PRAGURBANA P o é t i c a s d o Te r r i t ó r i o U r b a n o
em obras
fauusp dezembro 2016 Sérgio Marques or. Marta Bogéa
Vistas de longe, as grandes cidades são um acúmulo de grandes edifícios, grandes populações e grandes áreas. Para mim, isso não é “real”. O real é a cidade tal como ela é vista por seus habitantes. O verdadeiro retrato está nas frestas do chão e em torno dos menores pedaços da arquitetura, onde se faz a vida do dia-a-dia Will Eisner¹ 2
Um dia, todos os habitantes de Belo Horizonte ouvem um toque de saída: todos são obrigados a sair de suas casas ou de onde quer que estejam alojados, para então invadir os espaços públicos da cidade [...] toda a arquitetura é abandonada simultânea e radicalmente em troca da ocupação repentina das ruas, avenidas, praias e parques. [...] Nesse teatro, a arquitetura desempenha o papel de atriz coadjuvante ou mesmo de mera figurante: todas as edificações, totalmente abandonadas, assistindo passivamente ao comportamento imprevisível da massa. O urbanismo, por outro lado, é o palco onde tudo acontece.
Carlos teixeira³
Cena do filme “My Playground”
_prólogo Não sei dizer ao certo quando a inquietação começou, mas uma das primeiras provocações das quais me lembro veio no segundo ano da graduação na FAUUSP, quando o professor Takashi Fukushima pediu a seus alunos que desenhassem um mapa estilizado do seu trajeto até a FAU, destacando elementos e acontecimentos marcantes da paisagem urbana. Logo percebemos que por mais habituados que fôssemos com nossos trajetos, víamos muito pouco do nosso entorno durante nossos deslocamentos diários, como se não estivéssemos realmente presentes no espaço que habitávamos. Metrópoles como São Paulo tem seu desenho voltado para uma eficiência de deslocamento. Suas ruas não parecem lugares, mas caminhos que levam a lugares. Os cidadãos “vivem para o trabalho e se definem como persona social em função das atividades que nele exercem. Esta cultura do trabalho está refletida no desenho da cidade e na forma como nos relacionamos com ela. Estabelecemos uma relação funcional com a cidade” (JORGE, 2013, p79), ou seja, os espaços são pensados não para se relacionarem com seus usuários, mas para levá-los de forma eficiente aos seus destinos, de forma que entendemos a rua não como lugar de encontro, mas apenas de passagem, surgindo a ideia de que qualquer outra relação estabelecida nesse espaço é transgressora. Não nos permitimos parar, encontrar e viver o espaço público.
Dois anos depois, em uma disciplina de projeto na mesma universidade, outra provocação, a professora Marta Bogea nos desafiou a encontrar metodologias alternativas para apresentar um projeto arquitetônico, o que me levou ao escritório dinamarquês Bjarke Ingels Group (BIG), que utiliza das mais variadas linguagens para apresentar seus projetos. Entre elas, um filme em que praticantes de parkour correm e desbravam os volumes, cheios e vazios das obras do escritório. Em “My Playgroud”, o corpo dos protagonistas expande o espaço e o testa até as últimas consequências, buscando e ressignificando paredes, coberturas, janelas, etc, para compor seu trajeto, “percepciona-se a arquitetura tal como é: moldura para a vida humana. A arquitetura é um meio, a vida é o seu objetivo” (INGELS,2011, p385). O corpo justifica e ressignifica o desenho. O gesto do arquiteto ou urbanista que define planos, limites e topografias no espaço só se completa efetivamente
Experimento do Coletivo Pragurbana nas ruas de São Paulo no momento em que um ou mais corpos estabelecem relação com tais elementos. Quanto mais “desobediente” essa interação for, mais ricos serão os significados e interpretações que o espaço poderá ter, revelando até potencialidades nunca imaginadas pelo seu criador. Os protagonistas do filme trazem à tona a vontade de transformar o espaço urbano e de se relacionar com a rua. No ano seguinte, imergi na pesquisa teatral ao iniciar um curso técnico de interpretação e preencher minha grade da USP com disciplinas optativas nos departamentos de artes cênicas e audiovisual da ECA. Ao participar de um processo de iniciação científica sobre a encenação do drama wagneriano, conheci as ideias do arquiteto e encenador Adolphe
