as hortas, onde se cultivavam cenouras, ervilhas, feijão, linho, grão-de-bico e hortelã. Mas pouco mais. Culturas que exigissem mais água eram escusadas porque a água necessária não vinha em quantidade suficiente. Mas o estrago feito à quinta depois da conquista aos mouros tinha sido muito e ninguém tinha reparado as estruturas. E o cultivo de trigo estava portanto fora de questão. A Lopo Afonso apenas lhe interessava as estrebarias e os potros e os gloriosos corcéis que eram lá criados e que pudessem ser apresentados em alturas festivas, cavalgando com a esposa e seus cavaleiros exibindo as armas dos Franca pelas ruas de Tavila. Do casamento de Lopo com Violante nasceram vários filhos, do qual o mais conhecido foi Lançarote da Franca, que a certa altura foi comandante de uma nau da Armada Portuguesa, e estando em tempos de paz, com ela partiu por mar aberto alcançando as tais Ilhas Afortunadas, sabendo que algumas haviam sido há pouco tempo descobertas por outro Lançarote, o Malocello, outro genovês mas ao serviço de Castela. A ideia era reclamar pelo menos algumas das ilhas, sendo um grande arquipélago, para a coroa portuguesa. Já então o rei de Portugal era D. Fernando, o Belo, neto de Afonso IV e filho de D. Pedro, aquele que se deixou morrer de amores pela dama Inês de Castro e que colocou os portugueses em terrível situação após a sua morte sem filho varão. Lançarote deu a uma dessas ilhas descobertas o nome de Nossa Senhora A Franca, como prova dos votos de devoção à sua padroeira e a outra batizou-a de Gomeira, o nome da outra propriedade quem em conjunto com o Benamur constituíam o Mato da


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Ordem. Dispondo de poucos meios, Lançarote da Franca quis instalar-se na Ilha de Lançarote, que havia sido batizada pelo seu homónimo. Acabou por morrer por lá, em luta com os nativos, ao tentar estabelecer uma colónia que desse a Portugal a posse das Canárias. O nome de Gomeira acabou por ficar para a posteridade. De modo que ainda hoje vemos o nome de La Gomera no mapa das Canárias. Mas Portugal após um século de contestação pela posse das outrora chamadas Ilhas Afortunadas, acabou por desistir quando foram descobertas outras terras mais além, os Açores e a Madeira. Apesar de morrer em terras longínquas, Lançarote da Franca deixou descendência que lhe herdou os foros da Ordem de Santiago em Tavila e da relação de Lançarote com Leonor Abreu, filha de Lopo Vaz Castelo Branco, senhor de Portimão e de Catarina Pessanha, neta do almirante Manuel Pessanha, nasceu Lopo Afonso II da Franca, baptizado com o nome o avô e que esteve do lado do mestre de Avis na Batalha de Aljubarrota quando João de Castela quis reinar também em Portugal quando D.Fernando não havia deixado filho varão no torno. Como recompensa o novo rei D. João I confirmou-lhe a posse das Ilhas de Lanzarote onde o seu pai havia perdido a vida, mas ele nunca chegou de facto a desembarcar nas ditas ilhas. Esteve na frota que partiu com os filhos de D. João I, os infantes da Ínclita Geração a conquistar Ceuta. Este Lopo era também um homem de poucas conversas, e de raivas mal reprimidas, e casou com Môr Eanes da Cunha, descendente dos Cunhas de Vila do Conde. Marinheiro quase por tempo inteiro, como o pai e o avô, dizem que pouco tempo dispunha para partilhar com a esposa e pouca paciência teria igualmente para ocupar-se dos terrenos da Ordem. O que foi no entanto chegado aos seus ouvidos das poucas vezes que se recolhia em Terra era a que a esposa Môr Eanes o traíra dadas as suas longas ausências na peleja no mar. Em virtude disso, e numa chamada à atenção à esposa, devido ao acesso de ciúme, acabou por a matar. Menos sorte teve a capitanear a galé de que era comandante no ataque a Tânger, já sob as ordens do Infante D.Henrique, pois foi atacado e acabou por morrer afogado no seu afundamento. Dizem que foi castigo divino merecido por ser tão desconfiado e não ter acreditado na esposa, de que eram intrigas movidas pelos seus inimigos na corte, e que usaram a sua impulsividade contra si próprio, da mesma maneira do que quando um feitiço se vira contra o feiticeiro. Lopo Afonso, o segundo deste nome registado nas linhagens dos da Franca foi pai de Afonso Lopes da Franca, e tal como o pai, detinha o título de senhor da Ilha de Lanzarote, e capitaneou também naus ao serviço do Infante, que foi o que veio a suceder em 1447, quando comandou a frota que içou âncora de Lagos para saber dos destinos de Gonçalo Cintra, que tinha atingido a praça africana de Arguim, já além do Bojador, e daí não havendo dado mais notícias. Deste Afonso Lopes que foi a caminho de Arguim nunca mais nada se soube igualmente, sabendo-se apenas que da relação com Catarina Afonso, que foi pai de cinco mancebos, estando entre eles um terceiro Lopo Afonso, para além de Diogo Lopes da Franca, do qual de seguida esta história se vai concentrar e que tomou como mulher Genoveva Pessanha, filha de Álvaro Pessanha, neto de Manuel Pessanha, o mesmo Pessanha almirante de Portugal. De Diogo Lopes da Franca alguns cronistas diziam que era uma figura importante na vila chegando a dizer que era juíz-môr da alfândega de Tavila e por ventura desse cargo desligou-se das aventuras do mar, procurando, ao contrário dos seus antepassados, dedicar-se à vila e às suas propriedades. Tal como os seus Francas antecessores, manteve o trato com a Ordem e a Igreja de Santa Maria para tomar conta das terras do Benamur e da Gomeira. Enquanto os irmãos voltaram ao mar, marinheiros nas explorações portuguesas para sul da Costa Africana, Diogo Lopes começou a ocupar-se dos resultado das Descobertas na costa africana, pois Tavila era, a par de Lagos, uma dos lugares costeiros com porto favorável ao comércio, largo e aberto ao mar era o rio naquele tempo. Em termos concretos, Diogo Lopes era o novo nobre nomeado para juíz-mor e responsável pela alfândega. Tudo o que entrava e saía de Tavila por mar teria que ser do seu conhecimento. Já Tavila era uma vila que recebia imensa navegação e comércio, provindo de outros portos do Mediterrâneo, pois sendo o primeiro porto português depois de os mercadores entrarem no Atlântico, era quase lugar de paragem obrigatório de franceses, genoveses, aragoneses, venezianos, sicilianos e outros povos que vinham não só fazer comércio ou no mínimo saber notícias das descobrimentos


