Fernando Pessoa

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Personagem do MĂŞs Fernando Pessoa


―Nome completo: Fernando António Nogueira Pessoa. ―Idade e naturalidade: Nasceu em Lisboa, freguesia dos Mártires, no prédio n.º 4 do Largo de S. Carlos (hoje do Directório) em 13 de Junho de 1888.

―Filiação: Filho legítimo de Joaquim de Seabra Pessoa e de D. Maria Madalena Pinheiro Nogueira. Neto paterno do general Joaquim António de Araújo Pessoa, combatente das campanhas liberais, e de D. Dionísia Seabra; neto materno do conselheiro Luís António Nogueira, jurisconsulto e que foi Director-Geral do Ministério do Reino, e de D. Madalena Xavier Pinheiro. Ascendência geral: misto de fidalgos e judeus. ―Estado: Solteiro. ―Profissão: A designação mais própria será «tradutor», a mais exacta a de «correspondente estrangeiro em casas comerciais». O ser poeta e escritor não constitui profissão, mas vocação.


―Morada: Rua Coelho da Rocha, 16, 1º. Dt.º, Lisboa. ―Funções sociais que tem desempenhado: Se por isso se entende cargos públicos, ou funções de destaque, nenhumas.

―Obras que tem publicado: A obra está essencialmente dispersa, por enquanto, por várias revistas e publicações ocasionais. O que, de livros ou folhetos, considera como válido, é o seguinte: «35 Sonnets» (em inglês), 1918; «English Poems I-II» e «English Poems III» (em inglês também), 1922, e o livro «Mensagem», 1934, premiado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, na categoria «Poema». O folheto «O Interregno», publicado em 1928, e constituído por uma defesa da Ditadura Militar em Portugal, deve ser considerado como não existente. Há que rever tudo isso e talvez que repudiar muito.

“Educação: Em virtude de, falecido seu pai em 1893, sua mãe ter casado, em 1895, em segundas núpcias, com o Comandante João Miguel Rosa, Cônsul de Portugal em Durban, Natal, foi ali educado. Ganhou o prémio Rainha Vitória de estilo inglês na Universidade do Cabo da Boa Esperança em 1903, no exame de admissão, aos 15 anos.


―Ideologia Política: Considera que o sistema monárquico seria o mais próprio para uma nação organicamente imperial como é Portugal. Considera, ao mesmo tempo, a Monarquia completamente inviável em Portugal. Por isso, a haver um plebiscito entre regimes, votaria, embora com pena, pela República. Conservador do estilo inglês, isto é, liberdade dentro do conservantismo, e absolutamente anti-reaccionário.

―Posição religiosa: Cristão gnóstico e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria.

―Posição iniciática: Iniciado, por comunicação directa de Mestre a Discípulo, nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal. ―Posição patriótica: Partidário de um nacionalismo místico, de onde seja abolida toda a infiltração católicoromana, criando-se, se possível for, um sebastianismo novo, que a substitua espiritualmente, se é que no catolicismo português houve alguma vez espiritualidade. Nacionalista que se guia por este lema: «Tudo pela Humanidade; nada contra a Nação».


―Posição social: Anticomunista e anti-socialista. O mais deduz-se do que vai dito acima.

―Resumo de estas últimas considerações: Ter sempre na memória o mártir Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários, e combater, sempre e em toda a parte, os seus três assassinos – a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania‖.

Lisboa, 30 de Março de 1935 Fernando Pessoa


O RETRATO

POSSÍVEL

DE FERNANDO PESSOA

―Era um homem magro, com uma figura esguia e franzina, media 1,73 m de altura. Tinha o tronco meio corcovado. O tórax era pouco desenvolvido, bastante metido para dentro, apesar da ginástica sueca que praticava. As pernas eram altas, não muito musculadas e as mãos delgadas e pouco expressivas. Um andar desconjuntado e o passo rápido, embora irregular, identificavam a sua presença à distância. ―Vestia habitualmente fatos de tons escuros, cinzentos, pretos ou azuis, às vezes curtos. Usava também chapéu, vulgarmente amachucado, e um pouco tombado para o lado direito. ―O rosto era comprido e seco. Por detrás de uns pequenos óculos redondos, com lentes grossas, muitas vezes embaciadas, escondiam-se uns olhos castanhos míopes. O seu olhar quando se fixava em alguém era atento e observador, às vezes mesmo misterioso. A boca era muito pequena, de lábios finos, e quase sempre semicerrados. Usava um bigode à americana que lhe conferia um charme especial. Quando falava durante algum tempo e esforçava as cordas vocais, um dos seus pontos sensíveis, o timbre de voz alterava-se, tornandose mais agudo e um pouco monocórdico. A modulação da passagem de um tom para o outro acabava por reduzir o seu volume vocal natural e o som então emitido ficava


mais baixo e um pouco gutural, tornando-se menos audível. ―Nos últimos dez anos de vida, talvez provocado pelo fumo dos oitenta cigarros diários, adquiriu um pigarrear característico, seguido de uma tosse seca.

