Guardados do Coração - Avô + Avó = A Voz - Francisco Gregório Filho / Semente Editorial

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FRANCISCO GREGÓRIO FILHO Guardados do Coração Avô + Avó = A Voz

1ª edição, Espírito Santo, Primavera /2018


© by Francisco Gregório 1ª edição setembro / 2018 Direitos desta edição reservados à Semente Editorial ltda. Av. José Maria Gonçalves, 38 – Patrimônio da Penha 29.590-000 Divino de São Lourenço / ES. Tel.: (28) 9.9999.8289 Rua Soriano de Souza, 55 casa 1 – Tijuca 20.511-180 Rio de Janeiro/RJ Tel.: (21) 9.8207.8535 contato@sementeeditorial.com.br www.sementeeditorial.com.br Preparação de originais: Ana Clara das Vestes Ilustrações: Lara Kouzmin-Korovaeff Produção editorial: Estúdio Tangerina Projeto gráfico e capa: Lara Kouzmin-Korovaeff Conselho editorial: Constantino Kouzmin-Korovaeff, Mirian Cavalcanti, Lara Kouzmin-Korovaeff G821g Gregório Filho, Francisco Guardados do coração : avô + avó = a voz / Francisco Gregório Filho ; ilustrações de Lara Kouzmin-Korovaeff. 1. ed. - Divino de São Lourenço : Semente Editorial, 2018 pp. 124 : il. ; 20 cm ISBN 978-85-63546-66-1 1. Contos brasileiros. I. Título. II. Kouzmin-Korovaeff, Lara, 196929.09.2018

CDD: 869.3


O menino ambicioso Não de poder ou glória Mas de soltar a coisa Oculta no seu peito Escreve no Caderno E vagamente conta À maneira de sonho Sem sentido nem forma Aquilo que não sabe. Carlos Drummond de Andrade



Prefácio

História Saborosa

Tempos atrás, Gregório e eu conversávamos sobre leitura, quando ele trouxe dos seus pensamentos a palavra banquete, colocou-a junto à palavra leitura para, daí, refletir nos vagares da nossa conversa. Tempos depois de muitas outras conversas amigas, vejo-me com um livro de Gregório, nos olhos e nas mãos, que me sabe a um banquete. É o verbo saber no sentido de ter gosto que me vem nesse momento, das heranças portuguesas de minha mãe. O texto tem como epígrafe um poema de Drummond que nos diz de um menino que escreve no caderno aquilo que não sabe. Gregório não sabe que sabe muito das histó7


rias dos homens e de tudo que chamamos de vida. E é por aí que transita a sua ação de ler. Nos saberes que vem guardando nos “Passeios guardados” e estes construindo os “Volumes de dentro”. Guardar para olhar, admirar e vigiar constantemente. Num trecho do livro, diz o narrador: “Hum!... um cheiro lá de casa! Vovó exclamava quando transitávamos pelas calçadas das casas, nas ruas por onde passeávamos juntos, por alguns bairros da cidade, aos sábados”. E eu digo “cheiro da minha infância”! A minha avó, sempre de azul-marinho, amparada pela sombrinha da mesma cor, que ia à frente de cada mudança do passo. Assim não iríamos perceber que uma perna não obedecia muito. O passeio se fazia lento e a neta tinha, então, mais tempo para olhar para tudo o que quisesse, sem pressa. Gregório oferece o banquete e senta-se lado a lado com todos os convidados. Esse 8


o percurso da leitura. O oferecimento é de muitos sabores, cores, formas e cheiros. São “cheiros das casas”, “perfumes vindos das plantas”, “cheiros dos quartos”, “a armação inglesa de óculos do bisavô”, “a toalhinha de renda feita pela bisavó” e mais. Muito mais. É com essa riqueza de acervos da memória do narrador que o texto nos vai permitindo uma leitura múltipla, colorida, convival, das personagens, dos ambientes e nós nos vamos colocando como personagens do texto e felizes: como leitores que se reencontram nas próprias infâncias. Avós que contam histórias! Aqueles: que nos ouvem, ensinam, mostram e nos fazem aprender o gosto de olhar. Também não faz parte da leitura olharmos a nós mesmos do jeitinho que somos? E não são nossos acervos descobertos, ou revisitados, que nos fazem “volumosos de ser”? É também por aí 9