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para sul ao largo da costa africana. Castro Marim, apesar de se apresentar voltada para o Guadiana, com o seu largo estuário, era uma povoação fechada dentro de muralhas, sempre receosa de qualquer eventual ataque que os castelhanos pudessem infringir na outra margem, e portanto nada feita para poder receber de mãos abertas o comércio. Assim Tavila era a inevitável primeira paragem para todos estes curiosos e desejosos de venderem os seus produtos, e levarem algum do ouro que haviam ouvido contar corria num rio a céu aberto, o Rio do Ouro, para além do Bojador. Além disso, também era também lugar de importante estratégia militar, pois era o ponto de embarque que permitia viagens mais rápidas de todos as companhias de guerreiros que iam guarnecer a única praça conquistada até então no Norte de África, Ceuta. De modo que o rio Gilão recebia dezenas de naus provindas de todas as partes da Europa, principalmente da parte Mediterrânica. E foi assim deste modo que a nobreza floresceu e acalentou-se com as riquezas que chegavam ao porto da vila. Os nobres já não precisavam de mostrar serviço para serem merecedores das mercês que ostentavam, as riquezas que adquiriam de todos os produtos como finas sedas, panos e bordados que chegavam a Tavila, eram suficientes para lhes suster os desejos de luxúria e ostentação. Da florescente Tavila e da conquista de Ceuta havia brotado um novo clã, que ficaria para sempre gravado na história de Portugal: os Corte-Real descendentes de João Vaz da Costa, na pessoa de seu filho Vasco Anes, grande guerreiro e um dos heróis da tomada de Ceuta, a quem el-rei D. Duarte concedera a graça de se chamar Corte-Real, pois era o cicerone de todos os visitantes da sua corte. Nesta história irão participar diversos personagens oriundos desta família. Estando no entanto delimitado por oeste do restante termo de Tavila pela irmã mais nova do Rio Gilão, a Ribeira do Almargem, naquele tempo no entanto navegável quase até junto da propriedade gerida pelos Franca, - um vau impedia a progressão das águas do mar na subida do rio - de modo que se Diogo quisesse ir para o Benamur sem ser a cavalo teria que pegar num bote e ir de Tavila até Benamur, aproveitando a proximidade das fozes do Gilão e do Almargem. Por volta desta altura, um grande conjunto de camponeses, lavradores, pastores, tecedeiras, e lavadeiras laborava na velha propriedade, ora varando oliveiras, tomando conta do gado ovino, e criadores de cavalos que aproveitavam as pastagens do Benamur para criar os melhores cavalos para os Francas. E o novo casamento de Diogo Lopes, arranjado pelo pai Afonso Lopes, combinado por um razão de interesses por insistência do pai,e dos seus entendimentos com Álvaro Pessanha, filho bastardo de Carlos Pessanha, o último almirante Pessanha, e que havia perdido o direito ao título por pecados do seu pai, o último almirante-mor dentro dos Pessanha. A família Pessanha passava por um mau momento e o casamento com um dos Franca, por acaso seus antigos companheiros e a razão original por se terem estabelecido em Tavila, mais de cem anos antes, e o casamento da filha de Álvaro Pessanha, Genoveva, era visto como uma forma de querer recuperar influência junta da sociedade nobre de uma vila que fervia de comércio e das novas oportunidades abertas pelas descobertas. Genoveva Pessanha (ou Genebra Pessanha) era uma donzela muito devota ao culto mariano, que professava na concepção imaculada da própria Maria mãe de Cristo. Apesar dos escândalos da família e da bastardia do pai Álvaro Pessanha, Genoveva era a filha do casamento celebrado diante de Deus e por isso com a linhagem entendida pelos linhagistas como a mais pura dentro dos Pessanha. A mãe era Isabel da Cunha, filho do grande Álvaro Vaz de Almada, o conde de Avranches, e primeiro capitãomor em Mar, como se dizia naquele tempo, e que tinha sido um dos célebres ``doze de Inglaterra'' que tinham combatido pelos ingleses em Azincourt e derrotado os franceses num dos períodos de guerra entre estas duas nações que os historiadores insistem em querer chamar guerra dos cem anos. O primeiro casamento de Genoveva fora com Álvaro de Arca, irmão do navegador e militar Rodrigo da Arca, que já procurava recuperar a reputação dos Pessanha, mas tal não tivera êxito, já que Álvaro de Arca conjuntamente com o irmão morreria na batalha da tentativa de tomada a Alcácer Ceguer -


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uma cidadela entre Ceuta e Tanger - poucos meses depois do casamento. Á procura de novo meio de restabelecer os Franca, este encontrara em Diogo Lopes da Franca o possível parceiro ideal para reunir novamente as duas famílias, e com essa possibilidade trazer os Pessanha de Tavila de volta para os fidalgos de honra de sua majestade. O casamento foi realizado na Igreja de Santa Maria, a ela ligados pelo trato com a Ordem, e diz-se que desde o momento do casamento, os Céus haviam abençoado a união.


II. Um dia na Alfândega Tavila, 46 anos após a Conquista de Ceuta e da assunção de Vasco Anes da Costa, depois chamado de Corte-Real, como Alcaide-Mor da vila, por graça de João I, o de Boa-Memória 23º ano do reinado de Afonso V, o Africano Vastas eram as propriedades aforadas aos Franca. Depois de passar o Ribeiro dito do Almargem, eram as duas herdades separadas pelo velho caminho romano que se estendia até Cacela, para terminar em Castro Marim. A Gomeira compreendia tudo que ia da estrada romana até ao mar, que naqueles tempo penetrava sem barreiras por terra adentro. Os seus solos eram menos aptos para o cultivo do cereal, e a escassez de fontes de água naturais um problema para quem quisesse fazer agricultura que precisasse de irrigação intensiva. As árvores plantadas e deixadas pelos mouros compreendiam antigas amendoeiras, oliveiras e alfarrobeiras. No entanto, os camponeses que lavravam estas terras plantaram muitas figueiras, que lhes davam sustento quando o senhorio não lhes pudesse dar do seu proveito. No entanto, eram poucos os cultivos feitos e o trigo difícil de medrar, pois o solo era muito seco. Havia uma antiga nora deixada pelos mouros, mas havia duzentos anos ninguém a havia reparado os canais de irrigação que dela irradiavam aproveitavam o facto da dita estar situada no topo de uma colina sobranceira ao Almargem. Havia muita pastorícia e criação de cavalos, para depois ser vendido nas feiras de gado ou para o esforço de guerra em Marrocos. Na Gomeira era grande a quantidade de amendoeiras, oliveiras e alfarrobeiras. O cultivo de alfarroba era algo que os mouros haviam deixado, pois as alfarrobas fertilizavam as terras e era um bom alimento para o gado de qualquer tipo. O que faltava era água, e condições para alojar os camponeses que trabalhavam para as terras da Ordem. As mulheres tinham de descer a encosta do Benamur para lavarem a roupa na Ribeira do Almargem, correndo o risco de serem levadas pela corrente ou caírem num pego. Genoveva Pessanha, a nova senhora das Terras da Ordem, preocupava-se com as pobres criaturas que trabalhavam para manter a produtividade da herdade. A falta de água era uma realidade e nos quentes e tórridos meses de Verão, essa necessidade do líquido precioso só conseguia ser resolvida graças à nora do Benamur que tinha uma cisterna que quase nunca secava, e os poços nos campos eram poucos e estavam muito distanciados entre si. Alternativas para matar a sede era através de alimentação baseada na fruta com polpa húmida, como por exemplo o figo ou a ameixa. Os rios mais próximos eram largos e salgados, a água insalubre, e conseguir arranjar água potável só mandando alguém a Tavila de propósito para encher os cântaros nas fontes do Castelo e do Largo do Cano, para além de que a ribeira do Almargem só tinha água potável prosseguindo da sua antiga ponte em direcção à serra, e em meses de Verão este leito, reduzido a poças, secava por completo, deixando os pobres camponeses sedentos e com poucas soluções. Diogo Lopes, esse estava mais preocupado com a gestão da alfândega para pagar as constantes viagens de frequência quase semanal destinadas ao reabestecimento de Ceuta. Pelo porto de Tavila começaram a chegar escravos africanos quando foi o descoberto o Rio do Ouro, e quando a Europa inteira soube, todas as nações mandaram navios com as suas maiores maravilhas 7


