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Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação Serviço Técnico de Biblioteca Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
M357p
Marques, Sérgio Pragurbana: Poéticas do Território Urbano / Sérgio Marques ; orientadora Marta Bogéa. - São Paulo, 2017. 184 p.
PRAGURBANA Trabalho Final de Graduação (Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
P o é t i c a s d o Te r r i t ó r i o U r b a n o 1. Teatro. 2. Urbanismo. 3. Cidade. 4. Artes Cênicas. 5. Arquitetura. I. Bogéa, Marta, orient. II. Título.
fauusp junho 2017
Sérgio Marques orientação Marta Bogéa
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Dedico este trabalho à duas mulheres: Minha mãe, Sandra Leitte, que, quando comecei a fazer teatro em 2006, saía do trabalho e esperava cerca de uma hora no saguão até acabar o ensaio e podermos pegar o último ônibus para casa. Minha segunda mãe e tia, Tereza Santos, que sempre arranja tempo para correr atrás de adereços, figurinos ou qualquer coisa que eu precise, além de sempre fazer questão de me ajudar a arrumar a mala de figurino antes de sair para o teatro. Devo a vocês tudo o que construí nos últimos anos!
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Agradecimentos Sempre me considerei muito sortudo por ter pessoas especiais cruzando a minha trajetória. Não tenho como deixar de agradecer a cada uma delas. Agradeço imensamente à: Henrique e Maristella, por acreditarem, me ampararem e ficarem comigo até o último minuto, sem vocês nada disso seria possível. Diego e Bia por um início de processo tão rico e especial. Thais Vaz pela ajuda e pelo registro. Beatriz, Larissa, Juliana e Serafim por trazerem tanto entusiasmo e frescor a este processo. Teatro é uma arte coletiva. Este trabalho é nosso! Marta Bogéa, a faísca que reascendeu em mim a paixão pela arquitetura durante meu percurso na Fau. Tecer esse trabalho orientado por uma pessoa tão sensível e generosa foi o maior presente que eu poderia receber nessa reta final. Myrna Nascimento, a primeira professora de projeto. Por me ensinar tão cedo que boas referências podem surgir de qualquer livro, filme ou peça que me interessasse, não só de autores clássicos. Luiz Fernando Lubi, a grande inspiração. Por mostrar que é possível conduzir um processo com leveza e seriedade. Sua sensibilidade e generosidade me inspiram a ser um artista cada vez melhor. Sara Goldchmit. Por compartilhar comigo a frase que reverbera a cada novo trabalho “não basta só contemplar o mar e as embarcações, temos que construir nosso próprio barco para desbravá-lo” Vera Hamburguer pelas fronteiras permeáveis, Victor Nóvoa pelas paisagens dramatúrgicas e Carmen Morais pelos ambientes poéticos e Diogo Granato, Grupo XIX e todos os integrantes do
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Núcleo pela estufa urbana. Todos os meus professores do colégio, do Indac e da Fau, que têm papel fundamental nessa trajetória. Minha família, cujo apoio e amor são fundamentais sempre. Heron e Rodrigo por serem os melhores parceiros que eu poderia ter nos primeiros anos de Fau. Larissa pelas conversas, desconstruções e apoio. Marcel, Mari e Ju pelas risadas e momentos tão preciosos no estúdio. Ao bonde mais bonito da Fau que trouxe frescor e alegria a um trajeto que começava a se desgastar. Vocês não tem ideia da importância que tiveram. Zi, por me abrir as portas do Cac. Caio pelo apoio, carinho e primeira leitura deste trabalho. Zé e Lívia pela compreensão e apoio em momentos tão difíceis. Bonitos por não desistirem de mim. Alex, Carou, Samanta, Lucas e Zé pela ajuda fundamental nessa reta final. Mari Novaski por ser uma grande inspiração. Lyvia e Gabriel pela compreensão e apoio. Todos os amigos da Fau, do Cac e do Indac, por partilharem comigo momentos tão especiais de aprendizagem, crescimento e diversão. Yara, amiga, diretora e parceira de tantos projetos e ao Grupo MilCoisas que nunca deixou minha chama teatral se apagar. Caio e Betinho, por virem em mim um diretor muito antes que eu mesmo visse. Aos elencos disponíveis e generosos que já tive o prazer de dirigir. Fau, que permite que trabalhos como o meu sejam escritos e aceitos como reflexões importantes acerca de como desenhamos e praticamos nossas cidades. Meu tênis colorido que teceu meu primeiro percurso até a Fau na prova específica e hoje tece o último como aluno da graduação (se tudo der certo).
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Resumo A partir da análise das relações estabelecidas entre teatro e rua ao longo da história e do modo como pensamos e nos relacionamos com o espaço público, este estudo propõe procedimentos e intervenções artísticas que investigam novas maneiras de ler, habitar e “praticar” o território das cidades. Palavras-Chave: Arquitetura. Teatro. Artes Cênicas. Urbanismo. Dramaturgias da cidade.
Abstract Analyzing the relations between theater and the urban space throughout history and the way we think and relate with the public space, this study come up with procedures and artistic interventions that explore new ways of live, read and practice the urban territory. Keywords: Architecture. Theater. Urbanism. Performing Arts. Dramaturgies of the city.
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“Vistas de longe, as grandes cidades são um acúmulo de grandes edifícios, grandes populações e grandes áreas. Para mim, isso não é “real”. O real é a cidade tal como ela é vista por seus habitantes. O verdadeiro retrato está nas frestas do chão e em torno dos menores pedaços da arquitetura, onde se faz a vida do dia-a-dia.” Will Eisner (2009, p. 19)
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Preparação para o experimento realizado na Zona Oeste de São Paulo. Foto: Thais Vaz
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Sumário Um Convite - 16 Prólogo - Da Fau às ruas - 20 Ato I - Theaomai _o território urbano - 28 _possíveis ressignificações do espaço - 37 _teatro da/na rua - 65 Ato II - Experiência Urbana _coletivo Pragurbana - 100 Epílogo - A Rua que me atravessa - 166 _referências - 174 _ficha técnica das peças - 180
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Um convite “Cada pessoa tem uma cidade que é uma paisagem urbanizada de seus sentimentos” Luiz Garcia Montero (apud CANCLINI, 2008, p.15)
A cidade é lida, vivida e descrita por cada um de maneira diferente. A cidade não é a mesma para aquele que ali nasceu, para o que está prestes a deixá-la ou para o viajante que acaba de adentrá-la, por exemplo. Existem cidades e universos inteiros dentro de cada um de nós e de cada elemento da paisagem urbana. Recomendo que leia este caderno na rua, nos lugares em que mais aprecia estar ou até mesmo em lugares que nunca foi antes. O formato dele foi pensado para isso. Observe nos elementos que compõem a paisagem os convites quase invisíveis à permanência e se permita estabelecer novas relações e encontrar novas funções no espaço. Derive sem rumo, crie suas áreas de permanência e viva a rua. Encontre, escute, descubra novos pontos de vista. Boa viagem!
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Foto de Sérgio Marques
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Foto de Diego Torres Silvestre
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Inquietações iniciais Não sei dizer ao certo quando a inquietação começou, mas uma das primeiras provocações das quais me lembro veio no segundo ano da graduação na FAUUSP, em 2011, quando o professor Takashi Fukushima pediu que desenhássemos um mapa estilizado do nosso trajeto até a USP, destacando elementos e acontecimentos marcantes da paisagem urbana. Logo percebemos que, por mais habituados que fôssemos com nossos trajetos, víamos muito pouco do nosso entorno durante os deslocamentos diários, como se não estivéssemos realmente presentes no espaço que habitávamos. Ali comecei a compreender que a rua é cada vez menos vista como lugar de encontro. Não nos permitimos parar, encontrar e viver o espaço público. Dois anos depois, outra provocação. A professora Marta Bogéa nos desafiou a encontrar metodologias alternativas para apresentar um projeto arquitetônico, o que me levou ao documentário “My Playground”(2009), em que praticantes de parkour correm e desbravam os volumes, cheios e vazios de alguns edifícios do escritório Bjarke Ingels Group (BIG) e de outros ao redor do mundo. Neste filme, o corpo dos protagonistas expande o espaço e o testa até as últimas consequências, buscando e ressignificando paredes, coberturas, janelas etc, para compor seus trajetos. Os protagonistas trazem à tona a vontade de transformar o espaço urbano e de se relacionar com a rua utilizando como ferramenta apenas seus corpos, que se revelam instrumentos extremamente potentes, uma vez que justificam e ressignificam o desenho. Assim, o gesto do arquiteto que define planos, limites e topografias no espaço só se completa efetivamente no momento em que uma ou mais pessoas estabelecem relação com tais elementos.
23 Praticantes de parkour.
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“Percepciona-se a arquitetura tal como é: moldura para a vida humana. A arquitetura é um meio, a vida é o seu objetivo.” (INGELS, 2011, p. 385.)
Título do filme: My Playground Diretor: Kaspar Astrup Schröder Ano: 2009
Quanto mais “desobediente” essa interação for, mais ricos serão os significados e interpretações que o espaço poderá ter, revelando potencialidades nunca antes imaginadas pelo seu criador. Outra referência que cruzou minha trajetória foi a obra do quadrinista americano Will Eisner. Em “Nova York: a vida na grande cidade” (2009), o autor cria pequenas histórias de cerca de uma página envolvendo elementos urbanos. As janelas, respiros do metrô, paredes, escadas etc surgem como disparadores de pequenas dramaturgias. A partir da leitura deste livro, passei a observar e me atentar não só às ruas e lugares pelos quais eu passava diariamente, mas também às pessoas e às relações que elas estabeleciam com a cidade, reconhecendo então o espaço vivido, o espaço além do desenho orientado pelo discurso dos urbanistas, moldado pelo cotidiano e pelas necessidades dos que o habitam. No ano seguinte, imergi na pesquisa teatral ao iniciar um curso técnico de interpretação e preencher minha grade na USP com disciplinas optativas nos departamentos de artes cênicas e audiovisual da ECA. Ao participar de um processo de iniciação científica sobre a encenação do drama wagneriano, conheci as ideias do arquiteto e encenador Adolphe Appia, que em sua época questionou as grandes pinturas em perspectiva que caracterizavam o cenário das peças e óperas, defendendo o uso da luz e a concepção de espaços praticáveis que efetivamente provocassem o corpo dos atores para criar novas dinâmicas para a encenação. Assim, mais uma vez fui convidado a investigar a relação entre corpo e espaço, entendendo agora como o jogo entre essas duas potencialidades poderia transformar a encenação e a linguagem teatral.
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26 De acordo com a Enciclopédia Britannica (1990, vol. 28:515)
Na II Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, em 2015, para minha surpresa reencontro uma professora da FAU, Raquel Rolnik, convidada para conduzir uma conversa após a peça “Julia” de Christiane Jatahy. Durante o debate ela apontou a vontade de diversos grupos e encenadores de saírem da caixa preta e do edifício teatral, propondo encenações em espaços não convencionais (públicos ou não). Tal gesto seria um reflexo do que ela considera ser uma vontade inconsciente da população de habitar e se relacionar com o espaço público. Essa fala me remeteu imediatamente aos questionamentos de quatro anos antes, e compreendi que talvez o teatro pudesse ser a ferramenta e a linguagem através da qual eu investigaria e provocaria novos olhares sobre a cidade.
Teatro para atravessar A palavra teatro, além de definir a arte dramática, caracteriza o lugar destinado à apresentação de obras, óperas ou outros espetáculos. Etimologicamente, esta deriva da palavra grega theatron, forma derivada do verbo theaomai, que significa ver com atenção, ou seja, ter uma experiência intensa e envolvente, a fim de descobrir um significado mais profundo do que se observa. Assim sendo, teatro é o “lugar para ver”. Contudo, ao pensar na arte teatral feita fora do edifício, o que caracterizaria esse lugar? Se não há a materialidade da construção arquitetônica, como se configuraria o “lugar de onde se veria”? Uma leitura possível seria a de que tal expressão artística neste caso define o lugar a partir da troca e experiência entre o artista e os transeuntes, de modo que poderia ser um convite a ver a rua no sentido do verbo
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theaomai, tirando seu caráter impessoal e despertando uma consciência a respeito do território das cidades.
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_território urbano “(...)a dimensão humana tem sido um tópico do planejamento urbano esquecido e tratado a esmo, enquanto várias outras questões ganham mais força, como a acomodação do vertiginoso aumento do tráfego de automóveis. Além disso, as ideologias dominantes de planejamento – em especial, o modernismo – deram baixa prioridade ao espaço público, às áreas de pedestres e ao papel do espaço urbano como local de encontro dos moradores da cidade” Jan Gehl (2013, p.3).
Cidade funcional Cidades como São Paulo são pensadas e desenhadas de modo a contribuir com a produtividade, reflexo dos processos de urbanização e industrialização pelos quais têm passado desde o fim do século XIX. A importância dada ao crescimento econômico gerou uma funcionalização do território urbano, que passou a ser composto por um emaranhado de vias que leva seus habitantes da maneira mais eficiente e rápida possível para seus ambientes de trabalho e depois de volta para suas casas. Não há, portanto, convites para a relação com a rua, uma vez que sua função passa a ser apenas a de passagem. Assim, surgem cidades compostas majoritariamente por um emaranhado de vias que conectam lugares, havendo cada vez menos áreas de permanência.
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Luis Antonio Jorge, em “a má educação das ruas e o desenho da cidade” (2013), ressalta que metrópoles como São Paulo são regidas e desenhadas pela cultura do trabalho. Seus habitantes vivem para isso e se definem enquanto persona social através das atividades que exercem, estabelecendo ”uma relação funcional com a cidade, com seus equipamentos e espaços públicos, feitos para nos servirem, antes de quaisquer interesses não utilitários” (JORGE, 2013, p. 79). Essa rotina urbana do trabalho parece “sedar” a percepção das pessoas, de modo que, por mais que sejamos atravessados por diversos estímulos, não nos permitimos viver outros modos de relação com a cidade. É absurda, por exemplo, a ideia de desacelerar ou parar em ruas de fluxo intenso cujo desenho estabelece direções claras para o deslocamento. A lógica funcional que orienta o desenho das cidades distribui ações específicas para serem desempenhadas em cada lugar: a rua é para passar, o parque é para praticar esportes, a praça é para sentar, etc. Assim, estabelece regras implícitas de uso que minam a liberdade dos transeuntes, ensinados desde cedo a não desobedecer às regras. Essa não “participação” foi designada por Guy Debord como um processo de espetacularização das cidades, onde seus habitantes desempenham o papel de espectadores, ou seja, não vivem efetivamente o ambiente urbano e estabelecem uma relação de passividade com o mesmo. Ao tratar deste processo, Paola Berenstein Jacques comenta que graças a ele a cidade “passa então a ser cenográfica, um puro cenário onde não há de fato ação nenhuma” (JACQUES in FURQUIM, 2007, p. 186). Como resultado, a população passa a estar
Termo analisado e discutido em “A Sociedade do Espetáculo” (Rio de Janeiro, 1997)
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Foto de Sérgio Marques
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cada vez mais distante da rua, não “participando” dela e se afastando cada vez mais do convívio em sociedade.