o que vamos lendo no texto (que cada leitor ajuda a compor) acerca do papel do contador de histórias. Aquele que acaba por nos confirmar que “memória tem volume”, aquele que se faz pelas memórias da vida de cada um, pelas histórias que ouvimos, aquele que nos faz ser a cada dia o que somos. Por isso tudo o livro é um banquete que sabe a frutos saborosos, ervas, doces, carnes, ensopadinhos com molhos de temperos que nos “molham, banham e ensopam”. Assim mesmo é que o texto diz sem dizer do que são nossos: acervos de vida, dos saberes de cada um na construção das histórias pessoais, das histórias de leitores e leituras, do espaço da memória. E da contação de histórias que entra pelos nossos ouvidos, olhos, pele e pega-nos pelo pé ou pela mão, assim ao começarmos a sentir “o caldo que escorre pela boca e pelas mãos quando se degusta uma boa manga”. 10


Um “ofício” antigo esse de sair por aí contando histórias, narrando e que hoje vem sendo recuperado de outro modo. O Grupo Lendo e Contando nos mostra alguns de seus passos. Com certeza, outros grupos encontrarão seus próprios caminhos. Todos, porém, a cada vez que seus integrantes contarem histórias, saberão, sem precisar dizer, que juntaram memórias, saberes, acervos das mais diferentes espécies, sentimentos, emoções, vida, muita vida. Não é disso que precisamos? É bom saber que, a cada ensaio do Grupo Lendo e Contando, o avô e a avó escreviam as histórias várias vezes. Agora o porquê. “Dizem que ajuda a engravidá-las de imagens, de sentido, de significado, para serem pronunciadas mais cheias, redondas, com referências pessoais, afetivas e sociais.” Isso me ajuda a entender a palavra ensaio de outra forma. Repetir a história 11


desautomatizada é conformá-la ao desejo do coração, fazê-la brotar inaugural. Leitor/ contador, coautor. Quem conhece o autor Gregório, conhece a pessoa humana, o profissional, o contador de histórias, sabe que esse é o percurso do trabalho que vem há anos desenvolvendo pelo Brasil afora. Quem não conhece, fica sabendo agora que seu “ofício” é cheio de saberes que vamos descobrindo devagarinho na falta de pressa da sua fala carregada de palavras grávidas. Abro novamente o livro, ao acaso, e leio a voz da avó dizendo que, antigamente, “as histórias eram contadas numa roda em volta de uma fogueira – uma forma de aquecê-los do frio – todos juntos, velhos, jovens, crianças e adultos”. Permita-me o autor dizer que voltei a minha Bicas, lá no interior das Minas Gerais, e encontro-me criança, à noite, com pai, mãe e irmãos ao pé do fogão a lenha 12


quentinho, comendo rosca com manteiga e conversando de tudo um pouco. Está vendo? Guardados do coração – caderno alheio – é assim porque, de tão generoso, é de todos, de cada um que queira suas páginas em branco para escrever suas e outras histórias, assim como as unidades somadas de avô + avó. Ofereço agora ao Gregório, meu amigo, um doce de jaca. Experimente. Fresquinho, feito hoje! Maria Luiza de Freitas Almeida Doutora em Literatura – PUC-RJ Outono de 1997

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Sumário Avô + Avó = A Voz, 15

Passeios guardados, 17 Volume de dentro, 21

Ensopadinhos de amor, 25

Parecido com meus avoengos, 31 Arvorããão, 37

Coração que recolhe, 43 Apurar o gosto, 51 Medo de quê?, 55

A herança que permanece, 65 Com mãos e vozes, 71

O olhar que abraça, 75 O destino, 79

Lendo e Contando, 87 Estante, 99

Desar-amar, 101 Inter-agir, 105

A fala solidária, 109

O sujeito completo, 113 Caderno sem pauta, 117 Correspondências, 119



Avô + Avó = A Voz

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ovô Pedro era funcionário público federal da antiga guarda territorial e prestou seus serviços no extinto Correio Aéreo Nacional – CAN. Trabalhou 35 anos viajando por este Brasil. Vovó Maria era professora; professora primária do Ministério da Educação e Cultura – MEC. Trabalhou 25 anos em sala de aula, ensinando meninos e meninas. Os dois estão aposentados. Sempre foram contadores de histórias em casa, para os sete filhos e dezessete netos. Ainda não têm bisnetos. Apresento aqui algumas anotações registradas em um caderno que revelam os ambientes de aprendizagem e as ambiên17


