UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR
Departamento de Comunicação e Artes
8½ (1963) e Inland Empire (2006) Sensações e emoções na poética das obras
Sandro Martins Branco 29425
Análise de Filmes 2011/2012
Docente: Profª. Drª Manuela Penafria
Covilhã, 5 de Junho de 2010
Índice Introdução Analise vs. Critica Escolha dos filmes para analise Analise dos filmes Metodologia Sensações e emoções na poética das obras 8½ (1963), Federico Fellini Inland Empire (2006), David Lynch Duas obras separadamente idênticas Conclusão Bibliografia
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Introdução Analise vs. Critica Apesar do seu sentido ser muito abrangente, e defendido de diferentes formas, existem pontos que se culminam como um, no que toca a definir, a análise de filmes. E apesar de para muitos, a análise não ser mais que uma crítica de cinema, a diferença entre estes dois termos é demasiado grande. Não querendo dizer, que uma, não se poderá aliar á outra. No entanto, não é isso que na maioria das vezes acontece. A análise de filmes, estando longe da crítica comum de cinema, pretende aprofundar um conhecimento mais enraizado por de trás das obras cinematográficas, propondo-lhe um sentido, ou uma interpretação. Não é competência da análise fabricar comentários superficiais sobre uma obra, ou determinado excerto da mesma. Neste caso, seria a crítica a responsável. Portanto, é natural que, pretendendo analisar um filme de forma mais profunda, se tenha de recorrer a algumas metodologias, mesmo não sendo estas universais, e a um sentido critico muito específico, voltando-se sempre para uma das regras essenciais da análise, a decomposição (da sequência em cenas, das cenas em planos, e a própria decomposição dos planos… referente á imagem, e também referente ao som, voz in ou off) e a sua interpretação. É extremamente importante, não desviar do filme em questão, isto é, evitar a construção de uma outra obra cinematográfica, mas sim decompô-la e interpretá-la sem o uso e criação de observações desnecessárias e que não trariam nada á interpretação do filme em questão. A diferenciação, da análise e da crítica, centra-se exactamente neste ponto, dado que a critica tem um objectivo de criar um juízo de valor sobre a obra, no que toca á sua beleza, contexto da história, veracidade da história (refiro-me ao facto da história fazer acreditar e não ao facto de se tratar de um caso verídico). Então, não é o discurso crítico que se encontra mal, ou que merece ser desrespeitado, pois cada pessoa, cada espectador, tem o direito a ter uma opinião sobre determinados assuntos inseridos no filme. No entanto, esta crítica, poderá beneficiar, se feita, com uso aos métodos da análise, por assim dizer, se prescindir da superficialidade, decompondo e interpretando essa decomposição. No processo de interpretação do filme, se a critica não mostrar claramente que pretende interpretar a partir do modo de análise de determinados objectos, poderá cair numa crítica não baseada nesse mesmo filme e que se poderia aplicar a qualquer outro filme, que em muitos casos, é o que acontece. Portanto, a análise terá de partir do filme em estudo, e basear a sua interpretação a partir da decomposição anteriormente feita, para que no caminho da sua reconstrução não abdique dos objectos presentes nessa mesma obra. Fugindo um pouco á área em questão, que é o cinema, mas de certa forma, para explicar o valor da análise, recaio um pouco sobre a pintura.
