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Solar de Poetas – José Sepúlveda
SOLAR DE POETAS
Por José Sepúlveda
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O Douro que canta
Parece que foi ontem. Resguardado naquele saco-cama, deitado sobre a terra quente do Parque de Campismo de Miranda, eis-me de noite a cogitar com a lua sobre aquela aventura louca de percorrer o Vale do Douro, do Pocinho ao Cabedelo, na companhia de mais de sessenta jovens, num trajeto repleto de aventuras, com dezasseis viaturas na comitiva, oito cicloturistas (entre eles o Rafael Silva, o homem que levou a Bandeira dos Dragões ao Polo Norte, quando a equipa ganhou o Campeonato Europeu de Futebol), dezasseis canoeiros vindos de Salvaterra de Magos a Bragae quanta mais gente a calcorrear a pé o longo trajeto de quase quatrocentos quilómetros, em nove dias apenas. No primeiro dia, no Pocinho, preparámos a saída bem cedo. Aí, dois repórteres improvisados, com máquinas de filmar nas velhas cassetes VHS, levantaram-se acrobaticamente para filmar as maravilhas ao redor, em cima da canoa, desequilibraram-se enuns segundos, ei-los mergulhados nas frescas águas do Rio de Ouro. E, sem repórteres a filmar, lá seguimos ao longo do rio, rumo a Sendim de Miranda, terra de gente generosa que num abraço nos acolheu oferecendo-nos o apoio logístico de todoindispensável, para que ali pudéssemos pernoitar. Foi lá que apresentamos a nossa segunda atividade. (A primeira foranas muralhas do Castelo de Miranda, na tarde anterior): Rastreios de saúde, música, preleções sobre cuidados primários de saúde, apoio infantil. Passava já da meia-noite quando depois de uma noite mágica recolhemos à Junta de Freguesia, local que ali tinham preparado para o nossoacantonamento. Depois, Freixo-de-Espada-à-Cinta, onde dezenas de filhos da terra vagueavam felizes por cada rua, matando saudades da família e dos amigos. Reunidos ao serão, ao pé do rio, onde um grande palco e muitas dezenas de pessoas nos esperavam, ali apresentamos o nosso programa, levando àquele povo o abraço das gentes do litoral. Seguiram-se Foz-Coa, São João da Pesqueira e Régua. No caminho para Foz-Coa,enquanto as Rádios Piratasque nos acompanhavam ao longo do dia não se cansavam de divulgar a nossa aventura, decidimos visitar uma delas, em Torre de Moncorvo, que liberalmente nos franqueou as portas e o Estúdio para que ao longo de mais de uma hora pudéssemos divulgar com liberdade plena a nossa mensagem e tudo o que nos motivara a abraçar este projeto.
SOLAR DE POETAS
Por José Sepúlveda
No regresso, ali pelo Mogadouro, enquanto merendávamos, já tardiamente, apareceu um homem da terra, o Ti’ Manel, de bicicleta e concertina ao ombro, que nos deliciou e desbobinou uma série de cantigas ao desafio. Ele ela bom no improviso e tivemos dificuldade em ripostar às sua incisivas provocações, com sarcasmo e muito humor. Não desistimos, replicámos e no fim, sob o olhar estupefacto e curioso de todos, aproximou-se, olhou-me nos olhos e disse: - É, pá, vocês têm fibra! Naquele profundo e sentido abraço que se seguiu, estava a alma do povo generoso do Alto Douro, a sua raça, a sua força, o seu carinho, a sua amizade, o pulsar do seu sentir mais profundo. Era a alma do povo deMiranda, Sendim, Foz Coa, São João da Pesqueira, quiçá, Torre do Moncorvo, Lamego, Tarouca. Tarouca, sim, o abraço desta cidade linda onde a poesia pulsa nos gestos, nas palavras, no sentir da alma de gente que abraça o mundo e nos grita queVale a Pena, vale a pena sonhar, partilhar, sorrir para o mundo e enlaçar a gente neste repetido e longo abraço, num banho de cultura.
Tarouca, Tarouca, Já sinto na boca Um sabor a mel, Instinto poeta, Arrombo a gaveta Caneta e papel.
A vaca que pranta, A ave que canta, O grilo, grigri, O sino que tine, E o povo redime Tão perto de si. Caminho, caminho, A roda, o moinho, A água a saltar E lá, no horizonte, A urze e o monte, Semente a brotar.
A abelha, precisa, A flor poloniza E voa no espaço E, quando assustada, Com leve picada Eriça meu braço. Tarouca, cidade, Que felicidade A todos acena Para nos dizer Como é bom fazer Da vida um poema!
… Já lá vão trinta anos. No âmago do peito guardo aquele abraço, agora renascido no coração deste povo que nos acolhe e convida a partilhar aquilo que sentimos, aquilo que nos faz vibrar e transforma cada um de nós num farol que brilha e faz brilhar ao longo da nossa terra. Bem-haja à organização pela sua iniciativa, pelo seu convite, pelo privilégio deste Encontro de Poetas onde a poesia vive e se propaga, qual testemunho recebido dos Vultos de Antanho que souberam fazer brotar das suas entranhas uma língua que em toda a parte, em todo o mundo, há de enaltecer Portugal.