―Embora não muito dado ao riso, Fernando Pessoa tinha uma certa ironia e algum humor, sobretudo se estava bem-disposto, o que acontecia algumas vezes quando os amigos mais próximos o desafiavam para jantares. Curiosamente libertava-se então da sua timidez e gesticulava de um modo mecânico e repetitivo, deixando escapar um riso nervoso, às vezes irritante. ―Apesar de conviver com os amigos, no fundo nunca deixou de ser um homem neurasténico, solitário e reservado, pouco dado a conversar com estranhos. No final da sua vida, a melancolia e uma exagerada angústia existencial predominavam. Daí a tendência para se isolar dos mais próximos e dos próprios familiares. O seu temperamento ansioso foi interpretado por alguns dos seus biógrafos como uma personalidade do tipo emotivo não activa. No fundo, era um tímido introvertido, dado a fortes instabilidades de sentimentos e de emoções. ―Dotado de um carácter bastante complexo, era, apesar de tudo, um homem simples com uma grande inteligência


e de uma extrema sensibilidade... era reservado e não gostava falar de si nem dos seus problemas, protegendo o mais possível a sua privacidade. Terrivelmente supersticioso, tinha momentos em que se comportava de uma forma enigmática e misteriosa, a que decerto não seria alheia a sua velha atracção pelo oculto, o esotérico e a própria relação metafísica que tinha com a vida.‖ […] ―Sabe-se, também, que Pessoa tinha algumas fobias: não suportava que lhe tirassem fotografias, não gostava de falar ao telefone e tinha terror às trovoadas.‖ […]

―Sabe-se que coleccionava postais e que era filatelista. Para além de gostar de ler, e a sua biblioteca comprova os muitos livros que ―devorou‖, apreciava música clássica: Beethoven, Chopin, Mozart, Verdi e Wagner foram seguramente alguns dos seus compositores favoritos.‖

―Apesar da sua vida retirada, monástica quase, Pessoa teve amigos. Tal facto não é de estranhar porque era um homem bondoso, de uma grande nobreza de carácter, sempre disponível para ajudar os outros.‖


A barca dos meus sentidos Voga, com remos perdidos, Por este mar sem ruídos — Por este mar sem plagas Cujas doloridas vagas Ó tédio vão, tu afagas; À sombra da minha prece Minha alegria fenece E além o sol da alma desce. Crepúsculo interior Alma sem nexo e sem cor Sem ter vida nem amor... Voga sem remos nem velas, Por este mar sem procelas, Sob este céu sem estrelas,... Voga com perdidos remos Por este mar onde temos  que perdemos. Cinza de ociosa incerteza Que quer seja ou não seja E não usa ter tristeza; Que não tem força p’ra ter Tédio que seja viver E nem anseia morrer.

espaço deixado em branco pelo autor

17 - 12 - 1912 In Poesia 1902-1917 , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005


A ÁGUA DA CHUVA DESCE A LADEIRA

A água da chuva desce a ladeira. É uma água ansiosa. Faz lagos e rios pequenos, e cheira A terra a ditosa. Há muitos que contam a dor e o pranto De o amor os não qu'rer... Mas eu, que também não os tenho, o que canto É outra coisa qualquer. 21 - 3 - 1928 In Poesia 1918-1930 , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005

A CASA BRANCA NAU PRETA Estou reclinado na poltrona, é tarde, o Verão apagou-se... Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro... Não existe manhã para o meu torpor nesta hora... Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim... Há uma interrupção lateral na minha consciência... Continuam encostadas as portas da janela desta tarde Apesar de as janelas estarem abertas de par em par... Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo, E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma...


Quem dera que houvesse Um terceiro estado p’ra alma, se ela tiver só dois... Um quarto estado p’ra alma, se são três os que ela tem... A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar Dói-me por detrás das costas da minha consciência de sentir... As naus seguiram, Seguiram viagem não sei em que dia escondido, E a rota que devem seguir estava escrita nos ritmos, Os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho...

Árvores paradas da quinta, vistas através da janela, Árvores estranhas a mim a um ponto inconcebível à consciência de as estar vendo, Árvores iguais todas a não serem mais que eu vê-las, Não poder eu fazer qualquer coisa género haver árvores que deixasse de doer, Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar-vos vendo do lado de cá. E poder levantar-me desta poltrona deixando os sonhos no chão... Que sonhos?... Eu não sei se sonhei... Que naus partiram, para onde? Tive essa impressão sem nexo porque no quadro fronteiro Naus partem — naus não, barcos, mas as naus estão em mim, E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta, Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta, E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida...

Sentir sem auxílio de poder para quando quiser, e o mar alto E a última viagem, sempre para lá, das naus a subir... Não há, substância de pensamento na matéria de alma com que penso ... 11 - 10 - 1916 In Poesia 1902-1917 , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005


Ela canta, pobre ceifeira, Julgando-se feliz talvez; Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia De alegre e anónima viuvez, Ondula como um canto de ave No ar limpo como um limiar, E há curvas no enredo suave Do som que ela tem a cantar. Ouvi-la alegra e entristece, Na sua voz há o campo e a lida, E canta como se tivesse Mais razões p’ra cantar que a vida. Ah, canta, canta sem razão! O que em mim sente 'stá pensando. Derrama no meu coração A tua incerta voz ondeando! Ah, poder ser tu, sendo eu! Ter a tua alegre inconsciência, E a consciência disso! Ó céu! Ó campo! ó canção! A ciência Pesa tanto e a vida é tão breve! Entrai por mim dentro! Tornai Minha alma a vossa sombra leve! Depois, levando-me, passai! 12 - 1924 In Poesia 1918-1930 , Assírio & Alvim, ed. Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas, Madalena Dine, 2005


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