UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR
Departamento de Comunicação e Artes
“O Filme do Desassossego”, Do Livro para o Filme
Sandro Martins Branco 29425
Teoria da Narrativa 2012/2013
Docente: Prof. Doutor Luís Nogueira
Covilhã, 10 de Janeiro de 2013
Índice Introdução
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A Primeira Cena
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A Adaptação
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O Erotismo sem Voyeurismo
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Introdução “O filme do Desassossego”, é uma adaptação cinematográfica do realizador português João Botelho d’O Livro do Desassossego de Bernardo Soares, semiheterónimo de Fernando Pessoa. Uma das grandes dificuldades desta obra cinematográfica, prende-se ao facto do livro serem fragmentos e mais fragmentos das memórias, pensamentos e sonhos de Bernardo Soares, não existindo um seguimento narrativo. Irei abordar a maneira de como João Botelho passou da leitura para a adaptação de um guião e mais tarde para o filme. Trata-se de uma das grandes obras de ficção portuguesa mesmo apesar da sua fragmentação. Bernardo Soares no seu livro, desconstrói os sentimentos humanos transmitindo-os através das palavras ao leitor. Nota-se a melancolia, o tédio e até o seu autodesprezo. João Botelho, para a adaptação, tinha de conseguir captar os mesmos pontos, e não fugindo ao seu grande criador, Fernando Pessoa, transpor na tela todos estes sentimentos desconstruídos. Podia adaptar de tal forma, que concluiria ou até acrescentava pontos cruciais na narrativa da sua história, mas decidiu curvar-se sobre a obra de Bernardo Soares, e idolatrando-a, transpô-la também ela fragmentada no cinema. Mas, apesar de fragmentadas as obras, n’O Filme do Desassossego há uma certa ligação, nomeadamente a sua cresceste inquietação, os temas cada vez mais maduros, o encontrar de um sossego e desassossegar novamente, um abrir das portas e o fechar delas, o início e o final. De certa forma, logo no genérico, João Botelho diz-nos como vai abordar o seu filme. Mostra-nos um lustre, um camarote e em seguida a orquestra a ensaiar. Será um filme de Arte, onde o belo predomina, e a colisão com as mais profundas emoções impera. É num auditório, ou num teatro, ou coliseu, local cultural onde se sobressaem as emoções, tanto musicalmente, teatralmente, cinematograficamente, etc… seja qual for a mostra cultural de arte. E assim que arranca a orquestra, arranca o filme também.
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A primeira Cena Não sabendo por onde começar, caio sobre um momento numa das primeiras cenas do filme passada num café (historicamente o café onde Bernardo Soares deu o seu livro fragmentado “O Livro do Desassossego” a Fernando Pessoa). Esse momento é, quando Fernando Pessoa faz referência ao tempo dizendo palavras do “Livro do Desassossego”, primeiro olhando para o relógio depois explicando o que para ele será o tempo. Ou o que o faz interrogar-se sobre ele. Quando faz alusão ao tempo no sonho, a câmara faz um travelling sobre todo o café de forma lenta, sobre cada personagem, mostrando a tranquilidade e o tédio que aquelas pessoas passam. Em todo o filme e não só nesta cena, a maioria dos planos são fixos e quando existe movimento de câmara, este são maioritariamente, travellings lentos e sem oscilação, isto é, nenhuma câmara á mão, mas sim uso de charriot entre grandes percursos de carris. Faz lembrar Andrei Tarkovsky em relação ao “sentir o tempo”. E mais uma vez, não falo apenas desta cena, refiro-me a todo o filme, mas é interessante a referência inicial ao tempo (físico, emocional e