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para atracarem nos portos de Portugal. E qual o primeiro porto logo ali a seguir à fronteira com Castela, para poder ter mão nesse Ouro !? Era Tavila. Diogo Lopes assistia pasmado à chegada todos os dias de novas naus de todas as partes da Europa: do Atlântico provinham roupas e panos finos da Flandres, calçado, jóias da Germânia, e do Mediterrâneo, do Reino de Aragão louça e cerâmica do mais puro e fino recorte. Como responsável da alfândega, não tinha mãos a medir com tanta demanda portuária, nada melhor para cobrar o imposto de Alfândega, directamente para os cofres de sua majestade D. Afonso V. Este Franca passara a ser, ao contrário dos seus avós, navegadores e mareantes, um escrivão e funcionário real, um nobre fidalgo acostumado agora a ficar sentado em Terra, tornando num burocrata de pincel e pena a registar no papel todos os tesouros que chegavam de todos os cantos da Europa demandando em troca conseguir algum do Ouro que tinha sido descoberto no Continente Negro. De seu irmão Lopo Afonso, terceiro na família registado nas genealogias com este nome, pouco mais se soube: terá acompanhando Pedro Escobar ou Fernão Gomes quando estes sob concessão do rei exploraram a Serra Leoa e o Golfo da Guiné, atravessando pela primeira vez o Equador. Também o açúcar que tinha começado a ser obtido da cana cultivada na Madeira, entrava na Europa através de Tavila, sendo revendido precisamente aqui antes de ser levado para outras partes da Europa. Tavila era uma porta de entrada e saída para a Europa inteira e todos os dias Diogo Lopes conhecia maravilhas e histórias dos marinheiros, algumas vezes em línguas que ele nem compreendia, mas que na cabeça dele deviam ter apenas um significado: ouro e jóias, para além de quererem saber até que terras os portugueses haviam chegado. Mas Diogo Lopes ansiava por oferecer algumas destas riquezas à sua amada esposa Genoveva que ficava sozinha o dia todo a tomar conta das Terras da Ordem. Diogo começou a sentir que Genoveva adoraria partilhar de todas as maravilhas que eram reveladas no Porto de Tavila, e começou a pensar de que teria um dia de convidá-la para partilhar a seu lado o posto do paço da Alfândega onde Diogo fazia o seu trabalho quotidiano. De marinheiros a burocratas, a família Franca continuava nas boas graças divinas e da Virgem Mãe de Deus. Que Deus abençoe Portugal, sua majestade Afonso V e a nossa família, pensava para consigo Diogo Lopes. Terminada a jornada de mais um dia de cobrança do imposto alfandegário, era ver Diogo pegar o cavalo apeado na Praça da Ribeira e vê-lo a cavalgar pela Ponte Romana acima, mirando com orgulho à luz do sol poente a quantidade de naus ancoradas na terra do Gilão. ``Minha querida Genoveva tens que passar um dia comigo! Tem de ser hoje!''. Depois de ter prometido a si próprio que seria este o dia que pediria encarecidamente à amada para que partilhasse um dia inteiro consigo ao seu lado para saber ter uma ideia do comércio que se fazia na vila e ter procrastinado por tanto tempo na sua mente por maior o tempo que fosse. Cavalgando ao sabor do vento enquanto saía da vila e encaminhando-se para o caminho real, já no exterior da vila, aqui e ali revelando ainda alguns vestígios da antiga calçada romana desaparecendo com o tempo, Diogo disse para consigo: ``É hoje!''. E assim, e para não perder tempo em ter que acompanhar a margem direita do Almargem até atingir a ponte romana do Almargem decidiu arriscar-se a saltar com o cavalo para dentro da água da Ribeira que naquele dia de Março e após as chuvas de Inverno a Ribeira corria com estiqueza, mas naquele ponto de travessia a Ribeira tinha um vau que permitia salvar uns poucos quilómetros no trajecto para finalmente poder atingir a casa do Benamur, onde Genoveva, o aguardava como sempre ao final do dia. E lá estava ela, ao fim do dia, e sob as parcas luzes do lusco-fusco, Diogo Lopes pareceu-a ainda achar mais bela que sempre, santa e pura, merecedora do seu amor abençoado pelo Altíssimo. Ela que vinha de saia longa, mas puxada pelo joelho, dando mostras do esforço em tomar conta da quinta e de trabalhos mais físicos não dignos da sua nobreza. Ao desmontar o cavalo, tirar o gorro e preparar-se para abraçar a sua amada, Diogo Lopes estranhou a frieza constante dela ao recebê-lo, ele sempre alegre e motivado pelas riquezas que passavam na alfândega e ela sempre retirada, como se estivesse noutro lugar, onde as riquezas não tinham lugar na sua mente. —Meu amado marido, chegas feliz, como sempre, pudera eu partilhar da tua alegria. Como foi hoje.


