UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR
Departamento de Comunicação e Artes
Licenciatura em Cinema
Géneros Cinematográficos II
Professora Manuela Penafria
As quatro voltas De Ficção para Documentário
Sandro Martins Branco Nº 29425
Covilhã, 1 de Junho de 2013
Índice Introdução
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Documentário
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“Le Quattro Volte” de Michelangelo Frammartino
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Documentário vs. Ficção
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Conclusão
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Introdução
“A afirmação de Jean-Louis Comolli “Para a pergunta: “O que é o documentário?”, a única resposta é a pergunta de André Bazin “O que é o cinema?”, induz a questionar qual a natureza da relação do cinema designado por filme documentário, com o restante cinema. Substituindo a pergunta “O que é o documentário?” por “Onde está o documentário?”, a resposta seria não uma nova pergunta, mas a afirmação: “O documentário está no cinema.” (Manuela Penafria, O Documentarismo do Cinema) ”. Baseado
nesta
pequena
passagem,
irei
descrever
o
significado
de
Documentário. No entanto não o farei discriminando parte a parte para obter um significado tanto da palavra como do género, mas sim confirmando desta forma o texto em cima referenciado, relacionando-o com o filme “Le Quattro Volte”, (2010) de Michelangelo Frammartino, conectando todos os atributos do documentário, simultaneamente com a ficção, justificando o porquê da ambiguidade do termo (género) cinematográfico Documentário estar próximo da ficção. Como no excerto que coloquei em cima, o documentário, está no cinema, logo a sua ligação ao mesmo é próxima, não sendo necessário a sua separação. Começarei por descrever a sinopse do filme, os simbolismos e temas abordados para em seguida proceder á comparação entre género e filme.
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Documentário Neste ponto, não iremos definir o que é o documentário pois talvez nunca mais terminasse este trabalho devido às questões e problemas que se iriam levantar. O registo In Loco é a base do cinema e por sinal do documentário. Consideramse
actualmente
documentais,
as
imagens
trazidas
pelos
irmãos
Lumiére,
nomeadamente, “La Sortie de l'Usine Lumière à Lyon”, “Le Repas”, ou até mesmo um dos mais conhecidos “'Arrivée d'un train en gare de la Ciotat” que se trata da chegada de um comboio a uma estação. Nesta altura ainda não havia uma relação de géneros, muito menos do género Documentário. Foi com John Grierson (1898-1972) que o termo documentário apareceu, com o seu filme Drifters (1929) onde passou a defender o documentário como impulsionador e produtor do chamado movimento “movimento documentarista britânico”. No entanto isto é apenas história. “A nossa posição é que o documentário deve ser estudado por conceitos cinematográficos e não por termos que lhe são exteriores e que as teorias sobre o filme documentário não devem encontrar nos filmes um exemplo, como se estes fossem meras ilustrações.” (texto retirado de “O Documentarismo do Cinema”, de Manuela Penafria)
É nesta base que este trabalho se baseia. Neste caso trata-se de uma análise cinematográfica a um filme que poderá ou não ser considerado documentário. Podemos de certa forma, dizer quais são algumas das características do documentário. Entre outras estão o uso de narração em voz off ou não, o plano-sequência ou plano longo devido á autenticidade das imagens, entrevista. No entanto, tanto na ficção como no documentário, a escolha de planos acontece, o que já de si é um dilema por se tratar da visão subjectiva de alguém, pondo desde logo em causa a veracidade das imagens e quão documentais estas são. “Assim, a nossa proposta é que a principal questão que se coloca ao filme documentário, a sua diferença com a ficção, poderá ser equacionada do seguinte modo: entre documentário e ficção não há uma diferença de natureza, mas uma diferença de grau. 4
Do mesmo modo que entre documentário e ficção há uma diferença de grau, entre os diferentes registos documentais há uma diferença de grau (da intenção dos autores, da utilização televisiva desses registos ou mesmo do seu uso em tribunal, de tratamento cinematográfico, da sua recepção pelo espectador, etc.) ” (texto retirado de “O Documentarismo do Cinema”, de Manuela Penafria)
Peguemos então na expressão “intenção dos autores”. Uma das formas que actualmente define o documentário é a particularidade do próprio autor, dizer e assumir “isto é um documentário”, ou até de outros ao caracterizarem o filme e lhe colocarem um rótulo, rotularem como documentário. Acontece actualmente com o IMDB (Internet Movies Data Base) no qual quando procuramos saber que filme se tratar, tem a legenda documentário, para o caracterizar. No caso que analisaremos do “Le Quattro Volte” não é o que acontece. Trata-se talvez de um filme de autor, bastante poético, ou então em ultima instância, um Documentário. Michelangelo Frammartino, assumiu o cinema de autor para demonstrar-nos a sua obra, no entanto está repleta de pormenores que facilmente se podem associar ao documentário na comparação com este género. “Todo o filme é documental no sentido em que documenta algo, quanto mais não seja, aquilo que nos mostra, que dá a ver, independentemente dessa realidade ter existência (física) fora dessas imagens ou de ter sido construída propositadamente para as filmagens.” (texto retirado de “O Documentarismo do Cinema”, de Manuela Penafria)
Esta é uma vertente que assumirei ao analisar o filme “Le Quattro volte”, pois seria desprovido de intenção a caracterização de um filme num outro género. No entanto, a comparação e análise de alguns recursos estilísticos ou até falando do acaso aproximarão o filme do género Documentário. Cada autor é um autor, e no caso do cinema de autor, que é o caso, podemos falar que a escolha de planos, enquadramentos, até montagem, é a visão de um só autor, e transcreve-nos muita veracidade dada a poética obra como a tentativa verídica de mostrar estas imagens. Somos ingénuos quando vemos um filme e é essa a realidade que estes autores experimentam e dão a experimentar.