cias afetivas onde nós, os netos, tanto desfrutamos da paciência, da tolerância e da generosidade de nossos avós, apreendendo o mundo nos atributos éticos e morais das histórias ancoradas por eles. Trago também a grande novidade de terem, depois de aposentados, constituído um grupo de contadores de histórias, lembrando a vocês o que escreveu o poeta gaúcho Mário Quintana: “mentiras são verdades que se esqueceram de acontecer”. É sempre bom lembrar ainda que “quem conta um conto aumenta um ponto”... Vovô Pedro e vovó Maria estão curtindo, felizes, essa nova empreitada de incentivar a leitura contando histórias e, especialmente, dedicando esses seus novos fazeres aos jovens, aos adolescentes. Meu avô + minha avó = meus avós têm esperanças nos jovens e acreditam no Brasil. São gente contadora de histórias. 18


Passeios guardados

H

um!... Um cheiro lá de casa!” Vovó exclamava quando transitávamos pelas calçadas das casas, nas ruas por onde passeávamos juntos, por alguns bairros da cidade, aos sábados. Vovó gostava desses passeios e nos convidava. No trajeto ia comentando os cheiros que casas e quintais exalavam. Distinguia os perfumes vindos das plantas, das flores, das árvores dessas propriedades... lembravam os cheiros da cozinha da casa de sua mãe, nossa bisavó. Comentava sobre a memória dos cheiros dos quartos, das salas e das varandas. Descrevia com detalhes os cantinhos de que mais gostava da casa de sua infância. 19


Ficávamos encantados com esses pormenorizados relatos dos ambientes afetivos e das ambiências amorosas da história de vovó na casa dos nossos bisavós, tão distantes e tão próximos. Um dia vovó resolveu nos presentear com alguns objetos que herdara dos bisas. Para mim, vovó entregou uma armação inglesa de óculos do bisavô, uma toalhinha de renda feita pela bisavó e ainda alguns documentos das histórias deles. Guardei-os em uma caixa com chave que ganhei de meu padrinho. E me emocionei quando vovó contou a história de cada um desses objetos; com memória privilegiada, partilhou comigo detalhes dessas vivências. De algumas, depois, fiz várias anotações em meu caderno, que considero meu tesouro. Morro de vontade de um dia contar essas histórias, especialmente para meu filho. Vovó, aliás, me pediu que as mantivesse 20


guardadas para repassá-las aos jovens das próximas gerações da família. Disse-me vovó que o bisavô era leitor de Platão e que discutia, revoltado, sua hierarquização da razão sobre a emoção. Dizia vovó que razão e emoção não precisam dessa hierarquização – pensa-se com emoção e emociona-se refletindo. Já programei um dia ler Platão para conhecer direito o que ele disse sobre isso. Vovó afirmava que o que bate no coração reflete na razão, e o que o corpo guarda a mente desfruta. Avó é avó, né? Pois bem, percebendo meu interesse no assunto, vovó me passou um livro de Platão lido, sublinhado e comentado, nas beiradas das páginas, com a letrinha de meu bisavô; objeto de valor imensurável, parte de meus preciosos guardados.

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Volume de dentro

A

chava interessante a incessante preocupação de meu avô em me envolver em suas investigações sobre volume. De umas folhas de compensado, ele construiu um cubo de 30cm, pintou-o de preto, arranjou um cantinho na varanda para colocá-lo e nele punha objetos de vários tamanhos, cores, desenhos e contornos, reunidos ou isolados. Arrumava-os em pacotes, fardos, feixes e embrulhos disformes. Punha os maços uns sobre os outros, girava, desarrumava, tudo isso para o nosso exercício de olhar – apreender os volumes pelo olhar, entendê-los, recolhê-los, para encher as palavras de volume. 23


Minha avó participava das brincadeiras expondo travessas de bolinhos, doces, salgadinhos de diferentes formatos. Olhávamos e saboreávamos as especiarias trançadas pelas mãos sábias de vovó, que, além de volumes, ofereciam também conteúdos. Um dia meu avô conseguiu um espelho grande, pôs uma moldura e fincou-o em cima do cubo. Víamos no espelho nossas imagens refletidas de forma frontal e lateral, e vovô chamava a atenção para a sensação das imagens chapadas, com pouco volume. Retirava o espelho, nos punha em cima do cubo, e pedia que nos olhássemos, nos víssemos com volume, contorno e expressão, ocupando um espaço físico compacto, sólido, flexível e em movimento. Descobríamos nossos tamanhos, nossa massa ocupando um espaço, e aprendíamos que “tudo tem volume”, dizia meu avô. Assim, as palavras que designam um 24