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—Nem sabes, minha Genoveva, uma nau carregada dos mais finos vestidos para damas vindos de um lugar chamado Antuérpia, que fica na Terra dos Flamengos, ao que dizem, acho que alguns deles ficariam lindos em ti, haver-te de ver ainda mais bela. Mas como sou chefe da portagem, não posso comprá-los para ti, tens de ser tu a lá ir comigo. E Diogo prosseguiu: —Por isso meu amor, peço-te, que passes um dia comigo ao meu lado a partilhar das belezas que chegam de todos os cantos do mundo a Tavila. Há-de ser um dia diferente de teres de orientar as pastores, as tecedeiras, e os lavradores. Dá um dia de descanso a ti própria, meu amor. —Adoro quando tu me estragas com mimos, meu amor. Eu passarei um dia contigo, mas tu não fazes ideia como foi o meu dia, Diogo, estamos em Março, temos de ter as hortas prontas para depois termos de comer para o Verão, quando já não tivermos água. Toda a gente que trabalha nas terras da Ordem precisam de alguma coisa para que comer. Eu tenho orado pela Virgem santíssima para que nos acuda. A ti tem-te abençoado com riquezas, a mim só me tem dado fastio. Parece que não há forma de trazer mais fertilidade para estas terras. —Assim será, meu amor, amanhã, acompanhar-me-ás ao Porto, para poderes escolher o que achares melhor para ti. De certeza que encontrarás lá outras damas da tua condição. Elas concorrerão contigo pela posse das melhores peças. —Não são belos panos, vestidos e sedas o que mais me atrai, meu amor. É tratar deste povo que trabalha nas terras da Ordem. Para além de lhes dar de comer, precisamos também precisamos de lhes dar um sentido, algo que os ocupe fora das horas de labor. Para além disso, a falta de água é um problema que nunca teve solução, desde que há mais de cem anos o teu bisavô Lopo Afonso que tomou conta destas terras nunca foi possível encontrar uma solução! —Não te preocupes com estas terras, elas nunca deixarão de ser o que são, mas com o nosso amor, esse sim, vai dar flor e semente que depois em solo rico medrará para uma nova flor… —Uma nova flor Franca, com a benção de um ventre dos Pessanha. —Eu vou, meu amor e senhor, contigo, amanhã, à vila, mas com uma condição. —E qual é, meu amor e senhora ? —Tirares também um dia teu comigo aqui nas nossas terras, para verdes como as riquezas não fazem pão, nem lindos panos dão de beber, nem diamantes ou ouro sustentam os nossos criados. Perante estas inesperadas e sábias palavras, Diogo Lopes estremeceu e ficou impávido procurando uma resposta. —Que se faça como desejaste, minha senhora. Acompanhar-me-às amanhã da vossa mecê para comigo, mas no dia seguinte, e sou fiel às palavras que juro debaixo da padroeira do nosso clã, Nossa Senhora A Franca, que partilharei um dia inteiro contigo nas nossas terras, e não irei a Tavila. —Assim seja, meu senhor. - tentando baixar-se para beijar os dedos de Diogo Lopes, algo que Diogo Lopes evitou que ela fizesse, segurando-a pelos ombros, e abraçando-a depois, pois aquilo que Diogo Lopes sentia por Genoveva era um verdadeiro amor, e não uma formalidade, como um rainha diante de um rei. E assim foi, e no dia seguinte, Genoveva Pessanha seguiu, cavalgando na mesma sela com Diogo Lopes, para fora dos ares do campo das Terras da Ordem. E ao atingir Tavila, e mal ao atravessar a ponte, Genoveva pôde contemplar, o rio pleno de naus com todas as formas de velas e feitios, de todas as cores, umas acabadas de chegar, outras a ancorar e a iniciar o desembarque, uma azáfama de gente que pareciam formigas vistas de longe, ao longe da estreita margem direita do Gilão, desde a Torre do Mar até perder-se lá ao fundo, onde se via o reflexo do Sol, onde as águas do rio finalmente encontravam descanso em mar aberto. Parecia que o próprio rio resplandecia de ouro contagiado pelas riquezas que as naus transportavam. O toque de Midas havia atingido o Gilão.


CAPÍTULO 2. II. UM DIA NA ALFÂNDEGA

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A azáfama da tripulação de marinheiros e comerciantes a tentarem escoar e vender os seus produtos. Tudo tinha de ter passagem primeiro na Alfândega, o edifício rematado em arcos ali que assomava para a Praça da Ribeira, de onde se vendia de tudo, desde o açúcar da Madeira, escravos do Rio do Ouro, finas porcelanas de Valência, e as mais belas vestes para bem vestir as damas da efervescente Tavila vindas de Antuérpia. A acrescentar a isso finas jóias de adorno. Diogo desceu da sua sela, apeando-a depois na Praça da Ribeira, junto da troço de muralha que terminava na Torre do Mar e auxiliou a sua amada a descer do cavalo. A dama Pessanha envergava vestes modestas, parecendo mais uma camponesa ou freira do que a esposa de um dos mais importantes nobres da vila. Naquele que parecia ser apenas um mundo de homens, eram os que vinham desembarcar a mercadoria de lá para cá e os que iam para lá que procuravam carregar açúcar para depois vender aos nobres da vila. Pelo meio do caminho Diogo Lopes cruzou-se com os inevitáveis Corte-Real, o alcaide-mor Vasco Anes acompanhado de seus filhos os mareantes João Vaz e Fernão Vaz, ambos na casa dos 30 a 40 anos, e o pai, idoso, já nos idos dos 60. As relações entre as duas famílias eram já de longa data, praticamente desde a conquista de Ceuta que os Corte-Real e os Franca, que conjuntamente com os Pessanha procuravam em comum ocupar-se dos destinos da vila. Vasco Anes era filho do Vasco Anes da Costa, antigo companheiro do mestre de Avis em Aljubarrota, e o primeiro guerreiro que valente fora na refrega pela conquista de Ceuta, pelo que outras crónicas juram. D. Duarte, filho do rei mestre de Avis, dissera que ele tinha sangue real no seu corpo e por isso sugeriu que trocasse o vulgar Costa por algo mais notável, e daí apareceu Corte-Real. Vasco Anes, depois de Ceuta, era na altura mais um homem com os pés bem firmes em Terra, e o rei João I nomeara-o Alcaide da vila e vivia no Castelo. João Vaz tornara-se navegador e viajava entre Tavila e as novas ilhas dos Açores. Dizia-se de vez em quando que João Vaz voltava dos Açores trazia mais do que era esperado: que o rei o incumbira pessoalmente de praticar o corso atacando outras naus em pleno mar alto, extorquindo tesouros e riquezas que ele não merecera conquistar. Diogo perguntou-lhe: —Que trazes aí João Vaz na tua nau, vai ter de passar pelas minhas mãos eu que sou o alfandegário. —Nada que seja da tua liça, Diogo Lopes, isto são tesouros que daqui vão directamente para os cofres de sua majestade. Não vais cobrar a sua majestade o que já é de sua majestade por inteiro ! E, para mais, tu sabes muito bem que nesta vila só tenho de responder perante o Alcaide. A querer parecer-se cínico e distante diante de Diogo, João Vaz sorriu e piscou o olho, e Diogo percebeu logo imediatamente qual era a natureza da carga que transportava a sua nau. Outra nau de outro país, provavelmente Castelhana, havia sido abordada por um português que a tinha aliviado da sua carga e permitido viajar mais ligeira e rapidamente para a sua origem. João Vaz havia prestado uma grande ajuda à nau que não precisava da sua carga mas que fazia isso sim muito mais falta a Sua Majestade el-rei de Portugal. A nau tinha-se enganado na rota ou João Vaz enganado pelos ventos, o que é certo João Vaz ganhou qualquer coisa que a outra nau perdeu, e a conversa ficou por ali. Genoveva conhecia bem Tavila, mas desde que casara, e se recolhera para os campos do Benamur, e da desdita que foi a perda do seu primeiro marido, ela chegara a pensar recolher-se a um convento. No entanto, o casamento com Diogo Lopes tinha sido por ele uma nova descoberta, pois ele descobrira nele o amor verdadeiro, tal como finalmente um Franca tinha descoberto um amor verdadeiro, após um século de aventuras por esses mares fora era uma coisa que os Franca nunca tinham descoberto, servindo sempre nas naus de Portugal. Com Diogo Lopes, tudo seria agora diferente. Ao penetrar na Marginal do Gilão. Genoveva sentiu-se intimidada por ser a única mulher a estar num mundo quase só de homens, mas Diogo Lopes deu-lhe a mão e insistiu que acompanhasse até junto da sua banca de escrivão alfandegário, debaixo dos arcos que assomavam para a praça da Ribeira. Diogo Lopes era recebido logo por um funcionário do porto que trazia a lista de todas as embarcações que tinham acabado de desembarcar e procurava fazer uma ideia, de acordo com o que os mestres das referidas naus afirmavam, ter uma relação do que eram as mercadorias e que espécie de imposto aplicar a cada caso. Quanto a Genoveva, de faces claras e um poucos sujas pela Terra, sentara-se ao seu lado, inocente e incapaz de entender toda aquela azáfama de que o marido ia começar a rodear-se. A única coisa que lhe apeteceu fazer era subir ao castelo e orar diante do templo de Santa Maria ou visitar os túmulos dos seus antepassados no convento de São Francisco. Aquilo ao menos era algo a que ele estava


