Caderno Picasso e a Modernidade Espanhola

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MinistĂŠrio da Cultura apresenta Banco do Brasil apresenta e patrocina

CCBB E DUCATIVO 2015


Juan Gris (1887–1927) O Violino, 1926 Óleo sobre compensado 79,5 x 53,5 cm Acervo do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri


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ocidente, desde a Antiguidade Clássica, estabeleceram-se regras para o fazer artístico. As esculturas gregas e romanas buscavam na geometria formas harmoniosas de representação do mundo que nos rodeia. No período medieval, imagens religiosas faziam a ponte entre o terreno e o divino. A valorização do homem e do pensamento científico racional marcaram o período renascentista, que introduziu a perspectiva na pintura, criando a profundidade e a ilusão do real. No século XVII, para contar uma história, o estilo barroco jogava com a oposição entre claro e escuro como se a tela fosse o palco de um drama teatral.

No século XIX, invenções mecânicas substituíram a mão-de-obra humana pela força do vapor, do carvão, do petróleo. Mudou-se o jeito de viver. Durante séculos, a pintura, a escultura, a gravura e o desenho foram as únicas maneiras de registrar cenas, lugares e pessoas. Em 1839, é inventada a fotografia. Quando alguém diz que alguma coisa é moderna pensamos logo na palavra “novo”. Moderno vem de hodierno, de hodie, que quer dizer “hoje”. É marcar uma diferença entre o agora e o passado. O artista russo Wassily Kandinsky costumava dizer que a arte é filha de seu tempo. E como o artista moderno vai se comportar frente a esse novo mundo? Explicitando o que é próprio de cada linguagem artística. Na pintura, rompe com a arte da ilusão, com o que faz parecer real, revelando suas características, como as pinceladas, as cores e a luz. O espanhol Pablo Picasso aliou o domínio técnico ao seu desejo constante pelo novo e passeou por diferentes linguagens plásticas. Ele foi o estopim do cubismo, retomou o clássico, flertou com o surrealismo, ora mais, ora menos expressionista até produzir uma arte “picassiana”. A exposição PICASSO E A MODERNIDADE ESPANHOLA – OBRAS DA COLEÇÃO DO MUSEO NACIONAL CENTRO DE ARTE REINA SOFÍA

traz 90 obras que datam de 1910 a 1973, apontando os caminhos de Picasso e outros grandes artistas como Salvador Dalí, Joan Miró, Juan Gris rumo à Modernidade.

Centro Cultural Banco do Brasil


1863 Pintores do século XIX tinham que seguir regras de composição, de paleta de cores e escolher temas nobres, como cenas históricas e religiosas. No Salão da Academia Francesa, 3.000 obras rejeitadas foram expostas em um salão paralelo, que ficou conhecido como Salão dos Recusados. 1874 Primeira exposição impressionista.

1881 Nasce em Málaga, Pablo Picasso. 1883 Morre Édouard Manet, considerado o inventor da Modernidade. Suas telas chocaram a sociedade parisiense, tanto pela temática, quanto pela técnica. 1901 Picasso inicia a fase azul, com temáticas melancólicas, despertada principalmente pelo suicídio do amigo Carlos Casagemas, após uma desilusão amorosa.

1907 Picasso pinta As Senhoritas de Avignon trazendo a ideia de síntese geométrica para a pintura. Início do cubismo. Picasso e Georges Braque resgatam a poética de Cézanne, que dizia que o mundo podia ser representado com cilindros, cones e outras figuras geométricas simples. 1906 Picasso inicia a série de obras conhecida como fase rosa, de temáticas sensuais e circenses.

1904 Picasso muda-se definitivamente para Paris.

1917 “A verdade artística resultante da combinação dos elementos do espetáculo era uma verdade além da realidade, um tipo super-realista” disse Guillaume Apollinaire sobre o balé Parade que tinha figurinos de Picasso e libretto de Jean Cocteau.

1916 Dadaísmo, reação irreverente ao pensamento racional que teria levado a civilização à guerra.

1914 / 1918 I Guerra Mundial

Países europeus disputavam colônias nos quatro cantos do mundo. Desenvolvimento econômico e nacionalismo foram o estopim para a I Guerra Mundial.