A pintura no seu grande esplendor, não poderá requerer uma crítica, apenas baseada na forma, ou cores usadas, terá de ter, a auxilia-la, uma análise á composição, incluir-lhe as cores e a sua forma, mas também, o sentimento ou emoção que proporciona a quem a observa, a luz, o enquadramento, etc. Obviamente que não é possível de certa forma analisar um quadro no seu global, pela simples razão que cada observador terá uma interpretação diferente. No cinema, acontece exactamente o mesmo. Para além do que referi em relação á diferença entre crítica e analise, existem também parâmetros dentro da análise que se distinguem, ou que não se podem enquadrar e falar como absoluto. Falo portanto dos métodos utilizados. Não podem ser iguais para toda a obra cinematográfica (esta teoria, pode também ela ser aplicada a outro tipo de analise artística). Num caso muito específico, e mais uma vez fora da análise de filmes, seria a comparação de quadros de Van Gogh e Picasso, usando uma mesma grelha de interpretação. Naturalmente que é possível, mas as duas obras sairiam prejudicadas e seriam inferiorizadas uma á outra. Voltando ao cinema, duas obras cinematográficas distintas, são possíveis de ser comparadas, analisadas com uma mesma grelha, mas sairiam a perder, pois não se abordaram, com certeza, nos dois casos, os pormenores primordiais de cada uma. Susan Sontag, defende no seu texto “Against Interpretation” editado em 1961, que a experiencia obtida, proveniente de uma obra artística, se perde com este tipo de análise. Reduzindo essa experiencia e a própria criação, a algo sem sentido e superficial, em muitos dos casos, tornando-as apenas como um meio comercial. Tratando-se de uma obra cinematográfica, o que Susan Sontag quer transmitir, é que não se trata apenas de historias e diálogos. Pois a mesma história e os mesmos diálogos, podem ser exibidos de forma muito diferente, tratando-se de realizadores diferentes, mudando planos, enquadramentos, movimentos de câmara, luz, etc… a experiencia assistida nestes casos, altera-se completamente. Podemos, para melhor perceber, ver os Remakes que cada vez mais, são produzidos (não são possíveis duas obras sequer idênticas). Deve-se então analisar de forma mais formal, não nos deixando cair na redundância do superficial. Não sendo a análise, uma actividade recente, Eisenstein (supostamente o primeiro a efectuar uma analise), reflectiu sobre o seu filme, escrevendo uma análise para se defender das acusações de pertencer ao Formalismo e para defender a pureza da linguagem cinematográfica. Com isto, deve ser notado que a análise deve pertencer a um campo a priori, já pensado, analisando objectivamente determinados planos, ou objectos no plano que transcrevam a mensagem de quem o analisa, separando ou aproximando de determinadas obras.
Escolha dos filmes para analise Como referido anteriormente, o termo analise aplicado ao conteúdo cinematográfico, é abrangente e complexo de explicar, principalmente de normalizar. É também muito pessoal, isto é, não deixa de ser uma interpretação pessoal. Neste aspecto, passa também a fase da escolha da análise, o porquê da escolha de determinados filmes, ou excertos. Neste caso, a minha análise recai sobre os filmes, 8½ (1963) de Federico Fellini, e Inland Empire (2006) de David Lynch. Devo assumir a culpabilidade desta escolha, devido às sensações e emoções em mim criadas e trazidas pelas duas tão diferentes obras. E obviamente o seu tema interno, o cinema. Apesar de um ser a visão e falta de criatividade momentânea de um realizador, confundindo de alguma maneira o espectador, com o que serão os seus pensamentos e desejos, o outro é a recusa ou a dificuldade que um actor, em determinados papeis, tem em separar a realidade da ficção (da rodagem do filme). Ambos, transmitem sentimentos, e emoções ao espectador, mas claro, cada um à sua maneira. O recurso á comédia (mesmo esta, sarcástica e negra), ao absurdo e exagero para conduzir o espectador a certas ideias, incluindo, colocá-lo no mesmo sentido psíquico da personagem do filme. (que por sua vez é uma autobiografia do próprio Federico Fellini). David Lynch, por sua vez, proporciona um interminável puzzle e labirinto ao longo do filme, carregado de momentos assustadores, surpreendentes e estranhos, muitos deles, evidenciados pelo som. Neste caso, a banda sonora, determina momentos do filme para proporcionar determinadas sensações no espectador, criando algumas emoções no decorrer da obra cinematográfica, mas na análise propriamente dita, analisarei com mais pormenor. Como em vários sentidos, a defesa e a recusa do cinema como um meio artístico, é grande, e com estes filmes, pretendo reavaliar esta dúvida com uma análise, percorrendo as emoções e sensações criadas nos dois filmes. O que pretendo analisar, será portanto, a transmissão desses sentimentos e emoções do filme para o espectador, das diferentes formas que os realizadores nos mostram, evidenciando o que neles permite tal transferência de sentimentos e emoções. Devo colocar portanto as seguintes questões: Quais as Emoções/Sentimentos mais presentes nos dois filmes. Em que sentido, as duas obras proporcionam o mesmo tipo de sentimento/emoção, e como foram construídas?