objeto, uma imagem, um alimento, precisam ser pronunciadas com seus respectivos volumes e conteúdos, mesmo que esses conteúdos representem intensidades coincidentes ou tomos distintos, repetia vovô, num discurso elaborado e brincalhão. Inventávamos várias brincadeiras sobre volume. Uma delas era a de buscar formas diferentes com nosso corpo, e nos expressávamos corporalmente. E exercitávamos nossa expressão vocal pronunciando palavras. Vovô perguntava: o corpo tem volume? Tempo tem volume? Movimento tem volume? Lua tem volume? Olhar tem volume? Caixa tem volume? Pensávamos e respondíamos, fazendo perguntas a vovô: pastel tem volume? Balão tem volume? Peteca tem volume? Bolo tem volume? E bola? Tem? Vovô não respondia, só afirmava: memória tem volume.

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Ensopadinhos de amor

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irinhas de queijo de coalho mexidinhas no mel. Fatias de bolo molhadas com calda de frutas. Fatias de carne assada ensopadas com molhos de temperos. Pedaços de pão mergulhados na xícara de leite com café. Bolinhas de sorvete de creme banhadas em calda de chocolate. Vovó gostava de molhar, banhar, dar calda, ensopar e melar os pratos que servia delicadamente para nós, os netos, na mesa da cozinha, mais íntima. Na mesa da copa era mais cerimoniosa. Cautelosa, vovó lia na cozinha, visitava nossas intimidades, e apresentava bem baixinho, no pé do ouvido, seus segredos de mulher vivida. Molhava, sem cerimônia, o rosto, as mãos, a 27


saia, chorando e rindo das histórias que nos contava. “Coração duro merece mel, coração enxuto precisa de molho, coração seco necessita de calda”, ela dizia. As histórias que vovó contava vinham encharcadas de delírios, de imagens poéticas, de palavras achadas e guardadas em seu coração, que, às vezes, ela chamava de baú. Ela as recolhia com o olhar, com o ouvir, com o cheirar, com o degustar, enfim, com o sentir. Contou-nos que, quando minha mãe e minhas tias ficaram grávidas da gente, sentava-se junto delas com uma bacia d’água, e, molhando as mãos, acariciavam suas barrigas. Com as mãos molhadas, acariciavam e cantavam. Acariciavam e conversavam com os bebês dentro das barrigas. Mais de uma vez, minha mãe e minhas tias engravidaram no mesmo período. Convidavam também as amigas grávidas e, sob a orientação de vovó, sentadas 28


em círculo, elas iam molhando as mãos e fazendo carinho nas barrigas. Então falavam os nomes que haviam escolhido para os bebês, narravam fábulas, contavam feitos heroicos dos homens, falavam sobre a natureza, o fogo, o ar, a terra e a água. Mãos molhadas da água que elas comentavam. Eram as primeiras notícias do mundo que nós, quando bebês, recebíamos. Vovó afirmava que respondíamos, participávamos, esperneando dentro das barrigas, e, em segredo, nos revelou que privilegiava as histórias de amor. Dos príncipes negros, índios, das princesas caboclas, mulatas. Dos guerreiros louros e morenos, das tecelãs brancas e ruivas. Contava paixões e desobediências, evitava as covardias e traições. E que nossas mães gostavam de contar o belo, a natureza e suas belezas – tudo isso com as carícias das mãos molhadas. 29


Minha avó acreditava que esses afagos ajudariam os bebês a adentrar o mundo de fora da barriga sem muitos traumas. E os ajudariam a crescer apreendendo com molho, com mel, com caldas e flexibilidade, para o coração ganhar sabedoria. Então ela cantava e nos fazia cantar também; dançávamos e brincávamos com vovó na intimidade de sua cozinha. Depois, íamos para o quintal, e, com a mangueira, vovó fazia chover, e ficávamos todos molhadinhos. Um dia, contou-nos um segredo íntimo, muito íntimo, só para nós. E pediu que não o revelássemos a ninguém, devíamos guardar os segredos intransmissíveis. Disse ela que sexo é bom molhadinho. O melhor prazer é quando as pessoas ficam com as suas partes molhadinhas para os outros. E que, quando fôssemos nos masturbar, que lavássemos as mãos antes para não permitir a transmissão de micróbios, 30


evitar doenças e até porque, se estivéssemos com as mãos molhadas, o gozo seria cheio de caldinhos. Foi assim mesmo que vovó disse para nós, meninos e meninas, seus netos, que guardamos esse segredo para nosso proveito. E de nossos parceiros. Molhadinho é bem melhor, especialmente quando o coração está ensopadinho, coberto com caldas de amor.