Convívio urbano As áreas de permanência passam a ser cada vez mais escassas e abandonadas no ambiente urbano, visto que não possuem uma função que contribui claramente para a produção. Essa obsessão pelo funcional e a verticalização acentuam a individualização, preparando cada vez menos as pessoas para a vida em comunidade, acarretando em um distanciamento do espaço público e da convivência. Esses transeuntes habituados a não estar no espaço público não compreendem, portanto, a importância de propostas que requalificam e criam novas áreas de permanência e convivência, não vendo problema na concepção de espaços cada vez menos convidativos e na falta de espaços públicos de qualidade na cidade. Espaços que inspirariam uma vida urbana efetiva, composta pela coexistência concreta entre seus habitantes. A importância desse convívio urbano é levantada por Henri Lefebvre em “O direito à cidade”, onde defende como direito do cidadão não “um simples direito de visita ou de retorno às cidades tradicionais”, mas um “direito à vida urbana transformada e renovada” (1968/2011, p. 118), dependendo da coexistência, isto é, estando diretamente ligado ao convívio. Entende-se, portanto, que o urbano perde seu sentido ao dissociar-se da vida em sociedade e das relações humanas. Isto posto, é possível pensar tal direito como algo muito mais coletivo que individual, pois, como coloca David Harvey em “A liberdade da cidade”, “reinventar a cidade
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depende inevitavelmente de um poder coletivo sobre o processo de urbanização” (HARVEY, 2012/2014, p. 28). Sendo assim, seria necessária uma tomada de consciência dos habitantes a respeito de tais processos, de modo que pudessem repensar e reinventar o urbano a partir das próprias ações, experiências e de como se relacionam com a cidade, opondo-se ao processo de urbanização ao desobedecer às funções por ele preconizadas. Para isso, penso ser fundamental o reconhecimento no tecido urbano daquilo que é fruto do discurso e desenho urbanístico, e do que se manifesta a partir de apropriações do lugar por seus transeuntes.
Contrastes entre projeto e ambiente Em “A invenção do cotidiano”, Michel de Certeau (1980\2012) propõe uma distinção entre os termos “espaço” e “lugar”. Para ele, o lugar é “uma configuração instantânea de posições. Indica uma condição de estabilidade” (CERTEAU, 1980\2012, p. 201), enquanto o espaço poderia ser definido como um “lugar praticado”. Isto posto, adotaríamos como lugar o local configurado por elementos concretos ordenados no projeto, enquanto o espaço seria o local dotado de memória e experiência, ou seja, vivido pelos transeuntes. Assim, ao habitarmos e nos relacionarmos com o lugar, atribuímos a ele um valor através da experiência que ali temos, de modo que o que antes era mero projeto passa a ter sentido graças às relações humanas que ali se estabelecem, ou como coloca Certeau: “a rua geometricamente definida por um urbanismo é transformada em espaço pelos pedestres” (2012, p. 202).
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Uma reflexão parecida é feita por André Carreira em “teatro da invasão: redefinindo a ordem da cidade” (2008 apud. FURQUIM, 2008, p. 67), onde aponta duas leituras possíveis para o espaço urbano: como projeto e como ambiente. Para ele, a cidade projeto seria a pensada pelos urbanistas, desenhada racionalmente seguindo determinadas regras e atribuindo funções, enquanto o ambiente seria resultado do acaso e das micropráticas cotidianas do espaço vivido, ou seja, da ação dos habitantes sobre aquilo que nasceu como projeto. Assim sendo, enquanto a cidade projeto tem relação com o que Certeau caracteriza como “lugar”, a cidade ambiente faz o mesmo com o que ele denomina “espaço”. Essa “prática do lugar” é, portanto, o que legitima ou não o projeto urbanístico. Ela indica se o que foi preconizado no desenho reflete de fato as necessidades e desejos daqueles que habitam diariamente a área em questão. Reconhecer o que é projeto e o que deriva de uma apropriação do espaço pelos habitantes seria então um exercício fundamental não só para os urbanistas, que poderiam somar a variável do cotidiano aos seus projetos e discursos, mas também para os cidadãos, uma vez que entender os convites implícitos feitos pelo desenho urbano e as novas relações que podem ser estabelecidas com o mesmo poderia transformar o modo que vemos e praticamos a cidade. Porém, de que maneira poderíamos de fato praticar o ambiente urbano? Como afiar o olhar para as potencialidades de lugares desenhados para desempenhar funções específicas? Para construir coletivamente a cidade ambiente que queremos viver, é crucial que encontremos modos de desafiar a ordem estabelecida.
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Inscritos na paisagem Como abordado anteriormente, o espaço urbano não incentiva seus habitantes a ler e perceber as camadas de memória e convites à experiência presentes nele. Ao refletir a respeito dessa inconsciência, Certeau coloca que o corpo do pedestre “obedece aos cheios e vazios de um ‘texto’ urbano que escreve sem poder lê-lo” (1980\2012, p. 171). Deve ser possível, porém, compreender, ler e articular esse “texto” mesmo estando inserido nele. Francis Wilker atesta que é urgente a “criação de oportunidades para que diferentes portas de percepção possam se manifestar nesses corpos-vias que praticam o espaço urbano, de modo a lançar renovadas possibilidades relacionais com o ambiente e seus mais diversos estímulos” (2014, p. 42). Ou seja, é fundamental abrir caminho para que percebamos aquilo que “inscrevemos” com nossos corpos na cidade, deixando de ser meros espectadores dela. Para provocar tal prática, seria então necessário nos libertarmos da percepção funcionalista, veloz e utilitária da cidade através de possíveis rupturas que abalariam a lógica da experiência urbana. Três propriedades chave que podem ser destacadas como essenciais nessa lógica são a velocidade de deslocamento, a clareza na orientação dos trajetos e a não-relação do corpo dos pedestres com o corpo da cidade. Trabalhar com tais elementos possibilitaria então o reconhecimento das influências do lugar em nós e indicaria possíveis maneiras de desafiar a ordem estabelecida. Vale observar que cada escolha de percurso ou jogo que estabelecemos com os obstáculos que se apresentam em
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nossas trajetórias diárias já configura em si um modo de praticar o espaço. Além disso, ao vasculharmos a memória, perceberemos que nossas principais lembranças carregam consigo informações do espaço que habitávamos ao vivê-las, com suas intensidades de luz, formas, cores etc. A principal lembrança da vida escolar, a recordação mais alegre, o aniversário inesquecível etc, cada uma aconteceu em um espaço, e algumas de suas características estão diretamente ligadas à recordação, o que também revela traços de uma prática e atribuição de valor ao lugar. Ao nos questionarmos então a respeito de quais seriam nossos espaços praticados, ou como a cidade habita nossas recordações, começamos a revelar e compreender a cidade que levamos conosco e o que inscrevemos nela, ou seja, desvelamos nossa leitura poética e sensorial do território urbano. Tal leitura poderia ser a chave para uma postura crítica em relação ao modo como vivemos esse território e como ele é pensado e configurado.
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Registro de atividade realizada na Avenida Paulista aberta aos pedestres. Foto: SĂŠrgio Marques.
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_possíveis ressignificações do espaço “Os jogos dos passos moldam espaços. Tecem os lugares. Sob esse ponto de vista, as motricidades dos pedestres formam um desses ‘sistemas reais cuja existência faz efetivamente a cidade’, mas ‘não tem nenhum receptáculo físico” Michel de Certeau (1980\2012, p.176). Estabelecemos então que as grandes cidades contemporâneas são pensadas e edificadas sob uma lógica funcionalista que prioriza a eficiência e o trabalho, não havendo espaço para o inesperado ou “inútil”. Esse processo faz com que as pessoas se relacionem cada vez menos com o ambiente urbano, distanciando-se da rua e do convívio no espaço público. Relacionarmo-nos com a cidade e reconhecer os diversos estímulos que nos atravessam em seu ambiente manifestase então como um caminho para que reinventemos a nós mesmos e o modo como praticamos o espaço.
Corpografia errante Paola Jacques Berenstein assume que a simples experiência urbana já constitui uma relação, mesmo que involuntária, entre o corpo e a cidade. Em “Corpografias urbanas: relações entre o corpo e a cidade” (2008 apud
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FURQUIM, 2008, p. 182), ela investiga o que chama de corpografia, ou seja, uma cartografia corporal que “parte da hipótese de que a experiência urbana fica inscrita, em diversas escalas de temporalidade, no próprio corpo daquele que a experimenta, e, dessa forma, também o define” (2008 apud. FURQUIM, 2008, p. 182). Para compreender o que seria essa corpografia ela julga necessário distinguir os termos cartografia, coreografia e corpografia. A cartografia para ela seria uma atualização e apropriação do projeto urbano, de modo que a cartografia urbana delineia um mapa da cidade apropriada e modificada por seus usuários, ou seja, um mapa da cidade ambiente descrita por André Carrera (2008). Já a coreografia, configura um projeto de movimentação de um ou mais corpos, “que implica, assim como no projeto urbano, desenho (ou notação), composição (ou roteiro) etc” (2008 apud FURQUIM, 2008, p. 183). Então, no momento de execução da coreografia, assim como acontece com a apropriação do espaço urbano que difere do que é efetivamente projetado, o corpo dos bailarinos se apropria e a transforma, praticando uma cartografia da coreografia (que ela define como carto-coreografia), ou seja, algo próximo do lugar conceituado por Certeau (1980\2012) que se torna espaço ao ser praticado por seus habitantes. A corpografia então não seria nem essa carto-coreografia que traduz a dança realizada, nem a coreografia da cartografia (designada por ela como coreo-cartografia), que seria um projeto de movimentação concebido a partir das apropriações do espaço pelo corpo dos bailarinos, mas a própria memória urbana do corpo. Essa experiência urbana inscrita nos habitantes representa, então, uma forma de resistência ao processo de urbanização aliado
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à espetacularização do território, visto que as vivências e relações com a cidade (suprimidos por tais processos) sobrevivem nos corpos daqueles que experienciam a urbe. A investigação dessa experiência corporal na cidade se apresenta então como potente dispositivo de combate a esses processos que diminuem a participação cidadã e corporal nas cidades, apontando “caminhos alternativos, desvios, linhas de fuga, micropolíticas ou ações moleculares de resistência ao processo molar de espetacularização das cidades contemporâneas” (2008 apud FURQUIM, 2008, p. 184). Isto posto, Jacques defende a tese de que a experiência urbana efetiva e a espetacularização são grandezas inversamente proporcionais, apontando a errância como ferramenta capaz de estimular as práticas que poderão garantir essa experiência. Ou seja, praticar errâncias pela cidade poderia intensificar a experiência urbana, originando corpografias urbanas mais complexas. O errante urbano seria aquele que busca o estado de espírito errante, que experimenta a cidade através das errâncias, que se preocupa mais com as práticas, ações e percursos do que com as representações, planificações ou projeções. (JACQUES, 2011, p. 202)
Os errantes reinventam os lugares que habitam em seu cotidiano e lhe dão “corpo” ao experimentar e percorrer a cidade, que enquanto corpo urbano “se inscreve como ação perceptiva e, dessa forma, sobrevive e resiste em quem a pratica” (2008 apud FURQUIM, 2008, p. 188), e a simples existência desses corpos e dessas corpografias já constitui
No sentido Debordiano abordado em “A Sociedade do Espetáculo” (Rio de Janeiro, 1997) Termo abordado e discutido no artigo “Elogio aos errantes” (2004).
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uma denúncia e contrapõe os espaços espetacularizados da cidade. O errante, portanto, realiza de forma voluntária uma experiência que pode ser praticada por qualquer um. Ao ler a cidade como percurso, prática e ação, ele abandona seus condicionamentos urbanos e desafia sua lógica funcional movimentando-se pela urbe sem rumo ou objetivo, negando a velocidade característica dos deslocamentos na cidade e colocando seu corpo em relação direta com o corpo urbano. Paola conclui que essa errância configura “críticas ao pensamento hegemônico contemporâneo do urbanismo que ainda busca certa orientação (principalmente pelo excesso de informação), rapidez (ou aceleração) e, sobretudo, uma redução da experiência e da presença física (por meio das novas tecnologias de comunicação, de informação, de transporte, etc.)” (2011, p. 206). A provocação e valorização dessas errâncias restaura então os laços entre o espaço urbano e seu caráter experiencial e corporal, aspectos que ela julga cada vez mais separados pelo urbanismo contemporâneo. Essas corpografias derivadas das errâncias podem então conduzir a uma prática e reflexão mais apurada do urbanismo pelos transeuntes e pelos próprios urbanistas.
Desprogramações do corpo e inserções urbanas - A experiência com o Grupo XIX O parkour é uma atividade física em que pessoas percorrem trechos do ambiente urbano utilizando o corpo para transpôr seus obstáculos. Artistas como Diogo Granato fazem uso das técnicas desenvolvidas nessa
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modalidade para trabalhar as relações do corpo e da dança com a arquitetura, descobrindo assim novas maneiras de percorrer e se relacionar com o espaço. Em março de 2017, fui selecionado para integrar um núcleo de pesquisa ministrado por Diogo Granato em parceria com o Grupo XIX para investigar as relações entre o corpo e o ambiente urbano, iniciando o trabalho com procedimentos na Vila Maria Zélia , e posteriormente focando a pesquisa em inserções no ambiente urbano da cidade de São Paulo. Em residência artística há mais de uma década na Vila Maria Zélia, o Grupo XIX desenvolve pesquisas a respeito de teatro site specific , encenando grande parte de suas peças em ambientes não convencionais, como os edifícios e armazéns da própria vila. O núcleo integra o processo criativo de sua próxima peça, que abordará inserções e relações com o espaço urbano. O treinamento do parkour estimula uma reorganização física que altera o modo como experienciamos o espaço. Procedimentos como descer escadas usando quatro apoios e mantendo os braços à frente, fazendo com que a cabeça por consequência também se projete à frente quebra uma lógica corporal ensinada desde a infância de que o corpo de alguma maneira protege a cabeça, ou seja, ao nos movimentarmos, ela nunca é o membro que se lança primeiro. A prática nas ruínas da antiga escola presente na vila operária exigiu de nós participantes uma série de desconstruções a respeito dos limites do nosso corpo e das possibilidades de relação que a arquitetura nos oferece. Em um primeiro momento fomos estimulados a investigar as molduras que
Antiga vila operária paulistana localizada na Zona Leste da cidade e reconhecida como patromônio cultural desde 1992 Obras criadas de acordo com o ambiente e com um espaço determinado.