Appia. Ele viveu na época em que os cenários eram compostos por grandes pinturas em perspectiva que ambientavam o drama, e questionou tal solução, defendendo o uso da luz e a concepção de espaços praticáveis que jogassem com o corpo dos atores, criando novas dinâmicas para a encenação. O processo de pesquisa mesclou as ideias de Appia ao procedimento conhecido como viewpoints, desenvolvido pela encenadora americana Anne Bogart, que instiga o ator a experimentar as distâncias, planos e relações que seu corpo pode estabelecer com a arquitetura da sala de ensaio, de modo que o encenador possa jogar com as configurações encontradas para desenhar as cenas. Fiquei fascinado pelo estudo de potencialidades do espaço e pela possibilidade de propor topografias, linhas e obstáculos que instigassem o trabalho do ator, buscando espaços cada vez mais desligados da neutralidade da caixa preta italiana. Além disso, tomei consciência de que minha facilidade para ler o espaço também seria uma vantagem na hora de propor cenas e habitar o espaço como personagem. No primeiro semestre do curso técnico de interpretação fui apresentado ao quadrinista Will Eisner e à sua obra. Tínhamos que escrever cenas e criar personagens para uma peça de criação coletiva, e como referência, o professor nos indicou o livro “Nova York: A vida na grande cidade”, deste quadrinista. No livro, o autor cria pequenas histórias de cerca de uma página envolvendo algum elemento da cidade. As janelas, respiros do metrô, paredes, escadas, etc surgem como disparadores de pequenas dramaturgias, pretextos para cenas
Desenho de Will Eisner
Centro Aberto - Projeto em SĂŁo Paulo
curtas vividas por personagens nem sempre complexos, mas sempre completos. Ao ler esse livro, passei a observar e me atentar não só às ruas e lugares pelos quais eu passava diariamente, mas também às pessoas e às relações que elas estabeleciam com o espaço da cidade, começando a perceber as diferenças entre projeto e ambiente. A cidade projeto, segundo André Carrera (2008), seria a desenhada por arquitetos e urbanistas, pensada e planejada para diversas funções e usos específicos, enquanto a cidade ambiente nasce do projeto, mas é moldada pelo cotidiano e pelas necessidades daqueles que habitam o espaço. Enquanto o projeto tem caráter mais permanente, o que chamamos de ambiente se reconfigura e tem quase sempre um caráter efêmero, relacionando-se com aqueles que o habitam diariamente. Algum tempo depois, fui inesperadamente provocado por outra professora da Fau, Raquel Rolnik, convidada pela Mostra Internacional de Teatro para comentar e mediar uma conversa após a exibição da peça “Julia”, de Christiane Jatahy. A peça é uma versão do texto “Senhorita Julia”, de Strindberg. A adaptação gira em torno de uma garota (Julia) que durante toda a sua vida é seguida por um homem com uma câmera que documenta cada passo seu. A peça tem momentos metalinguísticos, e o auge disso é quando Julia declara que não quer mais ser filmada e estar em um teatro, deixando a sala de espetáculo. O homem a segue, e o público acompanha o desdobramento da cena através da projeção do que está sendo filmado, que mostra a atriz deixando o teatro e perdendo-se na rua. Raquel abriu a conversa comentando essa cena, atentando o público para essa inserção
na escala urbana, para como a relação entre o corpo da atriz e o espaço mudaram quando ela saiu de dentro do teatro e foi para a rua. Além disso, tal ato poderia ser lido como uma metáfora do desejo dos encenadores e atores contemporâneos de irem para a rua e saírem da caixa preta e do formato italiano, buscando encenações em espaços não convencionais (públicos ou não). Tal gesto refletia o desejo que aparece cada vez mais nas pessoas de se se apropriar e estar no espaço público. Foi então que passei a me fazer uma pergunta: Por que há esse desejo de abandonar o edifício teatral? A palavra teatro além de definir a arte teatral, define o lugar destinado à apresentação de obras dramáticas, óperas ou outros espetáculos. Segundo a Enciclopédia Britannica (1990, vol. 28:515), ela deriva da palavra grega theatron, forma derivada do verbo theomai, que significa ver, não em um sentido superficial, significa ver com atenção, ter uma experiência intensa e envolvente, a fim de descobrir um significado mais profundo do que se observa. Theatron então significa “lugar em que se vai para ver”, mas o que define este lugar? A construção? O palco? O acontecimento? Se inserimos a arte dramática no espaço urbano, estamos convidando os transeuntes a olhar para a rua no sentido do verbo theomai? Tiramos então o caráter impessoal da rua e passamos a nos atentar para o território que ocupamos? Essas são algumas das questões que me inquietam e norteiam a pesquisa “Pragurbana: Poéticas do Território Urbano”.