sonhado) “Não sei o que é o tempo. Não sei qual a verdadeira medida que ele tem, se tem alguma. A do relógio sei que é falsa: divide o tempo espacialmente, por fora. A das emoções sei que também é falsa: divide, não o tempo, mas a sensação dele. A dos sonhos é errada; neles roçamos o tempo, uma vez prolongadamente, outra vez depressa, e o que vivemos é apressado ou lento conforme qualquer coisa do decorrer cuja natureza ignoro.” (Bernardo Soares, Livro do Desassossego). João Botelho, faz então sentir o tempo, um tempo emocional, mas usando para além dos movimentos lentos, os planos fixos com pouca acção, usa os diálogos em forma de prosa, quando não são frases de Bernardo Soares, são nada corriqueiros e normais, isto é, não representam a forma tradicional e normal de dialogar e falar, é usado um vocabulário caro e em certos casos com certa desconstrução das frases, muito ao estilo do próprio Fernando Pessoa, e a narrativa fragmentada e sem uma ligação lógica para ao mesmo tempo que interessa o espectador, fá-lo sentir o tempo. Como o próprio João Botelho o diz, “Parece que se passa em três dias e três noites, e depois em três minutos, mas na verdade passa-se no tempo real do filme”. Esta mesma cena, apresenta-nos Bernardo Soares em Pessoa. Uso este trocadilho, para explicar o elemento narrativo nesta determinada cena. Fernando Pessoa, apresenta Bernardo Soares, narrando as suas características físicas e ainda mais, pressupostos das características psicológicas. Apesar de estas duas personagens pouco falarem, Fernando Pessoa, continua a ser o elemento central da cena (como farei alusão um pouco mais á frente), apenas se conhecendo fisicamente Bernardo Soares. Ainda dentro do bar, quando chega um grande grupo de pessoas, dentro das quais duas raparigas com vontade de dançar, e em que o actor e musico, Manuel Viera, depois de ao ritmo da música que toca, Charles Aznavour, cantar frases do livro do desassossego, vai dançar com as duas raparigas. A acção é lenta naquele café, a dança é lenta (em relação á musica), mas música acelera e transforma a cena, em algo frenético e acelerado. Somos obrigados a lançarmo-nos para um ritmo muito mais acelerado que aquele que na realidade está a decorrer. Esta é outra forma que Botelho usa para o espectador sentir o tempo, e retomando as frases de Bernardo Soares, proclamadas por Fernando Pessoa, o tempo em sonho, acelera e diminui aleatoriamente. Logo em seguida toda aquela agitação musical transformase numa cena de pancadaria em que esse mesmo grupo é obrigado a sair pelos proprietários do café. Já fora do bar, e dentro ainda desta cena, na continuação da luta, os que são escorraçados do café, continuam a lutar e os restantes clientes do café,
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nomeadamente, Fernando Pessoa e Bernardo Soares, saem também para assistirem à luta. Vemos uma imagem toda desfocada quando a luta acalma um pouco e Manuel Vieira parece dirigir-se para a câmara mas, corta para o plano das pessoas que estão a assistir, focando mais Fernando Pessoa a limpar os seus óculos, quando este os coloca, há um novo corte e em seguida volta para o plano da luta, mas desta vez já focado. Temos aqui um recurso a um estilo estético, que nos indica que apesar do Livro e por sua vez o Filme do Desassossego partir da mente de Bernardo Soares, sai apesar de tudo da visão e da mente de Fernando Pessoa. João Botelho, usa então estes três planos para, de certa forma, dar já uma ideia de quem aquela personagem faz parte, porque ainda não fomos apresentados a Fernando Pessoa, e de outra forma, não fugir a quem realmente escreveu o Livro do Desassossego, o próprio Pessoa.