1924 André Breton publica o Manifesto Surrealista. Inspirados nas ideias de 1937 Freud sobre a Bombardeio de psicanálise, artistas Guernica. passam a explorar o universo dos sonhos. 1933 Joan Miró se interessa O desemprego na pelas experiências de Alemanha era exploração do alarmante. Adolf Hitler é inconsciente. Foi nomeado Chanceler com considerado por Breton a proposta de recuperar como "o mais surrealista o país. de todos nós", apesar de nunca ter sido integrante do movimento. 1931 O rei espanhol perde a coroa, cai a Monarquia e é instaurada a República. 1928 Joan Miró apresenta Salvador Dalí aos surrealistas. Dalí, com 22 anos, foi visitar Picasso. "Vim vê-lo antes de ir ao Louvre", disse-lhe. "Fez você muito bem", respondeulhe Picasso. 1929 Quebra da bolsa de valores de Nova Iorque, conhecida como a Grande Depressão.

1939 Salvador Dalí é expulso do grupo dos surrealistas. E declara “O surrealismo sou eu”.

1939 / 1945 II Guerra Mundial

A Alemanha invade a Polônia em 1939. O mundo se divide entre as potências do eixo e os aliados. Picasso permanece em Paris. Os alemães "visitam" seu ateliê depois de invadirem a cidade. A pintura a óleo As enguias do mar foi feita após o episódio, por isso os peixes têm a boca aberta e a paleta é triste, como nos desenhos de Guernica.

1936 / 1939 Guerra Civil Espanhola

O General Francisco Franco tenta assumir o governo da Espanha com um golpe militar. Começa assim a guerra civil.

1973 Picasso viveu até os 91 anos. Sua genialidade deixou um legado de obras que ainda inspiram os artistas contemporâneos.


CUBISMO Você reconhece uma mulher nessa pintura? Este é o retrato de Fernande Olivier companheira e modelo de Picasso entre 1904 e 1912. Observe a figura. Que partes do corpo você identifica? Picasso estava explorando formas de pintar temas tridimensionais (que possuem altura, largura e volume) na superfície bidimensional de uma tela. Imitar a natureza, eis o que um pintor renascentista deveria aprender. Saber misturar as tintas nos tons corretos para representar as coisas e, com pinceladas, dar a real textura e volume dos objetos. Os tons e a suavidade da pele, a aspereza da pedra, o brilho gelado dos metais, as dobras dos tecidos. Além disso, a matemática havia ensinado a desenhar o espaço com efeito de profundidade, como se o quadro fosse uma janela aberta. Picasso era um grande desenhista e dominava com excelência as técnicas da pintura acadêmica. Nessa tela, percebe-se a profundidade? Sentimos dificuldade em separar o que está atrás do que estaria na frente. O fundo da obra vem para o primeiro plano.

Desconstrução O que Picasso buscava no cubismo? Desconstruir a perspectiva e a figura. E como ele fez isso nessa tela? Usando linhas geométricas (como havia visto nas máscaras cerimoniais africanas), pinceladas paralelas bem marcadas e cores muito parecidas que vão do terra ao cinza. A economia de cores era proposital. Picasso não queria que cores fortes desviassem a atenção do principal: a pesquisa de composição de vários pontos de vista ao mesmo tempo. Nessa ideia de desconstrução, ele começa a puxar o fundo para frente, muitas vezes misturando figura e fundo, usando e abusando de elementos geométricos. Picasso e Juan Gris queriam a mesma coisa: fundir a figura com o fundo. Por quê? Para que contemplássemos a obra antes que nossa razão procurasse identificar a figura. Os pintores não tinham mais a obrigação de retratar o real, pois assim o fazia a fotografia. A pintura podia ser apenas pintura.