_teatro de rua | _teatro na rua O teatro começou na rua. Na Grécia os eventos teatrais se davam no espaço público, a encenação pertencia ao universo urbano, e seus elementos compunham com a encenação. Apenas em meados do século XVI a praça pública começou a ser substituída pelos salões ducais, mais favoráveis para as representações dramáticas da nobreza. Estando dentro do palácio, as peças passavam a ser posses dos príncipes, e apenas seus convidados tinham acesso a elas. As performances na rua provavelmente continuaram acontecendo, porém, o palácio passou a concentrar a maior parte das encenações, dando origem ao modelo italiano. Por volta dos anos 60, as cidades foram marcadas por uma reapropriação do espaço público por suas populações. Procissões, passeatas, etc, passaram a marcar as ruas das cidades. No Brasil, devido ao regime autoritário, as ruas só seriam retomadas verdadeiramente pelo povo alguns anos mais tarde, ao longo do processo de redemocratização do país. Era perceptível que para grande parte dos encenadores, a rua passava a representar uma ideia de liberdade política, enquanto o edifício teatral era símbolo da indústria cultural. Então por mais que as salas de espetáculos tenham se desenvolvido muito na época devido a descobertas tecnológicas, muitos encenadores buscaram a rua e espaços não convencionais para ambientar suas encenações.
É perceptível, porém, que há uma simplificação do termo quando pensamos em teatro de rua. Há hoje um número grande de grupos que trabalham o espaço urbano em suas encenações de maneiras muito distintas. Desse modo, o teatro de rua se tornou tão diversificado e complexo quanto o “teatro de sala”. Hoje é tão equivocado dizer que grupos como o Teatro da Vertigem e o Tá na Rua fazem o mesmo tipo de teatro quanto dizer o mesmo ao comparar grupos que trabalham dentro do edifício teatral, pois enquanto há uns que ainda se aproveitam das convenções da caixa preta de uma maneira mais conservadora, há outros que exploram a quebra da relação palco/plateia, as potencialidades do edifício, etc, assim como há grupos que exploram a rua e a cidade de maneiras completamente diferentes e focando seus estudos em aspectos distintos do ambiente urbano. Ao analisar o trabalho e pesquisa de alguns grupos, percebi algumas das diversas maneiras de se fazer teatro de rua. Sem a intenção de fazer qualquer juízo de valor, mas querendo encontrar uma forma de trabalho e pesquisa com a qual eu me identificasse, pesquisei e conferi o trabalho de alguns grupos, cuja análise ajuda a distinguir algumas das maneiras de se trabalhar o espaço urbano em uma encenação. Percebi logo um aspecto que é levantado por André Carrera em seu artigo “Teatro da Invasão: redefinindo a ordem da cidade”: poucos grupos enxergam a cidade como dramaturgia, considerando-a cenografia para as estórias que pretendem ser contadas.