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o espaço desenha, seja com suas edificações, vegetação ou projeções de luz e sombra, de modo que a arquitetura passou a ser elemento crucial de composição com nossos corpos. Ao focar a experimentação na definição de molduras, inconscientemente abstrai-se das funções dos elementos do espaço e um processo de ressignificação da arquitetura se inicia. As paredes, janelas, escadas etc ganham potência ao serem ampliadas a elementos de composição, e não às simples funções que lhe são comumente designadas. Bjarke Ingels, no filme “My Playground” (2009) salienta a importância para um arquiteto em observar a prática de parkour em obras arquitetônicas, pois, ao reconhecer as diferentes proposições que os corpos podem fazer no espaço, conseguirá enxergar a possibilidade de não propôr mais ambientes com funções determinadas, mas com camadas que poderão ser transformadas e descobertas pelos usuários. Após cerca de dois meses de prática no ambiente “isolado” da vila, passamos a explorar os exercícios e relações do corpo com os elementos e fluxos da cidade. Os corpos que foram treinados a subir e se relacionar com a arquitetura desgastada e rica de planos e encaixes foram para a rua com uma percepção mais aberta dos convites e possibilidades que as fachadas, mobiliário urbano etc tem a oferecer. Nas práticas na rua, primeiramente fomos orientados a estabelecer relações simples com o ambiente: sentar, deitar ou ficar em pé. Nosso repertório seria composto apenas por essas três ações, e a partir delas notaríamos suas reverberações no espaço. Mesmo simples, tais ações
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podem ser extremamente potentes uma vez que, estando em uma cidade pensada funcionalmente, usos inesperados do território geram estranhamento e propõem pequenas reconfigurações da lógica urbana. Essa prática e inscrição do corpo de forma não convencional no espaço urbano se relaciona então com as corpografias descritas por Paola Jacques Berenstein, que em alguma instância contestam e criticam o modo como a cidade é pensada e desenhada. Deitar-se no centro de uma rua de fluxo intenso, por exemplo, reconfigura seus fluxos e provoca diversas reações nos transeuntes. Além disso, outra orientação recebida foi investigar as mínimas distâncias que conseguíamos ficar das pessoas sem que elas se incomodassem e se afastassem, de modo que passamos a também estabelecer relações com os usuários habituais daquelas localidades. A presença de um grupo de cerca de vinte pessoas no espaço se atentando a essas questões e as experimentando gerou por si só uma quebra no ambiente. Por mais que em alguns momentos só houvessem pessoas sentadas e deitadas no mobiliário urbano próprio para isso, a presença cênica dos participantes no espaço gerava uma “mudança na atmosfera”. Em determinado momento chegamos a ouvir, inclusive, um transeunte comentar com a companheira “está acontecendo alguma coisa aqui. Eu não sei o que é, mas está”. Percebemos então que esses corpos que se propõem a praticar efetivamente a cidade e a desobedecer as regras implícitas impostas pelo desenho urbano possuem também a capacidade de alterar a “atmosfera” do ambiente, gerando uma espécie de acontecimento que o marca.
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Na terceira etapa do núcleo, em maio de 2017, foi construída a estrutura temporária de uma estufa no Vale do Anhangabaú, na região central de São Paulo. A montagem da estufa gerou curiosidade em alguns transeuntes, que se permitiram parar para observar e até opinar a respeito das melhores maneiras de se erguer a estrutura. A estufa é composta por uma estrutura de madeira vedada por uma película de plástico. Ao terminar de montar a estrutura de madeira, os participantes do núcleo foram fechados dentro da estufa pelos integrantes do Grupo XIX, que a vedaram pregando a película de plástico nas suas extremidades. A partir disso, foi feito um convite aos transeuntes a se relacionarem com a estufa e com as pessoas dentro dela, jogando água por cima da película de plástico que escorria por sua superfície, cortando pequenos buracos para ventilá-la e inserindo tubos através dos quais poderiam se comunicar com quem estivesse dentro. Por fim, foi colocada uma música e os transeuntes foram convidados a romper a película e a entrar na estufa, criando um momento de comunhão e festa em um lugar da cidade caracterizado apenas pela passagem e não pela permanência. A estufa configura-se então como objeto relacional, convidando os transeuntes para uma experiência corporal e dependendo dessa relação para se efetivar como obra. Assim, ela instiga o transeunte a participar, indo na “contramão” do processo de espetacularização da cidade.
Primeira etapa do trabalho do Núcleo na Vila Maria Zélia Fotos de Luiz Fernando Marques e Diogo Granato
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Segunda etapa: Inserções no território urbano 55 Fotos de Diogo Granato
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Terceira etapa: A estufa e a cidade Fotos de Jonatas Marques
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O espaço imantado Ao manifestar práticas inesperadas no espaço urbano há uma quebra na lógica funcional do lugar. Relacionar-se com os elementos arquitetônicos que configuram tanto o projeto quanto o ambiente da cidade configura uma alteração no território por parte de seus habitantes e transeuntes que se assemelha com o que Lygia Pape identifica como “espaço imantado”. Tal conceito nos remete ao imã, corpo de elevada permeabilidade magnética com imantação permanente que atrai outros corpos. A artista usa como exemplo de “imantador” do espaço o camelô, que “chega assim numa esquina, abre aquela malinha e começa a falar, criando de repente uma imantação, com as pessoas todas se aproximando, se ligando àquele discurso irregular, às vezes curto, às vezes longo, e de repente ele fecha a boca, fecha a caixinha, e o espaço se desfaz” (PAPE, 1968 apud HERKENHOFF, 2012, p. 285). Isto posto, reconhecemos que a ação do corpo no espaço é capaz de gerar o que poderíamos chamar de “campo magnético” que atrai outros corpos, modificando a configuração espacial do sítio em que este corpo age, desenhando “espaços efêmeros” . Ao analisar este termo proposto por Pape, Francis Wilker estabelece um paralelo com o ponto de vista de Michel de Certeau, que declara que os jogos dos passos moldam espaços e tecem os lugares. Ou seja, os corpos dos habitantes configuram espaços na medida em que se aproximam ou se distanciam. Os “jogos dos passos” compostos pelas caminhadas na cidade se inscrevem no tecido urbano e
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tornam-se elementos fundamentais na transformação da cidade projeto em ambiente. Certeau ainda salienta que “o ato de caminhar está para o sistema urbano como a enunciação está para a língua ou para os enunciados proferidos” (1980\2012, P. 177), uma vez que trata-se de uma tomada da configuração projetual urbana pelo corpo, assim como a enunciação da palavra é uma apropriação da língua. A propriedade de imantação dos corpos analisada por Pape, porém, não é permanente como nos imãs, podendo ser instituída e destituída, tal qual o camelô ou o pastor que prega em praça pública que configuram um espaço ao buscar relação com os transeuntes e o desconfiguram ao recolherem seus pertences e partir. Wilker ainda questiona se, ao pensarmos na imantação do espaço através de práticas artísticas nele, o caráter que garante esse fenômeno estaria relacionado ao engajamento do artista, ao caráter de presença extra cotidiano característico do seu trabalho, pois “tanto o camelô como o ator, ao invadirem um espaço, estabelecem uma presença não corriqueira num espaço com fluxos, usos e ritmos usualmente conhecidos” (2014, p. 105). Essa imantação é então um dispositivo através do qual novas configurações e leituras do espaço podem ser feitas a partir apenas da ação do corpo no espaço. Pensando na experiência com o Grupo XIX, ela se relaciona com as experimentações no ambiente urbano, em que relações extra-cotidianas com os elementos da cidade e a construção de uma estrutura temporária gerou perturbações e configurou novas espacialidades nas áreas de intervenção. Mesmo sem
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Espaços imantados (Magnetized Spaces), 1995/2011. Parte da Exposição de Lygia Pape.
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a estrutura da estufa, nas investigações preliminares em que tínhamos como repertório apenas três ações para agir sobre o espaço, a imantação já se configurava de alguma maneira, atraindo alguns transeuntes. Manifestações artísticas na rua carregam, portanto, essa necessidade de imantação e configuração de um ambiente em que a apresentação se desenrole, da construção através dos corpos e passos dos que irão assistir à elas. Um dos pioneiros nas práticas de teatro de rua no Brasil, Amir Haddad, coloca que o teatro realizado dentro do edifício teatral: Não prescinde do espectador, embora arquitetonicamente não precise dele. Ou seja, pode não haver ninguém, mas aqui [dentro do edifício teatral] eu tenho uma arquitetura que justifica o teatro: se aparecer um, eu já posso fazer teatro, porque o mundo em volta está organizado para fazer essa [...] cerimônia. Na rua, isso não ocorre, o espectador é que forma a catedral dentro da qual você realiza suas orações, suas preces [...] se não houver a construção arquitetônica do cidadão em volta da sua manifestação, essa manifestação [...] não se completará (2011, p. 170).
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_teatro da\na rua “Apenas em alguns períodos históricos e em algumas regiões existiram construções permanentes especialmente concebidas para os espetáculos teatrais; na maior parte dos casos edifícios pré-existentes, ou parte deles foram adaptados para receberem espetáculos ou construções provisórias foram erguidas para este fim, mas é principalmente a ‘rua’, em seu sentido amplo dos mais diversos lugares de encontro na cidade, que hospedou desde a antiguidade os fenômenos teatrais” Ricardo Gomes (2012, p. 17)
“Teatro de rua” Há hoje no Brasil um número grande de grupos que trabalham o espaço urbano em suas encenações, de modo que o teatro de rua se tornou tão diversificado e complexo quanto o “teatro de sala”. Para investigar essa manifestação artística, vale questionar o que levamos em consideração quando pensamos em “teatro de rua”. Para Ricardo Gomes (2012, p. 18), se entendemos como “teatro de rua” aquele que se manifesta fora do edifício teatral, abriremos um vasto leque de interpretações, uma vez que essa definição pode “designar desde o trabalho de jovens artistas que apresentam-se com números mais ou menos improvisados de técnicas circenses (palhaços, malabaristas, engolidores de fogo etc.) ou de pantomima (as “estátuas vivas” ou os “sombras”) nos parques, praças, sinais de trânsito
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“Atores de commedia dell’arte em carroça em praça pública” Autor: Jan Miel Ano: 1640 Técnica: Óleo sobre tela
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ou estações de metrô, para conseguir alguns trocados “passando o chapéu”, até a simples transferência para a rua de um espetáculo concebido para o edifício teatral, com todo o aparato técnico que lhe serve de contorno” (GOMES, 2012, p. 17). Assim sendo, o termo “teatro de rua” parece não definir nada devido à vasta heterogeneidade de possíveis interpretações do termo e práticas relacionadas a ele. Compreender as relações que o teatro estabeleceu com o ambiente urbano ao longo do tempo e como se deu o seu processo de “entrada” no edifício teatral configura então um caminho que possibilitará selecionar as abordagens que interessarão à pesquisa e permitirão reconhecer um tipo de “teatro de rua” que possa transformar e ser transformado pela rua, gerando novos pontos de vista sobre a cidade.
Espaços teatrais Ao pensar em “espaço teatral”, é comum que nós ocidentais evoquemos a imagem de uma série de cadeiras dispostas em filas em frente a um palco elevado. De acordo com Ricardo Gomes (2012, p. 18), tal imagem reflete um tipo particular de modelo arquitetônico “que faz parte de um cânone teatral específico, nascido no século XVI, na Itália renascentista, consolidado na Europa e difundido no resto do mundo como um modelo hegemônico cujos últimos estertores ainda se fazem sentir nos dias de hoje”. Isto é, reconhecemos um modelo específico de edifício teatral como espaço destinado à arte dramática. Essa arte, porém, nasceu na rua. Em “Inter-relações entre espaço cênico e espaço urbano” (2008 apud FURQUIM, 2008), Ricardo Cardoso aponta que desde os primórdios o teatro estabelece as mais variadas relações com o ambiente
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urbano. Na Grécia, os eventos teatrais se davam no espaço público e a encenação pertencia ao universo urbano, uma vez que seus elementos compunham com a encenação. Por volta do século V a.C. surgiram as primeiras construções teatrais da história, teatros de arena semicirculares ao ar livre. Durante a Idade Média, o espaço público voltou a ser tomado por manifestações artísticas. Marvin Carlson (1989) pontua que por não haver nessa época um edifício específico destinado ao teatro, ficava claro seu valor simbólico no ambiente urbano, já que a situação que “permitia aos que produziam as encenações localizá-las em qualquer lugar que lhes fosse mais conveniente, significava que o teatro poderia usar em seu benefício próprio as conotações já existentes de outros espaços tanto neles mesmos quanto em relação a sua disposição dentro da cidade” (1989, p. 48). Assim, eram feitas relações e construções simbólicas entre o universo da representação teatral e o cotidiano da cidade. No século XV surge a Commedia dell’arte, linguagem teatral praticada geralmente por famílias e grupos itinerantes que se apresentavam em carroças ou tablados improvisados nas ruas e praças das cidades. Apenas em meados do século XVI a praça pública começou a ser substituída pelos salões ducais, mais favoráveis para as representações dramáticas da nobreza. Estando dentro do palácio, as peças passavam a ser posses dos príncipes, e apenas seus convidados tinham acesso a elas. As performances na rua continuaram acontecendo, porém, o palácio passou a concentrar a maior parte das encenações, dando origem ao modelo italiano. O edifício teatral passou então a ser um dos principais marcos dos centros urbanos, sendo até hoje uma das constantes da paisagem urbana segundo Ricardo Cardoso (2007, p. 83).