Analise dos filmes Metodologia Definidos os filmes a analisar, devo prenunciar-me sobre a metodologia de análise. Dado o meu fascínio pelas sensações e experiencia fílmica que as obras cinematográficas podem oferecer, comprometo-me a efectuar uma analise poética sobre as obras escolhidas. Como apreciador de arte, e vendo, claramente, o cinema como um meio artístico, independentemente da crítica que lhe é feita, por normalmente ser uma produção auxiliada a grandes quantias monetárias, envolvendo muita gente, com assisto de produtores e produtoras, não deixa de ser uma criação estruturada, pensada, e com a funcionalidade de criar no espectador determinadas sensações. É uma composição, tal como a musica, ou até um quadro, que apesar de serem encomendados muitas vezes, tem o compositor, pintor ou realizador como principal mentor artístico, que procura levar a sua obra para o seu subconsciente mais artístico (obviamente, não descorando das outras pessoas envolvidas na criação dos filmes, que também eles deixam a sua marca artística no resultado final da obra). Irei portanto, analisar o 8½ de Fellini e Inland Empire de Lynch, usando a análise poética. A criação destas obras, representam duas épocas diferentes, tendo portanto, em certa medida, um realizador, influenciado outro (nomeadamente, Lynch influenciado por Fellini). Em primeira instância, irei enumerar algumas das emoções ou sensações que as obras proporcionam, sem grande exactidão, mas para criar uma ilusão da diversidade das obras e da veia artística destes autores. Irei, sim, aprofundar-me nas emoções e sentimentos que as duas obras têm em comum e como é claro, a forma como os dois realizadores as criaram (identificando, em primeira mão, o tipo de composição presente em cada um).
Sensações e emoções na poética das obras Antes de começar qualquer tipo de comparação, ou aproximação das duas obras cinematográficas, pretendo analisar um pouco cada um dos filmes e só então, partir para uma análise em conjunto.
8½ (1963), Federico Fellini Tratando do filme 8½ (1963), de Federico Fellini, e olhando para já de uma forma bastante geral, podemos caracterizar esta obra, como estrategicamente organizada em função de uma composição poética, e passo a explicar. A sua totalidade, não pretende, de forma alguma, criar sensações no espectador, mas sim, impor-lhe um estado de espirito, no qual, somos movidos para a alegria ou tristeza, consoante o acontecimento dos factos. Fellini, explica a dificuldade e/ou a recusa do protagonista, neste caso, um realizador, de produzir um filme, dada a sua demanda pelo mundo material e real, e o mundo imaginário cheio de memórias. Não o faz, explicando o que quer que seja, apenas nos mostra, consoante as ideias e memórias vão surgindo. Mas esta composição, não é tão ao acaso assim. A forma, serena e divertida como a personagem está construída, leva-nos rapidamente a sentir uma empatia por ele. De uma forma muito singela e simples, quando no início do filme, entramos pela primeira vez no jardim, ou fonte, como lhe chamam; os planos estão cheios de gente banal, sem interesse, e a cor predominante é o branco, a câmara deambula pelo jardim em ritmo lento enquanto nos mostra o que nele está presente. Este movimento, é acompanhado por uma música clássica, muito épica que mais faz lembrar uma arena gigante em busca do nosso herói. Todos os que olham, parecem procurar algo, e de certa forma, estão. Como nós espectadores, estão reticentes á espera que o protagonista entre em palco, mas enfim, a música termina, com um plano geral em que praticamente todas as pessoas caminham para o mesmo lado, como que entrando na tal arena. A personagem não