Decadência moral, violência sexual.

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Decadência moral, violência sexual  POR SÉRGIO GURGEL

O primeiro passo a ser dado pelo povo brasileiro nessa longa jornada civilizatória deve ser o de admitir que figuramos entre os povos mais rudes do planeta, embora, por interesses múltiplos, quisessem nos fazer acreditar que nossas maiores virtudes seriam a simpatia e a cordialidade.

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uando somos provocados a escrever sobre episódios de assédio se xual, estupro e outros tipos de violência contra a mulher, como os que vêm sendo noticiados pela imprensa e amplamente divulgados pelas redes sociais, o maior desafio passa a ser não se deixar trair pela falsa noção de que se trata de uma anomalia pontual que afeta a geração atual. Pretender tratar do problema do mesmo modo que age um cientista em laboratório quando isola um vírus revela-se tão ingênuo quanto inútil, pois o que nos atinge é sistêmico e se desenvolve como as engrenagens de um relógio. Logo que um evento vira notícia nos principais jornais, o senso comum impera em todos os cantos, sendo proferido indiscriminadamente por pessoas de diferentes classes sociais. Com relação aos últimos acontecimentos envolvendo funcionários de emissoras de televisão, mais uma vez, por unanimidade, levantou-se a bandeira da educação como a única saída. Embora entoada em coro uníssono, a educação como solução não é traduzida do mesmo modo por seus defensores. Essa dissonância quanto ao seu real significado faz com que andemos em círculo, inviabilizando o entendimento sobre o mal que nos assola.

Se a tarefa de formar o indivíduo engloba transmissão de conceitos valorativos, adentramos em um deserto infinito. Por esse motivo, nossos governantes se propõem a edificar escolas em vez de construir o indivíduo.

revista CONCEITO JURÍDICO - nº 06 - JUNHO/2017

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Educar é incutir na consciência do indivíduo os valores considerados fundamentais pela sociedade, a fim de que seja possível o convívio de formas harmônica e pacífica. Assim sendo, o rótulo de educado não deve ser atribuído àquele que se limita a uma apresentação impecável de sua vestimenta, ou que fale em baixo tom ou se mantenha ereto perante a mesa com o guardanapo no colo. O que se deve entender como educação transcende consideravelmente a essa perspectiva. Claro que não há como admitir a polidez de um homem que se porte de forma inversa, mas é preciso avançar em uma série de outras características que não conseguiriam ser utilizadas por alguém que pretendesse disfarçar sua natureza embrutecida. Países como Noruega e Dinamarca, sempre citados como exemplos de regiões de altíssimo grau de desenvolvimento humano, destacam-se em razão de serem constituídos por cidadãos extremamente atentos ao bem comum, cuja base de tudo é somente poder fazer aquilo que não venha ferir direito alheio. Aliás, há séculos esse ideal já havia sido consagrado pelos revolucionários franceses na Declaração Universal dos Direitos do Homem, que dispõe sobre como deveria ser entendido o direito de liberdade. No Brasil, a influência da Era das Revoluções pode ser perfeitamente constatada na Carta Magna, mas não há garantia de que possa ser encontrada fora dela. Infelizmente, em terra brasilis, nota-se extrema dificuldade de se promover educação, não apenas pela ausência da forma de pensar daqueles que em nome de seus povos tombaram nos campos de batalha, mas porque sequer sabemos quais seriam os nossos verdadeiros valores. Se a tarefa de formar o indivíduo engloba transmissão de conceitos valorativos, adentramos em um deserto infinito. Por esse motivo, nossos governantes se propõem a edificar escolas em vez de construir o indivíduo. O primeiro passo a ser dado pelo povo brasileiro nessa longa jornada civilizatória deve ser o de admitir que figuramos entre os povos mais rudes do planeta, embora, por interesses múltiplos, quisessem nos fazer acreditar que nossas maiores virtudes seriam a simpatia e a cordialidade. Uma vez superada essa etapa, chegaremos à conclusão de que a pretensão de ensinar um homem a respeitar uma mulher em um país onde a cultura agoniza, equivale a entregar talheres a um primata. E, como dizia Oswald Spengler, quando a cultura morre, o dinheiro ergue-se como Deus único. No Brasil, valor é somente aquilo que pode fazer parte de uma relação de compra e venda. Todo o resto é invisível ou subjugado. Somente em um país com grave deficiência em sua formação educacional é preciso ter placas no banheiro advertindo para não urinar nas paredes; avisos frequentes pelos autofalantes do Metrô para que os usuários não viajem com mochilas nas costas, nem sentem no chão; circulares pelos condomínios solicitando que objetos não sejam lançados pela janela, entre outras aberrações que constituem prova incontestável de selvageria. Fato que encerra de uma vez por todas a gravidade da situação na qual vivemos foi a placa que uma vez tive o desprazer de ver pregada em um parede em frente a um local onde havia uma caçamba colocada pela empresa coletora de lixo: “Favor não jogar criança!”. Naquele momento senti saudades do tempo em que o pedido era para não se jogar lixo. Entretanto, hoje voltamos ao anúncio original, pois aos olhos da sociedade não há mais muita diferença entre uma coisa e a outra. Para efeito de avaliação sobre o nível cultural de uma nação também deve ser ponderada a legislação penal vigente. No texto embrionário do atual Código Penal