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Ao longo dos séculos XVIII e XIX, as cidades passaram a ter seus espaços privados cada vez mais valorizados, e como, de acordo com Marvin Carlson (1989 p. 4), houve uma associação na opinião pública entre o edifício teatral e os elegantes distritos urbanos, passou-se a utilizar essas construções como dispositivo de renovação e melhoria para as vizinhanças em que se inseriam. Um bom exemplo disso foi a construção do Lincoln Center em Nova York nos anos 50, como medida para renovar o bairro de Lincoln Square. Já na segunda metade do século XX, no contexto pósSegunda Guerra, são iniciados processos de revitalização e requalificação das cidades afetadas, surgindo uma preocupação urbanística em resgatar a vida no espaço público que seria reconstruído. Por volta dos anos 60, essas cidades foram marcadas por uma reapropriação do espaço público por suas populações. Simultaneamente, Ricardo Gomes (2012, p. 20) aponta que surge em muitos artistas “a busca de uma nova relação com o público, não condicionada pelos códigos sociais e pelos cânones teatrais”, o que os levou a buscar espaços não tradicionais, de modo que o teatro voltou a ser visto em parques, ruas etc. Muitas cidades europeias se transformaram em verdadeiros “palcos ao ar livre” ao serem tomadas por diversos festivais artísticos nos anos 60 e 70, como o Festival de Avignon, na França, por exemplo. Era perceptível que, para grande parte dos encenadores, a rua passava a representar uma ideia de liberdade política, enquanto o edifício teatral tornava-se símbolo da indústria cultural. Então, por mais que as salas de espetáculos tenham se desenvolvido muito na época devido a descobertas tecnológicas, muitos encenadores buscaram a rua e espaços não convencionais para ambientar suas encenações, como
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fábricas, galpões, ou a própria rua. No Brasil, por outro lado, “as manifestações de teatro de rua [...] estão diretamente relacionadas com os processos de criação cujas raízes se relacionam com o período final do regime ditatorial, durante a chamada etapa de transição democrática dos anos 80” (CARREIRA, 2006, p. 89). Ou seja, as ruas só voltariam a ser objeto de estudo e locais de intervenção após o fim da ditadura. André Carreira ainda destaca que durante o regime militar além de não haver um desenvolvimento amplo das práticas de teatro de rua, o intercâmbio com as experiências de outros países também era limitado, de modo que as referências que foram ponto de partida para a retomada do teatro de rua no nosso país eram muitas vezes fragmentadas, e em geral advindas de referências bibliográficas ou de fontes orais secundárias. Diretores como Amir Haddad reivindicaram o território urbano ocupando as ruas com o que ele considera “um momento de possível utopia, de se eliminarem divisões de classes e ficarem todos possuídos do mesmo saber, da mesma frequência, usufruindo de um acontecimento que está ali” (2011, p. 171). Para ele, há uma sensação de liberdade quando conseguimos participar do espaço público, penetrando-o e estabelecendo um relacionamento afetivo mais profundo com ele, e a prática do teatro na rua propicia isso. Relacionar cidade e teatro atualmente mostra-se então como potência desencadeadora de ações e movimentos no campo da cultura para descobrir novas formas de sociabilidade ao estabelecer esse diálogo entre diversos segmentos da sociedade. Esse teatro feito fora do edifício e inserido diretamente no contexto urbano revela-se como
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Imagem de uma rua em Avignon durante o Festival Internacional de teatro
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instrumento para redimensionar e ressignificar a paisagem urbana e a relação dos transeuntes com a mesma.
O Teatro de Invasão A abordagem a respeito de como analisar e intervir no espaço urbano através do teatro que transformou definitivamente os rumos dessa pesquisa e a minha visão sobre o teatro de rua foi a de André Carreira, que em diversos artigos como “Teatro de invasão: redefinindo a ordem da cidade” (2008) e “Teatro performativo e a cidade como território” (2012) defende a prática de um “teatro de invasão”. Para ele, é fundamental que artistas que queiram intervir no território urbano entendam a cidade como dramaturgia e não mera cenografia para que sua encenação se dê. O teatro de rua é, comumente, compreendido como um modo espetacular que busca esse sítio de convivência pública, pois este seria o lugar de encontro com um público particular, um público popular. Esta noção (...) deixa de observar dimensões mais complexas que fazem parte do fenômeno do teatro de rua (...). Não é usual perceber a cidade como linguagem. Consequentemente, muitos realizadores de espetáculos de rua não incorporam a multiplicidade de significados e significantes da cidade, e não incluem os fluxos urbanos na construção da linguagem cênica (2008 apud FURQUIM, 2008, p. 68).
Notamos então que muitas manifestações teatrais que se dão na cidade tem como critério para escolha do local que irão trabalhar muito mais o próprio discurso, e não
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elementos como a memória, história e cultura do lugar. Vale salientar que essa invasão proposta constitui uma via de mão dupla, pois sendo uma “intromissão” no uso cotidiano dos espaços e na lógica da cidade, tal ato irá gerar uma reação, pois a cidade não é passiva diante da invasão e tomada de seus espaços seja por quem for. Assim, o potencial simbólico do que Carreira chama de “teatro de invasão” nasce da tensão entre os usos poéticos e funcionais da rua. Enquanto o Estado tem poder para realizar grandes e duradouras intervenções, o artista, como cidadão, tem a oportunidade de criar intervenções que desorganizam momentaneamente os fluxos e o estar na rua, convidando os transeuntes a ser parte da construção do discurso cênico. O autor reforça que “a cidade invadida não é um cenário. Ela não contém a cena. Ela modula a técnica e condiciona a percepção do público, pois, diferentemente da cenografia, a silhueta urbana é propriedade do público e porta um quadro de significação prévio à intervenção teatral” (2008, p. 74). Isto posto, “invadir” a cidade com o teatro se relaciona com a compreensão de como essa prática pode reorganizar ações e percepções do espaço, e não com a imposição de uma peça aos usuários. Essas intervenções reconfiguram e deformam as linhas que constituem a cidade, exigindo uma transformação do nosso olhar e uma nova escrita do território. Território este que se configura também por um fluxo de habitantes que trabalham, vivem e caminham pelas ruas, e não só pela sua configuração arquitetônica. É indispensável para o encenador que almejar invadir a cidade conseguir ler e reconhecer o que configura ambiente e projeto no espaço urbano, ou seja, o que parte de uma
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imposição e normatização do território decorrente do seu projeto, e o que é configurado pelo uso cotidiano do espaço por seus habitantes. Assim, é possível compreender como o ambiente urbano fala a respeito da vida dos que o habitam. Ao incluir os habitantes e transeuntes na composição dramatúrgica e na encenação, estes passam a participar da experiência artística, estabelecendo um papel ativo em relação ao teatro e à cidade, o que difere da relação de distância e funcionalidade que estamos acostumados a ter com a cidade. Portanto, essa experiência se configura também como uma ferramenta de conhecimento da cidade.
Heranças da rua As práticas artísticas na rua sofreram uma série de influências culturais e estéticas, ao longo de sua existência de modo que foram surgindo certos parâmetros artísticos sobre os quais foram feitas as peças de rua desde então. Em “A respeito dos pressupostos éticos e estéticos do Teatro de Rua”, Ricardo Gomes elenca e comenta alguns desses parâmetros, ressaltando ainda que muitos deles decorrem das condições adversas do ambiente urbano, como a dificuldade de ser ouvido, visto, atrair a atenção etc. Um dos principais formatos de utilização do espaço por essas manifestações artísticas é o cortejo (ou parada). Tal forma é tão popular na Europa, que na Itália o termo “parata” é interpretado quase como sinônimo de “peça de teatro de rua”. Neste caso o público pode se deslocar seguindo o cortejo por um determinado percurso, ou o público pode ficar estático enquanto o cortejo passa (como em desfiles de carnaval, por exemplo).
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Outro formato popular é a “roda”, “forma mais arquetípica de utilização teatral do espaço urbano, pois funda-se quando o ator cria um círculo de espectadores a partir da irradiação de sua ação, que atrai transeuntes, reunindo-os em torno de si”. (GOMES, 2012, p. 25). Um exemplo desse tipo de configuração seria a ação dos “saltimbancos” , que subiam em bancos para atrair a atenção das pessoas à sua volta. Esses dois tipos de configuração espacial também podem ser combinados entre si, havendo também manifestações artísticas caracterizadas por itinerâncias que realizam seus deslocamentos através do cortejo para chegarem a determinados lugares onde os espectadores irão conferir a uma cena dispostos em círculo ou semi-círculo. Dentre as técnicas recorrentes na prática de artistas de rua, vale destacar algumas que se mostraram eficazes para garantir o interesse e a frequência do público. O uso de lugares elevados, sacadas, elementos da fachada etc, é um meio eficaz de dinamizar a utilização do espaço e garantir a visibilidade dos atores e da peça. Em muitos casos, para garantir a atenção do público, apelos sonoros são feitos pelos que estão ocupando outros planos. A utilização de instrumentos musicais pelos atores também é característica marcante, pois amplia a presença dos artistas e traz um estímulo auditivo que pode ter maior alcance que um estímulo visual para atrair possíveis espectadores. Além disso, muitos utilizam também técnicas circenses, como malabarismo, acrobacias, etc e Gomes (2012) destaca principalmente o uso de pernas de pau, que além de ampliar a presença do ator, e aumentar sua visibilidade, traz em si um jogo de equilíbrio/desequilíbrio que possibilita novas
Do italiano salta in panca.
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Imagem da peรงa Barafonda, da Cia Sรฃo Jorge de Variedades Foto de Cacรก Bernardes e Bia Lessa
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possibilidades de expressão. O uso de tais técnicas então surge como resposta às adversidades do trabalho no ambiente urbano, e ao longo do tempo constrói códigos de linguagem para as práticas teatrais na rua. Elas são ferramentas para que se conquiste um público. Para que um transeunte realmente pare e invista seu tempo para abrir-se à uma relação. Amir Haddad (2011), registra ainda que para trabalhar na rua não há tempo para o ‘adjetivo’, tem que ser usado o ‘substantivo’. Quando a gente planeja [...] um espetáculo, um assunto que seja substantivo no interesse das pessoas, elas param para ver. Quando é só adjetivo, só uma gracinha, eles não param mais que cinco minutos. Isso ocorre porque o substantivo é o que alimenta e dá substância [...] [o adjetivo] é eventual, é transitório, ele pode levar a algum lugar ou pode não levar a nada. Uma casa é uma casa, uma casa bonita é uma casa bonita, bonita é vago (2011 apud PARDO, 2011, p. 191).
A arte de rua faz necessária uma codificação que caracteriza a intervenção como arte. Em museus, teatro etc, essa codificação é dada pela arquitetura. Ou seja, um pedaço de madeira no centro de uma galeria de arte, por exemplo, será lido como obra pelos que passam por ele, mas o mesmo pedaço de madeira no meio da rua provavelmente será lido como lixo. Da mesma maneira, uma pessoa fazendo experimentações com dança, teatro etc dentro de um edifício teatral será lida como artista, e, provavelmente, terá público, porém, a mesma pessoa desenvolvendo a mesma interação, mas inserida na rua, pode ser lida como
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insana e repelir os transeuntes. Ou seja, o edifício de alguma maneira codifica e ampara a arte, tornando necessário para aqueles que querem investigar a arte na rua que encontrem maneiras de trazer essa codificação e amparo em seus corpos, para que suas ações possam ser lidas como o que são, sejam performances, dança, teatro etc.
Heranças do edifício O edifício teatral próprio do teatro all’italiana, apresenta um programa de necessidades que especifica alguns elementos indispensáveis para que as manifestações artísticas se dêem em seu interior. Claro que alguns edifícios, por diversas questões, não apresentam todos esses elementos em seu projeto, mas destaco aqui alguns componentes cruciais para o projeto de uma boa sala de espetáculo, ou seja, a arquitetura que ampara essa manifestação artística. São eles: . Palco: Espaço para apresentações artísticas com coxias laterais e, de preferência, com acesso externo para carga e descarga; . Plateia: Espaço destinado ao público, disposto em torno ou em frente ao palco, direcionando seu olhar para o palco; . Camarins e sanitários: Espaço de preparação e descanso para os artistas onde é possível se maquiar e trocar; . Cabine de controle: Espaço com boa visibilidade do palco para controle técnico de sonorização, iluminação etc; . Depósito: Espaço para armazenamento de cenários, objetos de cena etc; . Casa de máquinas: Subestação de energia elétrica, gerador e centrais de arcondicionado; . Fosso da Orquestra: Espaço para músicos, em frente ao
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palco, com estrutura que permita a regulagem de altura. Tais elementos expõem e espacializam uma série de demandas necessárias para que o teatro aconteça, e é possível reconhecer nas peças que se inserem no ambiente urbano a apropriação, tradução ou ausência de alguns desses elementos. Para além da concretude arquitetônica, há também uma série de convenções que o edifício teatral estabelece. O palco italiano, por exemplo, pressupõe uma neutralidade espacial. É convencionado pelo público e pelos artistas em geral que ele é um espaço neutro, ou seja, ali podemos ambientar diversos tempos e lugares com o uso de dispositivos cênicos como cenário, figurino etc. Antonio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem, em debate registrado no livro “A teatralidade do humano (2011, p. 178) coloca que tal neutralidade é uma ilusão, uma vez que o desenho do espaço estabelece distâncias e hierarquias e sua materialidade influencia na experiência de quem o habita. O lugar onde a plateia fica, por exemplo, já estabelece hierarquias que diferem os espaços. Há, por exemplo, teatros em que o público se senta abaixo do palco, teatros em que senta acima, teatros em que o público fica mais perto ou mais longe do palco etc. Penso que analisar e identificar como o teatro de rua se relaciona ou não com tais convenções e elementos elucida e provoca alguns questionamentos sobre essa prática e sobre como a arquitetura do espaço urbano pode também amparar o evento teatral.