Cena de “Entre Esperas”, da Cia Penélope
É comum perceber que o critério de muitos encenadores para escolher o local que irão trabalhar tem mais a ver com o seu discurso e do próprio grupo, do que com elementos como a memória, história e cultura do lugar. Grupos como a Cia Penélope, responsável pelo espetáculo “Entre Esperas”, peça itinerante em um trecho da Avenida Paulista e no Parque Trianon, região nobre da cidade de São Paulo, trabalham com convenções naturais do edifício teatral, pois não englobam os significados e memória espaciais do Parque Trianon, tratando-o como uma floresta. Ou seja, criam a ilusão de que a cena é ambientada em outro espaço, que não é o em que os atores estão concretamente, o que é quase padrão no teatro que se faz dentro do edifício teatral. Já o diretor Rogério Tarifa trabalha de uma maneira diferente em sua “Ópera Urbe: Peste Contemporânea”. Sua companhia invade o Largo da Batata, na zona oeste da cidade de São Paulo, e constrói uma estrutura de arquibancadas e palco para performar sua ópera urbana. Assim, é criada uma estrutura derivada do modelo de arena dentro do edifício teatral, separando a plateia da área de encenação e criando um palco em volta do qual os espectadores podem ouvir a estória contada, mas sem se esquecerem de que estão ao ar livre, ao lado de uma das avenidas mais movimentadas da cidade e em um local de intenso fluxo de pessoas. O próprio texto evoca o largo, ou seja, por mais que se simulem espaços como um restaurante ou um quarto no palco, é assumido que isso
é uma convenção e de que os atores estão em jogo direto com aquele espaço urbano em específico. Os atores reagem e dialogam com moradores da praça, que por estarem sempre ali, já conhecem as cenas e participam das danças e diálogos, com transeuntes que intervém eventualmente e até com manifestações que às vezes acontecem no largo. Ou seja, surge nesse projeto um teatro que apesar de carregar traços do edifício teatral, estabelece um diálogo direto com o ambiente urbano e assume o desejo do teatro de ir às ruas. Outro grupo que me chamou a atenção foi o Teatro da Vertigem, que na peça “Bom Retiro 958 metros” trabalha de uma maneira diferente. O grupo pesquisou a região do Bom Retiro, zona central de São Paulo, analisando sua história, moradores e usos, desenvolvendo uma dramaturgia e um espetáculo itinerante. Neste caso, o diretor Antônio Araújo lê a cidade como personagem do espetáculo e promove uma leitura territorial do bairro em sua encenação, que faz uso da arquitetura, topografia e desenho urbano do bairro para criar as imagens da peça. Assim, o espaço, como todo bom personagem, é insubstituível, e dificulta a transposição da peça para outros lugares. A encenação aproveita os postes da rua para desenhar a luz e assume os espaços de shopping, lojas, etc para ambientar as cenas. A companhia Teatro do Concreto busca uma apropriação do espaço urbano de forma semelhante a feita na peça “Bom Retiro 958 metros”, porém, não fixa sua
Cena de “Ópera Urbe: Peste Contemporânea”
dramaturgia em um lugar específico, tornando-a mais flexível a viagens e temporadas em outros locais. O espetáculo ENTREPARTIDAS consiste em um itinerário feito de ônibus que conduz os espectadores pela cidade e desenvolve sua dramaturgia. O grupo elege lugares específicos da cidade em que apresentam para compor a sua dramaturgia, como, por exemplo, a praça mais conhecida, ou a primeira igreja. Assim, a mesma peça já foi apresentada em Brasília, Ouro Preto, Paraty, entre outras cidades. Como cada cidade tem uma configuração, as distâncias também mudam, então a dramaturgia sempre é revisada para que no trajeto de ônibus não haja buracos dramatúrgicos e a peça possa acontecer.