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arquivo pessoal

havia um título denominado Dos Crimes Contra os Costumes (atual título Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual). Nele, havia uma quantidade exorbitante de delitos, o que já demonstrava a necessidade da intervenção do Direito Penal em fatos que não ocorreriam em regiões onde o respeito mútuo se fizessem presentes. Como se não bastasse, alguns tipos incriminadores traziam em seu texto a expressão “mulher honesta” para indicar o sujeito passivo do crime. Portanto, na ausência de tal qualidade da vítima, o fato seria considerado atípico, enquanto para o homem não havia qualquer distinção nesse aspecto, o que permitia presumir a austeridade masculina em qualquer circunstância. Além disso, na parte geral do mesmo diploma legal havia a previsão de causa de extinção da punibilidade pelo casamento do estuprador com a sua vítima. Isso porque, na concepção do legislador, nascido na segunda metade do século XIX, e que redigiu o Código Penal vigente, a preocupação maior não se voltava para a dignidade da vítima, mas sim para a dificuldade que seu pai teria de promover-lhe um casamento tradicional diante da notoriedade do ocorrido. Alguém ainda acha que lei e justiça são a mesma coisa? Faz tempo em que se discutiu no Supremo Tribunal Federal se a presunção de violência disciplinada no revogado art. 224 do Código Penal teria um caráter absoluto. Por incrível que pareça, houve quem defendesse a tese de que o consentimento para a relação sexual dada por uma menina com idade inferior a catorze anos não poderia ser entendida como estupro, por aplicação do instituto da violência presumida, se, porventura, ela se entregasse costumeiramente à prostituição. Esse posicionamento, ao contrário do que na época muitos imaginaram que entraria para a jurisprudência como um julgado isolado, começou a incidir copiosamente nos tribunais. Tal fato motivou o Congresso Nacional a editar a Lei nº 12.015/2009, que criou a figura do estupro de vulnerável, na qual a idade da vítima passaria ao status de elementar, tornando a divergência outrora debatida completamente despicienda. E assim, o legislador conseguiu se redimir dos seus antigos pecados. Alguém ainda acha que jurisprudência e justiça são a mesma coisa? Apesar de a ciência do Direito procurar acompanhar a evolução cultural da sociedade e a dinâmica das relações sociais, nada disso seria preciso para o indivíduo educado em sua plenitude. Ele aprendeu, desde cedo, a respeitar todas as pessoas, sem qualquer consideração quanto à idade, credo, etnia, origem, nacionalidade, opinião, capacidade financeira, orientação sexual e gênero. Proveniente dessa ou daquela geração, jamais tocaria nas partes íntimas de alguém sem o prévio consentimento, independentemente da tipificação do estupro; não abusaria da sua condição de superior nas relações de trabalho para fins libidinosos, mesmo que não existisse a figura típica do assédio sexual; não proferiria palavras obscenas para quem lhe despertasse desejo sexual, ainda que ausente a previsão da importunação ofensiva ao pudor na Lei de Contravenções Penais. Em suma, quem foi privilegiado pelo acesso à educação, não se intitula machista ou feminista, prefere deixar a classificação de macho e fêmea apenas para o grupo dos animais irracionais. Dignifica-se ao se apresentar como homem ou mulher, não com o intuito de criar divisões de qualquer natureza, mas pela aceitação do desafio oferecido pela vida das duas metades se unirem novamente, na forma romântica descrita por Platão em O Banquete.

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Sergio Gurgel é advogado criminalista; autor da Impetus Editora; professor de Direito Penal e Processo Penal; palestrante.

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