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“Le Quattro Volte”
(2010)
de Michelangelo Frammartino
Sinopse É numa extrema calma e tranquilidade que Michelangelo Frammartino inicia o seu filme, mostrando uma carvoaria artesanal. Aparentemente, estes planos parecem nada significar devido à sequência seguinte. No entanto, avancemos no filme e mais tarde retornaremos a este tema. Os planos subsequentes colocam-nos no espaço deste filme. Uns prados verdejantes suplantados numa montanhosa paisagem. É neste campo que começamos por ver algumas cabras que sossegadamente pastam acompanhadas pelo seu pastor. Será este o pastor que iremos acompanhar no seu dia-a-dia. Plano Muito Geral sobre a paisagem, onde nos mostra todo o espaço, os animais, o pastor, as montanhas, que se entrelaçam parecendo fazer parte tudo do mesmo. Plano Americano do Pastor, e aqui é onde este nos é apresentado. A sua apatia para com tudo em seu redor, descreve-lhe, de certa forma, já a sua alma, o seu ser. Não reage mesmo quando os animais interagem com este. É um velho homem cansado e experimentado. Aparece como um ser proveniente de um produto natural, carregado de rotinas, não surpreendendo. Toma conta do seu rebanho até anoitecer, volta para casa. Nota-se que o passar do dia é-lhe penoso, não do seu aborrecimento mas do peso da sua idade no corpo. Imensa tosse, cansaço. Quando regressa a casa, tem uma rotina, onde, antes de se deitar, bebe um copo de água colocando-lhe pó vindo da igreja no copo. No outro dia, uma carrinha com carvão chega para distribuir pela aldeia. Voltando ao nosso pastor, mais um rotineiro dia, em que trata das suas cabras, mas antes disso, vai até á igreja buscar o seu pó. Aí então sai com o seu rebanho. Volta para casa, coloca pó no copo e dorme. No dia seguinte o mesmo acontece, no entanto, enquanto está com as cabras no monte, deixa cair das suas calças todo o pó que era destinado para aquela noite. Quando, durante a noite, se apercebe, tenta em desespero procurar alguém na igreja que lhe possa voltar a dar outra dose para dormir tranquilamente. Durante todo este processo, é-nos mostrado algo mais da aldeia como, e referida em cima, a carrinha do carvão que todos os dias trás para aldeia. Uma procissão tradicional em que recriam o carregar da cruz de Jesus Cristo perante toda a população. 6
Nesse mesmo dia, e relembro que o velho homem não conseguiu o seu pó, adoece sozinho em casa acabando por morrer. Vemos um caixão a ser tirando de sua casa levado pelos habitantes da aldeia e em seguida uma procissão em sua honra. Com a morte deste homem, um novo ser aparece. O plano seguinte ao fecho da urna do velho é o nascimento “ao vivo” desta mesma cabra. A partir daqui vamos acompanhar os primeiros dias, ou semanas ou até meses desta cabra. Nasce, aprende a pôr-se e pé, brincar, aprender, etc. É um bom momento para dizer que tanto na personagem do velho como da cabra gera-se algo interessante que é a capacidade para ganharmos empatia por estas personagens sem que estas façam algo extraordinário para acontecer. Devo dizer também que não á um único diálogo neste filme nem mesmo monologo. Como acontecera com o velho, acompanhamos também o dia-a-dia desta pequena cabrinha. Desde que acorda, desde que fica com as outras pequenas cabrinhas a brincar enquanto as grandes vão para o pasto com um outro pastor, e noite quando adormece. Num outro dia, todas as cabras, tanto as pequenas como as grandes vão para o campo. Mas é ainda no meio do bosque que ficamos. Tristemente, a nossa pequena personagem fica presa numa vala não conseguindo acompanhar o resto dos animais. Não vendo o que acontece, premeditamos a sua morte. Ela encosta-se a uma árvore e vemo-la adormecer. Os planos seguintes, são dessa mesma árvore, estações á frente, com neve, remetendo para o inverno e o seguinte, a primavera, situandonos desta forma no tempo do filme. Já sem a nossa cabra, o realizador foca-nos na árvore. Logo em seguida vemos os homens da aldeia a cortá-la para a deitarem abaixo e levada para a aldeia como uma tradição anual daquela comunidade. É posta ao alto no meio das casas, fica assim uma temporada e novamente deitada abaixo mas desta vez cortada aos pedaços. É levada na carrinha que todos os dias trazia carvão para as pessoas. Somos levados então para o início do filme. A construção da carvoaria tradicional. O filme termina com a carrinha a levar o carvão para a aldeia.