Pablo Picasso (1881–1973) Cabeça de mulher (Fernande), 1910 Óleo sobre tela 61 x 50 cm Acervo do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri © Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2015




Construção Repare como o artista com poucos elementos consegue nos mostrar uma cena, o Arlequim com o seu violino. Arlequim? Violino? Onde? Sim, o cubismo fragmenta e reúne, sugerindo mais e mostrando menos. O instrumento musical aparece em partes, escondendo o todo. O Arlequim segura o arco, aquele objeto que parece uma varinha, e, do outro lado, dois “f” anunciam a presença do corpo do instrumento. Juan Gris estuda com cuidado o que colocar na composição transformando o espectador em investigador.

Os primeiros violinos tinham apenas rasgos nas laterais do tampo para a ressonância do som. A transformação dos antigos orifícios em “f” tem uma explicação na física, porque essa forma filtra as ondas sonoras produzidas, garantindo um som mais vibrante. Dizem que o primeiro luthier a utilizá-la, no final século XVI, teve sonhos e visões de grandes “efes”, quase uma “revelação divina” antes de construir o instrumento. Mas o mistério dessa história é que a precisão do “f” só foi comprovada cientificamente pelo físico Helmholtz, que nasceu em 1821, mais de 300 anos depois. Certamente, no final dos anos 1500 não existia esse conhecimento de engenharia acústica, mas o desenho foi feito com precisão milimétrica! A forma destes “f” pode ter surgido da tipologia cursiva inventada pelo tipógrafo italiano Aldo Manuzio (14501515) e comunicam para o exterior as vibrações do ar de dentro do violino.

Se Picasso desconstrói a figura na pintura, Juan Gris faz o inverso. Gris constrói seu desenho como num jogo de montar com figuras geométricas, que dão movimento à imagem. Uma vez que os triângulos, trapézios, retângulos e losangos estão encaixados, ele insere os elementos para reconhecermos a figura. O personagem da Commedia dell'arte, Arlequim, tem sua roupa em formatos de balões coloridos por ter sido muito remendada, fazia muitas travessuras por aí, como roubar beijos das moças e doces de crianças. O Arlequim está olhando para frente ou para o lado?

Commedia dell'arte Você com certeza já ouviu falar do Arlequim e da Colombina! São figuras da Commedia dell'arte, uma forma de teatro popular de rua que surgiu na Península Itálica no século XVI. Os personagens eram os mesmos com algumas opções de enredo: os servos, os velhos, o avarento, o bacharel, os enamorados. A improvisação era elemento fundamental e, posteriormente, o uso de máscaras. Juan Gris (1887–1927) Arlequim com violino, 1919 Óleo sobre tela 91,7 x 73 cm Acervo do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri


TRAGÉDIA Durante a Guerra Civil Espanhola, a Frente Popular encomenda a Picasso uma obra para arrecadar fundos na luta pela República. A obra seria apresentada no pavilhão espanhol da Exposição Universal em Paris. Picasso primeiro pensou em pintar uma tela que falasse da liberdade da arte, mas seu tema mudou devido a uma tragédia. Para demonstrar seu poder, Franco bombardeou com a força aérea alemã a pequena vila de Guernica, matando centenas de indefesos civis.

“Guernica é a aldeia mais feliz do mundo. Seus assuntos são governados por uma junta de camponeses que se reúne sob um carvalho e sempre toma as decisões mais justas.” disse Jean Jacques Rousseau (1712-1778).

A cidade é símbolo da relação entre a monarquia espanhola e a nação basca. Os reis espanhóis tinham a tradição de viajar até a cidade de Guernica e debaixo dessa árvore juravam respeitar os costumes locais. Picasso fez 45 estudos antes de pintar a cena do painel. Os desenhos mostram a versatilidade do artista, pois ele mistura elementos cubistas e expressionistas, com toques de surrealismo. Esta cabeça de cavalo é um exemplo. O nariz, os dentes e os olhos estão distorcidos formando uma imagem dramática de pânico. Na sombria paleta de Guernica, em que não há cores, o cavalo simboliza o povo da cidade bombardeada em sofrimento e sua língua é pontuda como uma espada. Na exposição está o desenho Mãe com o filho morto que lembra a Pietà, que em português quer dizer “piedade”, um tema recorrente na arte sacra, em que Maria embala em seus braços o corpo sem vida de seu filho Jesus.