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O q u e, e n tã o, d a ri a p a ra esc o l h e r? A ma n e ira d e com p re end e r a vida, a forma d e e x p ress a r a a fe t i vida d e, o j e i to d e rea g i r, d e s e i n d i gn a r, os p ro c e d i m e ntos d e esc o l h a e o d i z e r d o c ora ç ã o?


Parecido com meus avoengos

O

ra, possivelmente ficaria parecido com meu avô. Com meus avós, os dois. Ou pareceria mais com um só? Comecei a observar um e outro. Altura, estrutura óssea, formato de rosto, olhos, nariz, sorriso, semblante, pelos do corpo, pernas, pés, mãos, andar e tonalidade de voz. Herdaria também, decerto, alguns traços de minhas avós. Mas o quê? Pensei. Foi então que me veio a pergunta: com qual deles eu gostaria de ser parecido? É muito difícil respondê-la, não dá para escolher de todo: rosto de um, ombros de outro, pernas de um, braços de outro... é complicada essa reunião. E, no mais, tudo isso já está definido geneticamente, dizem. 33


Seria esse o caminho? Passei, então, a observar meu pai, o que de meu avô guardara em seus gestos, em suas atitudes? Examinava também o comportamento de minha mãe, sua postura física, seu andar, suas reações às provocações de meu pai. Analisava miudamente os seus dizeres. Achava-os bonitos, todos eles. Belos fisicamente e lindos de expressão. Às vezes, pensava o contrário e chegava mesmo a estranhá-los. Um dia, já no Ginásio, durante a aula de educação física, os professores Paulo e Izabel, reunidos com o grupo da terceira série, avaliaram o desempenho de cada um nos exercícios. Sobre mim, comentaram que dificilmente encontraria equilíbrio na vida ou alguma projeção social devido a meus braços: eram longos demais, não combinavam com o restante do corpo, não compunham esteticamente. Eu poderia me considerar um desengonçado. 34


Reagi imediatamente, pedi para falar e esclareci que o tamanho de meus braços eu herdara de meu avô paterno, que eu estimava muito, e que me envaidecia o fato de ter recolhido essa marca tão significativa de seu físico. Ousei, ali mesmo, oferecer um depoimento sobre como meu avô me acolhia em seus braços e como seu abraço era reconfortante e gostoso. Além do mais, admirava o equilíbrio, a sensatez e a projeção social do meu querido avô. A maioria de meus colegas me apoiou, mas os dois professores sorriram, debochados, duvidando das qualidades de alguém que dispunha de braços muito compridos. Irritado com eles, desconfiei de que fosse perversidade o fato de me constrangerem perante meus colegas, sobretudo as meninas. Também não deixei por menos: disse ainda que meu avô sempre fora muito charmoso e sedutor, e que eu certamente 35


também o seria. Lembrei-lhes que meu avô conquistara o coração de minha avó, que havia sido eleita Rainha da Primavera. Portanto, meu avô casara com a moça mais bonita da cidade naquela primavera de disputa ferrenha, e eles foram felizes – talvez, ou principalmente, por causa dos fortes abraços de meu avô. É claro que meus colegas riram muito, mas também ficaram satisfeitos e especialmente vingados os que foram apontados pelos professores como herdeiros de marcas corporais antiestéticas. Certa vez conversei sobre isso com meu avô, que achou graça e se disse orgulhoso de mim. Conseguir seu depoimento sobre sua satisfação em relação à minha atitude foi um presente que ganhei. Vovô pacientemente me explicou a formação de nossos corpos e a importância de os conhecermos para assumir melhor nos36


sos gestos, nossos movimentos, nossos tamanhos e também nossos corações. Me contou também que guardamos a memória física de nossos antepassados para poder lembrá-los e amá-los. E que temos que cuidar do corpo para deixar a saúde como herança para as próximas gerações. Esse avô, sempre pensando no futuro! Hoje, mostro meus braços inteiros, minhas mãos... ofereço-os para o abraço, para o carinho, para o trabalho. E busco, dentro do possível, o equilíbrio para discernir modestamente meu papel social. Tenho recebido generosas respostas às minhas intenções e aos meus desejos, e estou cada vez mais parecido com o meu avô, melhor falando, com meus avoengos.

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... รก rvore chora, ri, danรงa e canta, gosta d e compa n hia...