Cena de “Bom Retiro 958 metros, do Teatro da Vertigem
Tais grupos fazem uso (de maneiras diferentes) de regiões da cidade com algum fluxo de pessoas e que já tem algum tipo de uso. Outro grupo que me chamou a atenção foi a Cia Armatroux, que em parceria com o escritório Vazios S/A, em Belo Horizonte, propôs uma ocupação teatral de uma área inabitada da cidade. É comum na cidade de Belo Horizonte a existência de prédios sustentados por palafitas (estacas estruturais) devido à topografia da região. A paisagem de alguns bairros fica então marcada por palafitas que muitas vezes são mais altas que os prédios que sustentam, e o grupo propõe-se a explorar esse espaço residual da cidade, essa estrutura que toma o espaço urbano, mas não é habitada. As palafitas tornam-se então cenário da peça “Invento para Leonardo”, e passam a ser percorridas tanto pelo público quanto pelos atores, em uma estrutura em que se brinca com a definição do lugar onde fica a plateia e os atores. Destaco então algumas maneiras que identifiquei de se usar o espaço urbano para a encenação: . Pensar o espaço como suporte à encenação e à dramaturgia. Escolher um lugar e utilizar seus elementos espaciais para criar uma ilusão e atiçar a imaginação do espectador. Um exemplo seria desenvolver uma cena que se passa em um labirinto utilizando os caminhos de um parque, ou seja, os atores e a dramaturgia convencem o espectador de que aquele espaço é outro. Neste caso, a lógica do edifício teatral aparece (imaginar que um palco pode ser milhares de lugares), porém sua estrutura não (palco, coxias, etc);
. Criar uma estrutura de palco e plateia no meio do espaço urbano, porém assumir o exercício do teatro de rua e da relação dos atores com o contexto urbano. Nessa configuração, uma estrutura derivada do edifício teatral surge, porém, a lógica de relação com o entorno é outra, pois assume a arquitetura e o contexto urbano do lugar como elementos da encenação; . Pensar a cidade como dramaturgia e vincular sua história, memória e desenho ao texto. Assim, a história que será contada terá relação direta com o lugar em que será encenada, que fornecerá aos atores e ao dramaturgo elementos de jogo para o desenho das cenas e para a escrita da peça. Entre as minhas motivações com a pesquisa, estava a de democratizar o teatro, levando a arte a pessoas que não tem acesso a ela, seja por questões sociais ou por interesse. Percebo, porém, que ao encarar o espaço urbano e a partir dele criar e pesquisar uma encenação, eu não estou democratizando o teatro de sala, ou levando-o às ruas, mas investigando um campo diferente, e concebendo um teatro próprio da rua e da cidade. Abrem-se então dois caminhos para a pesquisa: Ou esse teatro nasce, se desenvolve e desemboca em arte na rua, ou a partir da vivência e relação com a rua, ele complete seu ciclo retornando ao edifício teatral e modificando-o a partir dessa experiência, repensando as relações, desenho e disposições do público e da encenação no teatro de sala.
Cena de “Entrepartidas” da Cia Teatro do Concreto
_pragurbana | do beco às ruas Em janeiro de 2016, convidei um grupo de cerca de nove pessoas para se reunir na cobertura do Conjunto Nacional para discutir questões que gostaríamos de trabalhar através do teatro. Havia em nós um desejo de trabalhar juntos e investigar e nos aprofundar em questões poéticas e práticas. Por questões de agenda e interesse, após alguns ensaios ficou definido que apenas quatro poderiam cumprir com o combinado de continuar se encontrando semanalmente para ensaiar e compartilhar referências, e, com o tempo, passamos a nos ver como um coletivo de artistas e adotamos o nome Pragurbana. No início, ensaiávamos em salões de festa, quartos, entre outros tipos de salas de ensaio improvisadas, o que já gerava sensações diversas nos atores e uma consciência da influência que o espaço e sua carga de memória tinha nas nossas experimentações. O grupo atualmente é formado por: Henrique de Paula, estudante de Bacharelado em Artes Cênicas na ECAUSP, Beatriz Grobman, estudante de Comunicação Social na ESPM, Diego Martins, estudante de Bacharelado em Artes Cênicas na UNESP, Maristella Pinheiro, estudante de Arquitetura e Urbanismo na Escola da Cidade, e Sérgio Marques, estudante de Arquitetura e Urbanismo na FAUUSP.