aparece. Imediatamente, começa uma música nova. Há então um pequeno sentimento de angústia e de desilusão. É então, com surpresa, após passarem algumas pessoas pela câmara (desta vez um pouco mais parada, corrigindo o enquadramento, para manter cada uma das pessoas no quadro), aparece Guido, o protagonista, vestindo um fato preto, distinguindo-se de todas as outras pessoas em redor. Esta surpresa, surge de forma singela, mas cresce em nós um sentimento de alegria e realização. Queremos conhecê-lo. Complemento com mais um pequeno exemplo que acontece, logo a seguir ao sonho, (protagonizado por Guido, seus pais, o seu produtor e a sua mulher), aos 22 minutos de filme, em que Guido de forma alegre, dança enquanto caminha pelo corredor. O momento, deixa de alguma maneira o espectador alegre, pois é um dos momentos de humor que Fellini nos proporciona. Pára em frente a um elevador e assim que este abre, entra
cumprimentando quem nele se transporta. Em seguida, á um momento constrangedor criado pelo silêncio, e evidenciado pelos grandes planos nas caras das personagens (pertencentes á religião católica). Há de certa forma um desprezo por parte de um dos elementos dessa comitiva (o padre), e uma arrogância da parte de outro (assistente do padre), mesmo apesar de outro dos passageiros desse elevador, que sorria para Guido, não é suficiente para que nos fazer sentir confortáveis. É então que nasce um sentimento de dúvida, ou aliás, de tristeza, por se notar que dentro daquele elevador, estão presentes pessoas que não partilham do mesmo que nós, da empatia por Guido. Quando corta novamente, desta vez, já fora do elevador, Guido, aparece de forma descontraída outra vez, iniciando, mais uma das suas caricaturas humorísticas, retirando de nós o peso triste da cena anterior. Quero com isto dizer, com estes pequenos exemplos, que Fellini não construiu o filme em volta de uma sensação momentânea, aliás, este sustenta as cenas para que o sentimento seja mais prolongado.
Inland Empire (2006), David Lynch Ao contrário do 8½, David Lynch, constrói, com o Inland Empire, uma composição baseada nas sensações, isto é, organizando a sua obra usando uma estratégia denominada de composição estética. Este tipo de composição, que encontramos ao longo do filme, está organizado a partir de elementos estéticos, como a luz, os cenários, dimensão do plano e o próprio enquadramento, para que no exacto momento, proporcione uma sensação no espectador. Para exactificar esta afirmação, dou dois exemplos muito curtos. O momento do filme, começa com o olho de uma pintura de um palhaço, mas o plano não é estático, é-nos dado um travelling á retaguarda, afastando-nos do quadro. Causa um efeito de estranheza, dado o plano anterior (de um dialogo no exterior, que termina num grande plano na cara de um dos homens). Enquanto este travelling está a ser feito, começa-se a ver uma árvore (como sobreposição de imagens) que se vai avivando em relação ao palhaço, num ambiente muito escuro, iluminada com uma luz amarela. Quanto mais nítida a imagem fica (da arvore) melhor se vê, que alguém está próximo dela. Aparentemente, parece uma imagem normal. No entanto, é aqui que está a espectacularidade deste curto plano, a personagem, encontra-se tão longe, que não se tem a percepção se vem a andar na nossa direcção (conduzida por um caminho de terra), se vem a correr e em câmara lenta. Não lhe vemos expressão. Por isso, assumi-mos que essa informação nos chegará, apenas basta esperar. E com razão. Desde o início desta cena, o foco de luz que, iluminava a árvore, está afinal, apontada á personagem, funcionando como um foco de luz de um circo (redonda, onde acompanha sempre a protagonista).