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Documentário vs. Ficção Todo o filme carrega morte e por esta frase parece um monstro do cinema ensanguentado, no entanto é a visão poética do realizador Frammartino que transforma este possível banho de sangue em algo belo. Este pequeno texto provavelmente afastará a minha teoria de que “Le quattro volte” se aproxime do documentário, no entanto, o cinema é um engano e estando o documentário no cinema, quão engano será este também? Comecemos então pelo início. Quando o velho pastor no é apresentado nota-se desde logo o uso do plano sequência e planos longos. Durante estes planos vemos algumas coisas que nos fazem questionar o quão acaso terão elas sido filmadas, ou o quão programadas terão sido. É difícil de perceber. Num dos primeiros planos dos prados, em que aparecem as cabras e o seu pastor muito lá ao longe, no outro canto do ecrã vemos o cão pastor a correr que faz do canto inferior esquerdo para o canto superior esquerdo sem nunca sair do enquadramento que acaba por passar mesmo em frente á câmara. Ou será este um cão bem treinado para passar exactamente pelos locais decididos, ou Frammartino captou exactamente uma obra do acaso que lhe trouxe um excelente equilíbrio ao plano. Temos em seguida outro plano, depois do velho nos ser apresentado, uma das cabras a dar marradas no homem e este apático nem reage. É mais uma imagem que é de difícil interpretação. O porquê da cabra lhe dar marradas e o porquê do homem, neste caso o actor, estar pronto para isso e mesmo assim nem reagir continuando a sua actuação sem pestanejar. Os momentos que mais parecem encenados, serão os dos interiores tanto do quarto do velho como do interior da igreja. É aqui que nos foge o sentido documental e volta a ficção. Pois até a iluminação apesar de bela, nota-se trabalhada e cheia de contrastes negros e brancos, tanto a poeira no ar, como os rasgos de luz que recortam as personagens. Há também um plano sequência no filme deveras curioso. Quando da procissão em que Jesus Cristo caminha carregado da cruz por entre os habitantes da aldeia. Mas na nossa curiosa cena não retratada esta procissão, mas sim o depois da sua passagem. Quando a câmara retorna ao seu ponto inicial, vemos o cão do pastor a impedir a passagem de uma criança que se atrasara para a procissão. Ladra-lhe, corre para um lado e para o outro fechando-lhe a passagem, a criança tenta desesperadamente 8
passar. Esta acaba por conseguir passar e logo a seguir o cão vai roubar a pedra que estava por baixo da roda da carrinha, retirando-lhe o atrito e esta começa a andar sozinha embatendo na cerca das cabras, soltando-as pela aldeia. Esta é talvez a cena que, não escorraçando a encenação, mais impressiona e mais nos faz perguntar o quão verídico ela é. É esta perfeição que nos faz questionar o sentido documental do filme. Temos outro longo plano, mas neste caso, a encenação só poderá ocorrer na colocação dos animais nos locais predilectos ou com recurso aos efeitos especiais de grande qualidade. Falo portanto do nascimento de uma cabra no qual vemos “ao vivo” a cabra a sair do ventre da mãe. No entanto e nesta cena também que acontece algo onde se nota a intervenção do realizador, que será a mudança de escala. Passamos de um plano inteiro tanto da mãe como da pequena cabrinha para um grande plano da recém-nascida cabra. Mais uma vez é pela mão do realizador que notamos uma fugida ao documental remetendo-nos novamente para a ficção. Também poderemos falar num recurso á multi-cam que como não podemos, de todo, saber o que acontecerá então coloca-se várias câmaras em escalas e enquadramentos diferentes para na montagem haver mais opção de escolha. Neste caso podemos por em causa a validade do documentário, do objecto documental. É uma ânsia de documentar algo que mesmo não havendo encenação, encenamos e mostramos apenas aquilo que preferimos. Este talvez seja o recurso mais provável neste filme por estarmos a tratar de animais e não pessoas. O cão é um animal mais fácil de manipular, no entanto, uma cabra bebe torna-se mais complicado. O que sucede é que a escolha de planos do realizador, filmado com multi-cam ou mesmo mudando a câmara de um lugar