Estudos de caso Durante a primeira etapa da pesquisa, observei o trabalho
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de uma série de grupos teatrais que abordam a rua e espaços não convencionais para trabalhar suas encenações. A partir das leituras a respeito do “teatro da invasão” e pela oportunidade de conferir o trabalho ou ter contato com bibliografia a respeito dos projetos, selecionei quatro peças para tomar como estudo de caso para compreender alguns modos de inserir o teatro na cidade. Tais grupos não chegam a representar nem um terço da totalidade de coletivos teatrais que trabalham ou já trabalharam a tomada do espaço urbano pelo teatro, valendo destacar também o trabalho de grupos como o Grupo XIX, a Cia A Digna, a Cia São Jorge de Variedades e a Mundana Companhia, por exemplo, mas os contrastes e semelhanças do trabalho desenvolvido pelos coletivos analisados me permitiram comprovar alguns pontos chave para que prosseguisse na pesquisa. Entre Esperas (2016) - Cia Penélope No dia onze de setembro de 2016 tive a oportunidade de assistir “Entre Esperas”. Encenada na avenida Paulista e no Parque Trianon, localizados na Zona Sul da cidade de São Paulo, a peça explora as noções de tempo, espaço e espera a partir de uma série de cenas curtas e performáticas. O grupo busca refletir a respeito do estado de expectativa que as pessoas experimentam entre os acontecimentos importantes de seu cotidiano. A peça se desenvolve a partir de esquetes realizadas em um percurso que se inicia na Avenida Paulista e depois percorre o interior do Parque Trianon. A preparação dos atores para se trocar, maquiar e aquecer voz e corpo é feita em um bar localizado próximo ao local em que a peça se inicia, de modo
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que esse estabelecimento comercial exerce a função do camarim. Os atores usam microfones e pequenas caixas de som para serem ouvidos em meio ao grande volume sonoro da avenida, e há uma pessoa que carrega uma mala com caixa de som e objetos de cena que são usados ao longo do percurso, de modo que percebemos nisso algumas adaptações das funções exercidas pelas coxias e pela cabine de controle. O espaço percorrido é em muitos momentos “abstraído” pelos atores, de modo que o público é convidado a experienciar uma lógica próxima da ilusão do palco italiano, na medida que em muitos momentos o espaço concreto do parque é lido como “espaço fantástico”. Há uma cena, por exemplo, em que percorremos os caminhos do parque como se percorrêssemos um labirinto, de modo que os atores fazem uso da vegetação e do desenho do parque para ambientar suas cenas numa lógica semelhante à convenção da caixa preta em que o espectador é convidado a se deixar transportar para outro espaço e tempo. Há momentos em que elementos concretos do espaço são evocados, porém o texto não faz uso necessariamente da memória e dos significados do lugar em que a peça ocorre, lendo-o mais como cenário que como dramaturgia. Mesmo trabalhando o contraste entre a calma do interior do parque e a turbulência da avenida, a peça não pretende fixar-se a aquele lugar, estando previsto em seu projeto encená-la em outros parques próximos a avenidas. Ópera Urbe: Peste Contemporânea (2016) - Coletivo Seca No dia trinta de agosto de 2016, de passagem pelo Largo da Batata, na Zona Oeste da cidade de São Paulo, tive contato
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com a peça “Ópera Urbe”. Em um teatro de arena feito com pallets de madeira, a ópera urbana narra a história de quatro amigos que têm suas relações de amor e afeto abaladas por causa de uma série de questões contemporâneas, como o consumismo, o capitalismo, o fanatismo religioso, a intolerância e as várias formas de sexualidade. Para que a peça acontecesse, foi construída uma estrutura de arquibancada em torno de um palco feito por pallets, derivando do edifício teatral a hierarquia que separa o espaço de representação do espaço reservado para o público. Na ausência de fosso, a orquestra se localiza no entorno do palco, entre as arquibancadas em que o público senta, e todo o equipamento de luz e som é “alimentado” pelos pontos de energia elétrica puxados por extensões da estação de metrô próxima ao largo, que exerce a função da casa de máquinas do edifício teatral. Há duas estruturas próximas ao palco que exercem a função de camarim e de cabine de controle, mas os atores se maqueiam e aquecem corpo e voz no palco junto aos transeuntes e moradores do largo. Nessa peça, não há o convite a transportar-se para outra realidade, pois o próprio texto assume e evoca que a peça se desenvolve no tempo e espaço real que a peça está acontecendo, ou seja, ao ar livre em horário de pico ao lado de uma das avenidas mais movimentadas da cidade e em um local de intenso fluxo de pessoas. Assim, por mais que se simulem espaços como um restaurante ou um quarto no palco, e a peça ser a encenação de uma estória que aconteceu em outro tempo, é assumido que isso é uma convenção e de que os atores estão em jogo direto com aquele espaço urbano, reagindo e dialogando com moradores da praça, que, por estarem sempre ali, já
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conhecem as cenas e participam das danças e diálogos, com transeuntes que intervém eventualmente e até com manifestações que às vezes acontecem no largo, como foi o caso da apresentação do dia dois de setembro, em que fui conferir a peça pela segunda vez. Ou seja, surge nesse projeto um teatro que, apesar de carregar traços estruturais do edifício teatral, estabelece um diálogo direto com o ambiente urbano e assume o desejo do teatro de ir às ruas e atingir e estabelecer relações com novos públicos Bom Retiro: 958 metros (2012) - Teatro da Vertigem Um trabalho muito pertinente a essa pesquisa, mas que não tive a oportunidade de assistir foi a peça “Bom Retiro: 958 metros”, que pelo que analisei através de vídeos e artigos a respeito, se assemelha muito ao que é defendido por André Carreira (2008), uma vez que tem sua encenação e dramaturgia originadas da imersão do grupo no bairro do Bom Retiro. O teatro da vertigem trabalha nesse projeto a partir de elementos de memória, história e do cotidiano do bairro em que a peça acontece, de modo que as trocas entre o grupo e o ambiente que moldaram o produto final que entrou em cartaz na região. As características da população e da história do bairro definiram os principais eixos de investigação do trabalho: a moda, a imigração, o consumo e as relações de trabalho no contexto do bairro. Diversas colônias de imigrantes se instalaram na região ao longo de sua história, de modo que além de ser um lugar de passagem, se singulariza pela combinação e tensão entre as diferentes etnias que lá permanecem e co-habitam, sobretudo judeus, coreanos
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e bolivianos. O Bom Retiro é um lugar no qual predomina o comércio. Em decorrência disso, no final do expediente, as portas fecham e a região se torna um bairro fantasma. A peça trata personagens assombrados pela história, pela febre do consumo, pela ânsia de transformação e pelo trabalho, revelando o que acontece quando as ruas se esvaziam e o restante da população dorme. A encenação propõe então um percurso pelo bairro, fazendo uso da arquitetura, topografia e desenho urbano para criar as imagens da peça, de modo que o espaço, como todo bom personagem, é insubstituível, e dificulta a transposição da peça para outros lugares. A encenação aproveita os postes da rua para desenhar a luz e assume os espaços de shoppings, lojas etc para ambientar as cenas. Caixas de som e refletores são distribuídos pelos nichos do bairro em que as cenas se desenvolvem. Fachadas, mobiliário urbano e outros elementos da rua passam a configurar o espaço de representação, de modo que o palco passa a ser a cidade e a plateia se confunde com seus habitantes. ENTREPARTIDAS (2010) - Teatro do Concreto No dia 28 de setembro de 2016, tive a oportunidade de participar de uma palestra com o pesquisador Francis Wilker no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc no centro de São Paulo. Diretor da companhia Teatro do Concreto, Francis, que também foi assistente de direção da peça “Bom Retiro: 958 metros”, expôs a pesquisa do seu grupo, o Teatro do Concreto, a respeito da inserção do teatro no ambiente urbano, utilizando como exemplo o processo criativo da peça “ENTREPARTIDAS”. A peça consiste em um itinerário feito de ônibus que conduz
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os espectadores pela cidade e a partir disso desenvolve sua dramaturgia, apresentando personagens que falam de chegadas, partidas, saudades, vida e morte. A peça que estreou em Brasília em 2010 não fixa sua dramaturgia em uma cidade específica, tornando-a mais flexível a viagens e temporadas em outros locais. Para isso, o grupo elege elementos específicos da cidade em que apresentam para compor o trajeto, como, por exemplo, uma praça de fluxo intenso, a rodoviária, etc. Assim, a mesma peça já foi apresentada em Brasília, Ouro Preto, Paraty, Rio de Janeiro, entre outras cidades. Como cada lugar tem uma configuração, as distâncias também mudam, o que cria a necessidade constante de revisar o texto, para que no trajeto de ônibus não haja buracos dramatúrgicos e a peça possa acontecer. Francis destacou que uma percepção interessante gerada pelo trabalho era a de que todos os acontecimentos no percurso do ônibus faziam parte da peça, ou seja, o público começava a pensar que cenas ordinárias do cotidiano que aconteciam nas ruas pelas quais o ônibus passava também compunham a dramaturgia, ou seja, passavam a reconhecer a teatralidade do cotidiano e da vida na cidade.
Desenlace Reconhecer os elementos e artifícios herdados do edifício teatral e das práticas artísticas próprias da rua se mostra então como potente ferramenta para compreender os rumos da investigação do território urbano pelo teatro. Ao traçar claros objetivos para com a pesquisa e processo de criação de uma peça inscrita na cidade, torna-se possível elencar quais elementos do edifício teatral são necessários ou não podem estar presentes.
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A linha entre o que caracterizaria o “teatro de rua” (nascido da relação e apropriação do ambiente urbano enquanto desenho ou memória) e o “teatro na rua” (uma transposição do edifício para o ambiente urbano) é, portanto, muito tênue, mas aquilo que lemos como teatro da rua seria essa arte que nasce da relação direta com o tecido urbano, tomando forma a partir de sua memória, desenho e fluxos, mesmo que para isso faça uso de elementos do edifício teatral. Todos os exemplos citados contribuem para a transformação do olhar sobre o território das cidades em alguma instância, porém, a partir disso, percebo que englobar na manifestação teatral de rua elementos próprios do lugar praticado potencializa a desprogramação que essas intervenções geram no ambiente.
Imagens da peça “Entre Esperas” Fotos de Sérgio Marques
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Imagens da peça “Opera Urbe” 93 Fotos de Alécio Cezar e Sérgio Marques
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Imagens da peça “Bom retiro: 958 metros” 97 Fotos de Avner Prado e Nelson Kao
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Imagens da peça “ENTREPARTIDAS” Fotos de Diego Bresani, Alexandra Martins e Thiago Sabino
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Ato I I - ExperiĂŞncia Urbana
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_coletivo Pragurbana Desde o início da pesquisa minha vontade era aliar a teoria à prática, testando procedimentos e intervindo na rua guiado pelas leituras e investigações teóricas a respeito do território urbano e da inserção de manifestações artísticas em seu contexto. Cerca de seis meses antes de iniciar oficialmente o Trabalho Final de Graduação, formei junto a um grupo de amigos o Coletivo Pragurbana, que vem acompanhando e colaborando com essa pesquisa desde então.
Origem Em janeiro de 2016, convidei um grupo de cerca de nove pessoas para se reunir e discutir questões que gostaríamos de trabalhar através do teatro. Havia em nós um desejo de trabalhar juntos e investigar algumas questões poéticas e práticas. Devido à agenda e interesse, após alguns ensaios ficou definido que apenas quatro poderiam cumprir com o combinado de continuar se encontrando semanalmente para ensaiar e compartilhar referências, e, com o tempo, passamos a nos ver como um coletivo de artistas e adotamos o nome Pragurbana. No início, ensaiávamos em salões de festa, quartos, entre outros tipos de salas de ensaio improvisadas, o que já gerava sensações diversas nos atores e uma consciência da influência que o espaço e sua carga de memória e experiência tinha em nossas experimentações. Os encontros duravam cerca de três horas e aconteceram semanalmente aos domingos durante os meses de abril, maio, junho,
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setembro, outubro e novembro de 2016, e fevereiro, março, abril, maio e junho de 2017. O coletivo até fevereiro de 2017 era composto por: Henrique de Paula, estudante de Bacharelado em Artes Cênicas na ECAUSP, Beatriz Grobman, estudante de Comunicação Social na ESPM, Diego Martins, estudante de Bacharelado em Artes Cênicas na UNESP, Maristella Pinheiro, estudante de Arquitetura e Urbanismo na Escola da Cidade, e Sérgio Marques, estudante de Arquitetura e Urbanismo na FAUUSP. Hoje ele é composto por Henrique de Paula, Maristella Pinheiro, Sérgio Marques e artistas convidados que participam de alguns encontros.
Primeiros passos Provocado pela Professora Sara Goldchmit na disciplina “Poéticas da Deriva Urbana”, no primeiro semestre de 2016, propus ao grupo uma série de práticas de deriva pela cidade de modo que descobrimos alguns procedimentos de leitura do território. O desenho das ruas e aquilo que se inscreve em suas paredes através do grafite, “lambe-lambes” e cartazes guiou nossas investigações iniciais, e, em uma das derivas, fomos atraídos pelo acaso até o Beco do Aprendiz, localizado no Bairro da Vila Madalena, em São Paulo. As paredes altas e grafitadas, planos, curvas e vegetação que as consumia instigou a criação dos atores, que a partir da relação com o traço da arte dos grafites e com a configuração espacial do beco passou a desenvolver esboços de personagens e a estabelecer relações entre si. Além disso, testamos também algumas materialidades contra o concreto das paredes, traçando linhas no espaço e reconfigurando as trajetórias que o corpo faria para
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transpô-lo através do uso de fitas crepe. Essas investigações resultaram em dois vídeos que foram o produto entregue na disciplina, apresentando as reconfigurações espaciais feitas pela fita crepe e algumas das relações e pequenas cenas que as personagens levantadas desenvolviam no espaço. Ao iniciar a orientação, em agosto de 2016, levei ao grupo a proposta de engavetar o trabalho levantado no beco para que pudéssemos explorar os efeitos da inserção das nossas experimentações em áreas com maior fluxo na cidade. O beco não representava mais um bom lugar para seguir com a pesquisa, uma vez que ao recortar a quadra por dentro, ele quase não estabelecia relação com a rua e com o entorno, se assemelhando a uma “fenda” no contexto urbano, então, partimos para nos focar em outras relações e práticas na cidade. As personagens rascunhadas foram então deixadas em stand by e deixamos o beco que foi nossa área de intervenção por cerca de três meses.
Encontros - Agosto\Setembro 2016 Roteiro dos encontros . Jogos de atenção e presença para se colocar no espaço e conectar-se com seus estímulos; . Experimentação inicial delimitando área de intervenção e investigando as velocidades, distâncias e planos que o corpo pode desempenhar no espaço; . Investigação de gestos e repetição de pequenas partituras no espaço; . Experimentações no espaço englobando as qualidades exploradas anteriormente e agora acrescentando a relação
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com os outros eventualmente; . Conversa sobre temas relacionados à nossas relações com a cidade: - Qual a sua cidade ideal? - O que não podemos fazer na rua? - Qual a sua memória de cidade? - O que falta na rua? . Depoimentos a respeito da experimentação e do encontro. Localização Avenida Paulista, que aos domingos está aberta aos pedestres, não havendo fluxo de automóveis. Em um dos encontros, devido às eleições, ela estava fechada. Suporte Para realizar as experiências na avenida paulista, o lugar que geralmente nos atraía para servir de “camarim” eram os respiros do metrô. Localizados geralmente perto de saídas das estações, os guarda corpos em torno das escadas e a pequena elevação da grade serviam para deixarmos nossos pertences, de modo que não ficavam muito expostos, mas podiam ser a todo tempo vigiados por nós. Provocações Poéticas Em cada encontro algumas músicas, poesias ou textos eram apresentados para os atores, de modo que podiam configurar um universo de palavras disponível para serem trabalhadas no espaço. A ideia era que seus significados pudessem também reverberar na experimentação de cada um, trazendo determinadas qualidades ao corpo e expressão de cada um.