Esta cena, tem certa de 29 segundos, quanto nos encontramos aos 21 segundos, passa um pássaro, ou um insecto (não o digo com clareza, pois é muito rápido) muito próximo da câmara, e a personagem, já denota alguma insegurança. No segundo seguinte, já reparamos que se encontra extremamente assustada. Ela vai correndo, em câmara lenta, muito assustada… estes pormenores, aparentemente facilmente identificáveis, só se percebem com a passagem da pequena cena. Aos 28 segundos, a cara dela, aparece finalmente nítida, e é aqui que surge um arrepio no espectador. Mas Lynch, não dando tempo para nos acostumarmos, transforma a inquietação da personagem, alterando a velocidade da câmara (de Slow motion para fast forward), conjuntamente com um som bastante metálico, que está na base do susto criado, movendo-a para um plano muito apertado carregada de luz na cara. A construção desta cena, resume-se á luz incidida na personagem, na profundidade do plano, que é muito grande, não permitindo ao espectador perceber o que se passa, isto é, como está a personagem, como se dirige, e para onde se dirige. O som é extremamente baixo e abafado, ouvindo-se apenas um som de um bombo grave e que se expande quando passa o insecto. Quando Lynch, nos mostra finalmente, que algo acontece de estranho, não dando tempo, constrói a cena dele, de forma mais rápida, incidindo a luz na cara da personagem principal, que está bastante assustada. Assustando-nos também. Como outro exemplo, a cerca de 1hora e 5 minutos de filme, a personagem principal entra em casa, lentamente, percorrendo os corredores, enquanto a música ambiental, composta por sons demasiado graves, que consegue só por si arrepiar qualquer um, até chegar ao quarto. Este encontra-se vazio. Ela olha para o candeeiro e então vê o marido deitar-se. A transferência de um plano objectivo para plano subjectivo, cria em nós um sentimento de medo, uma angústia e ansiedade pelo que poderá ocorrer. Estamos neste momento, naqueles corredores, David Lynch coloca-nos (espectadores) na cena. Os planos são extremamente apertados, o que ajuda nesta composição medonha e assustadora. Até a protagonista entrar no quarto, a cena é composta por uma luz natural, e assim que entra no quarto, encontramos candeeiros com luz intensamente laranja. Como disse em cima, antes de ver o marido deitar-se, o quarto encontrava-se vazio. Este momento é uma surpresa assustadora e inquietante. Assim que o marido, após deitar-se, desliga a luz do candeeiro, o plano em seguida é muito mais negro, e escuro, sendo uma panorâmica pela sala da casa. Aqui começam umas batidas mais fortes na banda sonora musical, acelera-nos o coração, e carrega-nos de receio. O tal medo. Voltamos novamente ao corredor, ainda escuro, e vemos a personagem principal entrar dentro de outro quarto. Assim que entra, somos novamente presenciados por uma luz vermelha, que provém da frincha da porta aberta. Lynch mostra-nos um candeeiro enquadrado no meio do quadro. É a única luz visível.
A lentidão destes planos e o jogo de cores, do natural, para o laranja, o negro e em seguida o vermelho, faz-nos pensar que algo irá acontecer, criando então uma tensão enorme, e medo. Um cruzar de planos, entre a protagonista e o candeeiro (desta vez, já filmado em dutch angle), intensifica a cena, com a fortalecimento da sua fonte de luz, enaltecendo um pouco o medo que já vinha a ser criado anteriormente. Quando o plano corta para a cara da protagonista, novamente, esta, é evidenciada com um foco de luz tremido, que lhe tenta apontar a cara. O culminar da cena, avizinha-se. Volta para o candeeiro que desvanece e énos dado uma sobreposição de imagens, em que aparece o suposto amante da protagonista. É aqui que Lynch ganha. É aqui que pensamos que tudo não passa de um medo sem sentido e começamos a acalmar-nos lentamente… mostra-nos a personagem principal novamente, e apesar do candeeiro, ter voltado a ganhar intensidade, apenas nos remete para uma recordação, para uma lembrança, ou até, um desejo. É assim que nos sentimos, (um pouco) mais calmos e tranquilos. O que presumivelmente tento explicar, vem de seguida. Neste jogo de emoções e sensações, depois da tensão criada e o acalmar da cena, mesmo que não seja na sua totalidade, Lynch volta a filmar o candeeiro num plano mais afastado que os anteriores, e com o auxilio de sons electrizantes, como curtos circuitos e rápidos flash’s de luz azulada, o realizador, assusta o espectador. Criando-lhe assim a sensação de medo, provocando o sobressalto ou até o grito agudo (reacção física da sensação de medo). David Lynch, portanto, levou-nos de certa forma, através das cores, formas muito quadrangulares, da luz e de planos muito apertados, a sentir organizadamente determinadas sensações, numa composição estética, para que no colmatar da cena, o nosso corpo, reaja da forma pretendida.
