Simon Mawer
A sala de vidro
Título Original: The Glass Room Copyright © Simon Mawer 2008 Copyright da edição portuguesa © 2009 Edições Vieira Av. Rodrigues de Freitas, 265 4049-021 Porto Tel.: 22 519 24 26, Fax: 22 536 70 36 E-mail: webmaster@f ba.up.pt Todos os direitos reser vados Tradução: Helena Lopes Revisão: Departamento Editorial Vieira Design: Sara Caldas Pré-impressão, impressão e acabamento: Sara Caldas ISBN 978-972-26-2771-9
NOTA DO AUTOR
Embora A Sala de Vidro seja uma obra de ficção, a casa e o seu cenário não são fictícios. Disfarcei os dois mudando-lhes os nomes, mas isso não vai enganar ninguém que conheça o edifício que serviu de modelo à Casa Landauer ou a cidade que se esconde por trás do nome Mesto. Todavia, penetrando nesses ténues disfarces não vai levar a posteriores revelações: Liesel, Viktor, Hana e todos os outros são criações da minha imaginação e a sua história não tem uma base de facto. Algumas personagens não fictícias aparecem por breves momentos. Uma delas é a prodigiosa compositora Vítèzslava Kaprálová, cuja vida tragicamente curta parece ser emblemática da genial mas condenada Primeira República da Checoslováquia. Aconselho o leitor a pesquisar mais acerca dela, e do seu país.
Para Matthew e Julia
REGRESSO
Ah sim, estamos aqui. Ela sabia, mesmo depois de todos estes anos. Algo na inclinação da estrada, a forma como a trajectória do carro começou a curvar-se no sentido ascensional, uma percepção da forma e do movimento que, apesar de não estar acostumada a ela durante trinta anos, ainda estava gravada na sua mente, para ser novamente despertada pela coincidência subtil de movimento e inclinação. – Estamos aqui - disse ela em voz alta. Agarrou na mão da filha e apertou-a. A escolta deles, no banco traseiro do carro, moveu-se sobre o assento brilhante de plástico, talvez em sinal de alívio perante a perspectiva de uma escapadela iminente. Conseguia sentir o cheiro dele. A roupa molhada (estava a chover) e o aftershave barato e o suor retardado. O carro – um Tatra, disseram-lhe – aproximou-se do passeio e parou. Alguém abriu a porta. Ela conseguia ouvi-lo, e sentir a mudança no ar. Leves salpicos de água no meio do vento e alguém a abrir um guarda-chuva – como a vela de um barco a abrir-se com um estalido seco no meio da brisa. Lembrou-se de Viktor no Zürichsee, o pequeno barco à vela a balouçar nas ondas, com as árvores negras a elevarem-se da água ainda mais negra por trás da sua frágil embarcação. “É como andar de bicicleta” tinha ele gritado, enfrentando o vento com o barco, forçando a pequena embarcação a inclinar-se lateralmente. “Adquires a percepção do equilíbrio. “Não é nem um pouco como andar de bicicleta”, tinha ela respondido, sentindo-se enjoada. 9
SI MON M AW ER
Viktor devia estar aqui. Fisicamente, queria ela dizer, porque de certa forma ele estava ali, é evidente. O gosto dele, a visão dele consagrados. Deslizou ao longo do assento em direcção à névoa de luz que era a porta aberta do carro. Uma mão agarrou-lhe o braço e ajudou-a a sair para o passeio. Houve um roçar de chuva pelo seu rosto e o matraquear de pingos sobre o guarda-chuva acima da cabeça. Ela endireitou-se, sentindo a luz à sua volta, sentindo o espaço, sentindo o volume baixo da. casa precisamente ali do outro lado do pátio de entrada. Viktor devia estar aqui. Mas Ottilie estava, vindo para o seu lado esquerdo. – Está tudo bem, querida. Consigo orientar-me sozinha. Uma mão estranha agarrou-lhe o cotovelo e ela soltou-se. – Pensam que eu não conheço a minha própria casa? Falou de modo áspero, e logo de seguida lamentou a observação pela sua brusquidão e