Provocado pela Professora Sara Goldchmit na disciplina “Poéticas da Deriva Urbana” , decidi propor para o grupo que investigássemos essas relações entre o espaço e as sensações que este nos provocava na cidade, iniciando a pesquisa com práticas de deriva que nos levaram a alguns locais de interesse. A principal locação foi o Beco do Aprendiz, localizado no Bairro da Vila Madalena, em São Paulo. A pesquisa focava nas provocações que o espaço causava nos atores, com suas paredes altas grafitadas,
planos, curvas e vegetação que consumia as paredes. Ao iniciar a orientação, em agosto de 2016, levei ao grupo a proposta de abandonar o Beco e encaminhar a pesquisa para outros focos, engavetando o que havia sido levantando e partindo para áreas com maior fluxo de pessoas e mais contato com a rua, uma vez que o beco nos lembrava uma fenda no contexto urbano, recortando a quadra por dentro e não estabelecendo relação direta com o entorno e com o bairro. Partimos então às ruas, onde o primeiro fator com o qual nos deparamos foi a escala. O corpo do ator, fora do espaço concentrado da sala de ensaio ou do edifício teatral se mescla às multidões e parece diminuto junto aos grandes edifícios.
Uma das grandes qualidades dos atores do Coletivo Pragurbana é a sutileza e sensibilidade de interpretação. É comum em experimentações pequenos gestos ou expressões traduzirem com maestria seus movimentos internos. Corríamos o risco, porém, de que tais técnicas se perdessem perante a enorme quantidade de estímulos que o ambiente urbano abriga, e por isso optamos por iniciar nossos estudos fazendo uso do recurso da máscara. O uso de máscaras pretas inibia a possibilidade de traduzir estados através da expressão facial, e atentava os atores para como poderiam fazer isso utilizando apenas o corpo, expandindo-o e potencializando os gestos. Cobrir o rosto, porém, gera leituras por parte dos transeuntes, sugerindo, inclusive, uma linguagem, como se representássemos bonecos ou estátuas, por exemplo. A experiência fez o grupo perceber algumas ocorrências. Ao se verem livres de rosto, sentiam-se livres para explorar o espaço de maneira mais ousada, subindo em guardacorpos e criando novas trajetórias que não fariam usualmente, por exemplo. Além disso, por terem seus olhos cobertos, percebiam que os transeuntes não se acanhavam em olhar diretamente para eles, algo incomum no cotidiano urbano, em que a troca de olhares é evitada o tempo inteiro, pois pode ser interpretada como um convite à relação. Em alguns, a ausência de rosto também desperta medo, em outros, curiosidade ou até fascinação, como foi o caso de um garoto que se encantou pelos “ninjas” na rua.