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“Todas as viagens são lindas, mesmo as que fizeres nas ruas do teu bairro. O encontro dependerá do estado da tua alma” (COUTO, Rui Ribeiro apud NOVASKI, 2014, p 79) “O viajante deixou o escritório cansado por volta das 21h da noite e seu carro o levou até sua casa; o pôs na cama e o cobriu com um gesto de carinho. Ele passou os quarenta minutos que distanciam o seu escritório do seu apartamento dormindo. Não sonhou; não sonha mais.” (NOVASKI, Mariana, 2014, p 88) “(...) se perguntam cada vez mais para onde estão indo, porque sabem, cada vez menos, onde estão” (AUGÉ, 1994) “Cada cidade é uma coleção de vidas e prédios e tem sua própria personalidade (...) se uma cidade tem personalidade, talvez também tenha alma. Talvez sonhe. (...) Se a cidade estava sonhando, então, ela estava dormindo. E eu não temo cidades que dormem, esparramadas e inconscientes ao redor de seus rios e estuários, como gatos ao luar. Cidades adormecidas são criaturas domadas e inofensivas. O que eu temo é o dia em que as cidades acordarão. O dia em que as cidades irão se levantar!” (GAIMAN, 2012, p. 376) Relato Partimos então às ruas, onde o primeiro fator com o qual nos deparamos foi a escala. O corpo do ator, fora do espaço concentrado da sala de ensaio ou do edifício teatral se mescla às multidões e parece diminuto junto aos grandes edifícios. Optamos então nessa etapa por adotar o uso de máscaras pretas nas práticas, de modo que buscaríamos neutralizar nosso rosto para expandir as oposições e desenhos que nossos corpos faziam no espaço. Assim, não
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seria a palavra ou a expressão facial que traduziria nossos estados, mas nossos corpos, expandindo e potencializando os gestos. Cobrir o rosto, porém, gera leituras por parte dos transeuntes, sugerindo, inclusive, uma linguagem, como se representássemos bonecos ou estátuas, por exemplo. Imediatamente nos destacamos na paisagem urbana e geramos reações nos transeuntes. Algumas pessoas se permitiam parar para observar e ficavam curiosas a respeito das relações que aqueles seres estabeleciam com o espaço e entre si. A experiência fez o grupo perceber algumas ocorrências. Ao se verem livres de rosto, sentiam-se livres para explorar o espaço de maneira mais ousada, subindo em guarda-corpos e criando novas trajetórias que não fariam usualmente, por exemplo. Ou seja, ao perder-se da identidade do rosto e a manifestar-se como ser extra cotidiano no espaço, tomamos a liberdade de burlar regras implícitas que estão em voga na rua, como sentar e deitar no chão, subir em lixeiras etc. Além disso, por ter os olhos cobertos, percebemos que os transeuntes não se acanhavam em olhar diretamente para nós, algo incomum no cotidiano urbano, em que a troca de olhares é evitada o tempo inteiro, pois pode ser interpretada como um convite à relação. Em alguns, a ausência de rosto também despertou medo, em outros, curiosidade ou até fascinação, como foi o caso de um garoto que se encantou pelos “ninjas” na rua. Ter como sala de ensaio o ambiente urbano, por onde um público-jogador potencial transita também gera no grupo uma preocupação com a roupa de trabalho a ser usada, pois a vestimenta do artista de rua influencia diretamente
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na leitura de quem assiste. Estampas, marcas, cores e outros elementos expressam ideias e discursos, e o ator deve atentar-se a isso, uma vez que por mais que esteja em um momento de descoberta e experimentação seu corpo comunica e está já em contato com um espectador em potencial. Nas discussões a respeito das práticas e das relações que estabelecemos com a cidade diariamente muitas questões foram levantadas. Nas conversas a respeito do modelo de cidade sonhado por cada um começaram a se delinear algumas das questões discutidas no primeiro capítulo deste trabalho. Foi apontado que a cidade ideal seria aquela feita para pessoas, pensada para favorecer o encontro, não o deslocamento eficiente e o trabalho. Nela, os espaços são pensados e configurados de modo instigante, que convida os transeuntes a estabelecerem relações diferentes com eles, ou seja, um desenho que não defina claramente as funções e usos dos elementos urbanos. Foi apontado também como modelo ideal uma cidade em que prédios de diversos períodos históricos convivem, como no centro de São Paulo, e há uma escuta das necessidades do ambiente, pensando o desenho urbano a partir das necessidades daqueles que o habitam diariamente.
Registro das experimentações realizadas em agosto/ setembro 2016 na Avenida Paulista Fotos do acervo do grupo
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Encontros - Outubro/novembro 2016 Roteiro dos encontros . Jogos de atenção e prontidão para se colocar no espaço e conectar-se com seus estímulos; . Experimentação inicial delimitando área de intervenção e investigando as velocidades, distâncias e planos que o corpo pode desempenhar no espaço; . Investigação de gestos e repetição de pequenas partituras no espaço; . Experimentações no espaço se relacionando diretamente com os outros integrantes e englobando as qualidades de composição exploradas anteriormente; . Conversa e registro de depoimentos a respeito do lugar escolhido para trabalhar: - Por que é seu lugar favorito na cidade? - Qual o melhor dia e horário para estar aqui? - Qual sua principal lembrança desse lugar? - Como foi trabalhar aqui? . Depoimentos a respeito da experimentação e do encontro. Localização Para prosseguir nas experimentações, foi proposto o procedimento de elencar o lugar favorito na cidade de cada integrante do coletivo, sendo esse o local em que trabalharíamos. Nesses dois meses trabalhamos no Viaduto Santa Ifigênia (centro), no Centro Cultural São Paulo (Zona Sul) e na esquina da alameda Jaú com a rua da consolação (Zona Sul).
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Suporte . Viaduto Santa Ifigênia: No trabalho no viaduto, utilizávamos como ponto de encontro os deques que ficam em frente ao Mosteiro São Bento. São áreas de permanência no centro e serviam bem para nos encontrarmos, discutirmos os procedimentos do encontro e nos arrumarmos. Nossos pertences deixávamos encostados em algum dos postes da região central do viaduto, servindo como coxias laterais; . Centro Cultural São Paulo: Trabalhamos no terraço verde do CCSP, então utilizávamos um dos bancos para deixar nossos pertences enquanto realizávamos as práticas; . Alameda Jau x Consolação: Sendo um trecho residencial/ comercial da rua, suas lojas estavam fechadas nos domingos em que trabalhamos nessa área, então utilizamos a soleira da porta de um estabelecimento para deixar nossos pertences, de modo que eles não ficavam na passagem da calçada. A porta deste estabelecimento era espelhada, então a utilizamos como suporte para nos maquiarmos também. Provocações Poéticas “Cuidado! Eles estão ali. Protejam-se! Fechem os olhos e os vidros Liguem o Ipod Tapem seus narizes Chupem uma halls Limpem-se com álcool gel Vistam suas roupas metálicas
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Saiam em disparada Calma! Já desapareceram Malditos Zumbis! Mobiliário urbano sem utilidade Vagam de um lado ao outro e do outro ao um Carregados de um passado imaterializado Parecem fadados ao eterno presente Talvez tenham a alma do Homem da Multidão e Associem o ato de transitar à sua própria sobrevivência E a da cidade Cuidado! São invisíveis ao abservador comum Apenas os humanos podem ver A propósito, eles ainda estão ali.” Novaski, Mariana (2014, p 48) “Era tão lindo o tempo Que o tempo dissolveu Andávamos de mãos dadas Cidade, amigos e eu Hoje o vira virou A moda é ser repulsa Eu te amo online E te ignoro na rua” JALOO. A cidade. Jaloo. São Paulo: Elemess, 2016
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“Na cidade Ser artista É subir na cadeira Engolindo a peixeira É empolgar o turista É beber formicida É cuspir labareda É olhar a praça lotando E o chapéu estufando De tanta moeda É cair de joelhos É dar graças ao céu Lá se foi o turista O dinheiro, a peixeira A cadeira e o chapéu” CHICO BUARQUE. A cidade dos artistas. Elba Ramalho. Brasil: Ariola Records, 1981. “A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas por onde se anda nas povoações. Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma! (...) a rua é a agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua. A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte (...) (bate) palmas aos saltimbancos que, sem voz, rouquejam com fome para alegrá-la e para comer. A rua é generosa. O crime, o delírio, a miséria não os denuncia ela. A rua é a transformadora das línguas. “ DO RIO, João (1997, p.20)
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Relato Iniciamos outubro ainda trabalhando com as máscaras que cobriam completamente nossos rostos. Para avançar na pesquisa e explorar uma nova relação com os transeuntes, nos inspiramos nas ideias do trabalho de Lygia Clark, que criou máscaras sensoriais que instigam os sentidos de quem as usa. Passamos a experimentar as formas que as máscaras poderiam ter e o quanto esconderiam e revelariam de nossos rostos, testando o quanto elas limitariam nossa visão e percepção sensorial do espaço. Tal experiência possibilitou que novas leituras fossem feitas por parte do público acerca das “personagens” presentes no espaço, e suscitou novas leituras do lugar por parte dos atores, que deixaram de apenas provocar sensações nos transeuntes e passaram a também serem provocados sensorialmente pelas máscaras que usavam. O passo seguinte foi elencar o ambiente em que as experimentações se dariam. Como procedimento de apropriação do processo pelos atores, optei por perguntar qual o lugar favorito da cidade de São Paulo para eles (sendo, de preferência, público), e a cada duas semanas faríamos ensaio em um desses lugares. Ao final de cada ensaio, filmei o depoimento da pessoa que havia escolhido o local, perguntando o motivo pelo qual aquele era seu lugar favorito, sua principal memória ali e a hora ideal para se estar naquele lugar. Em seguida gravei depoimentos dos outros atores sobre como foi trabalhar no local escolhido pelo colega. Os lugares escolhidos foram: Viaduto Santa Efigênia, Centro Cultural São Paulo e uma esquina (Al. Jaú com Av. Rebouças).
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Viaduto Santa Ifigênia Ao trabalhar no Viaduto, uma nova escala e um novo espaço nos foram apresentados. Até então, por mais que trabalhássemos em locais de passagem, eram locais minimamente habitados ou com alguma perspectiva de parada devido à existência de estabelecimentos comerciais ou residenciais no entorno. No caso do Viaduto, sua configuração arquitetônica propicia apenas a passagem. Alguns vendedores ambulantes se instalam ao longo dele, assim como músicos e outros artistas, mas isso faz parte de uma apropriação espacial dessas pessoas, e não do desenho do Viaduto especificamente, ou seja, são usos que não configuram o projeto, mas o ambiente dessa área. Além disso, o Viaduto é rodeado por prédios e avenidas de grande fluxo de carros, dando ao corpo dos que o atravessam referências de escala muito grandes, de modo que, ao trabalhar ali, sentimos na paisagem que configuramos com o viaduto o contraste entre a nossa dimensão e a da cidade. Percebemos também que o uso de música ficava bem prejudicado em determinadas áreas do viaduto, pois quanto mais posicionados ao centro dele, menos haviam prédios no entorno, o que fazia com que as ondas sonoras se dissipassem e “perdessem” no ar, diferente do que experienciamos em ruas mais fechadas, onde o som reverberava pelas fachadas e se instaurava no ambiente. Os jogos que fazíamos antes de iniciar o trabalho já chamavam a atenção de alguns transeuntes, que olhavam intrigados e, às vezes, tentavam entender as regras. Algumas pessoas paravam para olhar as relações estabelecidas entre os atores e tinham as mais diversas reações, desde curiosidade
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à revolta por haver algo inesperado acontecendo em uma área de fluxo elevado, pois aquilo poderia configurar um obstáculo que geraria atrasos. Centro Cultural São Paulo O Centro Cultural São Paulo é um lugar com alta O Centro Cultural São Paulo é um lugar com alta concentração de atividades artísticas acontecendo em seu interior. O desenho do edifício parece fundir-se ao terreno em que está e suas conexões com a rua são quase uma extensão da mesma, de modo que se caminharmos desatentos pelas ruas que o circundam, podemos acabar entrando no prédio “por engano”. Esse desenho parece propiciar um convite a grupos que ocupam sua extensão com ensaios de dança, teatro, acrobacias etc. Devido à alta concentração de atividades no térreo, optamos por trabalhar no terraço verde do centro cultural. Logo percebemos que naquele local nossas práticas não eram percebidas. Os transeuntes não se intrigavam com nossa presença e mal olhavam em nossa direção ao passar. Por ser um local comumente utilizado para ensaios, qualquer intervenção ali fazia parte do status quo, então não estabelecia quebras ou práticas inusitadas do espaço, que já é diariamente ressignificado e transformado por artistas. Estando dentro de um edifício, nos deparamos com um ambiente minimamente limpo, algo que havíamos nos desacostumado a ter, e então percebemos que nas experimentações de planos, distâncias e velocidades, quase todos os integrantes optaram por explorar o chão e planos baixos.
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Nesse lugar começamos a experimentar as outras configurações de máscaras, utilizando máscaras que cobriam apenas um olho, os ouvidos etc. Assim, a máscara também imprimia em nós uma mudança na percepção do espaço, alterando o modo como nossos corpos o praticavam. Alameda Jau x Rua da Consolação O último procedimento proposto foi a exposição para os atores de uma série de imagens de pinturas, esculturas, fotografias e desenhos para que eles, intuitivamente, escolhessem uma. A partir da imagem escolhida eles deveriam criar uma personagem e escrever um rascunho simples de gênese. Desse modo, deveriam escolher mais cinco imagens que inspirariam o desenho de corpo a ser explorado na experimentação na rua. Por ser uma rua tipicamente residencial em dias de baixo fluxo de pedestres, tivemos mais contato com aqueles que passavam de automóvel. Percebemos que a possibilidade de passar rapidamente por nós de carro fazia com que as pessoas reagissem verbalmente à nossa presença, pois podiam nos provocar e deixar o lugar rapidamente. Os participantes, a partir da experiência, rascunharam textos curtos a respeito das figuras que incorporaram e nasceram do procedimento e da experimentação no espaço.