para outro, oferece-nos uma personalidade a este animal conduzindo o seu objecto documental ou ficcional para uma narrativa lógica e credível. Há um recurso também ao plano geral. Tanto em planos longos como em planos mais curtos, o plano geral oferece-nos alguma veracidade á cena pois o espaço que nos é apresentado é muito mais amplo e mais difícil de manipular. Não sendo por isto que esta obra passará de ficção para documentário, é espirituoso a analise deste recurso cinematográfico e fotográfico. Quando se conta uma história de algum personagem, é normal que mesmo usando um plano geral ou muito geral se acompanhe de mais perto a nossa personagem. Neste caso, o que Frammartino faz é em alguns planos gerais, em vez de nos dar a personagem principal em primeiro plano, coloca-o em segundo ou mesmo terceiro plano. Estou a falar do Velho pastor. 9
O que acontece também é que mesmo o realizador decidir colocar o personagem em primeiro plano neste recurso estilístico, alguns das acções que ocorrem, mais atrás dele, serão mais interessantes. É estranho perceber isto, mas quanto mais o realizador nos afasta da personagem, mais real no parece. Isto é, por não sufocar as personagens e por não querer que a lhe prestemos tanta atenção faz-nos pensar num modo documental de captar as suas imagens. Percebemos que a lente da câmara não sabe qual das pessoas é o actor principal, captando todo que á sua frente acontece, que no caso documental é uma característica. Tanto pode ser o nosso entrevistado que aparece em primeiro plano como, sorte do acaso, um pássaro lhe passe á frente retirando a atenção dessa personagem para o animal. Há em dois momentos o uso do plano subjectivo, neste caso vemos perfeitamente o registo ficcional escolhido pelo realizador. Num deles será do velho, momentos antes de morrer, em que vemos a sua sala carregada de cabras por todo o lado, soltas e regressadas ao seu dono para o acompanhar nos seus últimos momentos. A imagem aparece toda desfocada por causa da visão do velho, também já ela turva. Noutro caso, uma das cabras olha para o ceu, e o plano seguinte será o céu com a mesma inclinação da cabeça da cabra. É um outro caso que demonstra a mão do realizador afastando-nos novamente do documento remetendo-nos para a ficção. Há um plano que é comum em vários momentos do filme. É o mesmo em que vemos a procissão, o cão a retirar a pedra, a carrinha a embater na cerca das cabras, entre outros. Este plano, é um plano geral, e que faz uma panorâmica para a direita até cerca de 270º e depois novamente para a esquerda. Não tendo este filme qualquer recurso a voz off, diálogos, monólogos, é mais um momento em que vemos o realizador falar connosco, a querer mostrar-nos o que pensa que devemos ver. Quando a procissão passa, acompanha-a, volta ao ponto de partida e vemos o episódio da criança, em seguida mantem a posição e vemos o episódio do cão e da carrinha. Quando a carrinha está prestes a embater, este começa a panorâmica para vermos onde já vai a criança e o cão segue também para aquele caminho, devolve-nos a posição original, quando o cão regressa mostrandonos todas as cabras soltas e perdidas no meio da aldeia.
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Conclusão No desenvolvimento deste trabalho encontrei várias dificuldades, nomeadamente na procura de uma definição ou até na enumeração das características do documentário. É ainda um género que dificilmente se distingue pelas suas técnicas e características, no entanto, fica bem mais fácil quando o termo nos é trazido pelo próprio realizador, ou então pelo meio onde nos é dado a conhecer o mesmo. O que foi feito, foi a tentativa de relacionar o documentário, perante a expressão dada inicialmente “O documentário está no cinema”, analisando o filme de um perspectiva cinematográfica questionando ou até afirmando a veracidade das imagens. Não fica isto portanto, longe da análise de filmes, no entanto a palavra primeira terá sido “Documentário”, neste aspecto todo o pensamento e analise, caminharam numa via só para o entendimento do género, perante um filme fora do contexto documental, relacionando-o, contextualizando-o.
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