Ter como sala de ensaio o ambiente urbano, por onde um público-jogador potencial
transita, também gera no grupo uma preocupação com a roupa de trabalho a ser usada, pois a vestimenta do artista de rua influencia diretamente na leitura de quem assiste. Estampas, marcas, cores, etc expressam ideias e discursos, e o ator deve se atentar a isso, uma vez que por mais que esteja em um momento de descoberta e experimentação, seu corpo comunica e está já em contato com o expectador. Pensando nisso, optamos por abandonar as máscaras que cobriam completamente nossos rostos. Inspirados pelo trabalho de Lygia Clark, que criou máscaras sensoriais que instigam os sentidos de quem as usa, passamos a experimentar as formas que as máscaras poderiam ter e o quanto esconderiam e revelariam de nossos rostos, testando o quanto elas limitariam nossa visão e percepção sensorial do espaço. Tal experiência possibilitou que novas leituras fossem feitas por parte do público acerca das “personagens” presentes no espaço, e suscitou novas leituras do lugar por parte dos atores, que deixaram de apenas instigar sensações nos transeuntes e passaram a também serem instigados sensorialmente pelas máscaras que usavam. O passo seguinte foi elencar o ambiente em que as experimentações se dariam. Como procedimento de apropriação do processo pelos atores, optei por perguntar a eles qual o lugar favorito da cidade de São Paulo para eles (sendo, de preferência, público), e a cada semana o ensaio se daria em algum desses lugares. Ao final de cada ensaio, filmei o depoimento da pessoa que havia escolhido o local, perguntando o motivo
pelo qual aquele é seu lugar favorito, sua principal memória ali e a hora ideal para se estar naquele lugar. Em seguida gravei depoimentos dos outros atores sobre como foi trabalhar no local escolhido pelo colega. Os lugares escolhidos foram: Viaduto Santa Efigênia, Centro Cultural São Paulo, uma esquina (Al Jaú com Av Rebouças), Minhocão e um trecho da R Augusta. O último procedimento proposto foi a exposição para os atores de uma série de imagens de pinturas, esculturas, fotografias e desenhos, para que eles intuitivamente escolhessem uma. A partir da imagem escolhida eles deveriam criar uma personagem e escrever sua gênese. A partir disso, deveriam escolher mais cinco imagens que inspirariam o desenho de corpo a ser explorado na experimentação na rua.
_dois ensaios Viaduto Santa Efigênia – 16 de outubro Inaugurado em 1913, o viaduto seria a segunda construção a atravessar o Vale do Anhangabau, no centro da cidade de São Paulo, melhorando o tráfego na região. Em meados dos anos 80 passou a ser de uso exclusivo de pedestres e recebe até hoje um fluxo intenso de pessoas diariamente. É comum também a presença de vendedores ambulantes no viaduto, pois apesar de sua localização e de sua função ser de passagem, sua largura permite que haja espaço suficiente para que os que tem pressa o cruzem rapidamente e para os que querem observar a vista, fazer comércio, etc tenham espaço para desempenhar tais usos. Foi justamente por isso que a atriz Beatriz Grobman escolheu o viaduto como seu local favorito da cidade. Apesar de ser um local de passagem, ela costuma visita-lo para observar as pessoas, ouvir os músicos de rua e observar a cidade. Além disso, ela vê o viaduto como uma “ponte entre tempos”, conectando épocas., uma vez que ela enxerga uma harmonia peculiar entre o estilo art nouveau do viaduto, seus postes antigos, os prédios de diversas épocas e estilos que o circundam e os carros que passam por debaixo dele.
Alameda Jaú x Avenida Rebouças – 6 de Novembro O lugar favorito do ator Henrique de Paula é uma esquina na zona sul da cidade de São Paulo, da Alameda Jaú com a Avenida Rebouças, devido à presença de bares com mesas na rua, onde ele costuma encontrar pessoas queridas e fazer reuniões de projetos. A escolha, a princípio, gerou estranhamento, e achávamos que o lugar não daria muito jogo para a experimentação. Fomos, porém, surpreendidos ao perceber que foi um dos lugares em que mais sentimos a cidade. No horário de ensaio (11 horas da manhã de um domingo), a rua estava com todos os estabelecimentos comerciais fechados, um baixo fluxo de pedestres, e médio fluxo de carros. O exercício deste ensaio consistia em, a partir de um grupo de imagens fornecidas por mim, escolher uma imagem para a partir dela criar e escrever a gênese de uma personagem, e optar por 5 imagens que dariam suporte ao imaginário dessa personagem e seriam apropriadas para a criação de partituras físicas para ela. Vestimos nossas roupas de trabalho e configuramos máscaras ligadas às personagens e partimos para o espaço. A porta espelhada de um hotel, com seu degrau, nos serviu de ponto de encontro e “camarim” para nos maquiarmos e vestirmos, seu pequeno recuo da calçada convidou-nos a parar ali para nos organizarmos para iniciar o ensaio.