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habituada. Mas Diogo levantou-se depois de despachar o homem que trazia a ficha dos desembarques e ofereceu a mão a Genoveva para que o acompanhasse. Quando lhe tomou a mão, disse: —Querida Genoveva, tu nem pareces uma Pessanha, o teu bisavô foi o grande Manuel Pessanha, o primeiro grande almirante que Portugal e teve e era temido por todos os mares conhecidos. Os Pessanha foram feitos para estar no mar, e não em Terra. Tal como nós, os Franca, não fomos feitos para estarmos em Terra, só eu estou a revelar-me a excepção. Devias admirar o mar. Sei que esta confusão louca do porto te dá a volta a cabeça, querida, mas queria por favor que não me largasses a mão, porque tenho tantas coisas maravilhosas para te mostrar. —Eu não tenho receio do mar, meu senhor. Só que havia muito tempo que não vinha tão perto da margem do rio. Ao descer a margem acompanhado da amada, Diogo evitou propositadamente que passassem próximo da Nau que descarregava os africanos vindos de Arguim, desviando a sua atenção para a carga já colocada em Terra por outro navio. Uma donzela perdida conduzida na mão por um nobre de Tavila não era habitual ver-se em plena praia do porto, e depois de passar por outra caravela que carregava peixe seco armazenado em barricas, para além de azeite e vinho, Diogo continuando a segurar a mão da amada apontou para um navio mais pequeno, que havia colocado uma rampa de descida para a margem, mas que ainda não tinha efectuado carga ou descarga. Diogo gritou para dentro do navio : —Ici monsieur Damien, je suis Diogo Lopes avec mon fiancée. Peut-être monter à bord?. De repente de dentro da caravela apareceu um senhor com um pequeno pano atado em volta da cabeça mas deixando a testa descoberto com o cabelo ligeiramente cortado acima das orelhas recebeu-os de braços abertos: —Vous sons bien-venue a bord, mon monsieur et dame, S'il vous plait monter à bord! . Diogo Lopes acenando com a cabeça fez questão que Genoveva subisse primeiro a rampa. Hesitante, e com o calçado pouco apertado para uma tão estreita rampa que não consistia em mais do que uma simples tábua comprida, e levantando e segurando as saias, depois de se haver descalçado e subindo hesitante a rampa de quatro metros que levava do areal da margem do rio para dentro do barco varado na margem. Por trás, Diogo Lopes seguiu-a atento a cada passo de Genoveva, não fosse ela escorregar na rampa. No último passo Genoveva foi auxiliado por mr. Damien a entrar, e já sentindo nos pés a madeira a bordo do navio, Diogo Lopes apareceu logo de imediato, agradecendo a Monsieur Damien por os ter aceite a bordo. Genoveva olhando em redor para dar conta do que a caravela dispunha, vislumbrou uma série de grandes e pesados baús. Alguns maiores, outros mais pequenos. O que transportavam, ela não fazia a mínima ideia. —Monsieur Damien, peut-entre montrer votre charge, les vêtements avec les garments ? Mon fianceé cette très anxioux pout les experimenter pas. - disse no seu melhor francês Diogo Lopes a monsieur Damien. Apesar de Genoveva não perceber muito de francês, ela percebeu então do que se tratava - vestidos e joalharia para damas. Com os portugueses a enriquecer - eram as notícias que se estavam a espalhar pela Europa inteira - um mercador flamengo de roupas finas considerou que os ricos precisariam de novos trajes mais adequados para exibir a sua riqueza e condição de classe. Ainda embasbacada e sem conseguir reagir a tamanha dignidade que o marido lhe estava a conceder - mas não sendo uma donzela dada a vaidades - preferindo a virtude da palavra e do acto à ostentação, não resistiu no entanto à oferta que lhe estava a lhe concedida pelo marido - a possibilidade de novas roupas, bem mais finas e limpas do que as que estava habituadas a usar no solar.


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Monsieur Damien não perdeu e abriu uma das maiores arcas que tinha arrumadas junto à borda da popa. Ao abrir foi possível ver vários vestidos, das mais diversas cores, vermelho, branco, verde e azul. Mr. Damien foi ainda a caminho de abrir outro baú mais pequeno, que revelou no seu interior colares, fios de outro e de prata, outros de pérolas rematados por uma fina pedra preciosa. Diogo não hesitou em escolher o colar de pérolas com uma preciosa esmeralda trabalhada cravada na sua ponta e disse-lhe: —Genoveva, escolhe por favor um vestido que condiga o melhor possível com esta jóia. Não tenho pressa, escolhe apenas com a tua alma e o teu bom gosto algo que em que a combinação do vestido com esta peça seja algo nobre de ti e do nosso amor. Ainda sem palavras, e hesitante, a humilde Genoveva aproximou-se do baú onde uma série de vestidos do mais fino recorte estavam cuidadosamente dobrados. Tirou alguns vestidos para verificar o estilo - a moda das francesas não era propriamente algo que fosse do seu agrado - mas após experimentar três ou quatro vestido de cores diferentes decidiu-se pelo branco. Um vestido branco com pequenos rebordos pretos e um decote onde um colar adornado por uma esmeralda poderia resplandecer em todo o seu esplendor. O vestido verde também lhe caiu no goto, mas a cor verde da esmeralda ia ser esbatida na presença de um vestido da mesma côr da jóia. Genoveva colocou o vestido na sua frente para ter uma ideia das suas dimensões e Diogo Lopes colocou-lhe o colar por detrás do pescoço para ficar com uma ideia do que como a donzela ficaria na combinação dos dois elementos. Genoveva desatou inclusivamente a trança em que prendia o cabelo deixando o seu longo cabelo castanho arruivado cair-lhe por detrás das costas. Queria perceber como o seu amado iria sentir-se na presença da concretização do seu mais ansiado desejo - ver a sua amada e o seu amor resplandecer graças às mais nobres vestes e jóias que o mundo lhe acaba de oferecer. Sem perder mais tempo Mr. Damien entendeu que estava perante um sim dada a reacção dos convidados, algo que Diogo concordou com um acenar de testa, perante o regalo da esposa. A compra estava consumada. Para não perder mais tempo com os pormenores, Diogo entregou uma pequena bolsa a Genoveva e disse para a entregar depois ao senhor da embarcação. Genoveva percebeu que Diogo Lopes, proibido de fazer de compras por ser o director da alfândega - poderia haver uma denúncia de corrupção por parte de um rival - encarregava a esposa de concluir a transacção sem mais conversas. Genoveva e Diogo Lopes saíram do barco com a sua compra dentro de um baú fechado sem mais conversas e com um grande gesto de agradecimento por parte de monsieur Damien. Enquanto faziam o caminho de volta para a alfândega, Diogo ainda convidou Genoveva a entrar numa nau que trazia gaiolas com animais capturados na costa africana acabada de desbravar - entre eles criaturas ferozes, como uma leoa que ameaçava com rugidos e patadas na jaula toda a gente que se aproximava - e outras criaturas mais inocentes, como pequenos animais que pareciam coelhos mas que não saltavam - diziam que se alimentavam no pasto das searas, para além de pequenos macacos em cujas gaiolas se penduravam de cabeça para baixo buscando uma maneira de se escapar, mas o que mais despertou a atenção foi uma ave de penas cinzentas e rabo vermelho - de grande bico encurvado para baixo e olhos muito vivos com írises azuladas quase brancas - e o seu olhar hipnótico não parecia fazer com que a curiosa Genoveva lhe tirasse o olhar de cima - e a ave parecia arrepiar as penas do dorso ao sentir-se mirada. Genoveva aproximou-se lânguida mas paulatinamente da gaiola ave como para a acariciar até que a sua mão foi detida por um tripulante assustado, que suspirou de alívio por ter conseguido chegar a tempo: —Não lhe deite a mão, minha senhora, ia ficar sem ela se você lhe tocasse. Esta ave consegue despedaçar qualquer tipo de fruta com o bico, imagine o que lhe iria fazer à mão. —Mas parece tão meiga e inocente. —Uma coisa é parecer, outra coisa é realmente o ser. E este ave é um diabo disfarçado de anjo. —Então se é perigosa, porque é a conservam ? —Apenas para gáudio de quem vai ficar com ela. A ave já tem dono, e por isso temos que a transportar até ao seu dono.