Duas obras separadamente idênticas Como exemplifiquei em cima, cada um dos filmes, tem a sua especificidade, os seus objectivos, e pormenores, que os tornam nas obras únicas que são. Mas terão elas pontos em comum do ponto de vista das sensações e emoções? É nisso que me irei focar para este subcapítulo. Em Inland Empire (2006), uma das cenas finais, David Lynch cria uma enorme emoção surpresa. A personagem principal, após “esfaqueada” com uma chave de fendas, deambula pela cidade de Hollywood em busca de ajuda. Lynch usa o plano subjectivo para destacar a velocidade e movimento, e o plano objectivo para nos mostrar o local (será este plano que levará a cena analisada, para as sensações que pretende criar). Quando já as suas forças são poucas, cai para o meio do chão, mesmo no meio de três sem-abrigo (uma senhora negra de um lado, um homem negro e uma asiática do outro abraçados). A estranheza começa quando a senhora negra lhe diz algo como, “Você estás a morrer, senhora”, e apenas a deixa lá. Os sem-abrigo iniciam um diálogo sobre Pamona, sobre família que têm em Pamona e pelo facto de poderem ir para lá quando quiserem. A mudança de planos é feita, com o jogo de campo contra campo, raramente mostrando a protagonista que está deitada no chão a esvair-se em sangue. Conseguimos sentir o tempo, que é um grande aliado da construção da surpresa. Prende-nos, e incomoda-nos. Ele constrói esta cena, para que os diálogos longos, e o jogo campo contra campo, sejam feitos de forma a iludir que, só aquelas pessoas interessam á história. Há um momento, em que o homem negro, fala, e a câmara aproxima-se dele, mostrando a rua da cidade… eles estão realmente no meio da cidade. Quando a rapariga asiática (que tem maior protagonismo nesta cena) fala em cães, vê-se finalmente, a protagonista, que sofrendo, vai um pouco á frente do passeio, vomitar e tossir sangue, enquanto os sem-abrigo, atentam o acontecimento com curiosidade. O som que se ouve, é o da cidade (pessoas, carros, etc…), e nada mais. Quando termina de cuspir sangue, volta á sua posição, voltando a cara para cima, inundando o seu sofrimento na cena. Sendo este o objectivo, acredito, esta cena, não cria qualquer tipo de tristeza ao espectador, apenas um incómodo, muito, graças á normalidade que as outras personagens têm em falar no meio daquele acontecimento. A câmara funciona como os olhos do espectador, curioso, e muito em cima do que na cena se passa. A senhora negra, diz-lhe algo como “Tem calma, tu só estás a morrer” e mete-lhe um isqueiro em frente á sua cara (da protagonista) dando-lhe brilho. É neste momento que a música inicia, portanto, é aqui que a carga dramática é inserida. Se até aqui vimos algo, extremamente violento, dramática, mas que nada teve senão diálogos e estranheza desses diálogos, é com o inicio da música que sentimos pena da personagem, que sentimos que
algo grave acontece. Ao mesmo tempo, sabemos que a protagonista, se sente em paz. É uma transformação de uma cena estranha, numa cena triste. Quando a rapariga, finalmente morre, o isqueiro desliga-se e a música aumenta um pouco. É o encerrar da cena, e o realizador, inicia um travelling á retaguarda, traduzindo, exactamente, como a parte final do acontecimento. Mas a estranheza, isto é, a surpresa surge a quando nesse travelling, se mostra uma das câmaras de rodagem, e a mudança do tom da música para sonoridades menores, deixando para trás a música triste. Após o anúncio de “corta” do realizador (dentro do filme), os pressupostos actores, que fariam de sem-abrigo, levantam-se, cumprimentam-se e vão embora. A actriz principal, continua deitada no chão. E pouco tempo depois, deixando passar mais algum tempo, colocando-nos suspensos no que irá acontecer, a personagem principal, levanta-se. Neste momento, já estamos num estúdio e não na cidade. É neste instante, que David Lynch cria, para além de uma surpresa, um autêntico