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Trechos dos textos Sombra, por Beatriz Grobman “Nasço do bueiro todos os dias. As gotas de rua me fazem quando o sol nasce. Eu só existo (ou sou vista) no sol. Quando vem a noite, com a linda lua, ando livre dos corpos vagantes, sem imitá-los ou fazer deles meu corpo. Porque não tenho corpo. Na noite da cidade é que me faço e me recolho junto às outras criaturas que usam seus disfarces durante o dia. O meu disfarce são os outros. Sou a sua sombra. Ser fluido que vive daquilo que imita. Meu corpo é seu corpo sempre. Sem corpo procuro meus braços, pernas, tronco. Não preciso deles para existir, mas sinto que sim. Na cidade, só é aquilo que existe. Mas não existo. Estou sempre me fazendo de acordo com o ângulo do sol. Preciso da luz para existir. Mas não preciso dela e nem do seu corpo para ser. À noite sou meu próprio rio escuro que se mistura na rua. À noite vivo com outros que, iguais a mim, são sua própria sombra. À noite esse fardo pesa menos, o de carregar a própria sombra. Entre os becos e puteiros, lixos e matadouros a sombra não assusta, pois ela só é. Na escuridão, eu apenas sou. E isso não basta para existir? Me diz”. Galugar, por Henrique de Paula “Tive uma visão. Vi que pessoas olham, mas não enxergam. Não querem enxergar. Vi um corpo que, apesar de vestido, se mostrava nu, despido de pudores, pedia. Pedia porque não podia. Não tinha poder;
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Isso vi daqui do alto, do meu altar grotesco de baixeza. E vi diversas vezes, se repetindo e se repetindo. Mas o tempo me fez frio, duro, mero observador de tudo. E como que de propósito, o ácido da chuva, que já me tirou do nariz às cordas vocais, me poupou os olhos, para que eu pudesse cumprir a minha sina: Ver sem ter voz”.
Registro das experimentações realizadas em outubro/ novembro 2016 no Viaduto Santa Ifigênia, Centro Cultural São Paulo e Alameda Jau . Fotos: Acervo do grupo
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Encontros - abril/maio/junho 2017 Roteiro dos encontros . Alongamento; . Treinamento de técnicas de parkour e dança; . Exercícios de composição trabalhando enquadramentos no espaço; . Composição livre pelo espaço Localização . Praça Victor Civita (Zona Oeste de São Paulo); . Largo São Francisco (Centro de São Paulo); . Vale do Anhangabaú (Centro de São Paulo); . Largo do Paissandu (Centro de São Paulo). Suporte Praça Victor Civita Os pertences eram deixados nos bancos próximos às áreas em que estávamos realizando os exercícios. O trabalho realizado na praça não exigia trocas de roupa ou maquiagem, então os bancos foram suficientes como suporte. Áreas de intervenção no centro Os pertences eram amarrados à uma cadeira bem visível perto de onde estávamos trabalhando. A prática também não exigia trocas de roupa ou maquiagem. Relato Durante os meses de janeiro, fevereiro e março, o coletivo focou sua pesquisa dramatúrgica no bairro da Liberdade, no centro de São Paulo, mais especificamente nos arredores
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da Capela dos Aflitos, próximo a onde antigamente era o Largo da Forca, local de execução dos condenados à morte na cidade. Tal pesquisa acontecia em paralelo com as investigações relacionadas a este trabalho final de graduação, e em abril voltamos às experimentações na rua. Como iniciei o trabalho com o Grupo XIX em fevereiro, constatei a importância das práticas de parkour e dança para transformar o modo de praticar o espaço urbano. Isso aliado à leitura dos textos a respeito das corpografias propostas por Paola Jacques Berenstein e das ideias de Michel de Certeau fez com que eu propusesse ao coletivo que trabalhássemos algumas técnicas de dança e parkour no espaço público para aprimorar nosso trabalho na rua. Após dois encontros, deliberamos que seria interessante abrir nosso processo e pesquisa para que outras pessoas pudessem participar e colaborar conosco. Então, a partir de maio começamos a receber artistas, arquitetos e pessoas interessadas nos nossos encontros, iniciando um processo focado na prática e composição com o espaço urbano. Iniciamos o trabalho na Praça Victor Civita, na Zona Oeste de São Paulo, trabalhando alguns princípios básicos de composição e técnicas de rolamento e precisão. A região da praça não tinha um fluxo tão alto de pessoas, o que permitiu às novas integrantes adquirirem mais proximidade com a pesquisa e com os membros do coletivo. Foi levantado pelos participantes que estar em coletivo ajudava a desinibir o corpo para explorar o espaço de maneiras mais ousadas. Subir e se relacionar com os elementos arquitetônicos do espaço parecia ser proibido, porém, ao nos perguntarmos o porquê de não podermos
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explorar planos diferentes dos pré-determinados pelo desenho urbano, era difícil responder. Ao subir em guardacorpos, nos equilibrar em corrimões e etc começamos a entender que não estávamos transgredindo a lei, mas normas implícitas de convivência e uso do espaço da cidade, e, ao estarmos em grupo, tínhamos mais força para desafiar tais normas, adquirindo eventualmente cúmplices entre os transeuntes. A partir de maio iniciamos as experimentações na região central da cidade, caracterizada por um intenso fluxo de pessoas. No início percebemos nos participantes uma tendência a se agrupar, que identificamos como uma busca de amparo uns nos outros ao desafiarmos a lógica urbana. Fizemos os primeiros encontros dessa nova fase no Largo São Francisco, onde está implantada uma das intervenções do projeto “Centro Aberto”, que cria áreas de permanência na região central de São Paulo. A área é composta por um deque, uma área de mesas, uma mesa de “ping pong” e duas áreas de passagem para que se cruze o largo. Começamos a testar pequenos percursos pelo largo em grupo. Delimitamos uma distância máxima que poderíamos ter entre nós e, revezando a liderança, éramos guiados por um dos integrantes a percorrer e compor imagens entre nós e com o lugar e seus fluxos. Nos encontros seguintes passamos a transpor um percurso maior, elegendo as três intervenções do “Centro Aberto” como “estações” e fazendo um trajeto que as percorresse, ou seja, passaríamos pelo Largo do Paissandu, pelo Largo São Francisco e pelo Largo São Bento. Tínhamos conosco uma caixa de som que transmitia música instrumental, e,
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assim como fazíamos inicialmente, percorríamos o trajeto guiados por um dos integrantes, revezando a liderança eventualmente. Fizemos algumas paradas em pontos de interesse que de alguma forma nos despertassem a curiosidade ou nos convidassem para a relação. Com o tempo começamos a acrescentar a palavra nas experimentações, recitando pequenos poemas, citações e cantando trechos de músicas, de modo que começamos a estabelecer nesse trajeto um universo poético nosso, traduzindo as sensações que o espaço e seus fluxos provocavam em nós. Outro aspecto que percebemos ao praticar esses trajetos foi que despertávamos interesse e curiosidade nos transeuntes, ao gerarmos algum tipo de tensão ou suspensão no espaço. Notamos a dificuldade de fazer as pessoas pararem para se relacionar conosco, sendo comum pessoas apenas perguntarem do que se tratava a nossa prática e seguirem seus caminhos. Porém, nos momentos em que anunciávamos algum tipo de acontecimento como uma acrobacia, por exemplo, alguns transeuntes dirigiam olhares a nós com mais atenção, parando eventualmente e interagindo conosco. Um fato curioso com o qual nos deparamos foi quando estávamos desenvolvendo uma prática na fachada da Praça das Artes, na Avenida São João. Ao subirmos na fachada e nos sentarmos em frente ao balaústre, um guarda solicitou que descêssemos, e ao questionarmos o porquê de não podermos sentar ali, ele não soube responder, dizendo apenas que “não podia porque não podia”. Reconhecemos ali mais uma das regras implícitas de uso do espaço urbano, que está no inconsciente e, algumas vezes, tem
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seu cumprimento garantido pelas autoridades, que não sabem verbalizar a origem ou razão do estabelecimento dessas regras, tendo em si a certeza de que elas devem ser cumpridas. Registrar os experimentos acabou se mostrando também um problema, sendo necessário que quem o fizesse tentasse ser o mais discreto o possível, uma vez que a presença de câmeras acompanhando o nosso trabalho atrapalhava a relação com os transeuntes, “justificando” nosso comportamento e prática. Notamos que ao ver que o acontecimento estava sendo registrado, os transeuntes entendiam que aquilo estava sendo filmado ou fotografado para ser visto por outras pessoas em um outro lugar, como se estivéssemos agindo apenas para a câmera e não para eles. Ou seja, os afastávamos e indiretamente os desconvidávamos à relação, fazendo-os se sentir desconfortáveis por estar atrapalhando nossa filmagem. A partir desse trabalho elegemos então um trajeto menor para trabalharmos com mais atenção, compreendendo questões que o ambiente propunha e esboçando um pequeno roteiro de ações e jogos que desenvolveríamos no percurso, que partia do Viaduto Santa Ifigênia, passando pelo Rua São Bento e finalizando no Largo São Francisco. O horário para trabalhar seria o do fim de expediente, quando há um intenso fluxo de pessoas saindo do trabalho para voltar para casa. Elegemos então duas músicas para serem cantadas no percurso e alguns textos que seriam ditos. Padronizamos nossos trajes, vestindo preto com acessórios coloridos (suspensórios, gorros, cachecóis, etc) e tínhamos um violão para nos acompanhar. Durante a preparação no deque do
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Centro Aberto do Largo São Bento, um morador de rua, Serafim, se aproximou querendo cantar conosco. Ele nos acompanhou por todo o trajeto e, eventualmente, colaborou com algumas músicas. Ao longo do percurso improvisamos algumas músicas baseadas no que ouvíamos, nos nomes das ruas pelas quais passávamos e no ambiente em que estávamos inseridos, jogo que gerou um interesse maior nos transeuntes. Fizemos duas paradas ao longo do percurso, na região central do viaduto e no largo São Bento. Como já havíamos percebido em experiências anteriores, era mais difícil despertar interesse e atrair pessoas no viaduto. A acústica ficava prejudicada e os transeuntes só conseguiam nos ouvir ao se aproximarem de nós. Porém, percebemos que ao nos dirigirmos às pessoas, obtivemos algumas respostas positivas, pois alguns transeuntes se permitiram por um pequeno momento dançar ao som da música. Os movimentos eram um pouco duros e tímidos, mas era possível perceber que eles traduziam um desejo de se relacionar com a rua e seus estímulos de uma maneira diferente. No largo São Bento foi mais fácil. Por ser uma área com alguma permanência, devido ao deque do centro aberto, conseguimos nos relacionar com mais pessoas. Ao fazer o percurso pela Rua São Bento, a acústica nos favoreceu, pois os edifícios que emolduram a rua reverberavam o som e faziam com que nossa música tomasse o espaço. Algumas pessoas seguiram o cortejo que formamos, pediram músicas e até aprenderam trechos do que estávamos cantando para cantar junto. Alguns que estavam trabalhando nos estabelecimentos comerciais da rua acenavam e balançavam a cabeça no ritmo da música.
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Percebemos então no Largo e na Rua São Bento um bom potencial para trabalhar o cortejo. Um dos problemas que tivemos foi o fato de não termos um roteiro claro de ações e intervenções no espaço, o que acarretou na perda de público em momentos em que tínhamos que conversar entre nós para decidir que número fazer a seguir. Ensaiar no espaço urbano, portanto, exige planejamento. Qualquer lacuna que apareça na intervenção pode ser causadora da perda do interesse por parte dos transeuntes. Músicas escolhidas LUIZ GALVÃO E MORAIS MOREIRA. Ladeira da Praça. Novos Baianos. São Paulo: Continental, 1974. Se fosse por mim Todo mundo andava sambando Assim nesse passo passando Porque nada mais bonito Que um brasileiro pé duro Representante da raça Descendo no samba a ladeira da praça E se você merecer Inteira de graça ao ar livre Inteirinha de graça A fina figura de uma criatura Representante de raça Descendo no samba a ladeira da praça Presa no espaço
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Solta no ar Nem andando, nem voando Só sambando (sambando) BLUBELL. Blue. Blubell. São Paulo: YB Music, 2013
Blue, um caco azul
Num mar de metal No céu da cidade No meio da tarde Não tem Pão de Açúcar, nem litoral O mar de São Paulo É continental Assim Dá-se um fim Nesse cinza Quando se avista Um pouco de
Blue, um caco azul
Num mar de metal No céu da cidade No meio da tarde No mais, eu fico em paz No meio do caos Eu não tenho carro E acho legal
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Músicas improvisadas no percurso Nó - Coletivo Pragurbana e Serafim Ô menino, tome tento Eu vou contigo pro Largo São Bento A gente vai dar um nó Na esquina com a Libero Badaró A drogaria se acende na esquina Perceba e olhe pra mim, ô menina Sei que aqui eu não vou sozinho Encontro sempre gente boa no caminho Que vai olhar pra mim Cantando e dançando na rua assim Toca o sino são seis horas no Mosteiro Não esqueça de acender o seu farol dianteiro Artistas de rua nós somos, somos sim Mas não para de rimar, pois chegou o Serafim A galera vai fechando, tira foto, pode tirar Só não pode distrair que aqui o foco é rimar Se é com A, se é B, se é com C Não quero saber Agora o mundo é nosso Me perdi, passei pra você Ô menino, tome tento Eu vou contigo pro Largo São Bento A gente vai dar um nó Na esquina com a Libero Badaró
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Palhaço - Coletivo Pragurbana Um dia me chamaram de palhaço Eu disse amigo, isso é o que sou Disseram que eu tinha um nariz vermelho Amigo ele veio comigo do berço Se eu sou palhaço, qual é o meu papel Pra onde eu vou? Qual o meu lugar? Na cidade tão rápida assim Tão triste Qual seria o lugar do palhaço? Um dia me chamaram de palhaço Eu disse amigo, isso é o que sou Disseram que eu tinha um nariz vermelho Amigo ele veio comigo do berço Se eu sou palhaço, qual é o meu papel Qual o meu lugar? Onde verei o céu? Se eu sou palhaço qual o meu lugar? Serafim me disse que é a rua É onde eu vou cantar
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Registro das experimentações realizadas entre março e junho de 2017 na Praça Victor Civita e no Centro de São Paulo. Fotos: Acervo do grupo
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EpĂlogo A rua que me atravessa
168 grupo formado por estudantes da USP
Meu centro O centro da cidade sempre foi um lugar enigmático para mim. Quando criança, minha mãe trabalhava na justiça do trabalho, na rua Santa Efigênia, e muitas vezes tive que acompanhá-la até lá. Nunca tivemos carro, então desde cedo me acostumei a percorrer a cidade em transporte público. Costumam dizer que quando voltamos a lugares que habitamos quando criança eles parecem menores, já que nossos corpos crescem e a arquitetura supostamente mantém suas dimensões. O centro, porém, nunca me pareceu menor. Quando criança, as fachadas dos prédios me fascinavam, e ficou marcada em mim a imagem de suas ruas e fachadas quando evoco em minha mente o conceito de cidade. Ao percorrermos suas fachadas com o olhar, percorremos épocas, histórias. Os edifícios recortam o céu e o intenso fluxo de pessoas faz com que nos sintamos pequenos perante a multidão. A imponência das gárgulas e ornamentos reverberam em mim de uma maneira que enxergo a idade dos edifícios como sinal de sabedoria, e não de desgaste ou atraso. Me afastei dessa região por muitos anos, pois conforme fui crescendo não tinha mais que acompanhar minha mãe até o serviço, e alguns anos depois a Justiça do Trabalho foi transferida para a região da Barra Funda. Em 2010, porém, reconectei-me ao centro. Há na FAU a tradição de percorrer o centro seguindo o maracatu conduzido pelo Coro de Carcarás no encerramento da Semana de Recepção aos Calouros. Esse evento reúne um número enorme de pessoas, que
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percorre galerias e ruas do centro da cidade dançando e usando parangolés inspirados pelo trabalho de Hélio Oiticica, artista plástico brasileiro que propunha que seus parangolés fossem vestidos pelo “público”, que passaria a ter papel ativo na obra. Assim, atravessávamos o centro da cidade dançando e nos relacionando com o espaço compondo com esses tecidos que emolduravam nossos corpos. O centro é hoje para mim um lugar em que sei que caminhando chegarei aonde preciso. Tenho a sensação de que meus passos podem me levar instintivamente a qualquer destino na região, e que o caminhar é uma solução muito mais eficaz que a de olhar um mapa. Reconheço agora que essa percepção advém da maneira que meu corpo praticou esse espaço ao longo dos anos, e que antes de ter a minha primeira aula na FAU, eu já participava de uma intervenção artística no ambiente urbano que alterava o meu modo de me relacionar com a rua, o que me proporcionou um olhar e um vínculo especiais com aquele lugar.