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—E quem é esse dono, se me é permitido fazer tal pergunta !? —O filho de Sua Majestade, o princípe D. João.1 Genoveva ficou perplexa ao saber que iam oferecer semelhante criatura a uma criança de poucos anos de idade. Podia facilmente arrancar os dedinhos do pequeno príncipe, mas o rei ordenara que lhe trouxessem todos os exemplares de todos os animais exóticos que pudessem encontrar, para assim poder maravilhar a corte nas visitas que fazia pela Europa a mostrar as façanhas portuguesas nas descobertas por essa África abaixo. Uma espécie de Arca de Noé em que o objectivo não era salvar as inocentes criaturas do dilúvio, mas apenas para requintes de ostentação. —Bem, minha querida Genoveva, acho que de maravilhas por hoje é tudo, a não ser que queiras ir ver o barco que descarrega açúcar vindo da Ilha da Madeira e comprares tu própria um pouco da especiaria para o nosso solar. Também temos um barco cheio de fruta colhida nas novas costas descobertas. Queres ir experimentá-la !? Se calhar podemos cultivá-las nas ``nossas'' terras. —Terras do Ordem, querido. Não te esqueças, elas não são nossas. Não são nossas. São da Ordem de Santiago e continuam a pertencer-lhes. Enquanto eles concordarem em manter o acordo que fizeram com o teu bisavô. —O acordo no estado que o meu bisavô fez com eles, melhor, fez com o prior da Igreja de Santa Maria desta vila, que era o representante mais próximo da ordem que conseguimos chegar. E nós continuamos a honrar esse acordo. Os Franca têm sido desde sempre o garante que as Terras do Mato da Ordem se mantêm cultivadas e assim se manterão por muitas mais gerações dos Franca. Dos nossos filhos que ainda estão por nascer. Após esta frase, beijarem-se ternamente por uns poucos segundos. Apesar de Diogo saber que se já não era vulgar estar uma donzela no meio do porto, muito menos o era ver o nobre dignatário da alfândega em prazeres carnais no meio da azáfama do porto. Por isso Diogo não quis esmerar-se mais e conduziu Genoveva de volta para a praça da Ribeira e da segurança das instalações da Alfândega. Lugar da Portagem, era outro nome que lhe davam. Visitar o navio da fruta exótica ficaria para outro dia. Todas as semanas praticamente chegava um dessas naus, frutas que eram depois revendidas por mercadores castelhanos, aragoneses, genoveses, florentinos e venezianos. Diogo Lopes sorria na sua imaginação que sua santidade o Papa já teria tido o prazer de provar alguma desta fruta trazida de África pelos portugueses e que teria sido transacionada em Tavila. Com o imposto da exportação na alfândega a ter que ser devidamente cobrado. Quanto mais fino o possível consumidor final, mas Diogo se punha a reclamar - para não dizer regatear - com os mercadores das naus a cobrar-lhes um imposto mais alto tendo em conta o preço a que eles iriam vender ao suposto consumidor final - que podia muito bem ser Sua Santidade. Mas para Diogo o dia de hoje tinha sido um dia especial - ter partilhado com a amada as maravilhas que chegavam de todas as partes do mundo a Tavila era para ele um sentimento de realização que nunca havia sentido. Mais tarde, quando regressasse a casa, e ver a amada envergando as suas novas maravilhosas vestes e suas jóias, isso sim, era impossível de desviar da imaginação. —Querido, a que horas voltamos para casa ? - a simples interrogação fez Diogo despertar das suas fantasias. —Amada Genoveva, a manhã já deve ter passado, estamos ao meio-dia, volto contigo depois ao Benamur. Não posso abandonar o meu posto durante o dia. Depois, voltamos a ver-nos à noite, quando tiver terminado o meu trabalho na Portagem. —Mas querido, tu não querias que eu passasse um dia inteiro contigo ? —Sim, pedi, e falta honrar a minha outra parte do nosso trato. Mas aqui para a tarde, o que vou fazer é passar o dia sentado a esta mesa que tu vês a assinar papéis e a fazer contabilidade dos proveitos para sua majestade. O vedor da fazenda de sua majestade vai querer ver estes papéis assinados pela 1 Futuro