pura incorrecção dos factos. Não era a sua casa, já há muito tempo, não em termos legais, independentemente do que Martin pudesse dizer. Roubada, com toda a solenidade dos procedimentos legais, duas vezes, pelo menos, e por duas autoridades diferentes. Mas, em outros termos menos nitidamente definidos, ela era a sua casa. Dela e de Viktor. A visão. E ainda mantinha o nome deles, não era? Não houve usurpação jurídica que conseguisse apagálo: Das Landauer Haus. A Casa Landauer. A Vila Landauer. Digamno como desejarem. E de Rainer também, é claro. Batendo levemente com a bengala ela avançou através do espaço, através do pátio de entrada, enquanto a seu lado se alinhavam passos e discretamente acompanhavam os seus, como o cortejo fúnebre num funeral a acompanhar a viúva corajosa. – O pavimento é o mesmo - disse ela. É incrível como sobreviveu. A voz que respondeu foi a de um homem da direcção do serviço de obras. – Mas é uma obra de arte - acrescentou ele, como se obras de arte sobrevivessem inevitavelmente, quando de facto muitas vezes não sobrevivem. Um fogo aqui, alguma humidade a infiltrar-se numa parede ali, a queda aleatória de uma bomba, pura negligência. - Vejase o modo como Von Abt enquadrou a vista do castelo - disse ele, e depois calou-se, atrapalhado com a sua falta de tacto. 10
A SA L A DE V I DRO
‑ Recordo-me exactamente - tranquilizou-o ela. E era verdade, conseguia lembrar-se exactamente de como era: o espaço entre a casa principal e o apartamento dos criados, o apartamento de Laník, enquadrando a colina no ponto mais extremo da cidade. “O futuro enquadra o passado”, tinha dito Rainer. Ela conseguia percebê-lo com o único olho que agora possuía, o olho da sua mente, até certo ponto um lugar comum mas um facto bem real, o todo projectado no interior da complexa massa gelatinosa do seu cérebro para lhe dar uma imagem que era quase tão real como se ela visse: a colina arborizada (a Fortaleza pilas) e a catedral com os seus rebordos abobadados e as flechas negras, tal qual agulhas hipodérmicas, como dizia Rainer. Ela continuou a andar. À medida que se aproximava, o volume da casa obstruía a luz à sua volta. Havia um pilar isolado naquele ponto, sustentando o telhado suspenso. Recordava-se das crianças a rirem à volta dele, e Liba a gritar-lhes que parassem. Estendeu a mão em a bengala e tocou no pilar, apenas para se localizar no espaço aberto do pátio de entrada, apenas para se deliciar com a pequena inspiração de ar feita pelo homem junto ao seu cotovelo direito que lhe dizia como estava espantado com a forma como ela se conseguia ~tar. Mas é evidente que conseguia. Conhecia este lugar como... como o interior da sua mente. Sabia exactamente como contornar a parede envidraçada e descobrir, encoberta por ela, a porta da frente. ‑ Uma fotografia - gritou uma voz. A pequena procissão parou. Houve um arrastar de pés e deslocações à volta dela, um contacto com grandes silhuetas masculinas. – Onde estás, Ottilie? – Estou aqui, Maminka1. – Sorriam, por favor - disse a voz e houve um instante de luz brilhante, como se um relâmpago tivesse lampejado, por breves momentos, por trás do branco leitoso uniforme de uma nuvem envolvente. Depois o grupo desfez-se e mãos guiaram as suas costas em direcção à casa enquanto alguém abria a porta da frente, e a convidava a avançar, “Por aqui, por aqui”, para o meio do silêncio agradável e familiar do átrio de entrada. Um discreto manto de nevoeiro à sua volta, a luz opalescente que era tudo o que ela veria agora, que se tinha 1
“Mãezinha, mamã”. Em checo no original. (N. da T.)
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