Atravessamentos Ir à rua e trabalhar no espaço público cria um vínculo curioso com a área investigada. Ao passar um tempo naquele lugar estabelecendo relações extra cotidianas com ele e seus fluxos, imprimimos algo no espaço e ele imprime algo em nós. Passamos a compreendê-lo de um modo que poucos fazem conscientemente, e ao passarmos por ele, mesmo que meses após termos trabalhado ali, há uma sensação próxima à de quando voltamos para casa após uma viagem longa. Caminhamos por ela e a examinamos, tentando
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reconhecer o que está exatamente como deixamos da última vez em que estivemos ali e o que mudou. Em menor escala, penso que um vínculo parecido se estabelece quando presenciamos algo marcante em um lugar. Shows, performances, peças e outros eventos também podem expandir os significados de um determinado local e fazer dele o suporte material para boas recordações. As práticas na rua desenvolvidas durante esse Trabalho Final de Graduação não tinham por objetivo responder as questões levantadas pela pesquisa, mas dialogar com elas. Muito do que foi pesquisado e levantado como base para o trabalho só foi melhor assimilado ao enfrentar efetivamente a rua e a tentativa de estabelecer nela uma manifestação artística que atraísse seus transeuntes e de alguma forma provocasse o modo como estes se relacionavam com ela. A ideia de pertencimento é fundamental para que haja novas práticas no espaço urbano. Para que nos sintamos à vontade para desafiar a lógica do espaço é crucial que nos sintamos amparados por outros. Que saibamos que não estamos sós no desejo de habitar e redescobrir o espaço público. Os atores do coletivo muitas vezes apontaram que estar acompanhados no ato de propor desprogramações no espaço os fazia se sentir seguros e amparados para ousarem. Penso que ao intervir artisticamente na cidade estamos também indicando aos transeuntes que anseiam por viver a rua que eles não estão sós, e de que podem começar já a transformar o espaço. Alguns casos como o de um transeunte que parou no Viaduto Santa Ifigênia para dançar conosco ou do que começou a percorrer a trajetória da rua São Bento dando cambalhotas junto a nós podem confirmar isso. Assim, seria a partir desse sentimento de
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pertencimento que configuraríamos um coletivo como o colocado por David Harvey (2012\2014), capaz de desafiar e reverter os processos de urbanização vigentes.
Rumos Para a pesquisa teatral, investigar a rua abre então uma vasta gama de possibilidades para serem exploradas. Ao iniciar a pesquisa, entre os meus objetivos estava “democratizar o teatro”, levando-o para pessoas que geralmente não tem acesso a essa arte. Porém, logo percebi que não atingiria tal objetivo da maneira que idealizava, já que ao enxergar a cidade como dramaturgia e invadi-la com intervenções artísticas não estava tornando o edifício teatral ou o teatro que é feito dentro dele acessível para os que nunca estiveram em um teatro, mas estava pesquisando uma linguagem própria da rua e do teatro feito a partir dela. O “teatro de sala”, porém, também se desenvolve a partir disso. Ao comentar esse movimento teatral de se dirigir cada vez mais para o espaço público, Ricardo Cardoso (2008) citando Freire-Filho (1982), coloca que “é assim que os tecidos necrosados do teatro vão ganhar sangue [...]. O teatro de rua, que passou pela sala e roubou dela muita coisa útil antes de ir para a rua só completará o seu ciclo quando ele voltar à sala e levar para lá muita coisa útil extraída da vivência da rua” (FREIRE-FILHO, 1982 apud CARDOSO, 2008, p. 87). É importante apenas sempre nos atentarmos que levar a arte para o espaço público requer um duplo movimento. Que ao passo em que intervimos, também sofremos interferências e influências do tecido urbano, transformando
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a nós mesmos também e o modo como nos enxergamos perante à cidade e aos seus fluxos. É crucial para que isso se efetive que reconheçamos a soberania do espaço perante os nossos discursos, de modo que intervenções que se reconhecem como uma maneira melhor de se praticar e ler o espaço e buscam impor perante seus habitantes tal visão terá dificuldades de se instaurar e de atingi-los. Além disso, é fundamental que tais intervenções proponham uma relação verdadeira com o público, para que este possa interagir com o trabalho, e não só o contemple, pois a completa passividade perante uma manifestação artística poderia reforçar o fenômeno de espetacularização defendido por Guy Debord (1997).
Reverberações São intensos os processos de verticalização e individualização que nos levam cada vez mais para longe da rua e do encontro com o outro. Ao nos vermos diante da esmagadora escala urbana parece difícil acreditar na potência de nossas ideias. Em uma cidade tão grande e complexa como São Paulo, penso que se sentir parte de algo é fundamental para termos coragem de expressar nossos mais profundos desejos e anseios. Descobrir os diversos grupos que intervém em espaços não convencionais e os pesquisadores que investigam as relações entre a arte e o espaço urbano foi um dos maiores presentes que esse trabalho me proporcionou. Durante o processo me permiti fazer os mais diversos workshops que trabalhavam as relações entre a arte e o espaço urbano, como o núcleo com o Grupo XIX, um workshop de dramaturgia a partir da cidade ministrado por Victor Nóvoa, uma vivência de dança contemporânea compondo
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com o espaço público ministrado por Carmen Morais, entre outros. Saber que artistas tão talentosos e competentes compartilham comigo essas inquietações a respeito de como lemos e praticamos a rua e de como a arte poderia ser um instrumento potente para transformar isso foi fundamental para que eu tivesse a coragem de enfrentar a cidade junto ao Coletivo Pragurbana. Finalizo esse trabalho com muito mais perguntas do que tinha ao iniciá-lo, e quanto mais desenvolvo experimentos e intervenções na rua, mais curioso fico a respeito desse teatro que nasce da dramaturgia urbana. Reconheço então que o que concluo nesse trabalho final não é uma pesquisa, mas uma etapa de uma pesquisa que ainda reverbera e estará comigo sempre, conectando o arquiteto e o artista que existem em mim. Vida longa ao Coletivo Pragurbana!
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Aos planejadores da paisagem: Quando o uso desobedecer o desenho, Esqueรงam-se arquitetos. Guardem a lapiseira e o papel Observem o brilho do acaso! Sintam! Percebam! Entendam! Aprendam! ร s vezes, deixe como estรก. NOVASKI (2014, p. 59)
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Catálogo de Exposição PAPE, Lygia. Espaço Imantado. Textos de Paulo Herkenhoff; Manuel J. Borja-Villel. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2012.
Filmografia My Playground. Direção: Kaspar Astrup Schröder. Produção: Kaspar Astrup Schröder. Copenhagem (DK): KSPR Film, 2009. De onde eu te vejo. Direção: Luiz Villaça. Produção: Paula Cocenza e Denise Gomes. São Paulo (BR): Warner Brothers, 2016.
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Foto: Avener Prado. Acesso: 22 jun 2017. P. 94 (inferior) Fonte: <http://www.vazio.com.br/site2012/ wp-content/uploads/2012/08/vazio-sa_bom-retiro-968m_03_ AvenerPrado_site.jpg> Foto: Avener Prado. Acesso: 22 jun 2017. P. 95 (superior) Fonte: <https://farm9.staticflickr. com/8406/30154984755_ebeb867c55_c.jpg> Foto: Nelson Kao. Acesso: 22 jun 2017. P. 95 (inferior) Fonte: <http://3.bp.blogspot.com/-BkoJouHKiYc/ UE35doj5i-I/AAAAAAAAEEI/EKg6DaG4K-g/s1600/Bom-Retiro_ La-Paz_0070_1.jpg> Foto: Nelson Kao. Acesso: 22 jun 2017. P. 96 (superior) Fonte: <https://soubh-imagens.s3.amazonaws. com/media/uploaded_images/eventos/162114_Entrepartidas_2_--_ Foto_Diego_Bresani.jpg> Foto: Diego Bresani. Acesso: 22 jun 2017. P. 96 (inferior) Fonte: <http://botequimcultural.com.br/wpcontent/uploads/2016/10/entrepartidas-Alexandra-Martins1.jpg> Foto: Alexandra Martins>. Acesso: 22 jun 2017. P. 97 Fonte: <http://ociclorama.com/wp-content/ uploads/2016/09/Entrepartidas-Thiago-SabinoE021-681x1024.jpg> Foto: Thiago Sabino. Acesso: 22 jun 2017. P. 98-99 Fonte: Acervo do grupo Foto: Autoria prรณpria P. 107-114 Fonte: Acervo do grupo P. 125-137 Fonte: Acervo do grupo Fotos: Thais Vaz. P. 148-163 Fonte: Acervo do Grupo P. 164-165 Fonte: <https://c1.staticflickr. com/6/5340/8854454515_24686e2ab5_b.jpg> Foto: Francisco Aragรฃo. Acesso: 22 jun 2017. P. 167 Fonte: Acervo Pessoal Foto: Alinne Anno Contracapa Fonte: <https://c1.staticflickr. com/6/5775/30463089290_af629c296e.jpg > Foto: Diego Torres Silvestre. Acesso: 22 jun 2017.
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_ficha técnica das peças Entre Esperas Direção: Erika Coracini. Dramaturgia: Alexandre Krug. Atores Criadores: Ana Carolina Casagrande, Cilá Fonseca, David Carolla, Felipe Romon, Junior Fernandes, Rafael Caldas, Luisa Mira, Fernanda Villarta. Composição Musical: Charles Raszl. Gravação e Mixagem: Rafael Agra. Direção do Movimento: Isis Marks. Direção de Arte: Ivan Zancan. Registro em vídeo: Camilla Martinez e Edgar Salazar. Colaboração: Lara Thomaz , Fernanda Fazzio, Marília Machado e Maria Kowales. Produção: Penélope Cia de Teatro. Ópera Urbe - Peste Contemporânea Direção: Rogério Tarifa. Elenco: Karen Menatti, Flavio Barollo, Eduardo Mossri, André Cezar Mendes e Leona Jhovs. Dramaturgia, composições originais e direção musical: Zimbher. Banda: Felipe Chacon, Luca Frazão, Franco Orlando, Glauber Bento, Breno e Pedro Renaud. Cenografia: Rogério Tarifa. Figurino: Silvana Marcondes. Produção: Delanda Produções e Cooperativa de Música de São Paulo
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Bom Retiro 958 metros Concepção e Direção Geral: Antonio Araújo Dramaturgia: Joca Reiners Terron Co-direção: Eliana Monteiro. Elenco: Luciana Schwinden, Mawusi Tulani, Roberto Audio, Raquel Morales, Sofia Boito, Conrado Caputto. Kathia Bissoli. João Attuy. Icaro Rodrigues. Samuel Vieira. Beatriz Macedo. Naiara Soares. Renato Caetano e Elton Santos. Atriz convidada: Laetitia Augustin-Viguier. Desenho de luz: Guilherme Bonfanti. Direção de arte: Carlos Teixeira. Figurinos: Marcelo Sommer. Imagem: Grissel Piguillem. Trilha sonora original: Erico Theobaldo e Miguel Caldas. Fotografia: Flavio Morbach. Direção de Produção: Teatro da Vertigem e Henrique Mariano. ENTREPARTIDAS Direção: Francis Wilker. Elenco: Adilson Dias, Alonso Bento, Giselle Ziviank, Gleide Firmino, Jhony Gomantos, Lisbeth Rios, Maria Carolina Machado, Micheli Santini e Nei Cirqueira. Dramaturgia: Jonathan Andrade. Assistente de direção: Ivone Oliveira. Assistente de direção de cena: Aline Seabra. Desenho de luz: Diego Bresani. Montagem e operação de luz: Higor Filipe. Figurinos e direção de arte: Hugo Cabral e Júlia Gonzales. Produção: Tatiana Carvalhedo (Carvalhedo Produções).
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