rei João II


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minha mão. Papelada, contas, tinta e penas, e mais nada querida e de vez em quando lá terei de ouvir uma reclamação de um mercador que acha que lhe estamos a cobrar imposto demasiado alto. Achas que consegues suportar o tédio de ficares sozinha a ser espectadora de tudo isto !? —Bem, assim sendo, acho que subirei ao Castelo, irei orar por nós e talvez visitá-los, a nova família do meu pai, já que eles não moram muito longe daqui. Genoveva saiu do Paço da Alfândega deixando Diogo entregue às suas tarefas. Sim, o pai, Álvaro, morava na rua da Mó Alta, depois do casamento, ainda não se contavam pelos dedos de uma mão o número de vezes que Genoveva o havia visitado. A eles, e aos meios-irmãos, filhos da nova relação do pai com Brites Valente, uma dama descendente de um antigo alcaide de Lisboa. Sendo bastardo de Carlos Pessanha, não tinha conseguido ascender à condição de fidalgo da casa de sua majestade, e uma vida de marinheiro sem ser ao comando de uma embarcação era uma humilhação. Vivia dos rendimentos que obtivera da herança que havia recebido do pai, e este do avô, o grande almirante Manuel Pessanha. Ainda era bom haverem nobres que cediam alguma herança aos seus bastardos. Genoveva tinha um irmão com o nome do pai, que tentara singrar na corte de Afonso V mas sem sucesso, mais uma vez, por culpa da condição do pai, os descendentes de Álvaro Pessanha tinham o acesso vedado, só após uma permissão de Sua Majestade seria possível regressar à condição de nobres. Genoveva entrou no Castelo pela porta da Alfeição, a que se tinha acesso subindo pela Rua Nova Grande, virando ali na esquina onde estavam os calabouços, tendo orado na Igreja de Santiago, e dirigindo-se para a Rua da Mó Alta para rever o pai, deu de caras com uma menina, pequenina, não devia ter mais de cinco anos, a subir a rua. Não a reconhecendo a princípio, mas viu que se tratava da meia-irmã pequenina, Simoa, Genoveva perguntou-lhe —Simoa, ainda te lembras de mim ? Sou a Genoveva ? Sou tua irmã! —Não, tu não és minha irmã! Só tenho mais uma irmã: a Joana. —Tens uma irmãzinha !? Não acredito ! Quero vê-la ! Diz-me onde moras, Simoa. Simoa tinha crescido tanto naquele espaço de dois anos em que Genoveva deixara a casa do pai. A mãe havia falecido há anos. E o pai procurara alguém de de entre a fidalguia de Lisboa quem pudesse substituir-lhe a querida mãe de Genoveva. —Moro ali! - disse a pequena, apontando para a casa que tinha sido sua durante 17 anos. Genoveva bateu à porta sem saber quem haveria de esperar, se o pai se a madrasta, e eis que surge uma distinta senhora, talvez da sua idade ou mais velha, a princípio não a conheceu, mas depois entendeu tratar-se de Brites Valente, a sua madrasta. Esta, reconheceu-a, imediatamente: —Que vens aqui fazer, Genoveva? O teu pai não está. Deve estar no solar dos Corte-Reais. E o teu irmão? Já conseguiu entrar ao serviço de Sua Majestade na Corte ? —Nada sei do meu irmão Álvaro - disse Genoveva - ele partiu para Lisboa e nunca mais deu notícias. E o que o pai está a fazer em relação aos Corte-Reais? —Não sei, coisas de senhores. Já sabes, donzela, eles é que combinam com que vamos casar. A nossa felicidade não é aqui chamada. Mas no teu caso, posso dizer que o teu pai teve muita sorte ao conseguir casar a filha primeiro com alguém importante como o comandante Rodrigo Da Arca, que infelizmente morreu e depois com um Franca. Os Francas sempre estiveram ao lado dos Pessanhas naquilo que fizeram por Portugal. O teu pai não tinha um grande enxoval para te dar no momento do casamento, mas o facto de seres filha de uma relação dele com a filha do saudoso Álvaro Vaz de Almada, isso abriu muitas portas. Mesmo dentro dos Francas. Estás feliz com Diogo, Genoveva !? —Ele tem feito tudo para me agradar, ainda hoje ele insistiu em que eu viesse visitar com ele os barcos que chegam ao porto. E acedi-lhe ao pedido, subi a bordo de um barco, e o Diogo escolheu um vestido e um colar para mim. Depois fez de modo para ser eu a tratar do pagamento. —Algumas coisas que aparecem no porto de Tavila são despudoradas. De certeza que não viste uma multidão de homens pretos com as vergonhas à mostra a ser descarregada como gado à força de


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chicote. —Não, não vi essa parte. O Diogo conduziu-me sempre pelo braço dele, levou-me por um caminho diferente para evitar essa parte. O que irão fazer com essa gente ? —Se são tratados com a força do chicote, é para serem tratados como gado. Desconfio sejam vendidos para os campos, trabalhos pesados, puxar arados, azenhas e mós, sendo só serem pagos com comida e com péssimas condições para dormirem. Escravos, ponto final. Mas ele levam-nos para outros sítios. Dizem que muitos senhores donos de maiores terras compram-nos aos magotes de dez ou vinte e vêm com grandes séquitos de homens soldados buscá-los, dão-lhes roupas para cobrirem as vergonhas e depois seguem à força dentro de grandes carruagens guardadas por cavaleiros com destino para os campos para onde depois vão ser forçados a trabalhar. —Como sabes tudo isso, Brites ? —O meu senhor conta-me tudo ele não me guarda segredos, e vejo tudo o que se passa no porto, são os Corte-Reais que estão a levá-los para as terras deles para depois os porem a trabalharem lá. —Nas nossas propriedades não precisamos de escravos. Todos os nossos trabalhadores, apesar de trabalharem em condições difíceis como pouco água, são bem cuidados e alimentados. E damos-lhe guarida quando não conseguirem voltar para a cidade. Alguns até já começaram a fazer casa junto da antiga estrada que divide o Benamur da Gomeira. Alguns já têm família e tudo. É pelo bem-estar deles que eu rezo, ao início e fim de todos os dias, perante o altar que temos no nosso solar do Benamur, dedicada à padroeira da família, Nossa Senhora a Franca. —Os Francas têm uma imagem de padroeira só deles ? Engraçado, eles não abrem mão da sua santa nem para o seu povo poder gozar da benção da Santa? —Tal nunca sucedeu porque não seja porque nunca tenhamos desejado. Os nossos trabalhadores são fregueses da paróquia de Santa Maria. Quando vão à missa ao Domingo é sempre na Igreja de Santa Maria em Tavila. Sabes que nós temos um trato com eles. —``Nós'' - já falas como se fosse uma deles - uma Franca - e de facto já o és. Casada há menos de seis meses, com um jovem nobre que te oferece dos mais dignos presentes. Acho que tiveste muita sorte, minha querida enteada, em teres encontrada um homem que te ama de verdade, se bem que o casamento que o Álvaro te arranjou seja um contrato com benefícios de parte a parte. O amor verdadeiro não vinha lá incluído ! Como é que ele entrou aí para dentro ? —Não sei. Eu ainda estava padecendo pelo pesar obrigatório pela morte do Rodrigo da Arca, meu primeiro marido, mas ele nunca me amou de verdade. Foi como tu dizes, um contrato do pai para tentar recuperar a glória da família. E logo com alguém com a importância dele. Pena que não tenha durado dois meses. O Rodrigo foi convocado comandar a armada nem um mês tinha passado. Aquilo que eles estão a fazer no Norte de África, morrem tantos homens nossos para mantermos umas fortalezas minúsculas e difíceis de aceder. Depois para mantê-las temos que mandar todas as semanas abastecimento pelo mar. —Tás bem, informada, Genoveva. Agora sou eu que te pergunto quem te conta todas essas coisas. É o teu novo marido ? —O Diogo não me esconde nada. Ele adora contar histórias de como consegue ter êxito em regatear um valor mais elevado para o imposto aplicado sobre o açúcar que chega da Madeira e depois é exportado para Itália. O Diogo insiste com os exportadores que como o Papa pode vir a ser um dos consumidores do açúcar o imposto a aplicar tem de ter isso em conta. —E se sua santidade não tiver dentes nem língua, de que lhe vale o açúcar !? Como aqueles padres velhos que já nem olham para nós e só sabem falar latim, não se percebe nada do que dizem. —Brites não digas disparates - corrigiu-a Genoveva.