Guernica é uma grande pintura de 3,49 m de altura e 7,76 m de comprimento faz parte do acervo do Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía. O painel já esteve aqui no Brasil, em 1953, na II Bienal Internacional de Arte de São Paulo. A viagem começou em Nova Iorque, onde a obra estava sendo exposta no Museu de Arte Moderna. Foi para a Itália de avião, de lá foi para Santos por navio e, só então, é que chegaria à "Terra da Garoa" por caminhão. A história não acaba aí: o caminhão que trazia a obra atolou na lama do Parque do Ibirapuera, que ainda estava sendo construído, até finalmente chegar ao Pavilhão da Bienal. A obra foi tão comentada que a exposição ficou conhecida como “Bienal de Guernica”.


Pablo Picasso (1881–1973) Cabeça de cavalo. Esboço para Guernica, 02/05/1937 Óleo sobre tela 65 x 92 cm Acervo do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri. Legado Picasso, 1981 © Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2015



FIGURAÇÃO - ABSTRAÇÃO Uma coisa da qual Picasso não abriu mão a vida toda foi a figura. Ele nunca fez algo completamente abstrato. Reconhecemos figuras em qualquer trabalho seu. Esse é o retrato de Marie Thérèse, que foi modelo e amante do artista. Seu rosto está inclinado, a cabeça apoiada em sua mão sugere ternura. O nariz aparece de dois pontos de vista diferentes, um de perfil e outro que poderia ser metade de um nariz de frente, mas deslocado de onde “deveria” estar. A boca e um dos olhos estão de frente. A modelo pode ser vista de frente e de perfil ao mesmo tempo. Embora não seja uma pintura realista, reconhecemos uma mulher. Mas e quanto ao resto da pintura? Se dividirmos a pintura ao meio em diagonal e taparmos a metade superior, vemos um trabalho abstrato. Aqui Picasso mistura cubismo e uma visão pessoal do surrealismo. Marie Thérèse e Dora Maar foram amantes do pintor ao mesmo tempo. Compare seus retratos na exposição. A paleta de cores, a forma de olhar, a posição da cabeça trazem características da personalidade dessas mulheres.

[Figuração] uso de imagens que reconhecemos no mundo que nos rodeia, como pessoas, animais, objetos, paisagens. [Abstração] ausência de imagens que representam a natureza. Formas livres, como manchas coloridas e figuras geométricas.

Pablo Picasso (1881–1973) Mulher sentada apoiada sobre os cotovelos, 1939 Óleo sobre tela 92 x 73 cm Acervo do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri © Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2015


MODERNIDADE ESPANHOLA Picasso foi o primeiro artista espanhol de sua época a ganhar fama fora da Espanha, tornando-se um modelo para os pintores da sua terra. Mas nem todos os artistas espanhóis estavam de acordo com o caminho que a arte tinha tomado. O cubismo rompeu com as formas de representação que dominavam desde o renascimento e surgiram correntes bem diferentes. Alguns modernos defendiam pintar as figuras baseando-se nas formas clássicas, outros propunham usar imagens que causam estranhamento, há quem trilhava um caminho construtivo ligado à abstração. Este é o Arlequim de Salvador Dalí, conhecido como um dos grandes nomes do surrealismo. Mas aqui vemos um trabalho anterior a essa fase. Observe como o artista dividiu a pintura em duas áreas iguais. Elas são marcadas por uma grande diagonal, onde um fundo é amarelo e outro é vermelho. Dalí pintou de uma maneira que a área em branco com volumes amassados pareça ser de tecido. É a cabeça do Arlequim! A área azul é a outra metade da face. Dalí considera os rostos divididos de Picasso, em especial a série de Arlequins produzida na década de 1910. Você consegue ver onde estão os olhos dele? Artistas de circo e saltimbancos são temas recorrentes nas obras dos artistas modernos, pois despertavam o fascínio por serem viajantes, forasteiros.