Percebemos comportamentos que não havíamos previsto. Alguns carros reduziam a velocidade para observar as personagens, se sentindo protegidos pela “armadura” que era o carro, tomavam a liberdade de comentar, trocar olhares e, às vezes, nos provocar, outros, simplesmente nos ignoravam. Um morador de rua, Pitshu, quis participar e se juntou a nós imitando algumas das configurações que fazíamos no espaço. Seus movimentos eram sintéticos, e era possível ver em seus olhos muita sinceridade ao buscar a atenção dos transeuntes, o que comoveu o grupo. Nesse dia, muito material poético foi levantado pelos atores, e essas personagens começaram a ser desenhadas no espaço urbano.
Imagem base escolhida pela atriz
_esboços dramatúrgicos
. A Sombra, por Beatriz Grobman
Nasço do boeiro todos os dias. As gotas de rua me fazem quando o sol nasce. Eu só existo (ou sou vista) no sol. Quando vem a noite, com a linda lua, ando livre dos corpos vagantes, sem imitá-los ou fazer deles meu corpo. Porque não tenho corpo. Na noite da cidade é que me faço e me recolho junto às outras criaturas que usam seus disfarces durante o dia. O meu disfarce são os outros. Sou a sua sombra. Ser fluido que vive daquilo que imita. Meu corpo é seu corpo sempre. Sem corpo procuro meus braços, pernas, tronco. Não preciso deles para existir, mas sinto que sim. Na cidade, só é aquilo que existe. Mas não existo. Estou sempre me fazendo de acordo com o ângulo do sol. Preciso da luz para existir. Mas não preciso dela e nem do seu corpo para ser. À noite sou meu próprio rio escuro que se mistura na rua. À noite vivo com outros que, iguais a mim, são sua própria sombra. À noite esse fardo pesa menos, o de carregar a própria sombra. Entre os becos e puteiros, lixos e matadouros a sombra não assusta, pois ela só é. Na escuridão, eu apenas sou. E isso não basta para existir? Me diz.
Imagem base escolhida pelo ator
. Galugar, por Henrique de Paula
Tive uma visão. Vi que pessoas olham, mas não enxergam. Não querem enxergar. Vi um corpo que, apesar de vestido, se mostrava nu, despido de pudores, pedia. Pedia porque não podia. Não tinha poder; Isso vi daqui do alto, do meu altar grotesco de baixeza. E vi diversas vezes, se repetindo e se repetindo. Mas o tempo me fez frio, duro, mero observador de tudo. E como que de propósito, o ácido da chuva, que já me tirou do nariz às cordas vocais, me poupou os olhos, para que eu pudesse cumprir a minha sina: Ver sem ter voz.
_referências 1. EISNER, 2009. p. 19 2. EINER, 2009. p. 42 3. TEIXEIRA, 2010. p. 13
_referências bibliográficas ARAÚJO. Antonio. A Gênese da Vertigem: O processo de criação de “O paraíso perdido”. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2011. CARVALHO. Francis W. Teatro do concreto no concreto de Brasília: cartografias da encenação no espaço urbano. 2014. 407 p. Dissertação – Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. LIMA. Evelyn Furquim W. (org.). Espaço e teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. TEIXEIRA. Carlos M. Entre. Belo Horizonte: Instituto Cidades Criativas, 2010. ROMERO. Luis Manoel G. Yes is more : an archicomic on architectural evolution. Köln : Taschen, 2011. JORGE. Luis Antonio. Sobre as espessuras e as veredas das artes do projeto. In: NOSEK, Vitor, Org. Praça das Artes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue. 2013. BOGART. Anne. The Viewpoints Book. New York: Theatre Communications Group. 2005. NOVASKI. Mariana Araújo de M. Vida em Trânsito: poética musical dos deslocamentos cotidianos. 2014. 158 p. TFG - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.