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—Se o Papa vai apreciar o açúcar e o mercador vender ao preço mais alto possível, é perfeitamente justo ao Diogo ter de cobrar um imposto tendo em conta quem sejam de alta senhoria os eventuais compradores da mercadoria do mercador. - continuou Genoveva. —Tenho de ir, daqui a bocado é tarde e o Diogo deve tar a perguntar a por mim, vou descer do Castelo e voltar à Ribeira, talvez noutro dia eu convido-vos a visitarem o Benamur connosco, vou insistir junto do Diogo para que vocês nos venham visitar. É tão linda, aquela vista desde o vale… —Foi uma prazer rever-te, minha linda. Pena não tenha sido tua mãe.. —Foi também pena minha. E eu queria ter mais tempo com as minhas novas manas, como a Simoa, que diz que não me conhece. E ela disse-me que tem uma irmãzinha mais nova, Joana. —Sim, a Joaninha, só tem três meses, e está entregue a uma ama. Quando passares aqui outro dia, poderás vê-la. E quando pensas em teres um filho teu e do Diogo, Genoveva ? Apanhada pela surpresa da inesperada pergunta, Genoveva corou e tentou esboçar uma reacção: —Não sei o que o Diogo pensa, Brites, ele e eu temos estados tão ocupados: eu a tratar das Terras do Ordem, ele na Alfândega. —Há-de chegar o vosso tempo ! Tenho a certeza ! Tenta entretê-lo e dar-lhe mais atenção. —É difícil, ele adora o trabalho dele, contar os contos de cruzados e réis que vão para o baú de sua majestade, mais a criatividade dele a regatear com os mercadores. Todos os dias ele vem com as maravilhas e histórias dos navegadores que vêm dessa Europa fora e não fala de outra coisa. Começarmos a fazer uma família ainda não o preocupou. Sabes que eu fiz um trato com ele para que em troca de passar um dia em Tavila, para me mostrar as maravilhas do porto, conseguir que ele dispense um dia do trabalho dele para dar atenção às terras da Ordem !? —Esperta Genoveva, se fosse eu a tua mãe teria-te elogiado por essa proposta de génio, mas não sou. —Bem querida madrasta, trata bem das minhas irmãs, um beijo, até um dia. Um beijo também para o pápá. —Assim ficará entregue, Genoveva - despediu-se Brites com um beijo na testa da enteada. Para descer , todos os caminhos ajudam - lembrou-se Genoveva ao descer das estreitas e íngremes ruas do castelo - tal como o pai, Álvaro, o nome da família Pessanha tinha que ser recuperado. Para cair, não é preciso de ajuda. Para subir, aí, é preciso ajuda que, se não aparecer, é escusado continuar a insistir! Genoveva desceu do castelo saindo pela Porta Nova, cuja saída era mesmo junto à margem do rio, mas a jusante da Ponte, indo ter à Rua dos Pelames, onde um imenso estendal de peles de animais se encontrava a secar ao sol, para depois, serem usados como couro pelos alfaiates ou para uniformes para os marinheiros. Para chegar à Alfândega, teve que passar o Arco das Ameias da Torre do Mar, que marcava a entrada para a praça da Ribeira. Lá, juntamente com outros, ainda se encontrava apeado o cavalo de Diogo que, provavelmente, a esta hora, talvez cinco da tarde em Março, ainda estaria de volta das suas tarefas, a tentar ``extorquir'' o melhor que podia para o Tesouro Real dos valores que se transacionavam no Porto de Tavila. Genoveva entrou directamente para o arco do edifício da Alfândega onde tinha mesa o amado. Viu Diogo sozinho a escrevinhar e com a ajuda de um ábaco, provavelmente a fazer somas dos proveitos de sua majestade naquele dia. Estava tão abstraído na tarefa que nem deu pelo vulto de Genoveva a entrar. Muito lenta e languidamente, Genoveva não quis atrapalhar o marido e fez menção de sair até que alguém imediatamente a entrar naquele momento precisamente no salão da alfândega fez com que Diogo Lopes encarasse a amada: —Genoveva! Chegaste, já cá estás, querida. Estava quase aqui a concluir as contas das receitas de hoje. Este papel que vai sair que está das minhas mãos chegará as mãos do vedor da Fazenda. Espero bem que ele não caia para o lado, vai achar que estou a exagerar. Mas o número é o correcto: vinte


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mil réis só para fechar a semana. Já vai dar para financiar a nova cruzada que o papa quer fazer para libertar Constantinopla. Os malditos otomanos profanaram-na com outro nome: Instambul. O papa declarou cruzada contra a ameaça otomana a espalhar-se no Mediterrâneo. —Querido, já te ouvi falar do papa hoje só a propósito de quereres regatear com um mercador veneziano o preço a cobrar pelo açúcar da Madeira. Achas que os mercadores vão continuar a ter de aceitar essa história de quem são os lábios que vão provar o açúcar !? —Isto não vai acabar, para a semana arranjo outra artimanha, e vou ser ainda mais regateador, para ver se fecho a semana com mais de meia centena de milhares de réis. Vale de tudo, se for por nosso senhor Jesus Cristo ou por Sua Majestade. —Pensava que ias dizer por Nossa Senhora a Franca, a padroeira da família. —Família !? Bem me dizes. Por nossa Senhora A Franca, também, ainda bem que me lembraste. —Bom, querida, pelo nosso trato, fico-te a dever passar um dia junto de ti a velar pelas Terras da Ordem. Já tratei de tudo, e depois de consultar o alcaide Vasco Anes Corte-Real, vai então ser o teu pai Álvaro Pessanha, que amanhã vai dirigir a Alfândega, em minha substituição, Vasco Anes assentou que sim e não vai ser necessário ir mais acima, como os ouvidos de sua majestade, para confirmar a nomeação, o teu pai vai ter a honradez de trabalhar connosco. Não vai voltar a ser comandante de uma nau, mas vai poder, como eu digo, ``saborear'' dos frutos das viagens quando elas chegam em Terra, enquanto despachante alfandegário. Diogo continuou: —A única coisa que é preciso para este trabalho é minúncia, paciência, saber escutar, fazer contas com o ábaco, e, é claro, pesar, se for caso disso. O teu pai, apesar de bastardo, tem educação, e eu vi que ele tom todas essas qualidades. Por isso, e por vontade de D. Vasco Anes, e com o meu acordo, ele vai amanhã assumir o meu lugar, por um dia. E acho que vai saber bem estar à altura da função. Regatear acho que também lhe está nas qualidades. É preciso ter criatividade na altura de confrontar os mercadores com os seus proveitos por usarem o nosso porto. Não vais ter problemas em vê-lo aqui na alfândega e a tomar conta do expediente enquanto amanhã vamos ver o que podemos fazer pelas Terras da Ordem. E tendo assim terminado o dia na alfândega para o casal, foi vê-los a subirem para o cavalo apeado na praça da Ribeira e regressarem, à luz vespertina, para o seu solar nas Terras da Ordem. Uma vez mais o Gilão respondeu-lhe com os tons carmíneos com os vultos tremeluzentes dos mastros das caravelas ancoradas no Gilão. Contra o crepúsculo revelavam o esplendor de toda uma vila por onde passavam grande parte das riquezas do reino. Diogo Lopes havia concretizado o seu desejo e agora voltava feliz e realizado com a esposa nas suas costas por ter conseguido atingir o seu tão ansiado desejo.


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