Salvador Dalí (1904–1989) Arlequim, 1927 [1926] Óleo sobre tela 196,5 x 150 cm Acervo do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri © Salvador Dalí, Fundació GalaSalvador Dalí / AUTVIS, Brasil, 2015



Joan Miró (1893–1983) Figura e pássaro na noite, 1945 Óleo sobre tela 147 x 114 cm Acervo do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri © Successió Miró, Miró, Joan/ AUTVIS, Brasil, 2015

Joan Miró (1893–1983) Pintura (Cabeça e aranha), 1925 Óleo sobre tela 89 x 116 cm Acervo do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri © Successió Miró, Miró, Joan/ AUTVIS, Brasil, 2015


"Considero meu ateliê como uma horta. Trabalho como um jardineiro, como um vinhateiro. O meu vocabulário não vem de repente. As coisas seguem o seu curso natural, crescem, amadurecem.”

O P OETA V ISUAL Joan Miró nasceu em Barcelona, mas foi na ilha espanhola de Palma de Maiorca que descobriu a coloração intensa do céu e do mar. Criou um vocabulário composto por linhas, manchas e áreas coloridas. Suas formas orgânicas e construções geométricas recriam um mundo de sonhos pessoal. Na passagem de Miró pela Academia Galí, de Francesc d´Assís Galí, já se destacava a sua noção de cor. A fim de aprimorar o domínio das formas, o mestre sugeriu que Miró vendasse seus olhos e tocasse objetos para depois reproduzi-los em papel. O original método de desenho “pelo tato” despertou sua fascinação pelas irregularidades das superfícies.

Por volta dos 25 anos mudou-se para Paris, onde as vanguardas dominavam o cenário artístico. Lá, conheceu o movimento dadaísta e depois o surrealismo, mas nunca integrou nenhum deles. Miró ficou particularmente interessado nas experiências de exploração do inconsciente. Artistas como Dalí promoviam sessões de hipnose onde os participantes gravavam seus delírios, por vezes, causados pela ingestão de álcool. Miró, por sua vez, declarou que por falta de dinheiro (seu reconhecimento só aconteceria alguns anos depois) não jantava e rabiscava no papel as sensações que a fome lhe provocava. Miró faz os desenhos espontâneos e os transforma em signos, relacionando-se com o automatismo do início do surrealismo. Mas seu intuito é fazer poesia e não revelar os desejos profundos.

“Não faço distinção entre pintura e poesia.”

Assim como seus conterrâneos, Miró também vai desenhar um personagem da Commedia dell’arte. Em seus estudos sobre o irracional e o fantástico, ele cria a obra Carnaval de Arlequim (1924-25) sem nenhum compromisso com o figurativo e com uma composição de cores brilhantes (azul, vermelho, amarelo, verde, preto). A obra participou da primeira exposição surrealista. Miró participou ativamente da luta pela liberdade de seu país. Pintou cartazes de propaganda política e idealizou o mural O camponês catalão em rebeldia. Essa pintura é também conhecida como O ceifador, uma referência à Morte, aquela que chega com a foice para ceifar a vida. Curiosamente a carta O ceifador do baralho do tarô tem cabeças coroadas ao chão. A obra, que hoje está desaparecida, foi apresentada ao lado de Guernica no pavilhão espanhol da Exposição Internacional de Paris. Miró morreu aos 90 anos, celebrado em todo mundo como um dos grandes artistas do século XX.


A MATÉRIA DO VAZIO Jorge Oteiza construiu esta escultura a partir de uma chapa de ferro que ele cortou e dobrou. Porém o que é mais importante nessa obra não são as partes de ferro, mas os espaços vazios e os efeitos de luz e sombra que a obra cria. Repare na sombra que ela faz. O cubismo propôs um modelo de representação inovador e radical ao fragmentar o objeto em pontos de vista variados e depois reagrupá-los na tela. Ver todos os lados ao mesmo tempo com toques de geometrização fez com que quase perdêssemos a referência da figura representada. O movimento ficou em um limite entre figuração e abstração. Muitos artistas seguiram experimentando o cubismo, muitas vezes mudando a sua poética e criando novos movimentos. A escultura abstrata de Jorge Oteiza, Homenagem a Mallarmé, é uma herança do cubismo. A obra é explorada tridimensionalmente para que o espectador investigue o espaço e experimente as mudanças que cada lado apresenta. A beleza está na forma, na combinação entre cheios e vazios, na alternância entre luz e sombra. A sombra projetada no chão pode ser considerada parte da escultura, pois o volume e os vazios criam desenhos interessantes que mudam de acordo com a iluminação. Depois de produzir esta obra, Oteiza encerrou suas atividades como escultor.