Arvorããão

Q

uando pronuncio a palavra “árvore”, penso numa mangueira. Árvore frondosa, generosa, de muitos galhos, folhas verdes, sombra larga, tronco grosso e raízes compridas. Seu fruto tem caroço, tem fiapos, tem polpa amarela e gostosa. Gosto de descascar a manga com os dentes e comê-la segurando com as mãos. Gosto também de chupar o caroço. Aprecio o caldo que escorre pela boca e pelas mãos quando se degusta uma boa manga. Tenho preferência por manga espada e ainda por manga rosa, e entro em delírio chupando uma manguita. Tenho prazer em olhar as mangueiras nos quintais, nas chácaras, nos sítios, nas 39


fazendas de plantio de frutas, e experimento enorme sensação de beleza vendo-as às margens das estradas pelo interior do Brasil. Então pronuncio “mangueira”. Tem volume, tem gosto, tem tato, cor, cheiro, formato, contornos e frutos. Uma mangueira carregada de frutos verdes e maduros é um alumbramento para os olhos, e o coração toma sabor. Por isso, quando pronuncio “árvore”, meu sentimento é de mangueira. Bem, isso eu imaginava. Outro dia descobri que, quando digo “árvore”, meu coração fala de jaqueira. É que, quando eu era uma criança menor, meu avô me apresentou a uma jaqueira enorme plantada próximo à escada da cozinha de sua casa. Ele gostava de jaca mole, conhecida como jaca manteiga. Plantada pelas mãos de meu avô quando ainda jovem, lá permanecia a jaqueira, gerando muitos frutos de temporada em temporada. Jacas grandes, 40


carnudas, doces e exalando um perfume embriagador. De tempos em tempos, meu avô presenteava os vizinhos e amigos com jacas inteiras, madurinhas. E também preparava vários tipos de doces de jaca, até cristalizava línguas de jaca sem os caroços. Diversas vezes o presenciei arrumando, em pequenas taças, saladas de frutas com as tiras de jaca incluídas. Ele apreciava muito; eu gostava também. Aprendi com vovô a plantar mudas de jaqueira germinadas a partir dos caroços, que espalhávamos no fundo do quintal, e o ajudava apurando a calda da jaca para o ponto do licor. Licor alcoólico, servido nos aniversários e batizados. Rabisquei e colori muitos papéis com desenhos de jaqueiras nas tardes sem pressa que meu avô promovia. Sob sol escaldante e sobre folhas de zinco, secávamos os caroços de jaca. Depois 41


os mergulhávamos em corantes de urucum para brincar de petecas coloridas. Saberes de meu avô, segredos que ele nos passava. Ficávamos um tempo grande olhando a jaqueira, passeando em sua volta. Pois bem, tempo desses descobri que, quando falo a palavra “árvore”, as referências recorrentes são também da jaqueira de meu avô e não só das mangueiras que tanto me comovem. Meu pai, por sua vez, era apaixonado pelos cajueiros, disso eu sei. Ele nos convidava para abraçá-los. Sua relação com os cajueiros era comovedora. Ele adorava sentar nos galhos das árvores chupando os frutos. Cajus vermelhos, cajus amarelos, cajus de vez, com sal. Ele era especialista em pratos com caju: saladas, peixes, fritadas, arroz com caju, caju à milanesa, caju no molho do macarrão, etc. E os doces! Eram admiráveis, de aguar a boca. 42


Quando meu pai pronunciava “árvore” abraçando o cajueiro, eu vibrava ainda mais com a generosa mangueira expressa em meus olhos, e sabia do fundo do coração a jaqueira de meu avô. Evidente que num cantinho reservado, derramado em ramos, se espalhava o maracujazeiro de minha mãe, que ela zelava e mimava. Outro dia vi minha irmã alisando umas folhas de abacateiro, olhando com ternura os frutos verdes pendurados. Tentei adivinhar, em silêncio, aquela admiração. Depois pedi que ela dissesse “árvore” – veio do tamanho daquele abacateiro. Nada mais falei. Preferi o silêncio, o mesmo de quando assistia a minha avó cuidando dos pés de hortelã no canteiro armado num jirau do quintal lá de casa. Minha avó, com os dedos longos, tocava levemente as folhas de hortelã como se orasse. Na verdade, ela mirava. 43


Estas páginas têm o propósito de oferecer uma simples degustação. Desfrute!


Edição e publicação de livros que venham contribuir para o bem estar, alegria e crescimento de todos os seres.

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