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A Adaptação A fotografia, ilumina em certas partes exageradamente, a personagem principal como se estivéssemos num teatro. Existe uma abundância de negros e cores muito bem definidas. As luzes acendem-se e desligam-se consoante a personagem deambula pela noite, e principalmente quando deambula na sua casa, assustada pelos seus próprios pensamentos e alucinações. Durante a luz do dia, nota-se o uso do Vignette que escurece as extremidades do ecrã deixando a zona central mais clareada, evidenciando-a. Para esta adaptação e escolha de Botelho, este refere-se à forma como transcreveu o que leu n’O Livro do Desassossego justificando a ideia de iluminação e uma das razões para fazer o filme. “…a sua ideia de luz: devem iluminar-se as caras dos santos e as polainas das pessoas normais da mesma maneira. Pessoa ia ao cinema.” Há exactamente uma cena que expressa claramente o que diz. Bernardo Soares vai para uma igreja e quando algumas crianças saem do escuro, iluminando-as, começam a cantar, a cara de Bernardo Soares é iluminada em tons dourados, quando volta para as crianças, o altar, tem o santo por cima delas, iluminado também com uma luz bastante dourado. No que toca á cidade, Bernardo Soares, sente-se perdido, e Botelho optou por justapor edifícios, criando uma ideia concentrada da cidade de Lisboa. Até certo ponto, faz lembrar o que Christopher Nolan fez no Inception. Sobrepondo edifícios distorcendo a ideia de cidade. Refiro estes dois pontos, tanto a fotografia e luz como a cidade, exactamente por João Botelho não ter nenhuma referência para além da sentida quando leria o Livro do Desassossego, criando uma imagem para as monstruosas palavras de Bernardo Soares/Fernando Pessoa.
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Em todo o filme, a forma como Botelho apresentou os fragmentos de texto de Bernardo Soares, foram variadas. Com um narrador, com diálogos, com monólogos de outras personagens, e em outros casos de forma musical. Neste último aspecto, destaco como já referido, Manuel vieira a cantar por cima de outra música, uma senhora a cantar fado, um fadista a tocar guitarra, as crianças na igreja, e uma Opera. Esta ultima, talvez seja o ponto negativo que o filme tem, por um lado, a forma como a ópera funciona, na língua portuguesa, é-nos difícil entender as palavras, que por sua vez, são estas palavras o ponto mais importante do filme, e por outro, a sua duração, como é algo de difícil compreensão e os cenários mantêm-se relativamente idêntico, cria um certo desinteresse. Não desassossega, como o resto do filme. Por outro lado, traz um outro ponto, desinteressando o espectador, este, concentra-se nos próprios pensamentos, criando-lhe de certa forma um agradável ambiente, sossegando-os. “Por fim, havia uma afirmação fundamental: o “Livro do Desassossego” só existe em voz alta. Isso permitiu-me brincar com canções e óperas.” – João Botelho
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O Erotismo sem Voyeurismo Como referi na introdução, o “Filme do Desassossego” tem uma determinada ligação, e neste ponto, verificamos a maior maturidade nos temas profundamente abordados por parte de Bernardo Soares. Botelho usando essa ordem, usou também elementos mais maduros e corpos mais desnudos. No clube de strip, e quando são proclamadas as palavras de Pessoa sobre o prazer, existe uma cena que consegue através de um movimento (travelling de aproximação) lento (muito lento), uma personagem feminina em trajes menores, dita essas mesmas palavras criando por sua vez uma tensão pesada e ao mesmo tempo de libertação, hipnotizante, transparecendo o sentido do prazer. No decorrer do movimento de câmara, o som parece encher cada vez mais, e quando estamos num grande plano da cara da personagem, a câmara, não pára terminando apenas nos lábios da actriz, vermelhos de batom. Esta cena, talvez seja, apesar de já antes nos ter sido mostrados corpos nus, cenas de sexo quase explícito, a cena mais erótica do filme dada a sua carga e a própria voz da actriz. Conseguimos perceber e entender o que é o prazer, ouvindo as palavras e sentindo-as. Ainda e para terminar, referente á ordem do filme, o primeiro plano do filme é um lustre de um coliseu iluminado, belo. E um dos últimos planos do filme, um mesmo lustre, belo e luxuoso, num pequeno lago de lama no meio da floresta, simbolizando de certa forma o desassossego que a personagem vivia, a evolução que esse desassossego sofreu.
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