Em 1897, Stéphane Mallarmé lança o livro Um lance de dados jamais abolirá o acaso, que revoluciona a poesia. Os versos eram dispostos de maneira inusitada, como se fossem contornados pelo vazio do papel. Mallarmé considerava que no vazio ele poderia encontrar as melhores formas, ao que poderia ser atribuída a homenagem de Jorge Oteiza.


Jorge Oteiza (1908–2003) Homenagem a Mallarmé, 1958 Chapa de ferro 54 x 60 x 40 cm Acervo do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri © Embil, Jorge Oteiza/ AUTVIS, Brasil, 2015


Pablo Gargallo (1881–1934) Mulher em vazio descansando, 1922 Bronze patinado 25,5 x 32,5 x 25 cm Acervo do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri Pablo Gargallo (1881–1934) Silhueta de um homem jovem, Ca. 1933–1934 Ferro 93 x 22 x 22 cm Acervo do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri


SÓLIDOS ETÉREOS A grande contribuição dos gregos foi dar a impressão de vida e a sensação de movimento aos corpos. Usando a matemática para medir cada parte do corpo humano, inauguraram uma fase de beleza idealizada que se tornou referência para a arte ocidental. Enquanto as esculturas gregas trazem o volume das formas arredondadas para fora, convexas, Pablo Gargallo vai “cavar” a obra, criando uma figura feminina ainda com formas arredondadas, mas côncavas. O escultor clássico usa um instrumento cortante, o cinzel, com o auxílio de um martelo para esculpir o material e extrair a forma que deseja do bloco de pedra. Herdamos desse período a ideia de escultura associada a figuras sólidas. Gargallo, nos últimos anos de vida, desenha esculturas de ferro no ar. Em Silhueta de um homem jovem, o volume é criado pela sombra que a escultura projeta. A Modernidade traz o volume para dentro da pintura e a escultura se transforma em linha.

Cópia em mármore, séc. II Myron de Eleuteras Discóbolo ou Atirador de Discos, 450 a.c. Original em bronze


ARTE

SOBRE

ARTE

A partir de 1923, Picasso produz uma série de composições de naturezasmortas. Observe como Picasso trabalha a dualidade nesta obra: Em estilo herdado do cubismo, esta pintura faz uma alusão à arte clássica e à natureza-morta, criando, ao mesmo tempo, um clima quase surreal. As cores branca e preta no rosto provocam uma fissura no busto. Os pincéis ao lado do busto parecem comparar pintura e escultura. A grande paleta em formato de crânio parece ter mandíbulas, e contrasta com o busto de gesso que evoca o ensino acadêmico. O busto é de uma figura masculina, mas as frutas, pintadas estrategicamente na área que seria a continuação do tórax, lembram seios. A porta semiaberta da varanda cria dois ambientes: o espaço do ateliê (interno) e o céu em uma paleta azul mais escura (área externa). A desproporção da maçaneta cria a sensação de irrealidade em contraste com o desenho mais realista da porta da varanda. Talvez Picasso estivesse fazendo uma referência à contraposição entre pintura e escultura ou entre o bidimensional e o tridimensional.


Pablo Picasso (1881–1973) Busto e paleta, 1925 Óleo sobre tela 54 x 65,5 cm Acervo do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri © Succession Pablo Picasso / AUTVIS, Brasil, 2015


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Pablo Picasso (1881–1973) O pintor e a modelo, 1963 Óleo sobre tela 130 x 161 cm Acervo do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, Madri

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