instinto nervoso no espectador, que, mesmo não entendendo o filme, pensa entendê-lo. Lynch cria esta emoção usando campo contra campo, planos muito aproximados, diálogos muito distantes dos acontecimentos, início da música no momento oportuno para instaurar pena e tristeza pela personagem e no final, a revelação e mudança de cenário. Em comparação, do filme de Fellini, escolhi, uma das últimas cenas, quando todos os carros, se movimentam para o centro de atracção, onde Guido, irá falar sobre o filme que está para realizar. Guido aparece, num plano geral conjunto, com o seu escritor e com produtor. Inicia a estratégia de surpresa com a acção da personagem principal, que age com um miúdo que tenta fugir do que não quer enfrentar. A câmara apanha-os á saída do carro, faz uma panorâmica e volta a acompanhá-los quando estes, já em frente á câmara, caminham. Quando Guido, está a tentar fugir, baixa-se, deixando o seu corpo morto e é aí que há um corte para a nuca de Guido, mostrando as pessoas ao seu lado num contra-picado. Transmite a emoção, apesar do acontecimento, alegre e impotência do personagem. É uma cena humorística apesar de tudo, mas é também aqui que começa a grande confusão, de perguntas e mais perguntas. Repórteres, amigos, produtor, interessados, perguntam todo o tipo de perguntas, mas Fellini, não construiu a cena de forma normal, isto é, inundou o som com as perguntas, colocando praticamente a câmara como um plano subjectivo (apesar de falso subjectivo), onde os intervenientes falam directamente para nós. Sendo nós os acusados, os realizadores, sendo nós quem se vai sentir incomodado com tantas perguntas. É criado então, um sentimento de desespero. Tal como no Inland Empire, apesar de no 8½, esse momento ser criado com perguntas, barulho, confusão e no Inland Empire, ser construído pelo passar do tempo e dos diálogos desenquadrados com a cena. Em ambos os filmes, nós sentimos as repercussões, do que a personagem principal atravessa. Há um estado emocional de confusão, quando Fellini, atravessa o público e todas as pessoas, em busca de Guido, apanhando-o e perdendo-o. Quando dois repórteres começam
a fazer perguntas directamente para a câmara, e esta foge deles, quando o consegue fazer, vemos que Guido, já vai do outro lado, isto é, as perguntas foram dirigidas a nós. A música, é muito acelerada, o que cria ainda mais esse tipo de sentimento. Apesar de esta construção ser aparentemente diferente do filme de David Lynch, existem muitos pontos que se unem, mesmo que seja pela sua contrariedade. Onde há calma num filme, existe confusão no outro, onde há alegria, no outro existe tristeza. No entanto, o sentimento final é o mesmo. Sentimos pena, queremos que por momentos, dêem a atenção correcta ás duas personagens dos dois filmes, queremos saber como vão as personagens livrar-se do que lhes aconteceu. A câmara, durante a cena, continua a andar pelo espaço, e as pessoas continuam a perguntar-nos coisas. Como num outro excerto, analisado em cima, uma personagem, dirige-se á câmara para dizer de forma doentia, que Guido não tem nada a dizer. Este método, cria-nos a tal tristeza falada já anteriormente. Em que acreditamos, e queremos o sucesso do personagem, mas há gosto em isso não acontecer. Sentimo-nos mal por isto. É neste ódio interno ao filme, que Fellini, consegue transformar em nós algo belo em tristeza. Então, Guido, é “assombrado”, procurando salvação, por tudo á sua volta e tenta falar com quem o poderá proteger, Cláudia e Rosetta, mas a confusão é tanta que até elas saem atrás de toda aquela gente. Este é o momento mais relaxante, e que nós, espectadores, podemos relaxar, pois não se sente o barulho de fundo, nem aquelas perguntas. No Inland Empire, conseguimos atingir o mesmo sentimento, após no decorrer do diálogo dos sem-abrigo, finalmente dão atenção á protagonista, podendo haver uma salvação. Estamos novamente com eles (com os protagoniostas). Mas rapidamente, voltamse para nós outra vez. Dão-nos confusão. Quando o seu escritor lhe diz que ele tem algo no seu bolso direito, nós sentimos algum alívio, achamos que Guido finalmente tem algo a dizer, e que vai fazê-lo. Mas este vai para baixo da mesa, dizendo que precisa pensar. Quando vai ao bolso direito, acontece o que tenho vindo para explicar, a tal surpresa. Ele tira do seu bolso uma arma, e somos perseguidos de uma imagem em que supostamente, Guido, foge de sua mãe. Dá um tiro na cabeça. Mas é aqui que se ouve silêncio. Com esta construção, a situação é estranha e pensamos, e agora? Porquê? Ele só tinha de falar. Mas assim como, David Lynch, Fellini, não mata a sua personagem. No plano a seguir, este já está a falar com os produtores, por ter abandonado o filme. Fugido, tendo sido tudo uma alegoria. Ambos os realizadores, parecendo que nos explicam a história, complicam-na, deixando algo em aberto e fazendo-nos pensar. Apesar da construção, uma baseada na estratégia plástica, isto é, uma composição estética, outra, numa composição poética, ambas as obras, convergem num mesmo sentimento. O da surpresa. De certa forma, vendo nós os personagens principais morrer, apesar de nos deixar com um sentimento de tristeza, conseguimos, facilmente e muito rapidamente, habituarmo-nos á situação, pois, tanto Fellini como Lynch puseram-nos
(espectadores) na posição dessas mesmas personagens. Pedimos então, que nos deixem em paz, sendo a morte, um bom pretexto, para que tal calma, caia sobre nós. São realmente cenas, totalmente diferentes, elaboradas de forma diferente, e com temas, apesar de parecidos, diferentes, mas que nos transportam, para um mesmo pensamento, um mesmo sentimento. Antes de terminar esta reflexão, gostaria ainda, de aproximar um pouco mais estes filmes. Trata-se da cena final, já nos créditos. Ambos os realizadores, depois destas emoções e sensações criadas ao longo do filme, fazem-nos sentir felizes e realizados, construindo algo como musica ao vivo no caso de David Lynch, e finalmente Guido a realizar algo parecido com um filme, alinhando as personagem e figurantes para dançarem ao som da orquestra. É um pequeno, mas brilhante momento, que ambos os realizadores proporcionam no espectador, que apesar de se tornar um pouco estranho, devido á obra que estivemos até ali a ver, faz-nos sentir felizes, faz-nos sorrir. Arriscaria a mais, faz-nos ter esperança.
Conclusão Duas obras aparentemente muito diferentes, conseguem fundir-se em certos pontos. Com o auxílio da metodologia usada, isto é, com o auxílio da análise poética, consegue-se perceber onde dois realizadores, de formas diferentes, conseguem transmitir o mesmo sentimento, mesmo este não sendo totalmente igual. Neste caso, o sentimento de surpresa, prende-nos ao filme, deixando-nos constantemente com dúvidas no que se trata do final ou até da finalidade do filme. Quando me refiro a finalidade, não falo exactamente da noção concreta do argumento, mas sim, dos sentimentos e emoções que ambos querem trespassar para o espectador. Mas, pretendo concluir, que, apesar de achar que todas as obras terem de passar por uma reflexão poética, não é suficiente para caracterizar todo o conteúdo da obra cinematográfica, pois ficam muitos pormenores técnicos (apesar de me ter sentido obrigado a referi-los e comentá-los) por tratar e explicar. No entanto, é talvez a melhor maneira de se poder tratar de um filme, como uma obra de arte, e não como mais um aspecto monetário, composto para ganhar dinheiro. É com grande dificuldade que se podem exprimir determinadas sentimentos e emoções, e principalmente explicá-las através de palavras, através da decomposição e interpretação de algo.
Bibliografia Análise de filmes – conceitos e metodologias, Manuela Penafria Against interpretation, Susan Sontag Pureza da linguagem, Serguei Eisenstein A poética do cinema, Wilson Gomes